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Jean Sasson conheceu Mayada Al-Askari numa viagem a Bagdá em 1998. Um ano mais tarde, Jean soube que Mayada fora encarcerada na prisão de Baladiyat - o quartel-general da polícia secreta de Saddam Hussein. Dezessete mulheres partilhavam a minúscula e suja cela de Mayada: presas sem saberem porquê, submetidas a torturas diárias e sem autorização para contactarem com o exterior. As mulheres partilharam umas com as outras as suas incríveis histórias e, ao fazerem-no, recuperavam a vontade de sobreviver. Mayada ansiava por contar a sua história, mas só há pouco tempo teve oportunidade de o fazer. Agora, em « Mayada, filha do Iraque», a história comovente de uma mulher e da sua vontade de sobreviver, sob o regime de Saddam Hussein chega até nós. JEAN SASSON MAYADA FILHA DO IRAQUE Dedicado a Samara e a todas as mulheres-sombra da cela 52

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Page 1: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Jean Sasson conheceu Mayada Al-Askari numa viagem a Bagdá em 1998. Um

ano mais tarde, Jean soube que Mayada fora encarcerada na prisão de Baladiyat -

o quartel-general da polícia secreta de Saddam Hussein.

Dezessete mulheres partilhavam a minúscula e suja cela de Mayada: presas sem

saberem porquê, submetidas a torturas diárias e sem autorização para

contactarem com o exterior. As mulheres partilharam umas com as outras as suas

incríveis histórias e, ao fazerem-no, recuperavam a vontade de sobreviver.

Mayada ansiava por contar a sua história, mas só há pouco tempo teve

oportunidade de o fazer. Agora, em « Mayada, filha do Iraque», a história

comovente de uma mulher e da sua vontade de sobreviver, sob o regime de

Saddam Hussein chega até nós.

JEAN SASSON

MAYADA

FILHA DO IRAQUE

Dedicado a Samara e a todas as mulheres-sombra da cela 52

SUMÁRIO

Nota da autora: conhecer Mayada ................................... 9

Árvore genealógica de Mayada ........................................ 24

Mapas .........................................................................,,,, 26

1. As mulheres-sombra da cela 52................................... 29

2. As quatro portas negras ............................................. 60

3. Jido Sati ........................................................................ 88

4. Saddam Hussein ............................................................ 106

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5. «Lady» Sajida, a mulher de Saddam .......................... 134

6. Ali, «o Químico», e o véu ........................................... 166

7. Tortura ........................................................................... 205

8. O Dr. Fadil e a família de Mayada ................................ 231

9. O chilrear do «qabaj».................................................... 270

10. Querida Samara ........................................................... 298

Apêndices ........................................................................... 313

Glossário ............................................................................ 327

NOTA DA AUTORA

Conhecer Mayada

Sempre senti um grande fascínio por paragens longínquas. Assim, logo que surgiu

a oportunidade de viajar para uma das zonas mais exóticas e perigosas do

mundo, aceitei o desafio.

Era muito jovem, quando, em 1978, deixei os Estados Unidos para ir trabalhar

num hospital real em Riad, onde permaneci até 1990. Ao longo dos doze anos em

que vivi na Arábia Saudita, estabeleci um vasto círculo de amizade com as

mulheres sauditas. Através desses laços de amizades, pude compreender o que

era ser uma mulher sem recursos nem qualquer proteção contra atos individuais

de violência e de crueldade, numa sociedade dominada pelos homens.

Desde essa minha primeira viagem, percorri o Médio Oriente: visitei o Líbano, o

Egito, a Jordânia, a Síria, a Palestina, os Emirados Árabes Unidos, o Iraque e o

Kuwait. Onde quer que fosse, falava com mulheres e crianças, visitava hospitais e

orfanatos e participava em festas. E, sempre que me lembro que consegui

conhecer os autóctones, sei que eles se sentiam tão intrigados comigo como eu

com eles.

A minha única frustração era saber que muitos dos países árabes que visitei se

achavam dominados por ditaduras, mas, malgrado a patente miséria, as pessoas

que conheci sempre me receberam bem, abrindo alegremente a porta das suas

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casas e os seus corações a uma viajante americana.

Após a Guerra do Golfo, em 1991, todo o Médio Oriente se tornou ainda mais

tumultuoso, em particular o Iraque. Interessava-me pelos Iraquianos desde o início

da Guerra do Golfo, curiosa por conhecer as pessoas que haviam sobrevivido a

conflitos sucessivos e às sanções provocadas pelo seu novo presidente, Saddam

Hussein. Levada por esse meu interesse, decidi visitar o Iraque, no Verão de

1998.

Enquanto autora de um livro que criticava Saddam Hussein, sabia que o governo

iraquiano nunca me concederia um visto; por isso, decidi escrever diretamente ao

presidente do Iraque e enviei-lhe um exemplar do meu livro: The Rape of Kuweit.

Na carta que lhe enderecei explicava que, apesar de não estar de acordo com a

sua invasão do Kuwait, me preocupava com o bem-estar dos iraquianos comuns,

que tinham de se sujeitar às sanções. Acrescentei que queria ver, com os meus

próprios olhos, como vivia o povo do Iraque.

Passadas três semanas, recebi um telefonema de Bagdá, informando-me que me

concederiam o visto em Nova Iorque, através da delegação iraquiana na ONU.

Atulhei a bagagem com mantimentos de guerra - comida enlatada, lanternas e

velas - e, a 20 de Julho de 1998, uma segunda-feira, parti para Bagdá. Devido às

sanções impostas pela ONU ao Iraque não eram permitidos vôos para o país, o

que me forçava a iniciar a minha jornada de um país vizinho. Tendo em conta a

distância entre Bagdá e as outras cidades principais, bem como a agitação que

ainda grassava nas regiões do Norte e do Sul do Iraque, pareceu-me que o ponto

de partida ideal seria a Jordânia.

A Jordânia foi criada pela Grã-Bretanha, após a Primeira Guerra Mundial, durante

a reestruturação do então enfraquecido Império Otomano. Atualmente, a Jordânia

ocupa uma área com mais de noventa mil quilômetros quadrados (o que

corresponde, aproximadamente, à superfície do estado de Indiana) e é o lar de

quatro milhões de pessoas, na sua maioria de nacionalidade palestina. Esse

pequeno país serve de passagem entre a Síria e a Arábia Saudita, ligando

Damasco à cidade santa de Medina, da mesma forma que serviu de ponto de

encontro natural para as caravanas de tempos idos.

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Sete horas depois de entrar a bordo do vôo 6707 da Royal\ Jordanian Airlines, no

aeroporto de Londres, pousei no Aeroporto Internacional Rainha Ali, situado a

poucos quilômetros da capital, Amã.

A deteriorada área destinada ao desembarque de bagagens do aeroporto fez-me

lembrar que a Jordânia é para muitas pessoas apenas um lugar onde se espera

pelo próximo vôo. No entanto, é uma terra de fortes contrastes - desde Acaba, que

esteve no início das extraordinárias aventuras de T.E. Lawrence, à plataforma de

areia grossa que forma o deserto sírio-árabe, onde as tribos de beduínos de

séculos passados faziam pastar os seus animais, até à lendária cidade de Petra,

capital dos Nabateus, onde edifícios, em tons rosados, quase avermelhados, e

túmulos elaborados foram esculpidos nas rochas por uma tribo nômade.

Após uma rápida passagem pela alfândega, saí do aeroporto. Ainda estava calor -

o sol tórrido de Julho pusera-se alguns minutos antes de aterrissar o avião em que

seguia.

Estudei a multidão que se apinhava na sala de desembarque, e não precisei de

muito tempo para avistar um homem árabe, de meia-idade, com calças beges

puídas e camisa azul, que empunhava um letreiro muito grande com o meu nome

escrito a tinta azul. Sentei-me no banco de trás da seu muito velho carro, um

Peugeot 504, durante a viagem de quarenta e cinco minutos até ao Hotel

Intercontinental de Amã, e, depois de alguns minutos de uma curta conversa de

cortesia, recostei-me e olhei, em silêncio, pela janela.

À tênue luminosidade do crepúsculo, as plantas do deserto projetavam os seus

contornos irregulares no céu de tonalidades rosadas. Como é costumeiro, muitos

jordanianos tinham-se dirigido para os subúrbios da capital e estendido os tapetes

orientais coloridos sobre os pequenos montículos de areia, para os seus

piqueniques noturnos. Dezenas de pequenas fogueiras brilhavam, iluminando as

silhuetas sombrias das mulheres, que grelhavam frangos em espetos. Minúsculos

pontos de luz refletiam o gesticular dos homens árabes, discutindo alegremente,

com os seus cigarros acesos, enquanto que sombras, aninhadas aqui e ali,

revelavam crianças que brincavam nas areias infindáveis. Baixei o vidro da janela

do carro, escutei o crepitar das chamas que se imiscuía com as vozes abafadas

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de reuniões familiares e, por uma fração de segundo, desejei pertencer a uma

daquelas famílias.

Amã é uma cidade bonita, erigida entre sete colinas. Não demoramos muito tempo

até chegar ao Intercontinental, situado no centro do bairro diplomático e construído

no topo de uma das sete colinas. Não escolhera o hotel por qualquer motivo

particular, a não ser por pensar que devia ser um local seguro, com comida

decente, onde poderia comprar mantimentos e organizar uma viagem de cerca de

mil quilômetros por terra até Bagdá.

Dormi razoavelmente, na primeira noite. Na manhã seguinte, depois de vários

telefonemas, o proprietário jordaniano do Al-Rahal (1), chegou ao Intercontinental,

num Mercedes branco. A sua estimativa para a viagem de ida e volta a Bagdá era

de quatrocentos dólares. Devia pagar-lhe metade antes de partir para Bagdá e a

outra metade antes de sair da capital iraquiana. Paguei-lhe os primeiros duzentos

dólares e ele disse-me que ficasse à espera de um veículo de tração às quatro

rodas que viria buscar-me, na manhã seguinte, às 9.30. O meu motorista seria um

jordaniano chamado Basem.

As pessoas com quem falei, nesse mesmo dia, mostraram-se estarrecidas ao

saber que eu ia viajar sozinha para o Iraque. A sua preocupação era legítima. O

verão de 1998 fora uma época dominada por uma grande tensão entre Saddam

Hussein e Richard Butler, o chefe dos inspetores de armamento da ONU. Mr.

Butler, homem de caráter determinado, persistia em descobrir e destruir o

armamento iraquiano, o que lhe valera a alcunha Mad Dog Butler, que lhe fora

posta pelo próprio Saddam. Este, por seu lado, revelara-se igualmente implacável

e decidido no seu propósito de proteger o muito bem guardado arsenal de armas

que possuía, e, como não podia deixar de ser, as notícias que haviam chegado

aos países do Ocidente deixavam bem claro que Richard Butler estava

visivelmente exasperado com a falta de colaboração do governo iraquiano.

Receava-se que, mais cedo ou mais tarde, acontecesse algo de desagradável nas

relações entre o agressivo ditador, a leste, e o seu determinado adversário, a

oeste. À luz da patente tensão na zona, e da crescente animosidade por parte

(1) - Guia turístico que abrange várias zonas do Médio Oriente. (N. do E.)

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de Hussein, poucos jornalistas americanos tencionavam viajar para o Iraque

naquele verão, e os que o fizeram optaram por viajar sob disfarce, geralmente a

pretexto de trabalharem para organizações humanitárias.

Mas eu sempre fui aventureira e sempre considerei que é melhor viajar sozinha.

Assim, foi com grande expectativa que, à hora combinada, deixei Amã, sentindo

que uma aventura começava naquele momento.

Amã depressa ficou para trás, e atravessamos o distrito de Zarqa, antes de entrar

no oásis de Al-Azraq, conhecido pela sua estrada esburacada e com lombadas.

Senti o terror instalar-se no meu coração quando entramos na estrada estreita,

apinhada de caminhões pesados e de ônibus, e a boca seca, de apreensão, ao

reparar no grande número de ônibus calcinados e de carcaças de caminhões, nas

bermas; pareciam animais enormes que ali haviam agonizado, antes de morrer.

Durante horas a fio, Basem e eu atravessamos regiões monótonas que pareciam

ter sido totalmente varridas pelos ventos do deserto. Apesar de viajarmos a cento

e vinte quilômetros por hora, não se via mais nada senão o bege contínuo das

planícies poeirentas e das suas enfezadas árvores e plantas espinhosas.

A paisagem manteve-se árida até que, finalmente, deu lugar à cor e às formas

arredondadas dos pedregulhos de lava negra que brilhavam sob o sol do meio-dia.

Infelizmente, pouco depois, deparamo-nos novamente com a mesma paisagem

monótona de imensas extensões de terra completamente planas.

À medida que a manhã avançava, aproximamo-nos da fronteira iraquiana. Desde

os tempos da antiga Mesopotâmia que o país, atualmente conhecido como Iraque,

desempenha um papel fulcral em toda a região, tendo, em resultado disso, sofrido

sucessivas invasões. Desde os Mongóis aos Otomanos e aos Ingleses, muitas

potências estrangeiras têm tentado apoderar-se da beleza e da riqueza da

Mesopotâmia. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, os Ingleses criaram o

moderno estado do Iraque, forçando os Curdos, os Sunitas e os Xiitas a unirem-

se, de forma artificial, num só país.

Depois de passar pela fronteira e pela alfândega iraquiana, o meu coração

começou a bater mais depressa, tão ansiosa me sentia, mas ainda teria de

percorrer muitos quilômetros antes de avistar o lendário rio Eufrates.

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Atravessamos a região chamada Al-Anbar, dominada pelos sunitas iraquianos, na

sua maioria pertencentes à tribo Dulaimi. Este povo mantém-se ao lado de

Saddam Hussein. Mesmo depois dessa insensatez que foi a Guerra do Golfo, em

1991, Saddam foi recebido de braços abertos pelas populações da região e teve

uma reação invulgar para um homem dominado por impulsos paranóicos -

esvaziou o seu revólver para o ar, o que o deixou indefeso.

Finalmente, após onze horas de viagem, a parte baixa de Bagdá surgiu, com os

topos das palmeiras e dos telhados erguendo-se acima da planície. Contemplei

em silêncio as casas pequenas, beges, que, após uma travessia pelo deserto,

tomavam, aos meus olhos, dimensões de edifícios de uma grande civilização.

Pequenas mesquitas com enormes cúpulas pontilhavam o céu. Casas com

varandas e pátios surgiram por entre ruas transversais minúsculas e, aqui e ali,

vislumbrei alguns ramos de violetas mirradas ou de flores brancas, lutando para

desabrochar à sombra de uma palmeira.

Às esquinas, magotes de pedestres abriam caminho pelas ruas muito

movimentadas da cidade. Infelizmente, as velhas ruas de Bagdá, desertas e

sossegadas, haviam-se tornado caóticas, cheias de carros velhos com pneus

carecas, seguindo atrás de ônibus a cair aos bocados que exalavam nuvens

negras de fumo. Eu sabia que as guerras e as sanções impostas ao seu governo

haviam isolado os Iraquianos do resto do mundo, e a visão de pessoas cujos

rostos eram sombrios, vestidas com roupas puídas, não constituiu qualquer

surpresa para mim. Quando paramos em frente de um semáforo, estudei melhor

os rostos das pessoas, ciente de que me achava no centro de um país onde as

pessoas haviam tido uma existência miserável, muito para lá do que eu alguma

vez seria capaz de imaginar. Um homem ou uma mulher iraquianos de cinquenta

anos - a minha idade -, já testemunhara rebeliões e revoluções, a coroação de

reis, inúmeros golpes de Estado, a descoberta do petróleo, a promessa de

grandes riquezas nacionais, a prosperidade devastada por guerras brutais, uma

política repressiva e variadas sanções.

Assim que a luz do dia começou a desvanecer-se, ouvi a voz do muezim a chamar

os muçulmanos para a oração do pôr do Sol. Olhei para cima e vi uma pequena

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cidadela, do outro lado da rua. A voz grave, musical, do muezim propagou-se do

alto da cidadela, enquanto o Sol se punha vagarosamente. Basem virou na rua

que levava ao Hotel Al Rasheed. Tinha chegado, sã e salva.

O Iraque proporcionou-me um fascinante estudo de contrastes. Apesar de viverem

sob uma constante repressão, os Iraquianos foram surpreendentemente calorosos

e expansivos. Os empregados do Hotel Al Rasheed revelaram-se muito educados,

mostrando-me fotografias dos seus familiares e oferecendo-me pequenas

lembranças que eu sabia que eles mal podiam comprar. Os funcionários do

Ministério da Informação convidaram-me a ir às suas casas, onde participei de

refeições e conheci os seus amigos. Os guardas de plantão no ministério

acompanharam-me no carro para me contar histórias das suas famílias. As mães

e os pais de crianças a morrer de leucemia num hospital ali perto partilharam

merendas comigo, quando visitei as alas pediátricas. O meu novo motorista,

contratado pelo diretor do Hotel Al Rasheed recusou outros trabalhos ao longo de

toda a minha estada, e passou horas sentado no átrio do hotel, para a

eventualidade de eu precisar de alguma coisa. E, depois de três desconhecidos

terem batido à porta do meu quarto, na primeira noite que passei em Bagdá, o

diretor do hotel mandou colocar junto dela um homem de guarda, durante vinte e

quatro horas por dia.

A parte mais maravilhosa da minha viagem, no entanto, estava ainda para vir.

Dois dias depois de chegar a Bagdá, conheci a inesquecível Mayada Al-Askari,

uma mulher que iria tornar-se como uma irmã para mim.

A minha sorte em conhecer Mayada deveu-se em grande medida à minha

determinação em ter uma mulher, e não um homem, como intérprete, durante a

minha estada em Bagdá. Após o primeiro dia, perguntava a mim própria por que

motivo ainda ninguém do Ministério da Informação viera visitar-me - lera muitas

histórias sobre a intromissão do Ministério da Informação em relação à presença

de hóspedes estrangeiros nos hotéis. No segundo dia, comecei a impacientar-me

e pedi ao meu motorista que me conduzisse ao ministério, para que pudesse pedir

um intérprete. Foi-me dito que um Shakir Al-Dulaimi, era o diretor do Gabinete de

Imprensa do ministério.

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Entrei no gabinete de Shakir e brinquei com o fato de haver ouvido histórias de

estrangeiros que tinham sido seguidos por membros da polícia secreta iraquiana,

mas que ninguém parecia saber que eu me encontrava na cidade. Não seria

suficientemente importante para ter um agente da polícia secreta a me seguir?

Shakir pareceu divertido e respondeu que, se eu quisesse, arranjaria um iraquiano

para me acompanhar.

Porque estava interessada, sobretudo nos problemas das mulheres iraquianas e

por saber, devido aos anos que vivera no Médio Oriente, que nenhuma mulher

árabe falaria abertamente em frente de um homem árabe, disse a Shakir que tinha

de declinar a sua gentil oferta. Insisti que aceitaria apenas um intérprete do sexo

feminino. Após uma pequena altercação amigável, Shakir ergueu as mãos para o

ar e encolheu os ombros, um gesto árabe de derrota amistosa, e acedeu ao meu

pedido (soube, mais tarde, que a política oficial do governo era contratar apenas

intérpretes do sexo masculino).

Regressei ao gabinete de Shakir na manhã seguinte, onde encontrei uma mulher

modestamente vestida: usava uma túnica que lhe chegava aos tornozelos e tinha

o rosto emoldurado por um lenço preto. Era de estatura média, um pouco anafada,

e apesar de a pele do rosto ser muito branca, tinha faces rosadas e olhos verdes-

claros, que brilhavam de expectativa. Olhamos uma para a outra, a mulher fitou

Shakir e olhou, novamente, para mim.

Parecia simpática e, animada, sorri-lhe, na esperança de que fosse ela a minha

intérprete durante a minha estada no Iraque.

Ela correspondeu ao meu cumprimento com um sorriso tímido.

Shakir fitou-me e anunciou:

- Jean, esta é a sua intérprete.

Numa voz harmoniosa e com uma ligeira pronúncia, a mulher acrescentou:

- O meu nome é Mayada Al-Askari.

Mais tarde, disse-me que havia vários anos que o ministério não a contratava,

porque os diretores recorriam quase exclusivamente a intérpretes masculinos.

Fiquei contente - e penso que ela também - por haver reagido com tanta teimosia

à sugestão inicial de Shakir.

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Mayada e eu depressa nos tornamos amigas. Descobri que falava fluentemente

inglês e que tinha um extraordinário sentido de humor. Era divorciada e tinha uma

filha de quinze anos, Fay, e um filho de doze, Ali. Além do mais, partilhava a

minha paixão pelos animais - era a orgulhosa dona de um gato e de uma gata,

que acabara de ter uma ninhada.

Durante as semanas que se seguiram, descobri que Mayada era filha da antiga

Mesopotâmia, conhecida, no mundo moderno, como Iraque. Tinha orgulho no seu

país e por motivos válidos - durante grande parte da sua história, a Mesopotâmia

fora um antigo paraíso de grandes glórias. A sua cultura produzira artistas, poetas

e intelectuais, e alguns dos primeiros governantes foram grandes construtores

dedicados à literatura e às grandes obras que deram ao mundo as primeiras leis e

liberdades.

Apesar de muitos dos reformadores da Mesopotâmia se haverem esforçado por

melhorar o nível dos cidadãos do país, esses sensatos governantes foram muitas

vezes destituídos por tiranos que arrastaram o país para a violência, durante

gerações seguidas. Muito antes de Saddam Hussein chegar ao poder, inúmeros

conflitos haviam devastado o país de Mayada. Abençoada por dois rios, numa

região primordialmente desértica, pelos desertos, com uma localização geográfica

privilegiada, ligando importantes centros de comércio, e dotada de uma grande

riqueza, a Mesopotâmia sempre foi muito cobiçada. Desde os antigos Sumérios

aos Mongóis, desde Tamerlão aos Persas e aos Otomanos, o país foi conquistado

vezes sem conta.

Para compreender a família de Mayada é preciso saber-se um pouco mais sobre o

Império Otomano, que dominou todo o Próximo Oriente, entre 1517 e 1917, e o

Iraque, entre 1532 e 1917. Esse vasto império incluía a Ásia Menor, o Médio

Oriente, o Egito, parte do Norte de África e até parte do Sudeste da Europa. Em

todas as regiões que conquistaram, os Otomanos nomearam para o governo

aliados que pensassem como eles. Os sultões do Império Otomano eram

muçulmanos sunitas, pelo que tendiam a nomear membros das seitas sunitas para

reinar. Conferiram aos Sunitas, um grupo minoritário, o poder sobre todos os

outros iraquianos, incluindo os Xiitas, que estavam em maioria. Os governantes

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otomanos lançaram assim as bases de permanentes tensões étnicas no país de

Mayada. Todavia, enquanto o Império Otomano permaneceu no poder, tais

tensões fervilharam subterraneamente, em vez de entrarem em erupção e

lançarem o país no caos. Com o fim do Império Otomano, aquelas hostilidades

latentes rebentaram, e essas mesmas forças instáveis sobrevivem até hoje.

O toque de finados soou para o Império Otomano depois da Primeira Guerra

Mundial, em conseqüência da decisão do sultão de se aliar aos Alemães durante a

guerra. Com o colapso dos Otomanos, renasceu a esperança de que os árabes -

que durante séculos tinham visto ser violados os seus direitos humanos sob o

domínio otomano - pudessem, finalmente, fundar nações livres e ter uma vida

digna. Infelizmente, o seu tormento não terminou com a queda do Império

Otomano porque os Ingleses e os Franceses já tinham os seus exércitos

preparados para preencher o lugar vago. Os árabes perceberam que os seus

novos conquistadores europeus acreditavam ser, por direito, os donos de todos os

recursos da zona, em vez de os deixarem nas mãos dos árabes. Assim, a história

de possessão continuou. Os Ingleses sentiam-se mais à vontade com os

guardiões sunitas, e a minoria sunita continuou a governar a maioria xiita.

Estas grandes mudanças no destino do Império Otomano moldaram

drasticamente as vidas dos avôs e dos pais de Mayada, porque a sua linhagem

vinha diretamente da realeza otomana. Ambos os avôs de Mayada viveram como

respeitáveis cidadãos do vasto império e haviam testemunhado a desintegração

do governo otomano, após a vitória dos Aliados, na Primeira Guerra Mundial. Na

esperança de verem nações árabes prósperas e livres, os dois avôs de Mayada

também se empenharam na formação e na estruturação dos governos dos novos

estados árabes da Síria e do Iraque.

O avô paterno de Mayada, Jafar Pasha Al-Askari, foi um homem singular,

comandante do Exército Regular Árabe, lutando ao lado de T. E. Lawrence e do

príncipe Faiçal para ajudar a derrotar o Império Otomano. O avô materno de

Mayada, Sati Al-Husri, ficou conhecido em todo o mundo árabe como um sábio e

como o pai do nacionalismo árabe, e foi um dos primeiros intelectuais a clamar por

um governo árabe para os territórios árabes.

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Tal como os seus pais e avôs, Mayada nasceu muçulmana sunita. Os Sunitas

constituem a maior seita da fé islâmica em todo o mundo, embora estejam em

minoria em vários países árabes, incluindo o Iraque. A mãe de Mayada, Salwa Al-

Husri, era filha de Sati Al-Husri, enquanto o pai de Mayada, Nizar Al-Askari, era

filho de um famoso guerreiro e oficial, de seu nome Jafar Al-Askari.

A casa da família de Mayada era uma popular «casa política»; com freqüência,

recebiam visitas e telefonemas de figuras políticas de todo o mundo. Porque ela

foi uma filha e uma neta muita amada, a família ajudou-a a guiar a sua vida pelo

caminho do ensino e do privilégio, esperando que ela singrasse na medicina ou

nas artes e tivesse uma vida ligada à cultura.

Contudo, os conflitos políticos no Iraque tendiam a alterar cada novo plano

cuidadosamente delineado. Em 1968, quando o Partido Baath subiu ao poder, a

maioria dos intelectuais fugiu para os países vizinhos, mas o pai de Mayada

estava a morrer de câncer e a receber tratamento num hospital local e a família

decidiu permanecer em Bagdá.

Apesar do governo de Saddam Hussein, que, a cada ano que passava, se ia

tornando mais tirânico, Mayada continuou a viver no Iraque. Cresceu no Iraque.

Fez carreira como repórter de um jornal no Iraque. Casou no Iraque. Teve dois

filhos no Iraque. Sobreviveu à guerra entre o Irã e o Iraque. Sobreviveu à Guerra

do Golfo. Sobreviveu às sanções. Mayada sofreu durante quase todas as fases da

turbulenta história recente do Iraque, mas, apesar do seu sofrimento, sempre

acreditou que podia viver no Iraque, a terra que amava desde criança.

Numa dada ocasião, visitamos a ala pediátrica de um hospital de Bagdá. Eu fiquei

tão comovida com o sofrimento das crianças que pegavam sem grande interesse

nos brinquedos que lhes oferecia, que tive dificuldade em reprimir a minha

emoção. Quando estava prestes a irromper em lágrimas, senti a mão

reconfortante de Mayada no meu ombro. Estava triste por testemunhar a minha

tristeza. Foi então que uma enfermeira apareceu e sem preparar psicologicamente

as crianças, começou a dar-lhes injeções. Perante a visão de tantas crianças a

chorar, senti-me desesperada, e, para tentar acalmá-las, comecei a cantar e a

dançar, na esperança de que se abstraíssem da dor. O meu tolo comportamento

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fez com que algumas crianças sorrissem debilmente e provocou grandes

gargalhadas nos pais, uma vez que não tenho jeito nenhum para dançar e cantar.

Mayada, então, pediu-me para sairmos do hospital. Ainda me recordo da surpresa

que senti quando ela começou por dizer quanto detestava Saddam Hussein e que

o seu único sonho na vida era viver para testemunhar a queda do ditador. Disse-

me o que todos sabemos e que constitui a causa principal do sofrimento daquelas

crianças. Não só o ditador iniciara as guerras que haviam trazido as sanções,

como também, segundo Mayada, estava tão desejoso de atirar a culpa pelas

mortes de crianças inocentes às sanções impostas pela ONU que retirara o

fornecimento de medicamentos aos hospitais - por exemplo, podia autorizar que

se usasse apenas um medicamento para os doentes com leucemia, quando estes

precisavam de dois ou três tipos de fármacos diferentes para combater certos

cânceres. Também se sabia que Saddam exibia caixões vazios de crianças nas

ruas com o intuito de pôr o mundo contra os Estados Unidos.

Com medo de que um fiel seguidor de Saddam a ouvisse, receei pela segurança

de Mayada e tentei acalmá-la, mas nada do que lhe disse interrompeu o seu

desabafo.

Vira, com os meus próprios olhos, que Saddam Hussein transformara o Iraque

numa grande jaula. Era como se os Iraquianos estivessem à espera de ser presos

e torturados por um crime qualquer, saído da imaginação do ditador, mas o

governo de Saddam parecia de pedra e cal, e eu não tinha grande esperança de

que os Iraquianos pudessem, um dia, conhecer a liberdade. Quando perguntei a

Mayada por que motivo não fugira do Iraque para ir viver com a mãe, na Jordânia,

ela justificou a sua lealdade para com o seu país - mas não para com Saddam

Hussein - quando me explicou que tinha de viver na terra onde se encontrava a

sepultura do pai. Era iraquiana e por isso a sua casa era o Iraque - apesar do

perigo.

A minha visita a Bagdá aproximava-se do fim e, passadas poucas semanas, tive

de me despedir de Mayada.

Quando deixei Bagdá, foi um dia triste, mas, desde o primeiro momento em que

nos havíamos conhecido, Mayada e eu sabíamos que seríamos amigas para o

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resto da vida. Depois de regressar aos Estados Unidos, fortalecemos a nossa

amizade, apesar da grande distância que nos separava. Escrevemos e

telefonamos uma à outra, mantendo-nos em contacto todas as semanas.

Um ano depois do nosso primeiro encontro, Mayada desapareceu. Ninguém

atendia o telefone em sua casa. As minhas cartas não obtinham resposta.

Começava a sentir-me desesperada, quando ela me telefonou. Estava na sua

casa, em Bagdá, e disse-me que tinha ido de «cana», ou seja, que havia estado

presa. Percebi logo que não devia fazer mais perguntas, e só depois de Mayada

viajar para a Jordânia pude conhecer toda a história sobre a sua detenção e a sua

fuga.

Depois de Mayada ser presa, uma série de acontecimentos deram andamento a

este livro. Em 1999, Mayada fugiu do Iraque. Em 2000, a sua filha, Fay, fugiu do

Iraque. Em 2001, dois ataques terroristas vitimaram Nova Iorque e Washington.

Nesse mesmo ano, o presidente George Bush enviou tropas americanas para

acabar com o terrorismo. Em 2002, Bush decidiu que os Iraquianos já haviam

sofrido demasiado com o regime de Saddam Hussein e, no início de 2003, as

forças da coligação destituíram Hussein. Nesse ano, Mayada decidiu que o mundo

devia saber a verdade sobre a vida no Iraque, contada por alguém que conhecia o

país sob todos os ângulos, desde os palácios às salas de tortura de Saddam

Hussein. Depois de falarmos durante várias semanas sobre a possibilidade de

levar à estampa este livro, Mayada pediu-me que escrevesse a história da sua

vida, e eu aceitei.

Enquanto escrevi este livro, pude conhecer muitos dos familiares de Mayada, que

passei a admirar. Foram grandes homens e mulheres, que tiveram papéis

importantes na fundação do Iraque moderno, e muito embora essas pessoas

maravilhosas já tenham desaparecido, sinto-me reconfortada por saber que toda a

história do Iraque moderno está registrada nos genes de Mayada Al-Askari, e que

será através desta mulher notável que a verdade sobre a vida no Iraque moderno

fluirá através dos tempos.

Nota do Corretor :

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Seguem-se, no livro, um conjunto de 5 páginas, que incluem :

-Árvore genealógica de Mayada (24 + 25)

- MAPA DO IRAQUE (26)

- MAPA DO IRAQUE E DOS PAÍSES VIZINHOS (27)

- Planta da Prisão (28)

Estas páginas são essencialmente gráficas, pelo que não foi possível fazer a sua

reprodução.

As mulheres-sombra da cela 52

Por volta das 8.45 da manhã de 19 de Julho de 1999, Mayada Al-Askari dirigiu-se

para o trabalho, a grande velocidade. Na sua tipografia, as manhãs eram sempre

a parte do dia mais atarefada e, pela grande quantidade de encomendas que

haviam chegado na véspera, Mayada sabia que aquela manhã iria ser

particularmente agitada. Quando estabelecera o seu pequeno negócio, no ano

anterior, comprara as melhores impressoras do Iraque, o que fazia com que o

trabalho efetuado na sua tipografia fosse considerado o melhor de toda a área de

Mutanabi. Em resultado disso, Mayada não tinha mãos a medir para efetuar os

trabalhos que lhe eram encomendados. Aceitava todo o tipo de encomendas,

desenhando logotipos e escrevendo textos para pacotes de leite, caixas e

garrafas. Também imprimia livros, desde que a ordem de impressão tivesse o

carimbo de aprovação do Ministério da Informação. O pequeno negócio de

Mayada tornara-se tão eficaz que muitas das outras tipografias da zona não só

entregavam algumas encomendas à sua grande concorrente como também

afirmavam que o seu trabalho havia sido feito por eles.

Mayada olhou para o relógio de pulso. Estava atrasada. O carro guinou, ao

contornar uma esquina, mas Mayada certificou-se que não ultrapassara o limite de

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velocidade.

Pelo pára-brisas, olhou para o céu. Estava a escurecer rapidamente, devido à

tempestade de areia que se aproximava, o que fazia lembrar um dia de nevoeiro

na Inglaterra.

As rajadas quentes de vento começavam a levantar-se. O mês de Julho era

sempre desagradável no Iraque. Mayada desejava escapar do calor e refugiar-se

nas montanhas do Líbano, mas já não tinha dinheiro para umas férias e resolveu

não pensar mais no assunto. Estacionou o carro na rua e saiu. Para evitar que o

vento lhe fizesse arder os olhos e lhe irritasse a garganta e os pulmões, baixou a

cabeça e pôs a mão em frente da boca, caminhando apressadamente. Felizmente,

a porta da tipografia estava destrancada. Os seus dedicados empregados já

haviam entrado. Mayada conseguira arranjar empregados leais, não apenas por

lhes pagar salários mais altos do que as outras tipografias, mas, acima de tudo,

por serem pessoas sérias e bem-educadas.

Mayada passou uma rápida vista de olhos pela loja. Hussain, Adel e Wissam já se

achavam em frente dos seus computadores. Depois, o seu olhar focou-se na

pequena kitchenette, situada no fundo da loja. Nahla acabara de fazer café.

Sorriu-lhe e avançou para ela, com uma xícara na mão. Antes que Mayada

pudesse levar a chávena aos lábios, Hussain e Wissam aproximaram-se, falando

ao mesmo tempo sobre o projeto gráfico em que estavam trabalhando. Foram

interrompidos por um cliente que entrou, de rompante, pela porta destrancada e

que parecia ansioso por falar com Mayada. O jovem explicou que era um

estudante tunisiano e que o proprietário de uma outra tipografia da área lhe

recomendara Mayada. Queria que lhe traduzissem e preparassem um

questionário. Mayada falava com o rapaz, para saber melhor que tipo de trabalho

ele pretendia, quando a porta do seu gabinete se escancarou subitamente e três

homens entraram. Mayada sentiu um ligeiro aperto no coração, pressentindo

imediatamente que aqueles homens tinham uma postura demasiado rígida para

serem clientes.

O mais alto dos três homens exclamou:

- O seu nome é Mayada Nizar Jafar Mustafa Al-Askari?

Page 17: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

A pergunta do homem surpreendeu Mayada, porque eram poucas as pessoas que

conheciam o seu nome completo. Usava raramente o nome Mustafa, se bem que

tivesse orgulho nele, porque lhe recordava o seu bisavô Mustafa Al-Askari, que, tal

como o seu avô Jafar, havia sido um oficial de renome do grande exército

otomano.

Mayada não se mexeu, enquanto perscrutava, com o olhar, o homem que se

achava à sua frente. Ainda pensou, por breves momentos, em fugir dali, mas o

seu pai morrera, ela era divorciada e, por conseguinte, não tinha um homem na

família para protegê-la. Emitiu um som débil que soou como um «sim».

Então, o homem alto declarou, rispidamente:

- Sou o tenente-coronel Muhammed Jassim Raheem. Eu e estes meus dois

colegas vamos revistar o local.

Mayada recuperou a voz e conseguiu fazer uma pergunta:

- Do que estão à procura?

O tenente-coronel empertigou-se; as peles caídas do seu pescoço moveram-se

para a direita e para a esquerda, antes de ripostar, pronunciando cada palavra

como se estivesse a disparar balas.

- Isso é o que você tem de nos dizer!

Mayada calou-se. Não sabia que palavras ou ações podiam salvá-la, enquanto os

três homens começaram a virar do avesso a sua pequena loja. Esvaziaram os

cestos de papel, examinaram os fundos das cadeiras, abriram os telefones com

chaves de parafusos. Por fim, pegaram nos computadores e nas impressoras que

ela tanto estimava. Mayada sabia que nunca mais arranjaria dinheiro para

substituí-los, enquanto observava os homens a transportar os computadores para

o bagageiro dos dois Toyota Corolla brancos, o automóvel por excelência da

polícia secreta iraquiana. Mayada amarrotou lentamente as folhas que o estudante

tunisiano lhe dera, enquanto via, indefesa, aqueles homens destruir o seu futuro.

Só então olhou, de soslaio, para os seus assustados empregados. Haviam-se

agrupado a um canto do gabinete e não se atreviam sequer a respirar. Nahla

empalidecera e os seus lábios tremiam. O estudante tunisiano esfregava as mãos,

com o rosto marcado pelo arrependimento de haver entrado naquela tipografia.

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Mayada não tinha quaisquer dúvidas de que seria a próxima a ser levada até ao

lúgubre carro e pediu ao tenente-coronel para fazer um telefonema.

- Posso telefonar aos meus filhos e dizer-lhes para onde os senhores me levam?

- Não! - gritou o homem, lançando-lhe um olhar sinistro.

Mayada insistiu com tanta gentileza quanto pôde.

- Por favor... Tenho de telefonar aos meus filhos. Só me têm a mim.

O seu apelo sentido não comoveu o tenente-coronel.

- Não! - Estalou os dedos e os seus dois colegas rodearam Mayada.

Entalada entre os dois homens, foi conduzida até ao carro. Antes de sair pela

porta da sua tipografia, olhou para trás, perguntando a si mesma se algum dia

regressaria.

Já sentada no banco traseiro do Toyota, Mayada reparou num transeunte que lhe

lançava olhares assustados antes de estugar o passo. O que lhe chamara a

atenção fora a expressão compadecida daquele homem.

Mayada sentiu tonturas, enquanto o Toyota circulava, a toda a velocidade, pelas

ruas movimentadas de Bagdá. Esforçou-se por concentrar-se no céu laranja e

amarelo que parecia rodopiar com as violentas rajadas de vento. A tempestade de

areia circundara a cidade. Em circunstâncias normais, quando as areias

escaldantes se aproximavam de Bagdá, a única preocupação de Mayada era

proteger a sua casa, tapando as janelas com cobertores e enfiando jornais

amarrotados por baixo da porta. Depois, aguardava que a fúria do vento passasse,

pegava numa vassoura e num pano do pó e enchia baldes pequenos com areia,

que esvaziava no seu jardim. À lembrança daquele ritual, Mayada sentiu um nó no

estômago.

Olhou pela janela do carro vendo os seus outrora orgulhosos compatriotas

envergando agora roupas esfarrapadas. Vinte anos antes, quando ela era jovem,

o Iraque florescera. O país tinha avenidas largas, lojas requintadas, casas

magníficas e um futuro promissor, até que, com a chegada de Saddam ao poder,

o Iraque fora dilapidado. A corrupção obstruíra todos os departamentos

governamentais. Os Iraquianos haviam chegado ao extremo de formar longas filas

para receber míseras latas de farinha, de óleo e de açúcar, distribuídas como

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rações em troca das exportações de petróleo, sob o Acordo 661 da ONU.

Foram momentos difíceis para todos os iraquianos. Mesmo a mãe de Mayada,

Salwa Al-Husri, uma mulher inteligente e de personalidade forte, que sempre

defendera o Iraque, perdera a esperança de que o seu país voltasse a ser o que

havia sido. Salwa acabara por desistir e fora viver para a Jordânia.

Os problemas de Mayada haviam começado quando se divorciara do marido,

Saiam, em 1998. Um ano depois, deixara a sua carreira de jornalista e iniciara

sozinha o seu negócio, mas por essa altura já o dinar iraquiano se desvalorizara

drasticamente e Mayada perdera tudo o que tinha. Num mercado de trabalho

empobrecido, Mayada voltara a procurar emprego. Após as guerras e as sanções,

eram poucos os Iraquianos que tinham um emprego, mas para as mulheres

arranjar um emprego era ainda mais difícil do que para os homens. A política

governamental mantinha tacitamente tanto quanto possível os homens no ativo,

mas não revelava qualquer preocupação para com as mulheres que não tivessem

um marido que as sustentasse.

Com duas crianças para criar e à beira do total colapso financeiro, Mayada pedira

um pequeno milagre a Deus.

O milagre operara-se, sob a forma de Michael Simpkin, um produtor do Channel 4,

uma estação de televisão inglesa. Sirnpkin procurara a mãe de Mayada em Amã e

pedira ajuda a Salwa para se encontrar com o vice-primeiro-ministro Tariq Aziz ou

com Sultan Hashi, o ministro da Defesa. Salwa tinha muitos contactos e alguma

influência no Iraque, e ainda conhecia os números de telefone particulares de

alguns dos altos oficiais iraquianos. Fizera alguns telefonemas e conseguira

convencer os burocratas do governo de que deviam receber Michael Simpkin. O

jornalista inglês encontrou-se com Aziz, Hasim e Saad Wasim Hamousi, o

responsável pelas relações exteriores, no palácio de Saddam.

Salwa também encorajara Simpkin a falar com a sua filha, Mayada, enquanto

estivesse no Iraque, e Simpkin fora visitar Mayada à sua casa, situada na Praça

Wazihiya. A dada altura, Siinpkin dissera a Mayada que precisava de um

intérprete. Tomando conhecimento do currículo dela como jornalista, e

percebendo como o seu inglês era fluente, acordando pagar-lhe em dólares

Page 20: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

americanos.

O programa de Simpkin, War for the Gulf, foi um êxito, e, no dia em que o

jornalista inglês teve de partir, Mayada elaborou um plano para retomar o seu

negócio. Havia sido capaz de geri-lo e só não prosperara devido à situação

financeira do país. Não fora por culpa dela que o negócio fracassara, pelo que iria

tentar novamente.

Nunca se sentira tão alegre como no dia em que enfiara os dólares na carteira e

entrara numa loja para comprar seis computadores e três impressoras. A sua

alegria fora ainda maior do que a que sentira no dia do seu casamento, quando,

envergando um elegante vestido branco, se achara bela pela primeira vez na vida.

Com os seus dólares e a sua determinação, Mayada regressara ao mundo dos

negócios. Após muitos dias de intenso trabalho, o seu pequeno negócio começou

a tornar-se rentável. Podia alimentar e educar os filhos sem ajuda de ninguém.

Mayada acreditou que o pior já havia passado, feliz pelo seu êxito.

«Devia ter adivinhado», pensava agora. Ao longo dos últimos anos, os agentes do

Partido Baath haviam começado a suspeitar cada vez mais das tipografias, porque

os panfletos se haviam tornado um método muito popular de criticar e atacar o

governo enfraquecido de Saddam. E, apesar de Mayada ser cautelosa e de

manter o seu pequeno negócio acima de qualquer suspeita oficial, a inocência, por

si só, não era salvaguarda para ninguém.

Quando se inclinou e olhou pela janela da frente do carro, um medo terrível

apoderou-se do seu espírito. Ia a caminho da Darb Al-Sad Ma red, a «estrada de

onde não se regressa».

Pelo trajeto que o carro fazia, soube que estava a ser conduzida ao Baladiyat, o

quartel-general da polícia secreta de Saddam, e que também servia de

estabelecimento prisional. Mayada nunca entrara naquele edifício, mas quando a

prisão fora construída passara freqüentemente pelo local de manhã, a caminho do

seu trabalho. Nunca sonhara, nem mesmo nos piores momentos, que um dia seria

levada até ali... Contudo, esse dia inimaginável chegara, e Mayada receava que a

morte a esperasse em Baladiyat.

Passados poucos minutos, avistou a entrada principal da prisão. O automóvel

Page 21: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

passou por um portão negro, muito alto e decorado com duas pinturas murais, de

onde Saddam olhava para os iraquianos que trabalhavam nos campos, nas

fábricas e nos escritórios.

O automóvel parou em frente de um grande edifício de janelas pequenas,

centradas no topo da estrutura. Mayada sentia-se enfraquecida pelo medo, e

quando os dois homens a tiraram do Toyota, reparou que as nuvens negras de

areia haviam obscurecido o céu por completo. O seu pavor provocava-lhe

vertigens, mas fechou os olhos e respirou fundo, tentando manter o controle. Usou

os músculos e forçou-se a olhar para cima. O rosto de Saddam Hussein fitava-a

de vários pontos do edifício.

Mayada havia estado na presença de Saddam mais do que uma vez. Estivera

mesmo a seu lado, o que lhe permitira reparar na tatuagem tribal verde-escura

que ele usara, em tempos, na ponta do nariz.

Cartazes com slogans do Partido Baath haviam sido colados por toda a parte.

«Aquele que não planta não come.» Mayada não pôde deixar de pensar se

alguma vez voltaria a ter fome. Quando a empurraram em direção ao edifício,

voltou a olhar para o céu, a fim de formular uma pequena prece. «Deus, mantém

Fay e Ali em segurança e leva-me de volta para eles.»

Com os dois homens a escoltá-la, subiu uma escada. No primeiro andar deparou

com um grupo de homens de rostos macilentos e roupas rasgadas e

ensangüentadas acocorados nos cantos com as mãos atadas atrás das costas.

Os rostos ostentavam nódoas negras e alguns fios de sangue. Nenhum dos

homens acocorados no corredor falou, mas Mayada sentiu que uma aura de

sincera compaixão a seguia, enquanto era arrastada pelo corredor até uma sala.

Por esta altura, Mayada começara a tropeçar e a chorar, já completamente

dominada pelo terror.

Ao contrário de muitas mulheres árabes que haviam carregado a cruz que é ter de

suportar a presença de pais cruéis e outros homens igualmente violentos, Mayada

nunca conhecera o domínio ou a violência por parte do sexo masculino. O seu pai,

Nizar Jafar Al-Askari, sempre fora um homem gentil. Nunca partilhara da idéia de

preferir os filhos às filhas, mesmo que no Iraque um homem que tenha apenas

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filhas seja freqüentemente digno de dó.

Quando Mayada nascera, o seu pai preocupara-se até com a reação de Scottie, o

muito acarinhado scottish terrier preto que ele trouxera da Inglaterra. O pai de

Mayada pegara em Scottie e levara-o até ao berçário, para que o cãozito pudesse

cheirar os pés da bebê, fazendo-o entender que, por agora, os pés da bebê eram

o limite para o cãozito, mas que em breve Mayada teria idade para brincar com

ele.

Agora, enfiada no coração do quartel-general da polícia secreta de Saddam,

Mayada sentia um enorme desejo de ter a seu lado o seu pacífico pai. Nunca se

sentira tão sozinha nos seus quarenta e três anos de vida como naquele

momento.

Alguém a empurrou com tanta força que as sandálias que usava se desapertaram,

pelo que teve grande dificuldade em manter o equilíbrio.

Um homem atrás de uma secretária berrava para o auscultador de um telefone.

Ainda que a pele do seu rosto não revelasse quaisquer rugas, tinha já o cabelo

todo branco.

Bateu com o auscultador e lançou um olhar fulminante a Mayada.

- E que julgas que ias conseguir com a tua traição? Ao ouvir esta última palavra,

Mayada ainda chorou mais, por saber que uma tal acusação significava no Iraque

morte certa. Levou a mão ao pescoço e balbuciou:

- O que quer dizer com isso?

- Então, vocês, seus vermes, têm a ousadia de imprimir folhetos contra o governo?

Mayada não compreendia o porquê daquela acusação. A sua pequena tipografia

nunca recebera um único pedido para imprimir panfletos contra o governo e,

mesmo que tal tivesse ocorrido, ela teria recusado. Sabia que um tal ato chamaria

a atenção da polícia secreta de Saddam e levaria à morte de todos os homens,

mulheres e crianças que pudessem ser associados à sua tipografia. Apenas os

revolucionários que pensavam destituir Saddam se envolviam em tais atividades

ilegítimas. Ora, ela era uma cidadã respeitadora da lei, que se mantinha

cuidadosamente afastada da controvérsia política.

De pé, petrificada, olhou para o homem de cabelo branco, que gritou:

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- Levem esta miserável daqui! Tratarei dela mais tarde! Apesar do medo que

aquelas frases lhe incutiam, Mayada pensou em Fay e Ali. No Iraque, quando um

membro de uma família é preso, as crianças dessa mesma família são

freqüentemente levadas para serem torturadas. Mayada ganhou coragem e

perguntou ao homem do cabelo branco:

- Para onde me levam? Ele fitou-a e ripostou:

- Para a prisão!

A educação de Mayada forneceu-lhe a coragem para perguntar:

- Posso fazer, ao menos, um telefonema? - Mayada era filha de boas famílias e

sabia que todos os iraquianos tinham consciência do prestígio associado à sua

família. Agindo por instinto, acrescentou: -A minha mãe é Salwa Al-Husri.

O homem ergueu um pé, a vários centímetros do chão, e manteve-se naquela

posição ridícula para a fitar melhor. Enquanto ponderava na sua resposta,

manteve o pé elevado. Numa outra ocasião, Mayada ter-se-ia rido daquela atitude,

mas o momento era totalmente desprovido de humor. Mesmo assim, sentiu uma

ténue esperança. Seria possível que aquele homem não soubesse quem ela era?

A sua aparente exclamação de surpresa dera-lhe a esperança de que as suas

palavras pudessem alterar a situação.

- Mais cedo ou mais tarde, terá de responder a alguém - continuou. - A minha mãe

tem muitos contatos nas mais altas patentes.

Como que em câmara lenta, o homem baixou o pé, mas Mayada podia ver que ele

ainda refletia. Sem pronunciar palavra, estendeu-lhe o telefone.

Mayada reparou que as suas mãos trêmulas estavam lívidas, e deu consigo a

pensar se o sangue ainda lhe corria nas veias. Pegou no telefone e discou o

número de sua casa, rezando para que os filhos atendessem, para que não

houvessem sido também levados. O telefone tocou uma, duas, várias vezes.

Ninguém atendeu.

Evitando olhar para o rosto do homem, combateu o pânico e discou novamente o

número na esperança de que, no estado de confusão mental em que se

encontrava, se houvesse enganado.

O homem do cabelo branco observava-a, inclinando a cabeça, primeiro para um

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lado, depois para o outro, enquanto o telefone continuava a tocar.

De súbito, arrancou o aparelho das mãos de Mayada. O medo que a invadira

durante os bombardeamentos, no tempo da guerra, não se comparava ao terror

profundo que sentia perante a idéia de que a polícia secreta pudesse deitar as

mãos a Fay e Ali; mas não obteria resposta para esse seu receio. Esboçando um

sorriso desdenhoso, o homem fez-lhe sinal para que saísse.

Mayada teve de passar novamente pelos prisioneiros que continuavam agachados

no corredor, percebendo que agora era um deles. Pior ainda, ninguém para lá dos

muros de Baladiyat sabia onde ela estava.

Os dois guardas tiraram óculos de sol iguais, de lentes pretas, dos bolsos das

calças, e colocaram-nos para proteger os olhos. Postaram-se ao lado de Mayada

e marcharam com expressão solene, dando-lhe pancadas nos ombros indicando-

lhe que andasse mais depressa. Foi escoltada para fora do edifício e atravessou o

recinto fechado, em direção à prisão.

Como nunca ali estivera, deu consigo a comparar aquele novo centro de

operações ao antigo quartel-general da polícia secreta, um local que visitara

algumas vezes, na década de oitenta, quando um amigo da família e seu mentor

pessoal, o Dr. Fadil Al-Barrak, lá trabalhara como diretor-geral. Nessa época,

Mayada não fazia idéia de que o local que visitava continha tantos horrores. Tanto

quanto sabia, o Dr. Fadil, como ela lhe chamava, era o responsável pela

segurança do Iraque, um homem que protegia os Iraquianos de grupos

oposicionistas, perigosos ou de terroristas, e quando o visitava, no antigo quartel-

general da polícia secreta, ia até lá para falar com ele dos livros que lera ou da

sua vontade de fazer carreira na literatura.

Agora, porém, sentia-se culpada por haver beneficiado das relações da sua família

com o Dr. Fadil. Dava-se conta de que freqüentara um local onde milhares de

iraquianos eram torturados até à morte. Agora, sabia que se enganara quanto às

vergonhosas atitudes do governo do seu país e que, na sua ingenuidade juvenil,

não vira a realidade. Comparou os aspectos há muito esquecidos do velho quartel-

general com o que via no novo centro. Tudo era diferente e os novos edifícios

refletiam essa mudança.

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Quando o Dr. Fadil fora diretor-geral - ou, como era tratado por todos os

funcionários, o «Al-Sayid Al-Aam», ou «Sr. General» - o quartel-general da polícia

secreta situava-se em Al-Masbah, perto do Parque Al-Sadoun, uma zona de

Bagdá que havia em tempos sido habitada por judeus e cristãos. Aí, as casas

eram construídas no antigo estilo de Bagdá, com persianas ornadas, grandes

varandas e generosos jardins, onde crianças risonhas brincavam de pique-

esconde.

Até que, numa linda manhã iraquiana, os oficiais do governo haviam chegado

inesperadamente e confiscado as belíssimas mansões aos seus proprietários.

Mais tarde, instalaram uma vedação alta, a toda a volta do bairro, e transformaram

a zona num labirinto de prédios, munidos de salas secretas, e de ruas.

Até o Dr. Fadil, que dirigia todo o departamento e respondia apenas a Saddam,

mandara construir um prédio moderno no meio daquelas velhas casas. O rés-do-

chão do prédio onde se achava o seu gabinete era uma garagem apinhada de

automóveis japoneses por estrear, que Mayada sabia haverem sido oferecidos a

Saddam Hussein. O novo gabinete do Dr. Fadil fora mobilado com uma imensa

secretária de mogno, um sofá de cabedal preto, dois soberbos cadeirões e várias

mesas de café com tampos de vidro. O teto fora ornamentado com pequenos

quadrados de metal decorados num estilo pop-art tão estranho que, na

imaginação de Mayada, parecia mais adequado para uma discoteca. O espaçoso

gabinete estava ainda equipado com todas as comodidades modernas, incluindo

vários monitores, nos quais o Dr. Fadil podia visionar todos os recantos da prisão.

O seu gabinete também ostentava outros luxos, como gravadores de vídeo, que,

na altura, eram muito raros no Iraque, bem como um pequeno monitor de que se

servia muitas vezes para convidar os amigos mais íntimos a ver os últimos filmes

produzidos em Hollywood. Fora mesmo ao ponto de mandar construir uma piscina

no seu gabinete.

Na Primavera de 1984, o Dr. Fadil fora promovido e transferido para os Serviços

Secretos iraquianos, e o seu novo gabinete localizava-se no Sahat Al-Nosour, na

área de Al-Man-sour. Mayada visitara-o por várias vezes até ao ano de 1990,

quando Saddam mandara prender Fadil. Mayada sabia que, caso o Dr. Fadil fosse

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o director da prisão, ela seria uma visita bem recebida em Baladiyat, em vez de

não passar de uma prisioneira aterrorizada.

Mayada e os dois guardas chegaram a um bloco de prédios de cimento. Depois de

passar pela porta, escoltaram-na até um gabinete esférico, situado à direita do

átrio de entrada. Um homem baixo, magro, de rosto enrugado, achava-se sentado

atrás de uma secretária circular. Mayada examinou-o atentamente. O seu rosto

estava enrugado pelas preocupações e não pelo passar dos anos. Não conseguia

explicar como sabia que aquele homem envelhecera devido ao que vira e não em

consequência da passagem dos anos, mas sabia que assim era.

O homem falou de rompante, ordenando que Mayada lhe desse todos os seus

pertences pessoais. Então, registou calmamente cada objecto: um anel, um

relógio, uma carteira com o equivalente a dez dólares, um livro de contabilidade

com todas as encomendas da tipografia, uma agenda telefónica, o obrigatório

cartão de identidade, as chaves e, finalmente, um bilhete de Fay, a sua filha, onde

esta lhe recomendava que a mãe não se esquecesse da hora em que haviam

combinado almoçar juntas, naquele dia.

Um outro homem surgiu do nada, agarrou-lhe a mão direita, pressionou-lhe os

polegares num tinteiro e carimbou-lhe

as impressões digitais na lista dos seus pertences. Um segundo homem entrou no

gabinete e os dois guardas conduziram-na às celas da prisão.

Depois de passar por uma porta dupla, Mayada entrou num corredor comprido,

ladeado pelas portas das celas. Os homens pararam em frente da terceira porta

do lado direito. Mayada aguardou nervosamente enquanto o homem mais forte

destrancava o pesado cadeado, findo o que lhe fez sinal para entrar. Só então

Mayada viu. «52.» Fora de si, gritou.

- Nãooooo!

Ainda sem poder acreditar no que lhe acontecia, fitou, trémula, o número. Iam

fechá-la na cela número 52. Os seus olhos começaram a arder e sentiu a pele

febril, desde a ponta dos pés até à cabeça. O número 52 pressionava-se contra o

seu coração como um murro - 52 era um número considerado azarento e

perseguira a sua família durante várias gerações. O seu querido pai morrera aos

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52 anos de idade, no quarto 52 do Nun's Hospital. O pai do seu pai, Jafar Pasha

Al-Askari, havia sido assassinado aos 52 anos de idade. E agora ela ia ser presa

na cela 52. Mayada tinha a certeza de que a sua detenção era uma sentença de

morte. Não! Não podia entrar naquela cela! Ninguém conseguiria obrigá-la! Fincou

os pés no chão e olhou à sua volta, à procura de algo a que se agarrar.

- Entra! - ordenou o guarda com o rosto marcado pelas cicatrizes da varíola.

A voz de Mayada revelou-se soluçante e as palavras que pronunciou eram quase

inaudíveis.

- Não posso... Não posso...

O guarda comprimiu os maxilares.

- Entra, já disse!

O segundo homem deu-lhe um violento empurrão.

Mayada foi atirada com toda a violência para o interior da cela 52. Tacteou as

paredes escuras para não cair e, quando os seus dedos começaram a escorregar

pela parede fria, a visão turvou-se-lhe.

Ouviu a porta bater com força e o clique do cadeado a fechar-se. Estava presa.

Pressionando as palmas da mão contra a parede, recuperou o equilíbrio e

levantou-se. Achava-se no meio de uma cela rectangular e pequena.

40

41

Ofegante e confusa pelas luzes fluorescentes do tecto e pelas sombras que

pareciam dançar à sua volta, desatou a chorar, quando se apercebeu de que não

eram sombras mas sim vultos de mulheres. Foi então que uma delas avançou

para Mayada. Numa voz bondosa, perguntou:

- Porque estás aqui?

A mulher que avançara para Mayada esperou, em silêncio, dando-lhe tempo para

se recompor. Mayada fez um esforço para responder àquela pergunta simples,

mas não conseguiu falar. Ao invés, começou a oscilar os braços para cima e para

baixo. Não sabia porque estava a reagir daquela forma e preocupava-se com o

que as outras mulheres pudessem pensar dela. Verdadeiramente assustada,

receava que as outras chamassem os guardas para que a levassem para a ala

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dos prisioneiros com perturbações mentais. No seu desespero de fugir àquele

triste destino, Mayada fez um esforço tremendo para limpar os pulmões, que

pareciam prestes a rebentar, devido à tensão que se apoderara de todo o seu

corpo. Debateu-se, para que a saliva lhe chegasse à garganta inflamada e à boca

seca. Não bebia água desde que fora detida naquela mesma manhã. Pestanejou,

numa tentativa de os seus olhos se adaptarem à luz fluorescente. Estava

demasiado confusa com o interior mal iluminado da cela para distinguir os vultos

que, sabia-o agora, eram os de outras prisioneiras, mas pôde avaliar que havia

mais de uma dúzia daquelas «mulheres-sombra». Sem saber porquê, a sua

presença fez com que Mayada experimentasse uma inesperada sensação de

reconforto.

Ficou a saber mais tarde que era a prisioneira número dezoito, numa cela com

capacidade para oito pessoas, mas quando olhou a toda a volta da atulhada cela

rectangular, aquele número podia ser de oitenta. Uma sanita havia sido colocada,

propositadamente, no único local da cela que se achava na direcção da Caaba,

em Meca, para onde ela devia voltar-se, quando fizesse as suas cinco orações

diárias. Era um insulto intencional a todos os muçulmanos, já que toda a

arquitectura islâmica tem sempre grande cuidado em colocar as sanitas tão longe

quanto possível da direcção da Caaba.

Os pensamentos de Mayada foram desviados deste assunto

42

por via de um terrível fedor. Nunca lhe havia chegado às narinas um cheiro tão

nauseabundo, mesmo durante os piores momentos da guerra, quando as equipas

de resgate tocavam com paus os cadáveres que haviam jazido por baixo dos

escombros de cimento durante vários dias. O cheiro da cela era tão forte que

Mayada calculou que só podia emanar das camadas de vomitado que cobriam o

chão. Tão convencida estava de que pisava camadas de sujidade que levantou as

suas sandálias para examinar as solas, mas estavam limpas. Inalou, à cautela, e

concluiu que aquele fedor vinha de fora da cela. Só podia ser o cheiro acre e

enjoativo de lentilhas, que alguém cozia na cozinha da prisão. Havia perpassado

pelos muros de cimento da cela, onde se misturava ao odor de corpos que não

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tomavam banho e ao fedor forte resultante do uso contínuo da retrete.

Antes de desviar a sua atenção para a mulher que se lhe dirigira, Mayada olhou,

mais uma vez, à sua volta. Inscrições, desenhadas a vermelho, preto e cinzento,

decoravam as paredes. Mayada tentou não pensar que as mensagens

encarnadas talvez houvessem sido escritas com sangue. Vislumbrou um pequeno

raio de sol que passava por uma minúscula janela gradeada, no alto da parede-

mestra, enquanto duas bancadas de ferro - que, segundo Mayada, deviam fazer

as vezes de beliches - corriam ao longo das paredes laterais da cela.

A dona da voz compadecida aproximou-se mais e uma mão tocou gentilmente no

ombro de Mayada.

- Porque estás aqui, pequena pomba?

Mayada fitou o rosto da mulher e viu que era muito bela. A sua pele era muito

alva, tinha até algumas sardas no nariz e era dona de uns lindos olhos verdes que

brilhavam.

A mulher voltou a falar:

- O meu nome é Samara. Porque estás aqui?

As outras mulheres-sombra aproximaram-se para ouvir a resposta, e a expressão

dos seus rostos deixava transparecer a compaixão que sentiam por Mayada.

Fitando-as, Mayada partilhou com elas a explicação oficial para a sua detenção.

- O homem do cabelo branco disse-me que a minha ti-

43

pografia imprimiu algo contra o governo, mas não é verdade. Nunca imprimi o que

quer que fosse que criticasse o governo.

Ao escutar a sua própria voz, Mayada não aguentou mais. Os rostos dos filhos

passaram diante dos seus olhos. Ia levar Fay a almoçar fora e, depois, ao

dentista. Ali precisava de ir ao barbeiro. Depois, iriam às compras. Mayada sentiu-

se ainda mais desesperada, por pensar que o dente infectado de Fay iria causar-

lhe dores muito fortes.

Dois dias antes, haviam celebrado o décimo sexto aniversário de Fay. Mayada

gastara mais do que tinha para fazer a filha feliz. Conseguira organizar uma festa

no Alwiya Club, um local de encontro em voga na cidade. Os bisavôs e avôs de

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Mayada haviam organizado muitas festas naquele clube, pelo que era sempre

divertido festejar acontecimentos importantes, além de ser uma maneira de ligar

Fay e Ali ao seu passado familiar.

Agora, com a sua detenção, as vidas dos filhos corriam perigo de uma maneira

que lhe pareceria inacreditável na véspera. Mayada não pôde refrear mais a

tristeza que a consumia e gritou:

- Os meus filhos! Não têm ninguém que tome conta deles!

Samara pegou numa das mãos de Mayada.

- Ouve, precisas de resguardar-te de tudo o que deixaste lá fora. Por ora, tens de

pensar apenas em te salvares. Caso contrário, enlouquecerás.

Mayada não conseguia pensar com clareza e sabia que nada faria com que

deixasse de se preocupar com os seus filhos. Mas algo lhe disse que respirasse

fundo e escutasse Samara, pois esta poderia ajudá-la a sobreviver. Acenou, em

sinal de anuência, apesar de as lágrimas continuarem a escorrer-lhe pelo rosto.

Estremeceu ligeiramente ao perceber que, à excepção de Samara, todos os

outros rostos pareciam muito pálidos e desalentados.

Ficou patente que Samara era uma mulher prática quando esta ignorou as

lágrimas de Mayada e lhe perguntou:

- Estás com fome? Vamos partilhar o que temos contigo.

- Não, obrigada.

AA

Só de pensar em comer provocava-lhe náuseas. Samara era tão bondosa que

insistiu:

- Tens de te manter forte. Durante os interrogatórios, eles tentam quebrar tanto o

nosso espírito como os nossos ossos.

Quando Samara se apercebeu da expressão de terror estampada no rosto de

Mayada, voltou a pôr a mão no ombro dela.

- Guarda por enquanto a lembrança dos teus filhos num pequeno compartimento.

Tenho a certeza de que alguém lá fora cuidará deles. Pensa apenas em ti, até ao

dia em que saíres daqui. Eles vão trazer-nos algumas lentilhas ou arroz daqui a

pouco, mas se não queres comer agora guardo-te alguma comida. Mas deixa-me

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dar-te um conselho - Samara debruçou-se e sussurrou ao ouvido de Mayada: -

Nunca comas beringelas. Deram-nos sopa de beringelas no mês passado e

apanhámos todas uma intoxicação alimentar. Durante vários dias, ficámos

deitadas no chão, contorcendo-nos com dores. Mais tarde, soubemos que muitos

prisioneiros morreram, apesar de todas as mulheres da nossa cela terem

sobrevivido.

O conselho de Samara fez com que Mayada sentisse um calafrio gélido percorrer-

lhe todo o corpo. Pensou que ia desmaiar. Então, primeiro de mansinho, depois

com mais intensidade, ouviu uma voz muito bela perpassando pelas paredes da

prisão. Uma voz masculina recitava o Al-Yasin, a sura 16 do Alcorão. Na fé

muçulmana, crê-se que quem recitar esses versículos é abençoado com a

concessão de um desejo. A bela voz entoava:

«- Pois o meu Senhor concedeu-me o dom do perdão e inscreveu-me entre

aqueles que têm um lugar de honra!

Mayada encostou a cabeça à parede arenosa da cela e, juntamente com as outras

mulheres-sombra, escutou os versículos, que tiveram o poder de acalmá-la.

A voz continuou a entoar as palavras de consolo:

«- Na verdade, os companheiros do jardim alegrar-se-ão nesse dia com tudo o

que fazem! Ele e os seus amigos ver-se-ão em arvoredos de fresca sombra,

reclinados em tronos de dignidade.

45

- Vão matar o pobre infeliz, se ele não se calar... - resmungou uma mulher alta, de

grandes olhos castanhos.

Samara fitou a companheira de cela e replicou:

- Nesse caso, reza por ele, Roula.

Após escutar a maviosa voz, a curiosidade de Mayada sobrepôs-se a todos os

seus sentimentos.

- Quem é?

- É um rapaz chamado Ahmed - respondeu Samara. - É um xiita que foi preso por

se ter convertido à seita Wahhabi.

A seita Wahhabi formara-se na Arábia Saudita. O governo proibira os Iraquianos

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de se juntarem ao grupo, considerado perigosamente radical para a maioria dos

outros muçulmanos.

Uma terceira mulher-sombra, sentada num dos beliches de metal a escovar os

seus cabelos ruivos e compridos, acrescentou:

- Ahmed está preso há seis meses. Recita o Alcorão todas as noites. E todas as

noites o tiram da cela e espancam. Os seus gritos fazem estremecer as paredes

da nossa cela mas, assim que o trazem de volta à cela, começa a recitar

novamente. Ele é muito provocador - concluiu tristemente, meneando a cabeça.

- Sim, Wafae - comentou Samara, - e ele continua a recitar os versículos mesmo

quando estão a espancá-lo.

Mayada estava tão cansada que as pernas já não aguentavam o peso do seu

corpo. Escorregou lentamente até ficar sentada no chão gelado de cimento, como

os pedintes com perturbações mentais que costumava ver sentados nas esquinas

das ruas de Bagdá.

As outras mulheres-sombra reuniram-se em volta dela, e três ou quatro

levantaram-na do chão e transportaram-na até um dos beliches de metal, como se

ela fosse um bebé indefeso. Sentaram-na com ternura, e Mayada sentiu o toque

reconfortante de um manto de algodão que lhe cobriu o corpo trémulo.

Os Iraquianos conseguem facilmente apreender o estatuto social dos seus

compatriotas, uma intuição que nenhuma cela de prisão consegue eliminar.

Apesar do cansaço que sentia, Mayada ouviu uma das mulheres-sombra, a quem

outra chamara Ásia, sussurrar:

46

- Esta pode ser a nossa noite de sorte. Com uma filha de boas famílias nesta cela,

talvez os guardas aumentem as nossas rações.

Mayada sentia-se tão desmoralizada que se deixou ficar sentada, em silêncio,

enquanto as mulheres-sombra continuavam a fazer-lhe perguntas. Não queria

parecer ingrata, mas não conseguia arranjar forças para pronunciar uma só

palavra para lhes responder.

Samara sentou-se no chão ao lado da cama de ferro e começou a contar a sua

história a Mayada.

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- Sou xiita. Apesar das dificuldades que aguardam os Xiitas em todos os pontos do

país onde chegue o poder do governo iraquiano, orgulho-me das minhas origens.

Os meus familiares disseram-me que, quando nasci, era um bebé

excepcionalmente bonito. O meu avô materno preferiu-me aos outros netos desde

o dia em que me viu, e pediu ao meu pai para que eu usasse o seu nome. Os

meus pais concordaram, porque tinham mais filhos para criar do que podiam -

Samara sorriu. - Além do mais, eu era mais uma outra filha, não com tanto valor

como os meus irmãos. Assim, os meus documentos de identificação foram

emitidos com o nome do meu avô, em vez do do meu pai. - E acrescentou,

orgulhosamente: - Tornei-me uma espécie de lenda na região onde cresci, porque

muitas pessoas diziam que eu era muito bela.

Mayada acenou afirmativamente. Não há nada que a sociedade iraquiana valorize

mais do que a beleza. E aquela mulher-sombra era uma verdadeira beldade.

- Quando atingi a puberdade, foram muitos os homens que pediram permissão ao

meu avô para casar comigo. Por isso, casei muito nova com o melhor pretendente

deles todos. Conhecia-o desde a infância. Era um bom homem. E apesar de

sermos pobres, não tivemos quaisquer problemas até ao início da Guerra Irão-

Iraque. Como sabes, os Xiitas nunca obtiveram quaisquer benefícios por parte do

governo. No entanto, esse mesmo governo esperava que os nossos homens se

alistassem no exército iraquiano com o entusiasmo de alguém a quem fosse

prometida uma baixela em ouro.

Virou a cabeça e cravou os seus belos olhos verdes em Mayada.

47

- Tal como todos os outros homens da nossa aldeia, o meu marido partiu. Fiquei

feliz por ele obter licença para vir a casa várias vezes por ano, mas essas licenças

significavam que eu ficava grávida sempre que ele vinha a casa... - Os olhos de

Samara estreitaram-se. - Poucos dias após o nascimento do meu terceiro filho,

recebi um comunicado anunciando que o meu marido tinha sido morto durante

uma batalha importante. Se a batalha era ou não importante, isso pouco me

importava. O facto é que morrera. Eu era muito nova e ficara sozinha no mundo

com dois filhos e uma filha para criar. Perdi o sono com tantas preocupações.

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«Poucas semanas depois da morte do meu marido, o governo enviou o caixão

que, segundo diziam, continha o corpo dele. O oficial que acompanhou o caixão

avisou-nos de que não devíamos abri-lo. Julgámos que queria proteger os nossos

sentimentos, porque o meu marido ficara estropiado. Eu não queria vê-lo. Tinha

medo de que as bombas da artilharia ira-niana o houvessem desfigurado e que

fosse assombrada pela visão do seu corpo sem vida. Mas um dos irmãos do meu

marido insistiu que o caixão devia ser aberto. Quando os irmãos do meu marido

desobedeceram às ordens do governo e abriram o caixão, que julgas que

encontraram?

Mayada meneou a cabeça.

- Que foi que encontraram? - perguntou.

- O caixão fora enchido com lixo!

- Lixo?

Samara cerrou os dentes.

- Sim, lixo. Consegues acreditar?

- E que fizeste?

Samara ergueu uma mão para o alto.

- Que podíamos nós fazer? Se nos queixássemos, teríamos sido todos presos por

desobedecer às ordens. A família procedeu ao enterro e todos chorámos. Não

conseguíamos parar de chorar a morte do meu marido, enquanto nos

perguntávamos se ele estava realmente morto, ou se fora feito prisioneiro pelos

Iranianos e apodrecia na cela de uma prisão no Irão. Até hoje, a verdade acerca

do destino do meu marido permanece um mistério.

48

E terminou, amargurada com o que as memórias lhe traziam:

- E aqui tens o Iraque em que vivemos...

Mayada manteve-se sentada, em silêncio, sem se mexer, dominada por uma

imensa tristeza.

- Então, um segundo homem propôs-me casamento, pouco depois de

enterrarmos aquele lixo. Mais uma vez, tive sorte. O meu segundo marido era um

homem sensato e bondoso para com os meus filhos órfãos e pobres.

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Mayada, pensativa, fitou Samara. A maioria das mulheres árabes, viúvas e com

três filhos, teria dificuldade em encontrar um marido que se dispusesse a assumir

a responsabilidade pelos filhos de outro homem, mas a beleza daquela mulher era

tão grande que Mayada tinha a certeza de que muitos homens teriam desejado

casar com ela.

- Só tínhamos um problema. O meu segundo marido não gostava que eu usasse o

nome do meu avô, em vez do nome do meu pai. Na opinião dele, era um sinal de

vergonha para um pai que uma filha devesse obediência directa a um outro

homem, mesmo que esse homem fosse o pai da sua própria mãe. Assim, para o

fazer feliz, alterei os meus documentos da forma que os oficiais da cidade me

aconselharam.

Por breves segundos, o rosto de Samara deixou transparecer uma expressão de

pesar, mas sorriu imediatamente e deu uma palmadinha afável no braço de

Mayada.

- Sabes, depois da Guerra Irão-Iraque, da Guerra do Golfo e das sanções da

ONU, o meu marido não conseguiu arranjar emprego. Em mil novecentos e

noventa e sete, estávamos tão desesperados que decidimos deixar os meus filhos

com a família do meu primeiro marido e partimos para a Jordânia. Tínhamos

ouvido falar de outros casais que haviam feito o mesmo. Comprámos cigarros por

um preço barato e sen-támo-nos na calçada do Al-Hashimi, no centro de Amã.

Ganhámos bom dinheiro com a venda dos cigarros. Não só conseguíamos

sustentar-nos mas ainda nos sobrava dinheiro, que enviávamos para o Iraque a

fim de ajudar tanto a minha família como a dele. Estávamos tão empenhados em

ganhar dinheiro suficiente para sustentar toda a gente que negligen-

49

ciámos os nossos documentos oficiais, e foi nesse aspecto que cometemos uma

grande estupidez. Deixámos expirar o prazo de validade do nosso visto e, quando

nos demos conta da nossa estupidez, vimo-nos sem recursos em plena Jordânia.

Não sabíamos o que fazer. Mas depois da triste morte de Sua Majestade, o rei

Hussein, em Fevereiro de mil novecentos e noventa e nove, o seu filho Abdullah, o

novo rei, perdoou bondosamente todos os refugiados iraquianos que não tinham

Page 36: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

os seus documentos em ordem. Na nossa ânsia de nos tornarmos emigrantes

legalizados, decidimos regressar ao Iraque, a fim de carimbar os nossos

passaportes. O nosso desejo era voltar a Amã, depois de visitarmos as nossas

famílias, no Iraque - A voz de Samara deixou transparecer uma certa nostalgia. -

Gostávamos muito de Amã. Sentia-me ali livre como um pássaro. Samara respirou

fundo e continuou: - Assim, regressámos ao Iraque. Lembro-me da viagem como

se tivesse sido ontem, mesmo que tanta coisa tenha acontecido desde então.

Admito que tanto eu como o meu marido nos sentíamos particularmente felizes

naquele dia. Experimentávamos um grande alívio por termos os documentos em

ordem e sabíamos que íamos ver, em breve, os nossos familiares. É que já se

haviam passado dois anos desde que tínhamos partido do Iraque. Fizemos planos

para mimar as nossas respectivas famílias com um prato especial, composto por

peixe e arroz. Só que todos os nossos sonhos se desmoronaram por completo.

Mal pusemos o pé em território iraquiano, pediram-nos que esperássemos no

posto fronteiriço. Ficámos tão surpreendidos como assustados. Apesar dos

nossos protestos de inocência, fomos detidos e conduzidos à prisão. Ficámos

presos numa cela comum, no quartel-general da polícia secreta em Al-Ramadi,

que fica a poucos quilómetros da fronteira entre o Iraque e a Jordânia. Durante

seis semanas. Não fui torturada durante a nossa permanência em Al-Ramadi, mas

o meu pobre marido era espancado todos os dias. Ao fim de duas semanas, as

torturas a que era submetido tornaram-se ainda mais cruéis. Começaram a içá-lo

em direcção ao tecto, pelas mãos. Havia dias em que voltava à nossa cela incons-

50

ciente. Eu não tinha nada ali. Nem sequer água. Lembro-me de lhe cuspir para a

cara, para tentar reanimá-lo.

Samara olhou mais uma vez para Mayada.

- Sim, ouviste bem. Cuspi para a cara do meu pobre marido. Mas por amor, não

por ódio. - Inclinou a cabeça e contemplou o tecto da cela. - Teríamos feito

qualquer coisa para pôr cobro às torturas a que ele era submetido, mas como

podíamos fazê-lo se nem sequer sabíamos de que éramos acusados?

Estranhamente, nem os guardas sabiam. Quando o meu marido lhes perguntava

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porque estava detido, respondiam-lhe que não sabiam. A única coisa que sabiam

era que haviam recebido ordens para nos prender, mas nem mesmo eles haviam

sido informados sobre os motivos para a ordem de detenção.

«Pensei que o meu marido ia morrer em consequência dos espancamentos.

Quando julguei que chegara o seu fim, fomos transferidos para aqui. Só que nos

esperava um outro choque. Separaram-nos, e não vejo o meu marido desde

Março. - Samara contou pelos dedos. - Quatro meses. Já se passaram quatro

meses. Ignoro se está vivo ou morto. E, tanto quanto sei, nem um só dos nossos

familiares sabe onde estamos. Provavelmente julgam que morremos. Ou talvez o

governo lhes tenha enviado dois caixões cheios de lixo declarando que continham

os nossos corpos. - Então, Samara debruçou-se e sussurrou: - Durante o meu

primeiro interrogatório, aqui, em Baladiyat, descobri finalmente porque tínhamos

sido presos.

Samara fez uma pausa, bebeu um pouco de água que Wa-fae, a mulher-sombra

ruiva, lhe ofereceu, e depois pressionou a caneca contra os lábios de Mayada.

- Não, a sério. Não consigo beber nada. Talvez mais tarde... - teimou ela.

Samara franziu as sobrancelhas mas bebeu mais um gole antes de continuar a

sua história.

- Quando fui chamada para o interrogatório, pensei que talvez os oficiais do

governo tivessem descoberto que estáva-nos inocentes. O oficial que me

interrogou era tão educado, tão diferente dos homens que nos tinham mantido

encarcerados na prisão da fronteira... Foi mesmo ao ponto de me convidar a

sentar e ofereceu-me uma chávena de chá. Tratou-me

como se eu fosse a dona da casa e ele um criado.

51

Samara prosseguiu.

- O que ele me perguntou foi o seguinte: «Diga-me, preferia usar brincos ou

calças?» Senti-me mais calma. O seu comportamento convenceu-me de que ia

entregar um pedido de perdão do governo pelo meu infortúnio, mas fiquei

desconcertada com a conversa dele sobre as calças. Respondi-lhe que as

mulheres da minha região não usavam calças, mas deixei que ele soubesse que

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eu preferia brincos, algo que poderia trocar por dinheiro, em Bagdá, para poder

comprar brinquedos para os meus filhos.

«Ele também parecia calmo. Estava no rebordo da sua secretária. Sorria-me e, de

tempos a tempos, levantava-se. Pensei que me ia arranjar os brincos e o meu

coração deu um salto no peito, de esperança, quando ele disse: «A nossa

estimada hóspede deseja um par de brincos. Pois terá o que quer.»

«Ali fiquei, sentada, a sorrir, como uma idiota, mas o sorriso depressa se

desvaneceu. O homem chamou os ajudantes, que começaram a amarrar-me.

Ataram-me os pés e as mãos à cadeira onde eu estava sentada. Depois, podes

imaginar o meu pavor quando eles colocaram os pólos de um carregador de

baterias nas minhas orelhas. Antes que eu pudesse protestar, o homem ligou a

electricidade no máximo e ali ficou, a rir-se do meu terror e do meu sofrimento. As

dores provocadas por aquela tortura são muito mais fortes do que as dores do

parto. De cada vez que a dor diminuía um pouco, ele voltava a rodar o interruptor,

até que, de repente, parou. Pensei que o pesadelo tinha acabado, mas foi quando

ele exclamou que, em seu entender, os meus pés precisavam de ser tratados.

Samara ergueu o pé e Mayada pensou que nunca havia visto um pé tão alvo e

delicado. Mas quando Samara virou o pé de lado, Mayada deixou escapar uma

exclamação de horror. A planta do pé de Samara apresentava cicatrizes

vermelhas que penetravam fundo na carne.

- Aquelas calças de que ele falara eram uma surpresa. Enquanto eu estava

sentada, ali, sem me poder mexer, à espera que o travo amargo dos choques

eléctricos desaparecesse da minha boca, um dos seus ajudantes entrou com um

par de calças pretas que enfiaram nas minhas pernas. Ergueram-me e

52

colocaram-me numa maca. Aquelas calças serviam para manter as minhas pernas

e os meus pés imobilizados. Então, prenderam-me os pés num torno de madeira.

Aquele homem começou a chicotear as plantas dos meus pés com uma vara.

Depressa descobri a razão por que estava ali. Enquanto fustigava os meus pés

com a vara, gritou: «Porque mudaste de nome? Porque alteraste os teus

documentos? Para quem andas a espiar? Para Israel? Para o Irão?»

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Samara surpreendeu Mayada, ao sorrir.

- Durante muitas semanas, tive de ficar deitada, como um bebé, e nem sequer

conseguia arrastar-me até à retrete. As chicotadas arrancaram-me toda a pele das

plantas dos pés, que depois infectaram. Pensei que ia morrer, mas recuperei

lentamente, e, agora já posso andar novamente. Desde esse primeiro

interrogatório, chamam-me quase todos os dias. Há dias em que apenas me

interrogam. Noutros, batem-me nas costas para, no dia seguinte, me chicotearem

os pés. Por vezes, ligam-me à electricidade. Fazem sempre as mesmas perguntas

e eu dou sempre as mesmas respostas.

Samara inclinou a cabeça de forma a tocar com o nariz nos joelhos dobrados.

- Estou farta de lhes dizer que sou uma mulher simples. O destino tornou-me a

favorita de um avô demasiado carinhoso. Quis esse avô que eu usasse o nome

dele. O meu segundo marido pediu-me que eu usasse o nome do meu pai e foi

por esse motivo que mudei de nome e é essa a minha história.

O rosto de Samara ensombrou-se.

- Disseram-me que ficarei aqui até confessar que sou uma espia, mas nada tenho

a confessar. Não sou uma espia e, por muito que me dêem choques eléctricos e

me espanquem, nunca direi que sou uma coisa que não sou.

Samara achava-se numa situação muito complicada. Os homens de Baladiyat

continuariam a torturá-la até que ela confessasse ser espia do Irão ou de Israel,

mas, se admitisse uma tal coisa, mesmo não sendo verdade, seria imediatamente

executada. Olhou para Mayada e sorriu abertamente.

- A única coisa positiva que me aconteceu nestas últimas

53

semanas é que o tal homem foi transferido para dirigir uma prisão em Baçorá e o

seu substituto não é tão obcecado por chicotes, paus e electricidade. Alegra-te,

porque o primeiro homem era tão mau que, se fosse picado pela mais venenosa

de todas as cobras, era a cobra que morria!

Nesse mesmo instante, Mayada sentiu uma dor forte descer-lhe do peito até ao

braço. Era a primeira vez que sentia aquele latejar, mas sabia que era um dos

sintomas de um ataque cardíaco. Logo depois, os dedos da mão ficaram

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dormentes. Aproximou-se de Samara e disse-lhe:

- Penso que estou a ter um ataque cardíaco. Podes chamar um médico, por favor?

Samara levantou-se, de um salto, agarrou num púcaro de ferro, correu para a

porta metálica e começou a bater com o púcaro, enquanto gritava:

- Precisamos de ajuda!

Passado algum tempo, alguém se aproximou da porta e abriu a portinhola.

- O que se passa?

- Penso que a nova prisioneira está a ter um ataque cardíaco - respondeu Samara.

Mayada, de repente, deu-se conta de que nenhuma das mulheres-sombra sabia

como ela se chamava. Tentou soerguer-se para chamar a atenção das outras.

Queria falar da sua vida àquelas mulheres para que, no caso de morrer, pudesse

contar com a primeira que fosse libertada para ir procurar os seus filhos e aliviá-

los da ansiedade de não saberem como fora que a sua pobre mãe partira desta

vida.

- Por favor, ouçam-me. O meu nome é Mayada Al-Askari e vivo na Praça

Wazihiya. O meu número de telefone é o quatro dois cinco, sete nove cinco seis.

Se eu morrer, ou se não voltar a esta cela, por favor peçam a alguém que telefone

à minha filha Fay e lhe diga o que me aconteceu.

Uma das mulheres-sombra procurou um pedaço de madeira calcinada que elas

guardavam para aqueles fins. Samara tirou o pedaço de madeira das mãos da

mulher.

- Repete as informações que acabaste de nos dar - pediu a Mayada e anotou as

informações na parede, usando o

54

pedaço de madeira. - Não te preocupes. Hás-de voltar para os teus filhos, mas se,

por algum motivo, não voltares, eles serão informados pela primeira mulher que

for libertada de que estiveste aqui.

O homem saíra sem sequer dizer o que tencionava fazer e Mayada padeceu da

terrível sensação de haver sido deixada ali para morrer. Contudo, passados

poucos minutos, dois outros homens entraram, embora deixassem transparecer

que os haviam interrompido enquanto jantavam. Um ainda mastigava enquanto o

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outro se servia dos dedos para tirar um resto de comida dos dentes. O homem

que mastigava engoliu e perguntou:

Quem é a desmancha-prazeres? Samara respondeu:

Não se trata de uma brincadeira. É coisa séria. Só então apontou para Mayada.

Aquela mulher está a ter um ataque cardíaco.

O homem suspirou, irritado, e avançou para Mayada. De

pé, examinou-a, pegou num dedo dela e bateu-lhe no peito, como se dessa forma

pudesse certificar-se da gravidade do seu estado. Por fim, gritou-lhe que se

levantasse e o seguisse. Samara e outra mulher-sombra, alta e forte, ajudaram

Mayada a por-se de pé. Devagar, encaminharam-se para a porta, carregando

Mayada aos ombros, antes de a entregar aos dois homens.

O hospital ficava num edifício contíguo, mas Mayada teve de medir os seus

passos, devido às dores no peito cada vez mais fortes. Um dos homens não

parava de resmungar que o seu jantar ia arrefecer enquanto o outro se queixava

da lentidão com que Mayada andava. Este último perguntou-lhe por que raio uma

mulher nova caminhava com o porte de uma velha. Uma vez que Mayada estava

convencida de que ia cair morta a qualquer momento, deu a sua opinião acerca da

conduta deles, dizendo-lhes que deviam ter vergonha por tratar uma mulher

doente daquela maneira. As suas palavras valeram-lhe, da parte de um deles,

uma pancada na cabeça que a atingiu de lado e do outro um berro.

Finalmente, Mayada e os guardas chegaram ao hospital.

55

Apesar de o exterior do edifício ser novo e moderno, o interior era miserável e

imundo. Os dois homens conduziram-na ao consultório.

- Vou procurar o doutor Hadi Hameed - informou um deles, antes de se afastar.

O outro ficou de guarda à porta, de olhos postos em Mayada.

O guarda regressou com um médico envergando uma bata branca, que

caminhava com a cabeça inclinada para baixo, como se observasse os seus pés.

Pelo seu modo de andar, dava a impressão de ser um homem de idade avançada,

mas, quando ergueu a cabeça, Mayada viu que era um homem novo de rosto

bonito e olhos escuros, que a deixou admirada ao mostrar-se preocupado com o

Page 42: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

seu estado de saúde. Pediu-lhe com bons modos que se sentasse na maca e

mediu-lhe a tensão arterial. Fitou Mayada com uma expressão preocupada nos

seus olhos bondosos e disse-lhe o que ela já sabia: a sua tensão arterial estava

muito alta. Observando aquele rosto afectuoso, Maiyada lembrou-se de que a sua

experiência na prisão podia levá-la a adoptar uma perspectiva demasiado

simplista e pouco sensata da natureza humana. Não podia esquecer-se de que

muitos iraquianos eram forçados a aderir ao Partido Baas, sendo coagidos a

aceitar trabalhos governamentais, impróprios para alguém com um coração

bondoso. Acreditava que o médico era uma dessas pessoas.

O Dr. Hameed provou que Mayada não se enganara quando olhou por cima do

ombro e reparou que os dois homens se tinham afastado. Foi então que lhe disse,

em voz baixa:

- Não há nada de errado consigo que a liberdade não possa curar. Mas como o

seu destino não se encontra nas minhas mãos vou dar-lhe alguns comprimidos

que irão acalmar-lhe o coração.

Voltou-se para abrir uma gaveta de um armário de metal e escolheu uma caixa de

comprimidos cor-de-rosa que entregou a Maayada.

- Ponha um comprimido destes debaixo da língua e deixe «que se dissolva.

Sempre que sentir uma dor no peito, faça o mesmo. Não tome mais do que um de

tantos em tantos dias

56

se puder evitá-lo. Estes comprimidos provocam enxaquecas fortíssimas.

Mayada já colocara um comprimido debaixo da língua e acenou, em sinal de

obediência.

O médico voltou-se e começou a anotar a sua passagem pelo hospital.

Enquanto o comprimido se dissolvia, Mayada olhou em seu redor. Reparou que a

maca estava coberta com um plástico preto que, por sua vez, tinha por cima uma

espessa camada de areia, resultante da tempestade daquela manhã. Aquela areia

podia operar a seu favor, pensou. Os modos e a bondade daquele médico

despertaram-lhe uma ideia. Suficientemente confiante para tomar riscos,

desenhou com a ponta do dedo o número de telefone do avô dos seus filhos - que,

Page 43: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

mesmo depois do divórcio, continuara amigo de Mayada - na camada de areia.

- Doutor Hameed, por favor telefone para este número e diga a quem atender que

Mayada foi levada para Baladiyat. Diga-lhes que telefonem a minha mãe, Salwa,

em Ama. Ela saberá o que fazer.

O jovem médico fitou-a durante algum tempo. O seu rosto deixava transparecer o

conflito que se operava entre a sua mente - que o avisava das terríveis

consequências de ser apanhado - e o seu coração - que se sentia despedaçado

pelo desespero humano que era forçado a testemunhar. Só depois olhou para o

número que ela desenhara. Sem se atrever a respirar, Mayada viu os lábios do

médico moverem-se. Estava a decorar o número. Depois, olhou novamente para

trás, e pegou num pano para limpar a poeira e fazer desaparecer os dígitos do

plástico. Não deu a entender se fora a sua cabeça ou o seu coração que havia

prevalecido. No entanto, Mayada sabia que, independentemente da decisão que

tomara, o médico queria ter a coragem para fazer aquele telefonema. Devia

lembrar-se de que eles os dois - e todos os iraquianos - viviam agora tempos

muito difíceis e que aquele bom homem podia ser torturado até à morte por se

desviar das regras de conduta impostas pelo Partido Baas.

Mayada abriu a boca para perguntar se podia contar com

57

a humanidade do Dr. Hameed, mas naquele mesmo instante os dois guardas

regressaram, insistindo que tinham que levá-la de volta para a cela. Mayada

estacou, com medo de que o Dr. Hameed, preocupado com a segurança dos seus

entes queridos, revelasse aos guardas que Mayada lhe pedira ajuda. Mas o

médico nada disse. Ao invés, fitou-a olhos nos olhos e excla-

mou:

- Vai sentir-se melhor. Agora volte para a sua cela e tente dormir um pouco.

Estas palavras deram a Mayada a esperança de que ele iria fazer o telefonema

que talvez salvasse a sua vida.

Os homens levaram-na às pressas de volta à cela 52, apesar de ela lhes pedir que

andassem mais devagar para poder suportar as dores no peito. Mas nem um nem

outro lhe prestaram atenção. Os passos rápidos fizeram-na sentir o coração

Page 44: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

palpitar no peito, e foi com surpresa que se deu conta do alívio que sentiu ao

entrar novamente na cela 52.

Samara correu para ela e ajudou-a a deitar-se na cama, enquanto as outras

mulheres-sombra se juntavam em volta de Mayada para a pôr numa posição mais

confortável. Deram-lhe um cobertor dobrado para servir de almofada, enquanto

outro era posto entre o seu corpo e o beliche gelado. Tinham recebido o jantar

enquanto Mayada estivera no hospital e, como prometido, Samara guardara-lhe

um prato, mas Mayada não conseguia comer.

As mulheres começaram a falar-lhe sobre as suas vidas. Mayada ficou a saber

que a mulher chamada Iman era uma xiita do sul. Outra mulher, chamada Safana,

era curda. E uma outra, cujo nome ela ainda não conhecia, era uma su-nita de

Bagdá. Todas lhe pediam que ela lhes contasse tudo o que tinha visto fora da

cela. Mayada suspirou pesadamente e disse-lhes a custo que, embora ainda não

pudesse falar, no dia seguinte responderia de bom grado a todas as perguntas.

Uma das mulheres-sombra fez então a pergunta de que Mayada estava à espera,

devido ao seu nome de família.

- Diz-nos só uma coisa: és da família do grande Jafar Pasha Al-Askari?

Mayada não respondeu de imediato, reflectindo na respos-

58

ta que devia dar. Ainda pensou em negar o facto, porque era frequente algumas

pessoas começarem a comportar-se como se ela se achasse melhor do que os

outros, o que não era o caso. Havia ainda quem, ao conhecer a sua linhagem, se

tornasse um inimigo feroz, sem motivo aparente. No entanto, havia também quem

alterasse o seu comportamento e passasse a tratá-la com reverência, como se ela

fosse um membro da família real. Contudo, ao deparar com os bondosos olhos de

mulheres simples que partilhavam com ela aquela cela, Mayada teve a certeza de

que continuariam a ser afectuosas para com ela, independentemente da sua

linhagem.

- Sim - admitiu, com um sorriso débil. - Jafar Pasha era o meu avô, pai do meu pai,

Nizar Al-Askari.

A mulher-sombra baixou-se, tocou na face de Mayada com ternura e disse-lhe:

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- O meu avô, certa vez, conheceu o teu, quando veio para o Sul a fim de recolher

votos para o rei Faiçal Primeiro. Sempre afirmou que Jafar Al-Askari era um

grande iraquiano. Ouvi-o dizer muitas vezes «Se ainda tivéssemos, entre os vivos,

homens como Jafar Pasha, poderíamos ter evitado esta desgraça».

Como se aquelas palavras houvessem soltado as suas línguas, as outras

mulheres-sombra começaram a partilhar memórias de um tempo em que os

Iraquianos tinham esperança num futuro melhor. Mayada ouviu outras mulheres

contar calmamente que Jafar Pasha trouxera muitos benefícios às vidas das suas

famílias. Samara olhou para Mayada e sorriu:

- Vamos retribuir todo o bem que esse grande homem nos fez, cuidando da sua

neta.

59

2

As quatro portas negras

Ao longo da história, houve grandes homens que se uniram em momentos

importantes. Homens dessa envergadura, tal como Jafar Al-Askari, Nouri Al-Said,

o rei Faiçal I, Law-rence da Arábia e Sati Al-Husri uniram-se durante e depois da

Primeira Guerra Mundial. Três deles eram familiares de Mayada, que conhecia tão

bem as vidas deles como a dela própria.

Em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial terminavam 400 anos de poder

otomano. Não havia ninguém que mandasse no Iraque e o povo foi confrontado

com a possibilidade de ter de começar tudo de novo. Os governos inglês e

francês, que haviam ajudado os Iraquianos a derrotar os Otomanos, prometiam a

liberdade para todos os árabes. Levados por esse sonho, Jafar, Nouri, Lawrence

da Arábia e Faiçal arriscaram muitas vezes as suas vidas.

Mas nenhum homem foi mais corajoso do que o avô de Mayada, Jafar Al-Askari.

Talvez fosse por obra do destino que Jafar Al-Askari nascera na mesma altura em

que o Império Otomano morria. Veio ao mundo em 13 de Junho de 1885. Os seus

pais, Mustafa e Fátima, viviam em Bagdá, onde o pai era governador militar e

Page 46: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

chefe do estado-maior do Quarto Exército.

Jafar saiu ao pai. Tinha cabelo castanho-claro e olhos castanhos raiados de

dourado, sendo dotado de uma mente brilhante que lhe permitiu notabilizar-se na

estratégia militar, nas línguas e na política.

60

Porque era filho do chefe do estado-maior, Jafar recebeu a melhor das educações,

e, como o pai era militar, essa educação vocacionou-se para a arte e o exercício

da vida de soldado. Foi então que uma tragédia se abateu sobre a família. Mustafa

reparou num sinal encarnado - a que os Turcos chamam «pata de leão» - no

ombro. Se era um melanoma ou talvez varíola nunca se soube, mas Mustafa caiu

de cama e depressa sucumbiu a uma dolorosa enfermidade.

Apesar de chorar a morte do pai, Jafar prosseguiu os seus estudos. Na academia

militar, conheceu aquele que se tornaria o seu melhor amigo para o resto da vida,

Nouri Al-Said. Os dois homens tornaram-se tão íntimos que fizeram um pacto de

casarem com as irmãs um do outro. Nouri casou com a irmã mais nova de Jafar,

Naeema, e Jafar casou com a irmã de Nouri, Fakhriya.

Quando a Primeira Guerra Mundial rebentou, Jafar combateu ao lado dos

Otomanos e dos Alemães e depressa se tornou um general condecorado, mas era

tão talentoso e intrépido que os Ingleses procuraram-no e pediram-lhe que

combatesse do lado deles. Jafar recusou, até ao dia em que o sultão Mohammed

Resat ordenou a execução de vários dos seus amigos. Jafar sentiu-se desiludido

com a causa dos Otomanos e acedeu aos pedidos de T. E. Lawrence (Lawrence

da Arábia) e do príncipe Faiçal de Hejaz para que incorporasse o exército árabe.

Durante a guerra, Jafar e o príncipe Faiçal tornaram-se amigos íntimos. Jafar Al-

Askari foi nomeado comandante do exército Regular Árabe, e foi o único homem

que, durante a Primeira Guerra Mundial, recebeu as mais altas condecorações

alemãs e inglesas.

Finda a guerra, os Ingleses ocuparam o Iraque, tendo grande dificuldade em

impedir que os homens das tribos iraquianas atacassem o seu exército. Com o

propósito de apaziguar os Iraquianos, os Ingleses optaram por assumir um papel

indirecto na governação do país, e instauraram uma monarquia, que seria

Page 47: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

supervisionada pelo governo inglês. Depois de muita polémica, e encorajado pelos

representantes ingleses no Iraque, Winston Churchill decidiu que o príncipe Faiçal,

cujo pai reinara em Meca e Medina, seria o novo rei do Iraque, apesar de Faiçal

nunca haver posto os pés no país.

61

Quando Faiçal chegou ao Iraque, os seus amigos e antigos companheiros de

armas Jafar Al-Askari e Nouri Àl-Said esperavam-no para servi-lo. Centenas de

ingleses e de iraquianos juntaram-se nas margens do rio Tigre para assistir à

coroação de Faiçal. A proclamação foi lida em arábico, anunciando que Faiçal fora

eleito pelo seu povo, e uma banda tocou o hino britânico, God Save the King,

indignando muitos dos iraquianos presentes.

Jafar foi nomeado ministro da Defesa e Nouri chefe do Estado-Maior. Seguiram-se

muitas lutas pelo poder, mas os três homens conseguiram manter o país unido

graças à sua grande determinação. Então, em 1933, depois de doze anos de

reinado, o rei Faiçal I adoeceu, em consequência de problemas cardíacos, e

exilou-se na Suíça, onde morreu aos quarenta e oito anos. O seu único filho, o

príncipe Ghazi, foi coroado rei Ghazi I.

Jafar vivera alguns anos em Inglaterra, mas em 1934 o seu amigo e cunhado

Nouri, que era agora o primeiro-ministro do Iraque, pediu-lhe que regressasse e o

ajudasse a formar governo. Nouri explicou a Jafar que ganhara muitos inimigos e

que precisava da força que Jafar representava do seu lado. Jafar adorava a

Inglaterra, onde, segundo afirmava, apenas precisava de uma bengala, ao

contrário do Iraque, onde tinha de andar sempre armado. No entanto, como a

situação no Iraque se tornava cada vez mais turbulenta, Jafar acabou por ceder ao

apelo de Nouri e, mais uma vez, assumiu o cargo de ministro da Defesa.

Dois anos mais tarde, em Outubro de 1936, Jafar ordenou às suas tropas que

efectuassem uma série de exercícios de rotina, mas esperava-o uma surpresa.

Um homem que Jafar pensava ser seu amigo, o general Bakir Sidqi, comandante

da Segunda Divisão do Exército, decidiu levar a cabo um golpe militar, o primeiro

no Iraque moderno.

Três aviões lançaram bombas e, enquanto uma caiu no rio Tigre sem causar

Page 48: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

danos, as outras duas atingiram o Ministério do Interior e o edifício que albergava

o Conselho de Ministros. Uma outra bomba destruiu o edifício dos Correios. Jafar

decidiu combater as tropas de Sidqi, para impedir

62

que entrassem em Bagdá. O embaixador britânico, Sir (llarlc Keer, achava-se

presente quando Jafar fez aquele juramento e escreveria mais tarde que a missão

de Jafar fora um acto de grande intrepidez, revelando uma coragem que nenhum

outro membro do governo possuía. O rei Ghazi ficou preocupado com a segurança

de Jafar, mas este ter-lhe-á dito que o seu dever era proteger o rei e o povo.

Segundo se conta, quando Jafar partiu o rei Ghazi terá pressentido que algo iria

correr mal. Ainda saiu a correr do palácio para deter Jafar, mas era tarde de mais -

Jafar já partira.

Jafar não podia adivinhar que o seu amigo Sidqi pedira a cinco dos seus

colaboradores para o matar. Quatro deles afirmaram que nunca matariam um

homem tão nobre como Jafar Al-Askari. O quinto homem, contudo - o capitão

Jameel, que não conhecia pessoalmente Jafar -, aceitou o papel de assassino.

As tropas de Sidqi foram ao encontro de Jafar na periferia de Bagdá e disseram-

lhe que o levariam à presença de Sidqi. Pediram a Jafar que se sentasse no lugar

da frente do carro, mas Jafar depressa se apercebeu de que havia algo de errado.

Voltou-se para trás, encarou os outros e disse:

- Pressinto que vão matar-me, mas não tenho medo de morrer. A morte é o fim

natural de todas as vidas humanas. (Contudo, quero dizer-vos que, se começarem

a matar, tornar-se-ão os responsáveis pelo sofrimento que infligirão a este país,

porque irão abrir as comportas de um rio de sangue. Quando o carro parou no

acampamento de Sidqi e Jafar saiu, o capitão Jameel abateu-o por trás. Jafar

ainda viveu o suficiente para se voltar e gritar: «Nãaoooo!» Os homens de Sidqi,

às pressas, cavaram uma sepultura na areia e enterraram-no. Bakir Sidqi obrigou

os seus homens a jurar que manteriam segredo.

Passados alguns dias, ao aperceber-se de que Jafar não regressava ao palácio, o

país mergulhou no caos. Jafar havia sido a cola que mantivera o governo unido.

Sidqi invadiu Bagdá e forçou o rei Ghazi a formar novo governo.O mundo árabe

Page 49: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

ficou chocado quando soube que Jafar Al-Askari morrera. Infelizmente, a sua

previsão de que o Iraque

63

se iria converter num rio de sangue confirmou-se. Sidqi seria assassinado pouco

tempo depois por oficiais leais a Jafar. A família real manteve-se à cabeça de

inúmeros governos formados em consequência de sucessivos golpes militares.

Em 1958, a família real convidou os pais de Mayada para a acompanhar numas

férias, antes do casamento do rei Fai-çal II, mas a mãe de Mayada, Salwa, insistiu

que a filha deveria usar um Vestido da casa Dior, porque fora convidada para

dama de honor.

Mayada tinha apenas três anos, mas a mãe marcara uma prova na loja Dior de

Genebra. Assim, a família encontrava-se na Europa quando soube que o general

Abdul Karim Qasim, um oficial do Exército, ordenara aos seus soldados que

cercassem o palácio real. Servindo-se de um megafone, ordenou que a família

real saísse. Eram apenas 7.45 da manhã, mas poucos minutos depois a porta da

cozinha, situada nas traseiras do palácio, abriu-se e os membros da família real

saíram um por um. Abdul Karim Qasim ordenou-lhes que seguissem para um

pequeno jardim lateral e parassem junto de uma grande amoreira- A família real

formou uma fila, acompanhada pelos seus criados. O jovem rei, confuso, não

parava de saudar os soldados.

Um capitão, de seu nome Al-Obousi, disparou contra o rei, desfazendo-lhe o

crânio. Os outros oficiais começaram também a disparar. Findo o massacre,

arrastaram os corpos dos membros da família real até um camião; logo em

seguida, uma multidão em fúria começou a pilhar o palácio.

Quando o camião passou pelos portões do palácio, um homem saltou para o

interior e esfaqueou os corpos já sem vida. O camião foi interceptado por um jipe

militar e os soldados que se achavam no seu interior levaram os corpos do jovem

rei e do regente. Milhares de populares haviam-se agrupado e, para apaziguar a

multidão, o condutor atirou-lhes o corpo do regente de Faiçal II, que foi

imediatamente despido e arrastado pelas ruas de Bagdá, até ser pendurado de

uma das varandas do Hotel Al-Karhk. A multidão cortou-lhe as mãos, os braços,

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os pés, as pernas e os órgãos genitais, rasgou-lhe a boca e arrastou o que

sobrara até ao Ministério da defesa, onde dependurou o corpo mutilado. Um jovem

empunhou então uma adaga e abriu o ventre do morto. Vários homens colocaram

os intestinos do regente em volta dos seus pescoços, como se fossem colares, e

dançaram nas ruas. Por fim, alguém levou os restos mortais do regente, regou-os

com gasolina e queimou-os. As cinzas foram lançadas ao rio.

O jovem rei foi levado para o Hospital Militar Al-Rasheed, onde os médicos

atestaram a sua morte. O seu corpo foi enterrado temporariamente nos terrenos

do hospital, para evitar que a multidão procedesse a outra mutilação. Os restantes

membros da família real também foram enterrados nos terrenos do hospital.

Por aquela altura, o primeiro-ministro Nouri Al-Said, tio do pai de Mayada, já

andava a monte. Tivera conhecimento do massacre e sabia que nada mais podia

fazer a não ser fugir. Nouri era um homem velho, mas mesmo assim a multidão

queria vê-lo morto. Um seu vizinho, Um Abdul Ameer Al-Estarabadi, aconselhou-o

a refugiar-se nas tribos de Umara, que o recolheriam. Nouri vestiu uma abaaya (1)

de mulher para se disfarçar. Infelizmente, ele e o vizinho decidiram parar algures

nas margens do rio Abu Nawas, e alguém na multidão que seguia para a cidade

reparou num par de sapatos de homem por baixo de uma abaaya de mulher.

Percebendo que havia algo de errado, descobriram Nouri, que foi amarrado à

parte de trás de um carro e arrastado pelas ruas de Bagdá.

A multidão atirou o corpo de Nouri já sem vida para o meio de uma rua, onde os

carros se revezaram para o atropelar. Outros usaram facas para lhe cortar os

dedos. Mais tarde, uma conhecida senhora membro de uma família importante de

Bagdá pavonear-se-ia em festas exibindo um dos dedos de Nouri guardado numa

cigarreira de prata.

Quando a família de Nouri soube que ele havia sido assassinado, o seu filho,

Sabah, resolveu resgatar o corpo do pai, para que lhe pudessem dar um enterro

digno, mas Sabah também foi assassinado e arrastado pelas ruas da cidade.

(1 ) - Tecido de cor preta usado pelas mulheres islâmicas e que cobre todo o

corpo. (N. do E.)

64

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65

E, como Jafar previra, os golpes de Estado continuaram, levando finalmente ao

aparecimento do Partido Baas, dirigido por Ahmed Hassan al-Bakir e Saddam

Hussein. O objectivo do novo partido era formar um governo socialista e secular,

que aspirava à unidade pan-árabe perante o domínio estrangeiro.

O Partido Baas chegou ao poder pela primeira vez em Fevereiro de 1963, mas foi

destituído no final desse mesmo ano. Um movimento Baas mais poderoso,

liderado por Saddam Hussein, regressou ao Iraque em 1968. Para Mayada, o

Partido Baas depressa se tornaria um pesadelo infindável e a causa principal de

muitos dos problemas do Iraque.

A sua primeira noite na prisão foi a mais longa de toda a sua vida. Com os olhos

abertos, pensou na família, em Fay e Ali, e recriminou-se por não haver partido

quando a sua mãe a avisara de que o Iraque estava condenado. Mayada

reconstituiu mentalmente a história do Iraque de Saddam e deu-se conta de que,

enquanto os Iraquianos eram iludidos por uma ideia de paz, graças à

personalidade carismática de Saddam, ele esculpia quatro portas pretas para que

resguardassem - e escondessem - toda a sua maldade.

Saddam era presidente havia um ano e muitos iraquianos ainda acreditavam na

sua grandeza em 1980, quando começou a preparar a primeira das duas guerras

que iriam arruinar o Iraque.

Era um dia tranquilo de Setembro. Bagdá ainda se achava envolta pela frescura

da alvorada. Mayada e o marido, Saiam, tomavam o pequeno-almoço mais cedo

do que o costume. Mayada observava o marido a comer, tentando imaginar como

seria quando envelhecesse. Esperava já não ser viva, quando o cabelo negro de

Saiam se tornasse grisalho e o seu corpo engordasse, devido a todos os ovos, a

todo o leite e a todo o açúcar que ele gostava de ingerir.

Mayada descobrira durante a lua-de-mel que cometera um disparate ao aceitar

tornar-se sua mulher. Agora, dava consigo a pensar frequentemente em deixá-lo,

mas no Médio Oriente as mulheres encaravam o divórcio com grandes reticências.

Por isso, acabara por conformar-se em ser mais uma entre os

66

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muitos milhões de mulheres que tinham um casamento sem amor sem nunca se

queixar.

Mayada tinha outro motivo para se sentir ansiosa. Saiam fora recrutado havia

pouco tempo para o serviço militar obrigatório e envergava, com aparente

desconforto, o seu uniforme. Não parava de puxar as mangas da camisa e o

gancho das calças, que só tinham sido lavadas uma vez e ainda tinham muita

goma. Estava vestido como um guerreiro, mas Mayada não conseguia associar a

violência ao homem com quem partilhava a sua intimidade. Enquanto aquelas

ideias lhe passavam pela mente, um estrondo fez estremecer a casa da mãe,

seguin-do-se explosões menos fortes. Os pratos balouçaram, as luzes piscaram e

os três tentilhões de plumagem brilhante e colorida esvoaçaram nervosamente de

um lado para o outro na sua gaiola. Mayada sentiu uma onda de medo percorrer-

lhe o corpo e alojar-se no seu estômago.

- Saiam, são aviões israelitas? - perguntou.

Saiam fitou-a, espantado, enquanto pequenas gotículas de suor se formavam no

seu rosto, e quando retorquiu a sua voz rouca adoptara um tom estranhamente

estridente.

- Não, não pode ser...

O coração de Mayada disparou, à espera do som ensurdecedor das sirenes, mas

o silêncio reinou à sua volta. Saiam apressou-se a ligar o rádio, mas a

programação normal continuava a ser emitida. Mayada trabalhava no Al-

Jumhuriya, um dos jornais de Bagdá, e resolveu telefonar para a redacção.

Quando estendeu a mão para levantar o auscultador o telefone tocou, o que a fez

sobressaltar-se. Levantou o auscultador e ouviu a voz do Dr. Fadil Al-Barrak, um

amigo recente da família. O Dr. Fadil era o director da polícia secreta, e todos

sabiam que aquele homem só respondia perante Saddam Hussein. Não deixava

de ser estranho que um cavalheiro de modos tão educados e voz suave ocupasse

um cargo que o tornava responsável pela segurança interna do país, mas pouco

depois de Saddam assumir o poder total reestruturara os serviços secretos do

Iraque. Saddam afirmara que um homem ignorante era menos digno de confiança

do que um homem inteligente, e nomeara os iraquianos mais cultos para cargos

Page 53: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

proeminentes.

67

O Dr. Fadil era muito poderoso no Iraque, por supervisionar várias repartições

encarregadas das questões ligadas à segurança nacional, incluindo os serviços

secretos, os movimentos islâmicos, os desertores militares, a segurança

económica, os grupos oposicionistas, o tráfico de droga e outras questões.

Poucas pessoas no Iraque conheciam um homem com um tão alto cargo, mas

Mayada não pensou nisso, na altura, porque os seus pais e avôs sempre se

haviam dado com importantes líderes mundiais.

Na realidade, o Dr. Fadil tinha uma relação invulgar com a sua família. Se bem

que se houvesse tornado amigo da família, Salwa, a mãe de Mayada, nunca lhe

proporcionara tal posição. O Dr. Fadil era um escritor e procurara Salwa com o

propósito de consultar os livros e os documentos pertencentes ao famoso avô

materno de Mayada, Sati Al-Husri. Nem Salwa nem Mayada haviam considerado

estranho aquele pedido, uma vez que era frequente os escritores iraquianos

usarem como referência os livros e os documentos de Sati sobre o nacionalismo

árabe e os programas educacionais iraquianos. Desde esse momento, o Dr. Fadil

passara a ser um visitante regular da casa de Salwa.

Naquele dia fatídico, o Dr. Fadil omitiu a sua cortesia habitual.

- Saiam está a cumprir o serviço em Bagdá? Mayada sentiu um certo espanto com

a preocupação dele

pela segurança do marido. Desde o início que o Dr. Fadil não aprovara o seu

casamento, em virtude de Saiam ser oriundo de uma família feudal muito

conhecida. O seu pai possuíra escravos até 1960, e um membro do revolucionário

Partido Baas como o Dr. Fadil evitava propositadamente qualquer convívio com

antigos proprietários de escravos. No entanto, a sua amizade pela família de

Mayada não esmorecera e oferecera-lhe mesmo uma jóia de grande valor no dia

do seu casamento.

- Não, está a cumprir serviço em Al-Mahaweel - respondeu Mayada, referindo-se à

base militar situada no Sul do Iraque. Pressentindo que algo se passava,

perguntou-lhe o que acontecera.

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O Dr. Fadil sussurrou, num tom de voz grave.

- O seu herói do retrato acabou de declarar guerra ao Iraque.

Mayada soube de imediato a que se referia o Dr. Fadil, compreendendo que as

explosões nada tinham que ver com dicções internas no país mas estavam

relacionadas com a crescente tensão entre o Irão e o Iraque. Apesar da seriedade

daquele momento, quase se riu da alusão de Fadil ao «herói do retrato».

Finalmente, compreendia por que razão um tolo incidente sem grandes

consequências havia enfurecido aquele homem que se considerava um amigo leal

da família.

O incidente ocorrera em 1979 durante o noivado de Mayada e estivera relacionado

com uma reunião de estudantes na Universidade Al-Mustansiriya, em Bagdá.

Durante a reunião, várias bombas haviam explodido, matando dois estudantes e

ferindo muitos outros. Uma semana depois dos bombardeamentos, fora

organizada uma gigantesca marcha estudantil até ao cemitério Bab Al-Muaadam,

onde os dois estudantes mortos haviam sido sepultados. A manifestação

espalhara-se pela cidade e a dada altura passara pela rua onde se achava a casa

de Salwa. Como dois ministros encabeçassem a marcha de protesto, vários

agentes da polícia e dos serviços secretos patrulhavam toda a área. Fora então

que, quando a marcha passara em frente da casa da mãe, alguém lançara duas

granadas para a multidão. E porque o consulado do Irão se achasse na casa

contígua à de Salwa a polícia secreta iraquiana imediatamente concluíra que as

granadas haviam sido lançadas dali.

A casa da família de Mayada era particularmente imponente, com varandas

largas. A varanda do quarto de Mayada, com vista para os jardins, achava-se

defronte da casa ocupada pelo consulado. As forças de segurança teriam de

passar pelo seu quarto para se postar na varanda, de onde planeavam disparar

contra a residência do representante iraniano.

Poucas semanas antes da manifestação, Mayada recortara uma fotografia do

aiatola Khomeini e colara-a na parede do seu quarto. Era um retrato que mostrava

o carrancudo clérigo com o seu turbante preto sobre um pano de fundo cor-de-

rosa muito vivo.

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Quando os agentes da polícia secreta entraram no quarto de Mayada e depararam

com a imagem do inimigo, haviam ficado tão espantados que depressa se

esqueceram de que perseguiam perigosos rebeldes. Ao invés, haviam corrido a

relatar a traição daquela jovem às autoridades competentes. Os ira-nianos haviam

sido salvos de uma saraivada de balas naquele dia só porque uma rapariga

chamada Mayada Al-Askari colara uma fotografia do clérigo xiita Khomeini na

parede do seu quarto. Um tão grave insulto era considerado um acto de traição

pelo governo minoritário sunita, mas Mayada era muito nova e confiante para

pensar que estava em apuros só por haver colado uma fotografia na parede do

seu quarto.

Quando o Dr. Fadil fora informado do incidente telefonara-lhe. A sua habitual

afabilidade desaparecera-lhe da voz quando a informou de que passaria lá por

casa às dez da noite e lhe pediu que não andasse a mostrar o seu precioso

guarda-jóias a toda a gente. Mayada compreendera imediatamente aquela alusão,

porque no Iraque, quando alguém deseja escarnecer de uma pessoa, usa

expressões de sentido contrário, pelo que, ao referir-se a Khomeini como «guarda-

jóias», o Dr. Fadil estava de facto a dizer que o seu inimigo não era senão esterco.

O Dr. Fadil revelou ser um homem de palavra. Chegou às dez horas em ponto, e

apesar de se mostrar calmo os seus modos deixavam transparecer uma nítida

frieza. Serviu-se da sua estatura alta para, de cima para baixo, fitar Mayada, que

reparou nessa altura que ele tinha um olho mais pequeno do que o outro. Foi

quando sentiu pela primeira vez que o Dr. Fadil não era propriamente o homem

afável que parecia ser. Com os lábios comprimidos, pediu um uísque a Salwa,

tragou um grande gole e só depois concentrou a sua atenção em Mayada.

Um homem tão próximo de Saddam detinha grande poder na hierarquia

governamental e podia esmagar Mayada como se ela fosse um insecto, mas,

depois de o uísque lhe descer pela garganta, mostrou-se menos severo e

começou a dar-lhe um sermão sobre os seus vizinhos iranianos. Girou o copo

entre as mãos enquanto dizia:

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- Devia ter visto Khomeini quando foi deportado do

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Irão. Nada tinha e abrimos-lhe as portas do nosso país. Viveu muitos anos como

refugiado no Iraque, mas quando Saddam lhe pediu que falasse ao povo xiita

sobre o xá, cujo único objectivo era derrubar o nosso governo, Khomeini recusou-

se a fazer tal coisa. - O bem-falante Dr. Fadil surpreendera então Mayada e a mãe

dizendo enfurecido: - Aquele homem não passa de um persa com merda enfiada

dentro dos ossos!

Depois, tentando recuperar o domínio sobre as suas emoções, pigarreara e, num

tom de voz mais baixo, dissera:

- Por trás de uma fachada de homem pio conspira com os imperialistas.

Mayada era ainda muito ingénua e acreditava que nada de mal lhe aconteceria.

Fez um esforço para abafar uma gargalhada, por se aperceber de que o Dr. Fadil

estava exasperado. As pálpebras baixadas não conseguiam ocultar a fúria do

olhar e a sua tez esverdeada enrubescera pelo ódio. Contudo, Mayada ganhou

coragem para afirmar:

- Pensava que o Partido Baas proclamava a democracia e, se assim é, porque não

posso pendurar um retrato do meu inimigo na parede? Devia ter o direito de

pendurar no meu quarto todos os quadros que me aprouvesse.

O Dr. Fadil respirou fundo. Mayada compreendeu que o assunto era sério, e

tentou aliviar a tensão que pairava no ar.

- O que me despertou a atenção foi o contraste entre o cor-de-rosa do fundo e o

preto do turbante - explicou, rindo-se. - Foram as cores e não o homem em si.

Mas o Dr. Fadil estava furioso com as suas palavras insensatas e, exaltado,

referiu-se à falta de lealdade de Mayada para com o mundo árabe que lutava

contra os monstros persas. Salwa, contudo, era uma mulher inteligente e sabia

lidar com os homens. Voltou a encher o copo do Dr. Fadil e murmurou:

- É tão bom tê-lo como amigo para orientar a minha filha! Como sabe, ela já não

tem pai...

Mayada sentira uma repentina revolta contra a mãe, com a ideia de que um

homem qualquer pudesse considerar-se substituto do seu pai, Nizar Al-Askari.

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Mayada adorava o pai. O dia 2 de Março de 1974 - o dia em que o pai morrera,

após um duro combate contra o

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cancro do cólon - fora o dia mais triste da sua vida. Ainda tinha dificuldade em

pensar nele, e sempre que a memória do pai, vergado pela doença, lhe vinha à

mente, a tristeza apoderava-se do seu corpo e chegava a adoecer. Mas agora

lembrava-se do terno amor masculino com que Nizar Al-Askari envolvera as três

mulheres da sua vida: a mulher, Salwa, e as duas filhas, Mayada e Abdiya. Na

última conversa que tivera com as filhas, mostrara-se muito agitado com a ideia de

que iria morrer em breve e de que as filhas deixariam de ter a protecção de um

pai. Trémulo, dissera a Salwa que Mayada tinha de ir para a Faculdade de

Medicina da Universidade Americana, em Beirute, e que Abdiya deveria seguir os

passos da irmã, revelando ainda que possuía uma conta num banco do Líbano

para esse fim. Depois, fitara Abdiya e chamara-lhe «gatinha», insistindo que o seu

principal objectivo na vida deveria ser o de se instruir. Aquela devoção do pai de

Mayada pela instrução universitária era compreensível, porque se tratava de um

homem muito culto, que tirara o curso de Economia na Universidade Americana

de Beirute e prosseguira mais tarde os seus estudos no King's College, em

Cambridge, onde tivera como tutor John Maynard Keynes, o famoso economista.

Com as palavras da mãe ainda a ecoar-lhe nos ouvidos, Mayada sentiu um súbito

espasmo de ódio pelo Dr. Fadil por este estar vivo enquanto o seu pai já morrera,

embora soubesse que aqueles pensamentos eram pecaminosos - só Deus podia

determinar tais coisas. Então, atentara na mãe, enquanto ela acalmava o Dr. Fadil

com palavras apaziguadoras, se bem que pensasse que ninguém podia mitigar a

crueldade durante muito tempo. Pela primeira vez, desconfiava de que havia um

lado implacável no carácter do Dr. Fadil, que tanto ela como a mãe desconheciam.

Lembrara-se então da reacção de outros iraquianos quando ouviam o nome dele

ou ficavam a saber que ela o conhecia. Alguns cobriam os olhos e desviavam a

cabeça para o lado, lembrando-se subitamente de coisas que tinham a fazer,

enquanto outros revelavam repentinamente um respeito que ela não merecera -

para logo a seguir lhe pedirem que interviesse junto do Dr. Fadil e os ajudasse a

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obter um emprego ou um pedaço de terra.

Ainda pensou em perguntar ao Dr. Fadil por que motivo os Iraquianos reagiam

daquela maneira quando ouviam o seu nome, mas Salwa deu-lhe um beliscão no

cotovelo, discretamente, e lançou-lhe um olhar penetrante.

Era óbvio que o Dr. Fadil gostara da ideia de ajudar a educar a neta do lendário

Sati Al-Husri. Sorriu e bebeu mais um uísque, dizendo depois a Salwa, em tom

jocoso, que os jovens eram muito tolos. Antes de sair, porém, fez questão de

relembrar a Mayada que sem a protecção dele a descoberta do seu herói do

retrato teria atirado todos os seus familiares para a prisão por tempo

indeterminado. Quando o Dr. Fadil finalmente se retirara, à meia-noite, Mayada

fora forçada a reconhecer, contra a sua vontade, que a mãe era genial a lidar com

situações tão embaraçosas.

E era o mesmo Dr. Fadil que ainda se recordava daquele incidente que agora a

informava de que o Irão e o Iraque estavam em guerra. Disse-lhe que aviões

iranianos haviam violado o espaço aéreo do Iraque e sobrevoado Bagdá, mas

apressou-se a acrescentar que os heróis iraquianos já os haviam expulsado do

país.

Depois de desligar, Mayada contou a Saiam o que acabara de ouvir. Ficou parada

a observar enquanto o marido corria de um lado para o outro recolhendo algumas

coisas que queria levar consigo para a linha da frente. Experimentou uma triste

sensação ao pensar que Saiam podia ser a primeira baixa das forças iraquianas,

pois apesar de não querer continuar casada com ele também não o queria morto.

No Médio Oriente, as mulheres aceitam os rituais do casamento e da educação

dos filhos sem quaisquer reticências. Mayada não constituía excepção. Quando

fizera vinte e três anos já equacionara várias vezes a hipótese de se casar.

Quando um rapaz atraente chamado Saiam Al-Haimous entrara na redacção do

jornal onde Mayada trabalhava para publicar um anúncio, os seus modos tímidos

haviam-lhe despertado a atenção. Ao vê-la, Saiam mencionara que eram vizinhos.

Fascinada pelo seu belo rosto, Mayada admirara-se por nunca haver reparado

nele. Contudo, a partir de então, iria tornar-se mais observadora. Nesse mesmo

dia, quando regres-

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sou a casa, Saiam esperava-a à porta, e apesar das reticências de Salwa quanto

ao casamento Mayada e Saiam receberam a bênção dos seus pais passados

poucos meses.

Assim que a cerimónia terminara, o alegre casal saíra de Bagdá para uma longa

lua-de-mel pela Europa. Mayada viajara por todo o mundo desde a sua infância,

mas Saiam nunca havia saído do Iraque. Uma hora depois de o avião descolar

Saiam deixara bem claro que, dada a sua condição de xeque árabe, a esposa

deveria ocultar os seus conhecimentos em frente das outras pessoas. Sorrindo,

explicara:

- Eu tratarei de tudo. Sou o homem.

Na Itália, Saiam quisera divertir-se, enquanto Mayada preferira visitar os museus,

que tanto a fascinavam. Saiam gostava dos casinos. Mayada passava o tempo

nas bibliotecas.

País a país, o casamento depressa se deteriorara.

Em Espanha, Mayada descobriu que Saiam pensava que Picasso, o grande

pintor, era o nome de um prato típico de peixe.

Com tudo isto, Mayada compreendera que cometera o maior erro da sua vida.

Ainda assim, não lhe agradava que Saiam fosse arriscar a vida na guerra.

Aquela manhã de Setembro seria apenas o início de anos de perdas

avassaladoras. A guerra que se seguiu, opondo Sad-dam a Khomeini, matou um

milhão e meio de homens, mulheres e crianças.

A hostilidade entre os dois países começara quando Mayada ainda era criança.

Durante a infância de Mayada, Khomeini era um líder espiritual excêntrico mas

completamente desconhecido. Convencido de que o governo secular do xá do Irão

estava a arruinar a vida religiosa da sociedade xiita irania-na, Khomeini tecera

rudes críticas ao xá, que, já farto, o condenara ao exílio. Khomeini atravessara

então a fronteira e fugira para o Iraque. Vivera durante quinze anos em Nafaj, a

cidade santa xiita, onde continuara a instigar a dissidência contra qualquer

governante que não seguisse as regras islâmicas da facção xiita - incluindo o

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regime do seu anfitrião, Saddam Hussein. No Médio Oriente, tanto os ditadores

como os reis revelam sempre grande cautela relativamente às palavras

dos líderes religiosos, por haver muitos homens dispostos a morrer por eles.

Um ano antes do bombardeamento, naquela manhã de Setembro, Saddam

recebera um pedido do xá para que expulsasse Khomeini do Iraque. Em troca, o

xá comprometia-se a deixar de fornecer armas à população xiita iraquiana,

promessa que fora bem recebida pelo ditador iraquiano, por ser membro da

minoria sunita. Sempre desconfiara da facção xiita maioritária e vira naquele

simples pedido uma maneira fácil de consolidar o seu governo. Além de que já

espumava de raiva pela recusa de Khomeini em criticar o xá, apoiando

simultaneamente o governo iraquiano. Assim, Saddam não demorara muito a

mandar deportar o controverso líder religioso. Um ano depois, regressado do seu

exílio em Paris e assumindo o controlo do governo iraniano, Khomeini provara ser

um inimigo declarado de Saddam Hussein. A tensão continuou, e quando os xiitas

iraquianos formaram um grupo chamado al-Dawah ai Islamiyah, ou «Chamamento

Islâmico», cujo principal objectivo era fomentar motins e apelar a um governo

lundamentalista baseado no modelo iraniano, Saddam virara-se contra o seu

próprio povo, efectuando detenções em massa em todas as aldeias xiitas e

condenando à morte proeminentes líderes xiitas. A al-DaVah respondera com a

tentativa de assassínio do ministro dos Negócios Estrangeiros iraquiano Ta-iiq

Aziz.

A antiga discordância entre dois oponentes obstinados, Khomeini e o xá,

fortalecera a animosidade entre os governos do Irão e do Iraque. Sentindo-se

ameaçado pelo seu conflituoso inimigo do outro lado da fronteira, Saddam

orquestrara um ataque militar, rejeitando o acordo de Argel de 1973 com o Irão,

que concedia a este país a posse do Shatt-al-Arab, um canal estreito que

constituía o único acesso do Iraque ao golfo Pérsico. Durante séculos, os dois

países haviam disputado a posse do canal, pelo que este era um argumento

familiar que Saddam podia utilizar.

A guerra revelara-se um pesadelo que durara oito anos. Tal como muitos

iraquianos e iranianos, Mayada e os filhos viviam como animais assustados,

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escondendo-se por baixo da

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mesa da casa de jantar ou atrás dos sofás sempre que os pilotos iranianos,

desejosos de matar todo e qualquer iraquiano vivo, sobrevoavam o espaço aéreo

do Iraque. Aquela época de terror nunca se apagaria da sua memória, nem que

vivesse duzentos anos. Nunca se esqueceria do momento em que os

bombardeamentos e as rajadas de metralhadora se tornaram tão intensos que o

rumor de que os Iranianos haviam tomado Bagdá depressa se espalhara por toda

a cidade. Gritara aos seus dois filhos, ainda bebés, para que se baixassem ou se

escondessem sob as camas, enquanto corria pela casa trancando as portas e

calafetando as janelas com móveis pesados, convencida de que ela e os filhos

seriam assassinados pelos vitoriosos iranianos.

Por fim, a 20 de Agosto de 1988, a guerra parara, depois de o Irão e o Iraque

aceitarem a Resolução n.o 598 do Conselho de Segurança da ONU, que exigia

um cessar-fogo. Os Iraquianos haviam-se sentido tão aliviados com o fim daquela

guerra sangrenta que haviam celebrado, dançando nas ruas da capital durante

mais de um mês.

Os Iraquianos ainda se achavam no processo de reconstrução das suas infra-

estruturas quando uma segunda porta negra se abrira e Saddam enviara as suas

tropas para o deserto, com ordens para invadir o Koweit. Essa invasão provocara

a fúria das nações aliadas ocidentais, que massacrariam o povo iraquiano com

uma outra guerra, levando Mayada a crer que os Iraquianos se afogariam em

breve num mar de sangue. Mas a segunda guerra começara e terminara tão

rapidamente, com a maioria das bombas das tropas aliadas a atingir com precisão

cirúrgica os seus alvos militares, raramente atingindo zonas residenciais, que

Mayada sentira apenas uma ligeira apreensão, em nada comparável com o que

passara durante a guerra contra o Irão. Contudo, assim que a segunda guerra

terminara, novos problemas haviam surgido um pouco por toda a parte, com

rebeliões xiitas no Sul e motins curdos no Norte.

Mayada não sabia o que iria acontecer a seguir. O seu casamento fora uma

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fraude, terminando em divórcio, e agora, a meio da guerra e do caos, era a única

protectora de duas crianças de tenra idade. Preparou-se para enfrentar os motins

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que assolavam Bagdá a fim de arranjar pão, ovos e água. Para sua grande

surpresa, os soldados das tropas aliadas desistiram e abandonaram o Iraque, sem

sequer entrar em Bagdá. Seguira-se um breve período de uma calma idílica, que

parecia estranha mas, ao mesmo tempo, maravilhosa, após o horror de duas

guerras em apenas dez anos.

A calma depressa deu lugar ao desespero, porque as sanções da ONU

espreitavam por trás de uma terceira porta negra, que para Mayada se revelou

mais opressiva do que as guerras. A procura diária entre as bancas do mercado

para obter sustento a preços razoáveis que lhe permitisse alimentar duas crianças

em crescimento revelou-se a mais penosa das tarefas na vida de Mayada. Não há

maior dor nem maior tormento do que olhar para o rosto de duas crianças

esfomeadas e nada ter para lhes dar. O seu desespero foi tão grande que vendeu

as jóias da família, oferecidas a Melek pelo sultão. Levou mapas e livros antigos

aos vendedores de rua e vendeu-os por uma ínfima fracção do seu valor real.

Mas haveria ainda uma quarta porta negra à espera de abrir-se, uma que Mayada

pressentira como uma sombra crescente desde o momento em que Saddam

chegara ao poder. Agachado ameaçadoramente por detrás de um ciclo

interminável de guerras e de violência achava-se o aparelho interno de segurança

do Partido Socialista Baas, a polícia secreta fundada por Saddam em 1968,

quando Mayada tinha treze anos. A polícia do Estado crescera ao mesmo tempo

que ela, à medida que se tornava uma jovem adulta, atormentando todos os

iraquianos que passavam por Baladiyat ou outras prisões e transformando-se na

origem de milhões de sussurros iraquianos como «Allah Yostur - Que Deus nos

livre e nos proteja».

Deitada na escura cela, Mayada culpou-se pela sua falsa sensação de segurança.

Na sua maioria, os Iraquianos viviam no pavor constante de serem acusados a

qualquer momento de crimes que não haviam cometido, sem sequer terem

oportunidade para clamar a sua inocência.

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Porém, aquela sua primeira noite em Baladiyat teve o condão de esclarecer

Mayada acerca do seu país. Jurou a si própria que, se conseguisse sair da prisão

com vida, ficaria no Ira-

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que o tempo estritamente necessário para fazer as malas e ir buscar os filhos.

Deixaria a sua casa e o seu país para nunca mais voltar, mesmo que tivesse de se

sentar nas esquinas das ruas de Amã e vender cigarros, tal como Samara fizera.

As outras mulheres dormiam. Mayada ouviu passos no corredor e portas que se

abriam e fechavam. Quando as vozes se tornaram mais exaltadas, Mayada

perguntou a si própria se a prisão estava a arder e convenceu-se de que iria ver

fumo penetrar pela pequena abertura da porta da cela. Pela quarta vez em doze

horas, julgou que a sua vida chegara ao fim, mas não havia quaisquer indícios de

um incêndio. Começava a sentir-se um pouco mais calma quando ouviu um grito

que lhe pôs os cabelos em pé. Ao primeiro grito, seguiu-se um segundo, e, logo

depois, um terceiro. Mayada soergueu-se, apoiando-se nos cotovelos.

Samara correu para o seu lado e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Não te preocupes. Eles trazem um novo turno de carrascos a meio da noite.

Nesse mesmo instante, um grito penetrante, de cortar o coração, soltou-se algures

na prisão. Samara pôs a mão no rosto de Mayada e disse:

- Sei que é difícil, mas tenta dormir. De qualquer modo, não sabes o que o

amanhã te reserva e estarás mais bem preparada se repousares.

Mayada, contudo, não conseguiu dormir e ficou acordada toda a noite.

Mesmo na prisão, havia um muezim e, mal o dia nasceu, Mayada ouviu o

chamamento que lhe era tão familiar, apelando à oração e trazendo conforto ao

seu coração muçulmano.

- Deus é grandioso. Não há outros deuses senão Deus, e Maomé foi o Seu

Profeta. Venham orar, venham orar. Deus é grandioso, não existe outro deus

senão Deus.

Mayada levantou-se do beliche de metal e pôs-se na ponta dos pés, tentando em

vão evitar a nuvem de mau cheiro que envolvia a sanita. Postou-se na direcção de

Meca e rezou a Alá, pedindo-lhe que resolvesse os seus problemas e a tirasse de

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Baladiyat tão depressa quanto possível.

Terminara as suas orações quando o pequeno-almoço foi

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distribuído. Examinou atentamente as mulheres-sombra avançarem para a porta,

com passos arrastados, a fim de receber pequenas porções de lentilhas com um

naco de pão e pequenas chávenas com chá e copos de água.

- Vou arranjar-te um prato - ofereceu-se Samara. Mayada explicou que ainda não

conseguia comer, e pediu

a Samara que lhe guardasse uma colher cheia de açúcar, para lhe manter as

energias, mas reparou que Samara pusera de parte um prato de lentilhas, coberto

por uma fatia de pão, na esperança de conseguir convencer a sua nova

companheira de cela a comer.

Depois do pequeno-almoço, as mulheres começaram a servir-se da sanita à vez.

Pela vergonha que sentiria em ter de usar a sanita naquelas condições, Mayada

forçou o seu corpo a fechar-se, e concluiu que um bom efeito secundário do jejum

que se impusera seria o de não precisar de recorrer à sanita.

Sentou-se na beira do beliche e observou as outras mulheres, que andavam em

círculos, apressadas, como se as esperasse um dia atarefado. Algumas pararam

para brindar a nova companheira de cela com um sorriso de encorajamento, e

Mayada retribuiu-lhes o sorriso.

De repente, a pequena abertura da porta abriu-se, pelo lado de fora, e uma voz

roufenha gritou para o interior da cela.

- Mayada Nizar Jafar Mustafa Al-Askari!

O medo pôs-lhe os joelhos tão trémulos que não conseguiu pôr-se de pé. Samara

aproximou-se e sussurrou-lhe:

- É um milagre! Nunca mandam chamar um prisioneiro, um dia depois de o

prenderem. Costumam deixar uma pessoa penar nesta cova durante duas ou três

semanas antes do primeiro interrogatório!

Mayada não estava tão certa de que fosse um milagre, mas Samara teimou em

acalmá-la:

- Eles não torturam os prisioneiros de manhã cedo. Nunca. Nunca! Serás

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interrogada mas não torturada. Acredita em

mim!

Mayada sentia o seu corpo tão pesado que, se isso não fosse impossível, teria

julgado que doses de chumbo haviam penetrado nos seus ossos durante a noite.

Samara e as outras

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mulheres-sombra tiveram de ajudá-la a levantar-se e empurrada gentilmente em

direcção à porta.

O homem que se encontrava do lado de fora vendou-a, o que quase levou

Mayada à histeria, mas engoliu três ou quatro vezes e lembrou-se das palavras de

Samara - nunca procediam a torturas durante a manhã. Uma noite em branco

juntamente com um estômago vazio haviam-lhe deixado as pernas bambas.

Embatia continuamente contra as paredes do corredor. Alguém atrás dela a

agarrava pelos ombros para a manter na direcção correcta, mas mesmo assim

era-lhe impossível manter o equilíbrio. Então, um dos homens praguejou em voz

alta e tirou-lhe a venda dos olhos, fazendo-lhe sinal para que entrasse numa sala.

Viu-se perante outro homem, baixo e gordo, cujos dedos não se coadunavam com

o seu tronco porque eram compridos e ossudos. Fê-los estalar ao ordenar-lhe que

entrasse. Mayada obedeceu.

A sala era do tamanho de um pequeno auditório. Três homens uniformizados,

todos com bigode, cabelo escuro e traços grosseiros, eram tão indistintos uns dos

outros que Mayada teve de morder a língua para não lhes perguntar se

pertenciam à mesma família; todos eles se achavam sentados atrás de uma

secretária muito comprida. Mayada pressentiu imediatamente que o homem do

meio, com a sua postura arrogante, era o chefe. Soube que não se enganara

quando ordenou ao que estava sentado à sua direita que abrisse uma nova ficha.

Depois fitou-a e ordenou-lhe que se sentasse.

- Qual é o teu nome? - perguntou, como se não soubesse quem havia mandado

chamar.

Mayada entrou em pânico, pensando que ia ser julgada sem direito a um

advogado de defesa e sem conhecer as acusações de que era alvo, mas

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respondeu que se chamava Mayada Nizar Jafar Mustafa Al-Askari, e o escriba de

serviço anotou a informação, enquanto o chefe gritava:

- Ela é conhecida como Um Ali, nas áreas de Mutanabi e de Al-Battawiyeen! -

Referia-se aos dois bairros de Bagdá onde se situavam as tipografias.

Mayada não ficou surpreendida por o homem saber que

ela era mãe de Ali. O que a perturbara fora ouvir o nome do filho na boca daquele

homem.

De repente, o chefe gritou tão alto que Mayada encolheu-se.

- Escreve que ela é uma sunita que apoia os Xiitas - vociferou sem deixar de a fitar

com expressão ameaçadora. - Devias ter vindo para cá há dois anos, mas o

doutor A. Al-Hadithi poupou-te, tudo porque o teu bisavô foi uma honra para o

Iraque.

Mayada sabia bem que o Dr. A. Al-Hadithi ocupava um cargo importante no

governo, e que a sua tese de doutoramento se baseara nos métodos educacionais

usados pelo bisavô de Mayada, Sati Al-Husri.

Esboçando um sorriso maquiavélico, o interrogador acrescentou:

- O que, claro está, foi uma pena, porque estávamos ansiosos por interrogar a

sobrinha desse filho-da-mãe que foi | Nouri Al-Said.

Mayada procurou não mover um só músculo do seu rosto. iNão lhe causava

espanto ouvir o homem atacar o tio do seu [pai, Nouri. Muitos iraquianos haviam-

lhe dito que, enquanto por um lado o seu avô Jafar ainda era adorado, mesmo

tantos anos após a sua morte - na realidade, os Iraquianos recordavam-no com

tanta admiração que era difícil encontrar uma pessoa que proferisse um

comentário menos favorável acerca de Jafar, - já com Nouri as coisas eram muito

diferentes. Fora um líder pragmático, que fizera o que achara ser seu dever para

salvaguardar a recém-formada nação do Iraque. Durante los anos que governara

como primeiro-ministro arranjara muitos inimigos.

O chefe debruçou-se sobre a mesa e sussurrou ruidosamente ao ouvido do

escriba. Mayada aproveitou aquele momento para olhar à sua volta.

Imediatamente se arrependeu, paredes em seu redor estavam manchadas de

sangue. Havia cadeiras com correias e mesas muito altas com vários instrumentos

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de tortura. Avistou os cabos eléctricos de carregadores de baterias e um aparelho

estranho que parecia um arco sem flechas. Contudo, os mais assustadores

equipamentos de tortura eram os vários ganchos que pendiam do tecto. Mayada

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81

olhara apenas de relance para o chão, mas fora o suficiente para reparar nas

poças de sangue fresco, que deviam ser tudo o que restava das sessões de

tortura que ouvira durante a noite. O chefe fez-lhe então perguntas atrás de

perguntas.

- Tens algum computador em casa? Imprimiste folhetos a apelar ao derrube do

presidente? Contrataste rebeldes para fazer o trabalhinho sujo por ti?

Sem fôlego, Mayada respondeu - não, não - vezes sem conta, e explicou:

- A minha tipografia efectua trabalhos gráficos comerciais, e as pessoas que

trabalham para mim têm o curso de Engenharia Informática. Têm uma educação

elevada e nunca arriscariam a vida praticando actos ilegais.

O chefe deixou Mayada completamente desorientada ao mudar abruptamente de

assunto. Baixou dramaticamente o tom de voz e começou a fazer-lhe perguntas

sobre a mãe. Queria saber onde vivia Salwa, qual fora o último cargo que ocupara

no governo, se planeava regressar ao país e usar a sua habilidade para apoiar a

causa iraquiana, se Mayada falara com a mãe recentemente e, se o fizera, como

estava a família real jordana.

Mayada respondeu com alguma rispidez:

- Apesar de ter sido directora-geral do Sector de Pesquisa e de Estudos do

Gabinete de Relações Internacionais antes de se reformar, é do conhecimento

geral que a minha mãe vive em Amã. Não estou certa quanto aos seus planos de

vir visitar-me, mas seria com todo o prazer que lhe telefonaria para fazer essa

pergunta, se é isso que deseja.

O chefe riu-se.

- Vejo que és tão esperta como o tio do teu pai. Aquele homem venceu pela

astúcia todos os seus adversários até ao último dia de vida, mas o seu cobarde

disfarce de mulher velada não o salvou da morte. - Sem fazer uma pausa, exigiu-

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lhe novamente que revelasse todas as informações ilegais que se encontravam

nos computadores.

- Já lhe disse que não existe qualquer documento ilegal nos computadores -

respondeu Mayada.

O homem fitou-a, por baixo das suas pesadas pálpebras.

- É verdade. Já examinámos todos os ficheiros e discos rígidos dos computadores

e não encontrámos nada.

82

Mayada sentia-se petrificada pelo medo, mesmo sabendo que não havia nada

ilegal nos computadores excepto trabalhos de impressão, mas àquelas palavras

sentiu-se como um balão que acabara de rebentar depois da picada de uma

agulha. Ouvir o seu inquisidor admitir uma tal coisa era um alívio, uma prenda tão

valiosa como o mais raro dos diamantes, e pela primeira vez sentiu um pequeno

raio de esperança. Talvez pudesse sair dali com vida.

Aquela declaração por parte do chefe teve o dom de conferir uma certa ousadia a

Mayada, que perguntou:

- Quando serei libertada? O chefe riu-se.

- Libertada? Quem disse que vamos libertar-te? Mas podes sentir-te afortunada

por o nosso amado líder Saddam nos ter dado ordens para não usarmos métodos

violentos com mulheres. Recebemos essas instruções esta manhã e elas

salvaram-te.

O terceiro homem, que ainda não havia falado, empertigou-se, levantou-se

subitamente, e a sua voz revelou-se desapontada, primeiro, e depois indignada

com aquela novidade, estava tão encolerizado que era fácil adivinhar que era ele o

carrasco principal e que assistira ao interrogatório imaginando avidamente os

vários métodos que a fariam gritar de dor e de desespero. Incapaz de controlar a

sua frustração, gritou-lhe:

- Hei-de fritar-te em gordura numa sertã muito em breve! Esta é uma ameaça

comum no Iraque, indicando que pretendem matar-nos fazendo-nos sofrer durante

algum tempo.

O chefe lançou um olhar fulminante ao terceiro homem, e Mayada pensou por

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breves momentos que os dois homens iam discutir o destino a dar-lhe, mas o

terceiro homem riu-se perante o olhar ameaçador do chefe, que gritou a Mayada:

- Volta para a tua cela! Ainda não acabámos e chamar-te-emos novamente

amanhã.

Mayada sentia-se com coragem suficiente para testar a decisão do homem.

- Se não encontraram nada de ilegal nos computadores, porque estou aqui?

- Talvez nos tenha escapado algo.

83

Mayada, cada vez mais confiante, insistiu.

- Tenho filhos que crio sozinha. Precisam da mãe e tenho de regressar a casa e

cuidar deles.

O chefe virou-se na cadeira e fitou-a directamente. Só depois replicou, num tom

de desprezo:

- A tua família perdeu toda a sua influência e poder. Ja-far está morto. Nouri está

morto. Sati está morto. Nizar está morto. Salwa abandonou-te. Não existe

ninguém que possa defender-te.

Mayada aquietou-se, ciente de que o homem tinha razão. Desde a ascensão ao

poder de Saddam o Iraque tornara-se um país em que os carcereiros podiam

inserir informações falsas nos computadores dela e entregar essas informações

aos seus superiores, que, por sua vez, subiriam a escada da hierarquia,

convencendo outros de que ela era realmente culpada e merecedora de ser

torturada. E quem poderia ajudá-la? Ninguém, não havia ninguém a quem

pudesse recorrer, admitiu a si própria tristemente.

Foi então que lhe veio à mente o rosto do presidente Saddam, e imaginou qual

seria a reacção dele se telefonasse para o seu gabinete no palácio e lhe pedisse

auxílio para que fosse libertada de Baladiyat. Mayada havia estado com Saddam

umas cinco ou seis vezes, e recebera até um prémio e uma menção honrosa das

suas mãos por textos que escrevera. Além do mais, fora escolhida para traduzir os

textos de Nostradamus para leitura pessoal de Saddam, que revelara grande

interesse na obra por acreditar que era uma figura mundial mencionada nas

previsões do astrólogo. Mayada chegara mesmo a salvar outras vidas no passado,

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pedindo pessoalmente a clemência de Saddam, mas depressa pôs de parte a

ideia de fazer um tal telefonema, porque o pequeno bloco onde ela guardava o

número pessoal do presidente estava escondido num local secreto em sua casa.

Mesmo que tivesse o número à mão e conseguisse chegar até Saddam, sabia que

ele não a atenderia, porque não falava com ele desde que o Dr. Fadil havia sido

condenado por traição e executado.

Olhou para os três homens que a questionavam e perguntou a si mesma o que

diriam se soubessem que ela possuía o

número de telefone privado de Saddam. Contudo, sabia, lá no fundo, que não era

uma amiga íntima por quem Saddam se daria ao trabalho de interceder. Além do

mais, era um homem paranóico, que enganara e até matara os seus próprios

familiares. Se lhe chegava aos ouvidos que alguém lhe era desleal, aceitava a

acusação sem perguntas. Mayada lembrou-se de que, apesar de Saddam haver

confiado cegamente no Dr. Fadil durante mais de vinte anos, assim que uma falsa

acusação contra Fadil fora inventada revelara-se implacável.

- Vai! - gritou o chefe. - Sai da minha frente!

Mayada olhou para o homem atentamente e por alguns segundos sentiu-se

tentada a perguntar como era possível ele odiar uma mulher que não conhecia,

mas não se atreveu. Recompôs-se, respirando fundo, levantou-se e avançou

lentamente para a porta, porque era importante para ela ocultar o seu medo em

frente daqueles homens.

Os mesmos guardas que a haviam trazido aguardavam à porta para a escoltar de

volta à cela. Um deles parecia dormitar, com a cabeça encostada à parede.

Mayada pigarreou e os dois sobressaltaram-se. Quando ela transpôs a porta, viu

que um outro prisioneiro esperava a sua vez para entrar na sala de interrogatórios.

Era muito magro, quase parecia um fantasma, e estava sentado de cócoras no

chão. Só se levantou depois de Mayada sair. Ao vê-lo melhor, Mayada pensou

que, mais que um fantasma, o homem fazia lembrar uma palmeira oscilando à

mais ligeira brisa. Tinha o rosto completamente desfigurado pelas nódoas negras

e os olhos mais tristes que Mayada alguma vez vira. Um guarda empurrou-o

brutalmente para a porta da sala de onde ela acabara de sair, revelando a sua

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crueldade, ao amaldiçoar o infeliz e ordenar-lhe que se mexesse, quando era

manifesto que o pobre homem nem forças tinha para se manter direito. Ela e o

homem esquelético entreolharam-se. Mayada teve o pressentimento que aquele

era o último dia de vida do pobre homem, mas sorriu-lhe, na esperança de que o

sorriso de uma mulher o animasse. O homem deve ter pensado o mesmo, porque

se arriscou a falar, o que lhe valeu um murro no rosto já tão marcado, dizendo:

- Contacte a minha família por mim. Sou o Professor...

85

Não conseguiu completar a frase. Os dois guardas ergueram-no no ar e atiraram-

no para a sala de interrogatório, como se ele fosse uma saca de forragem.

De volta à cela, Mayada apercebeu-se de que pairava uma certa excitação no ar.

Duas novas prisioneiras tinham acabado de chegar, aumentando o número para

vinte. Quando soube da novidade, Mayada procurou na cela sombria os dois

novos rostos, mas Samara levou-a para o beliche porque queria saber todos os

pormenores do seu primeiro interrogatório.

- Conta-me tudo! - exclamou.

Depois de Mayada lhe fazer um relatório completo, Samara levantou-se de um

salto e louvou Alá, dizendo:

- A nossa Mayada acaba de obter três milagres! Estou em Baladiyat há quatro

meses e nunca ouvi tal coisa!

Mayada sorriu. Samara era tão teatral. De pé, no meio da cela, com uma mão na

anca, enquanto gesticulava com a outra.

- Eis os milagres. Número um: os interrogadores mandaram chamar Mayada um

dia depois de ter sido detida. Como todas sabemos, isso nunca acontece. Aqueles

homens cruéis mantêm sempre um novo prisioneiro na cela durante alguns dias, a

sofrer. Número dois: Mayada não foi maltratada fisicamente. Mais uma vez, é

coisa que nunca acontece. Eles gostam sempre de infligir torturas. Número três:

não lhe fizeram perguntas concretas. O interrogador chegou mesmo a admitir que

os computadores de Mayada estavam limpos!

Samara juntou então as mãos.

- Três milagres! Isto significa que a nossa Mayada não vai ficar muito tempo na

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cela cinquenta e dois! - concluiu, com um sorriso. - Comecem a pensar nas

mensagens que querem enviar às vossas famílias. Mayada será libertada em

breve. - Só então se voltou para a companheira. - Serás o nosso pombo-correio.

Em Baladiyat, os prisioneiros que têm a sorte de ser libertados são o nosso único

meio de enviar mensagens para o exterior.

Samara mostrava-se tão entusiasmada que uma pequena luz de esperança

começou a crescer no espírito de Mayada. Talvez a sua passagem por Baladiyat

fosse realmente curta.

Quando começava a sentir-se um pouco mais animada pela ideia de que veria Fay

e Ali em breve, as mulheres-sombra ouviram o ruído de botas a correr no corredor

e os homens da polícia secreta a gritar:

- O coração dele parou!

Muito embora fosse proibido, Mayada ajoelhou-se e abriu a fenda por onde as

prisioneiras recebiam a comida. Era o professor. Estava estendido no chão do

corredor. Mayada sentiu uma enorme tristeza por não haver sido capaz de ouvir o

nome dele para que alguém pudesse avisar a sua família.

Voltou-se e olhou para Samara.

- Porque estão tão aborrecidos com a morte do homem? Pois se foram eles que o

mataram!

Samara encolheu os ombros e disse-lhe o que ela já calculava.

- Com certos prisioneiros, eles querem obter informações adicionais. São

especialistas em manter às portas da morte os prisioneiros que interrogam. Para

esses monstros é um jogo ver se conseguem, ora empurrar um ser humano para a

sepultura, ora puxá-lo da cova. E quando um prisioneiro morre momentos antes de

eles o pretenderem, essas bestas consideram que fracassaram.

O trágico fim do professor alterou o estado de espírito de Mayada de uma doce

antecipação para uma tristeza amarga. Deitou-se no beliche. Estava na prisão

havia apenas um dia e, no entanto, parecia-lhe já uma eternidade.

Os sons de dezanove tagarelas mulheres-sombra apinhadas num espaço exíguo

intensificaram-se até um crescendo abafado. Os odores pestilentos da sanita

pareciam colar-se-lhe à roupa, à pele e ao cabelo. E, apesar de o dia mal haver

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começado, sentia-se muito cansada. Fechou os olhos. Atraída pelo poder das

suas recordações, pensou no pai da mãe, o seu avô Sati, um homem que também

se tornara uma lenda no mundo árabe, e perguntou a si própria o que o seu Jido

Sati, como lhe chamava, teria dito se soubesse que a sua adorada neta se achava

enclausurada na tristemente famosa prisão de Baladiyat.

86

87

3

Jido Sati

Deitada em silêncio no beliche de metal duro, Mayada recordou a forma como o

seu avô materno, que tratava por Jido Sati, unia as mãos atrás das costas quando

andava de um lado para o outro no seu escritório ou passeava pelo jardim.

Lembrava-se também de como ele apoiava o rosto no dedo indicador enquanto,

sentado no seu gabinete, a sua mente procurava soluções para problemas

importantes. Era um homem tão arrumado que no seu imponente escritório cada

papel era meticulosamente classificado, apesar das pilhas gigantescas de livros e

de apontamentos. Lembrava-se ainda de como gostava de observá-lo quando

recolhia metodicamente o seu papel de carta e as suas canetas especiais antes

de partir para uma viagem.

Mayada fechou os olhos em Baladiyat para abri-los na aldeia de Beit Meri, a

sossegada estância montanhosa libanesa para onde Jido Sati levava sempre a

família durante as férias de Verão, onde tinha uma casa. De repente, Mayada

achava-se no ano de 1962 e vivia com os pais e a irmã mais nova em Beirute. Era

uma menina, anos antes da guerra civil do Líbano destruir tudo.

Tratava-se de um dia de Verão especial. Tinha sete anos e Jido Sati era um velho

de oitenta e dois anos, ainda que mantivesse a aparência e a saúde de um

homem vinte anos mais

novo.

Jido Sati sempre gozara da fama de ser o despertador da família. Era o primeiro a

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acordar às 6.30 em ponto, todas as manhãs. Nesse dia entrou de mansinho no

quarto onde

Mayada dormia com a irmã mais nova, Abdiya. Quando viu os olhos da neta

brilharem ao reconhecê-lo sussurrou-lhe que não acordasse a irmã e convidou-a a

fazer-lhe companhia ao pequeno-almoço. Lisonjeada por poder estar a sós com o

avô, Mayada saíra sorrateiramente da cama e vestira o pequeno roupão de seda

que o pai lhe comprara numa loja em Genebra.

A camisa de noite de seda cor-de-rosa fazia-a sentir-se tão sofisticada como a sua

elegante mãe, Salwa, quando usava um vestido de noite para uma festa ou um

evento social. Com aquela imagem na cabeça, Mayada fez uma entrada triunfal na

cozinha, com o roupão de seda a varrer o chão. Riu-se, feliz, quando Jido Sati

puxou uma cadeira e declarou que a sua pequena princesa devia sentar-se e

fazer-lhe companhia. Finalmente, era uma menina crescida e sentia-se orgulhosa

por se lembrar como tinha de beber o sumo de laranja sem fazer barulho e engolir

os ovos e a torrada antes de falar. Jido Sati optou por torradas, queijo e chá, e

falou de assuntos que sabia serem do interesse de Mayada, como os seus livros,

desenhos e pinturas. Prometeu-lhe que um dia, quando ela fosse mais velha, lhe

ofereceria umas férias numa cidade cheia de cultura à sua escolha.

Depois do pequeno-almoço, avô e neta haviam-se dirigido à varanda para admirar

a vista. Mayada, contudo, observou mais o rosto do avô do que a vista, reparando

que os seus olhos espaçados e cor de mel deixavam transparecer uma grande

bondade. Certa vez, ouvira uma mulher comentar que Jido Sati não era um

homem fisicamente atraente, mas que eram poucos os que reparavam nisso,

porque o seu extraordinário intelecto, as suas sábias acções e o seu

comportamento sempre gentil criavam uma aura de força interior e de um sentido

de honra muito belos. Escutou atentamente Jido Sati quando ele começou a dar-

lhe uma pequena lição de história. Explicou-lhe que a pequena aldeia de Beit Meri

fora ocupada desde o tempo dos Fenícios, e que havia ruínas magníficas que

datavam da época dos Romanos e dos Bizantinos, vestígios de outras civilizações

que ela já tinha idade suficiente para apreciar. Prometeu-lhe que haveriam de

visitar as ruínas durante as férias. Beit Meri ficava a dezassete quilómetros do

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centro de Beirute e a

89

oitocentos metros acima do nível do mar, e a casa de Verão de Jido Sati achava-

se numa localização privilegiada. Da varanda principal desfrutava-se de uma vista

panorâmica de Beirute. Uma segunda paisagem, tão espectacular como a

principal, do profundo vale Janr al-Jamany, estendia-se por trás do pequeno

terraço, nas traseiras da vivenda.

Era uma manhã fria, apesar de o Sol brilhar acima dos cumes das montanhas, e

Mayada manteve-se de pé, muito quieta, enquanto Jido Sati contemplava a

encantadora Beirute, que parecia avançar para o mar Mediterrâneo. Então, pegou

na neta ao colo para lhe mostrar alguns dos maiores iates ancorados no porto,

que pertenciam a xeques muito ricos, oriundos de países que haviam feito fortuna

com o petróleo. Sati disse-lhe que estivera nalguns daqueles barcos para assistir a

determinadas reuniões. Um dia, acrescentara, levaria a família numa pequena

viagem pelo mar. Mayada gostou de ver os iates, lá ao longe, e soube que um dia

navegaria no mar azul, porque Jido Sati cumpria sempre as suas promessas.

Depois, tentara em vão procurar o telhado da sua casa em Beirute, mas não

conseguira encontrá-lo por entre o labirinto de telhados coloridos que se

espalhava pela cidade em crescimento.

Jido Sati sempre gostara de dar passeios matinais e, depois de contemplar a

beleza do cenário circundante, mandou chamar Anna, uma assíria cristã que era a

ama de Mayada, e pediu-lhe que vestisse a neta para um pequeno passeio.

Mayada ainda se lembrava dos cabelos compridos e pretos com reflexos azulados

da sua ama a deslizar-lhe pelos pequenos dedos enquanto Anna lhe enfiava pela

cabeça uma camisa azul. Fitara os belos olhos verdes de Anna, bordejados pelas

pestanas mais compridas e espessas que alguma vez vira, enquanto esta lhe

calçava sapatos confortáveis nos pequenos pés. Devidamente agasalhada,

Mayada descera a escada a correr e seguira alegremente atrás do avô pelo

caminho sinuoso que os levaria a Broummana, uma aldeia vizinha famosa pelos

seus exóticos cafés, lojas e restaurantes luxuosos.

Sati e Mayada passaram por uma fileira de canteiros de flores multicolores, e

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quando se baixou para apanhar uma flor amarela que já desabrochara o avô

lembrara-lhe que não era

90

correcto colher uma flor, por mais pequena que fosse, sem primeiro pedir

autorização ao seu proprietário. Vendo o ar desiludido de Mayada, disse-lhe que

não ficasse triste pois compraria um ramo de flores em Broummana, que ela

poderia partilhar com a irmã, e sugeriu ainda que as duas meninas podiam compor

um belo arranjo floral para a mesa de jantar.

Mayada afastou relutantemente a mão da flor e lembrou-se de uma conversa que

ouvira entre o pai e a mãe. A mãe dizia que o seu pai Sati era o homem mais

respeitado em todo o Médio Oriente porque nunca havia dito uma só mentira na

sua vida. Mantivera-se de tal forma fiel aos seus princípios acerca do nacionalismo

árabe, conquistando o afecto e a devoção de todos os árabes, que as autoridades

britânicas haviam temido a sua influência. Depois de lhe confiscar o passaporte,

os Ingleses haviam escoltado Sati, a mulher e os filhos para fora do Iraque,

avisando-o de que nunca poderia regressar à terra que tanto amava.

Imediatamente, todos os líderes de outros países árabes haviam oferecido

cidadania a Sati, mas ele recusara educadamente, explicando que os Árabes

deviam poder viajar de uma nação árabe para outra sem quaisquer restrições.

Mesmo sem passaporte, Sati Al-Husri fora recebido calorosamente em todos os

países árabes que não se achavam sob o domínio dos Ingleses.

Mesmo sem ter colhido a flor, Mayada gostara muito do seu passeio com Sati. O

caminho era ladeado por pinheiros que ofereciam uma sombra agradável, apesar

de o percurso ser demasiado íngreme para as pernas curtas de Mayada. Quando

Sati reparara que a neta caminhava com dificuldade abrandara o passo e

aproveitara a oportunidade para lhe fazer perguntas sobre as suas disciplinas

escolares preferidas.

Mayada era uma criança um tanto ou quanto indisciplinada. Anos antes, Jido Sati

sugerira que os modos turbulentos da menina podiam ser corrigidos se ela

entrasse no jardim-de-infância alemão e mais tarde na Escola Primária de Beirute.

Os pais de Mayada haviam seguido o seu conselho e, apesar de submetida a

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professores severos, Mayada beneficiara muito com a disciplina da escola.

Ficou pasmada por o avô conhecer tão bem as matérias

91

que ela aprendia e os trabalhos de casa que fazia, e chegou a pensar se Jido Sati

alguma vez entrara sorrateiramente na sala de aulas sem ninguém o ver. Deixou

escapar um gritinho de alegria quando o avô lhe disse que ficara tão

impressionado com os seus desenhos que lhe comprara pincéis e tintas de artista,

e que esperava que ela organizasse uma exposição. Mayada sentiu-se tão

entusiasmada com aquela ideia que quis dar meia volta e voltar à vivenda para

agarrar nos pincéis e poder esboçar pinceladas magistrais numa tela. O avô,

contudo, rira-se e explicara-lhe que era importante para um artista ter algumas

ideias antes de se lançar num frenesim de criatividade, acrescentando que lhe

daria duas semanas para planear, pintar e organizar a sua obra, antes de a exibir.

Jido Sati manteve a sua palavra - duas semanas mais tarde, organizou

meticulosamente uma exposição da arte de Mayada. Adultos e colegas de escola

vieram ver os seus desenhos, e muitos afirmaram que a menina iria tornar-se uma

pintora mundialmente famosa. Mas Jido Sati avisara a neta de que devia manter

sempre a humildade quanto aos seus trabalhos, e lembrara-lhe que nada mais

importava do que a sua realização pessoal.

Sete anos mais tarde, quando Mayada tinha perto de catorze anos, Jido Sati

morrera. Algum tempo depois, enquanto a mãe de Mayada vasculhava os

importantes documentos do falecido pai, Mayada ficara comovida a ponto de

chorar quando descobrira arrumados numa caixa de papelão, juntamente com os

papéis mais valiosos do avô, os seus desenhos de infância.

Mayada ainda guardava na memória aquela manhã perfeita de Verão em Beit Meri

e sentia um certo orgulho por haver sido a única companhia de Jido Sati naquele

dia, ainda que de cada vez que passavam por uma vivenda ou se cruzavam com

outras pessoas a caminho de Broummana, tanto os vizinhos como os habitantes

da cidade esboçassem uma vénia e proferissem saudações de respeito. Todos se

mostravam alvoroçados ao ver Jido Sati, mas Mayada não ficara admirada com

tais reacções, porque sempre fora assim desde que se lembrava.

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Depois de os Ingleses serem forçados a abandonar o Iraque, os Iraquianos

haviam pedido a Sati Al-Husri que voltasse a sua pátria. Jido Sati regressara às

ruas de Bagdá, apinhadas de entusiásticos admiradores exibindo cartazes de

boas-vindas, e seguira-se uma grande festa, que se estendera por todo o país.

Sempre que Sati Al-Husri viajava até Bagdá para visitar a filha Salwa a casa da

família, situada ao longo da margem do Tigre, enchia-se desde o raiar da manhã

até ao fim da noite de visitantes que queriam prestar homenagem ao homem a

quem carinhosamente chamavam «pai do nacionalismo árabe».

Mayada quase partilhava o mesmo dia de anos que o seu avô. Sati Al-Husri

nascera a 5 de Agosto de 1879, enquanto ela nascera a 6 de Agosto de 1955. O

desejo da mãe era que o seu primeiro filho viesse ao mundo no dia de anos de

Sati. Os pais de Mayada achavam-se de visita a Beirute quando Salwa sentira que

ia entrar em trabalho de parto, e tão desejosa se mostrara de fazer coincidir as

duas datas de nascimento que tentara provocar o parto, caminhando durante

horas a fio com o marido pelas ruas de Beirute. Anos mais tarde, o pai de Mayada

contar-lhe-ia entre gargalhadas que Salwa o forçara a percorrer toda a extensão

da Rua Bliss, que ficava perto da Universidade Americana de Beirute, em direcção

ao Snack-Bar Uncle Sam, regressando depois à Rua Sadat e a Ain Al-Mirai-sa.

Contudo, apesar dos seus esforços, Salwa só entrara em trabalho de parto a 6 de

Agosto.

Aquela ligação tão especial entre os dois aniversários era apenas uma parte da

relação perfeita entre Jido Sati e Mayada. Jido Sati revelara-se muito dedicado à

neta assim que ela nascera, uma intimidade que animava Mayada, uma vez que

era o único avô que conhecera. O seu avô paterno, Jafar Pasha Al-Askari, fora

assassinado dezanove anos antes de ela nascer. E apesar de gostar de ouvir as

excitantes histórias sobre Jafar Pasha Al-Askari e muito embora o seu pai, Nizar,

por quem Mayada nutria a mais profunda adoração, revelasse grande veneração

pela memória do pai, aquelas histórias não podiam substituir um avô como Sati,

que ela podia ver em carne e osso e que demonstrava o maior interesse por todos

os pormenores da vida da neta.

92

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93

Em 1879, quando nascera o avô de Mayada, Sati Al-Husri, o mundo árabe

preparava-se para grandes mudanças. O sultão Abdul Hamid II era o soberano do

vasto Império Otomano, que existia havia quase seiscentos anos. Contudo, estava

montado o cenário para a dissolução do Império - os povos dos Balcãs tinham

começado a descobrir as suas próprias identidades nacionais e haviam começado

a afastar-se dos Otomanos, com o intuito de criar as suas próprias nações.

Entretanto, a Rússia pressionava as fronteiras otomanas a leste, enquanto a

Inglaterra marchava em direcção ao Egipto.

O pai de Sati, Hilal, um dos conselheiros de confiança do sultão, era muito

instruído. Formara-se na Al-Azhar, a grande escola de teologia do Egipto, e

quando Sati nasceu Hilal era juiz supremo e chefe do Tribunal de Ultima Instância

no Ié-men. A influente árvore genealógica de Hilal Al-Husri remontava a Al-Hassan

bin Ali Bin Abi Talib, neto do profeta Mao-mé. Aquele elo indissolúvel com a família

do profeta havia sido autenticado em Al-Azhar, durante o século xvi.

Sati nasceu na cidade de Lahaj, no Iémen, onde o pai exercia um importante

cargo governamental. Desde a mais tenra infância, Sati foi muito afeiçoado à sua

adorada mãe, enquanto o pai magoava os seus sentimentos, levando

continuamente para casa esposas adicionais. De cada vez que se celebrava um

novo casamento, Sati preparava a sua vingança: Levava às escondidas cântaros

de água para as varandas dos pisos superiores e esperava até a nova noiva

passar para lhe lançar a água. A mãe, uma mulher muito bondosa, pedia ao filho

que pusesse cobro às suas travessuras, assegurando-lhe que Alá lhe reservava

coisas melhores no céu e que devia encarar os desafios terrenos com dignidade.

O pueril entusiasmo de Sati revelou-se tão demolidor que o pai o enviou para a

escola antes da idade habitual. Tinha apenas cinco anos quando o professor de

Matemática mostrara à turma como resolver um problema através de cinco

complexas etapas. Sati dissera calmamente ao professor que podia resolver o

problema apenas em dois passos. Este irritara-se com o irrequieto menino e

ordenara-lhe que fosse ao quadro e fizesse figura de parvo para que todos

pudessem rir-se um

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pouco. Para grande espanto do professor, Sati rabiscara no quadro em poucos

segundos a sua solução. Sati era tão dotado que o matriculavam frequentemente

em dois anos escolares no início de cada ano lectivo. Quando, com as notas mais

altas de sempre, concluiu o ensino secundário, Sati era o mais jovem formando do

ensino secundário em todo o Império Otomano. Tinha apenas treze anos quando

foi aceite na Royal Shahany School em Istambul, uma das instituições mais

elitistas do Império, onde recebeu o seu diploma de bacharel em Ciências

Políticas passados poucos anos. Por essa altura, a sua fama como grande

intelectual já chegara aos ouvidos do sultão. Mal completou os estudos foi

nomeado governador de Bayna, na Jugoslávia, e enquanto cumpria o seu dever

como governador também presidia ao sistema educacional da região.

O tempo que Sati passou fora do seu país e perto da Europa revelar-se-ia a fase

mais inspiradora da sua vida pedagógica. Visitou alguns países europeus, onde

passava horas nas livrarias. Frequentou as bibliotecas de Roma e de Paris e

participou em muitas palestras sobre educação. Travou amizade com los maiores

educadores europeus, de quem absorveu as teorias. A grande paixão de Sati era

estudar os tratados nacionalistas de outros povos, de forma a que os nacionalistas

árabes se encontrassem preparados para formar governos e instituições dignas

dos seus povos.

Em 1908, Sati regressou a Istambul. Tinha vinte e oito anos, aprendera muito com

as suas viagens, mas ficou triste por testemunhar o fim do Império Otomano.

Durante os últimos anos do Império, enquanto Jafar trabalhava para criar um

governo estável, Sati ajudou a melhorar significativamente o sistema educativo.

Foi tão bem-sucedido no seu cargo oficial que, após a queda do Império, o

presidente Mustafa Kemal Ataturk, fundador da moderna Turquia, terá dito mais de

uma vez: «O meu maior desejo é governar a Turquia com a mesma excelência

com que Sati Al-Husri administra as suas escolas!»

A vivência de Sati com as suas numerosas madrastas durante a infância haviam-

no marcado quanto à sua opinião acerca do casamento. Só pensava no trabalho e

o seu único

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95

prazer a nível social era escutar óperas e sinfonias. A sua profissão de educador,

no entanto, iria conduzi-lo ao amor, mesmo que por caminhos sinuosos. Sati era

chefe das Yeni Mektebi (As Novas Escolas), em Istambul, e tinha grande

dificuldade em encontrar professores fluentes em inglês, francês e alemão. Certo

dia, um dos seus maiores amigos, Jalal Hussain, comentou que a sua única irmã,

Jamila, era muito instruída. Apesar da sua enorme fortuna, Jamila cansara-se da

vida luxuosa, mas inútil, que levava. Jalal acreditava que a irmã seria uma

excelente professora no novo sistema escolar planeado pelo seu amigo

progressista.

Sati apaixonou-se por Jamila Hussain Pasha assim que a viu. E concentrou toda a

sua atenção em fazer a corte àquela mulher extraordinária, até Jamila aceder a

casar-se com ele. O casamento de Sati com uma bela turca, cujo pai era o

ministro da Marinha e cuja mãe era uma sultana, ou princesa, na corte real do

Sultão, surpreendeu todos os que o conheciam.

Jamila Hussain Pasha era a única rapariga de uma família com seis filhos e a

favorita do pai, Hussain Husni Porsun, oriundo do Kosovo, uma região dominada

pelos Otomanos. Hussain alcançou a patente de almirante da Marinha do Império

e mais tarde a sua notável carreira levou-o ao alto cargo de ministro da Marinha

de toda a frota do Império. A mãe de Jamila, Melek, era otomana, e prima direita

do sultão, por parte da mãe. Melek era uma famosa beldade, com uma pele muito

alva que protegia cuidadosamente dos raios de sol e olhos tão verdes que se dizia

que irradiavam faíscas quando se zangava. Melek era tão rica que a sua fortuna a

havia tornado uma mulher arrogante. Durante uma terrível carestia, Melek

ordenara que os seis cavalos brancos que puxavam o seu coche recebessem

tratamento especial e a melhor alimentação, apesar de haver otomanos que

morriam nas ruas de fome. Fora mesmo ao extremo de obrigar os cavalos a

empinar-se contra as multidões esfomeadas que mendigavam alguma comida em

frente do palácio. Sabia-se também que costumava queimar dinheiro, por gostar

de ver a expressão de espanto das pessoas, e a sua residência era tão grandiosa,

com mais de setenta quartos, que após a sua morte foi convertida num enorme

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hotel.

96

)amila tivera sorte porque o pai não só era um homem educado mas também

afável e empenhado em que a filha recebesse o mesmo nível de educação que os

irmãos. Mas no mundo otomano a educação das mulheres era tão rara que

planeara enviar Jamila para os Estados Unidos. Quando a notícia se espalhou

pelo palácio, o sultão tomou conhecimento da decisão de Hussain e mandou

chamá-lo aos seus aposentos para lhe dizer que não acreditava na instrução das

mulheres. Bastava olhar para Melek, a mulher de Hussain, para saber que a

independência numa mulher só trazia desgostos aos homens da sua família.

Hussain não soube o que retorquir, por ter consciência de que o sultão e Melek se

equiparavam quanto à maldade. Além do mais, fora informado de que, ao acordar

de manhã, a primeira pergunta que o sultão fazia era: «Que acto ultrajante

cometeu a minha prima Melek esta noite?»

Manifestando o sultão o desejo de que Jamila não saísse do país para se instruir,

Hussain compreendera que não podia desobedecer-lhe, pois isso seria

equivalente a condenar-se à pena de morte. Assim, Hussain contratara tutores em

segredo e jamila tivera aulas particulares em casa. Tornara-se culta e fluente em

muitas línguas, e sabia tanto como qualquer homem sobre sociologia, filosofia ou

psicologia. Mayada tinha plena consciência de que fora essa a força motriz do

amor que Sati sentira por Jamila, pois um homem tão inteligente nunca se

interessaria por uma mulher sem quaisquer estudos nem ela se revelaria digna de

merecer o seu amor e afecto.

Jamila depressa se apercebeu de que Sati Al-Husri era um homem muito diferente

dos outros e retribuiu o respeito e amor que ele lhe dedicava. Casaram-se e

tiveram dois filhos: uma menina a que chamaram Salwa, a mãe de Mayada, e um

menino, Khaidun, o tio de Mayada.

Por ser a única filha, Jamila herdou os pertences da mãe, que deu à filha Salwa,

que, por sua vez, os deu às suas filhas. I Mayada herdou alguns desses valiosos

bens de família e ainda tinha em seu poder a «Condecoração de Perfeição», dada

a Melek pelo sultão. Essa proclamação, que constava de um documento com o

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sinete do sultão, estava escrito a ouro e dizia

97

que, por ocasião do décimo oitavo aniversário de Melek, ela receberia várias

terras. O documento associava-se a uma faixa e uma medalha ornada com

diamantes, pérolas, rubis, safiras e esmeraldas. Mayada herdara um dos

diamantes maiores e o documento, mas fora obrigada a vender o diamante em

1996 para poder alimentar os filhos, aquando das sanções impostas ao Iraque.

Contudo, guardara o raro documento otomano e esperava dá-lo mais tarde à filha,

Fay.

A queda do Império Otomano originara uma ruptura tão abrupta nas tradições que

muitos dos velhos costumes se perderam para sempre, mas, por outro lado,

também abrira caminho a novas ideias, forjadas por homens como Sati Al-Husri.

Ele era tão brilhante que os reis pediam a sua opinião e o nomeavam para cargos

importantes.

As memórias de Mayada relativas ao seu avô Sati foram interrompidas pelo choro

de uma mulher. Precisou de vários minutos para ajustar a vista à luz fluorescente

do tecto, mas, depois de esfregar os olhos, procurou detectar de onde vinha

aquele choro e viu que era a mais nova das duas mulheres que haviam sido

encarceradas na manhã daquele dia.

Entretanto, outras mulheres-sombra se haviam reunido em volta da jovem Aliya.

Estava tão triste que nada do que as companheiras disseram ou fizeram lhe trouxe

o menor conforto. Quando Aliya começou a chorar novamente, Samara pôs as

mãos em volta do seu rosto e sussurrou, em tom decidido:

- Tens de controlar-te, terno coração. Os guardas ouvirão os teus lamentos, como

os cães de caça farejam o cheiro de uma lebre. Queres que eles te levem para

uma caçada, à meia-noite?

Mayada sentiu um calafrio ao ouvir as palavras de Samara, mas estas tiveram o

condão de parar o choro de Aliya.

Quando Mayada regressara à cela, estava demasiado absorta e tão aflita pela sua

situação para reparar bem nas duas novas mulheres-sombra. Agora, porém,

observava Aliya com curiosidade. Aliya chegara com provisões suficientes para

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uma detenção prolongada. Tinha cobertores, almofadas, várias mudas de roupa e

exemplares do Alcorão e outros livros de orações islâmicas e até um

abastecimento de comida decente, algo raramente visto dentro das paredes de

Baladiyat.

98

Mayada pensara que nenhuma outra mulher podia ser mais bela do que Samara,

mas Aliya era alta, esguia e dona de um rosto encantador. Contudo, o que a

destacava das outras mulheres eram os seus olhos invulgarmente grandes e

expressivos.

Aliya sentou-se no chão, com uma perna cruzada sobre a outra, ao estilo

iraquiano, e as outras mulheres sentaram-se a seu lado. Mayada juntou-se-lhes,

embora não estivesse habituada a sentar-se no chão, porque a mãe sempre lhe

dissera que somente um criado mal-educado se sentaria assim. Ensinara a filha a

sentar-se em cadeiras e sofás, com as pernas juntas.

Por conseguinte, Mayada não se admirou quando, passado pouco tempo,

começou a sentir as pernas dormentes e teve de mudar de posição. Aliya olhou-a

com visível interesse e perguntou:

- És nova aqui?

- Nem tanto. Cheguei um dia antes de ti. Aliya baixou a cabeça.

- Estou presa há mais de dois anos e fui avisada de que devo preparar-me para

uma pena de quinze anos.

Mayada compreendia agora a imensa tristeza de Aliya, porque ela própria se

sentia agoniada com a ideia de ficar detida em Baladiyat mais um dia que fosse.

Concluiu que, se fosse informada de que ficaria encarcerada durante quinze anos,

poria fim à vida, mordendo a própria carne e cravando os dentes nas suas veias,

mesmo que o suicídio fosse considerado um grande pecado no Islão.

Aliya possuía uma voz grave e doce.

- Venho de Baçorá. O meu marido era um engenheiro qualificado, mas esteve

desempregado durante anos. Após o nascimento da nossa primeira filha, sentiu-se

tão consumido pela preocupação que deixou Baçorá e partiu para a Jordânia, a

fim de procurar emprego. Não conseguiu encontrar um trabalho no seu ramo.

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Quando finalmente arranjou emprego como padeiro, julgámos que era um milagre.

«Passados dois anos, tinha economizado dinheiro suficiente para arrendar um

quarto em Amã e assim que pôde mobilá-

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lo com uma cama, duas cadeiras, um pequeno frigorífico e uma chapa eléctrica

chamou-nos, a mim e à minha bebé, Su-zan. Disse-nos que sentira tantas

saudades nossas que isso afectara o seu trabalho. Confessou que deixara

queimar mais de uma dúzia de pães enquanto lamentava o facto de a sua filha

crescer sem um pai que a educasse. E que tinha a certeza de que a sua

depressão o levaria a incendiar a padaria, tão triste andava. Por isso, contactara o

meu irmão, general do exército iraquiano. Sei que é invulgar um xiita ter um tal

cargo, mas nunca lhe ofereceram altos comandos ou lhe aumentaram o salário, ao

contrário do que acontece com os generais sunitas.

«O meu marido pediu ao meu irmão que tratasse dos documentos para que

pudéssemos ir para junto dele. O meu irmão é um homem generoso e pagou

trezentos e cinquenta dólares pelas taxas do nosso passaporte e, depois, deu-me

cinquenta dólares para a viagem. Até concordou em viajar comigo como meu

obrigatório mahram.

Após a morte de tantos maridos e pais nas duas guerras e com o enfraquecimento

da economia interna, relacionado directamente com as sanções económicas,

algumas mulheres iraquianas haviam atravessado as fronteiras em direcção à

Jordânia, onde se prostituíam para ganhar dinheiro com que pudessem alimentar

os filhos esfomeados. Quando Saddam descobrira que as mulheres iraquianas

estavam a desonrar o país vendendo os seus corpos, ordenara que todas as

mulheres deviam viajar com um mahram, que podia ser o marido ou qualquer

familiar do sexo masculino com quem uma muçulmana não pode casar-se, como

um pai, irmão, tio, sobrinho, padrasto, sogro ou genro.

Aliya continuou a sua história:

- Na alfândega iraquiana, em Traibeel, levaram-nos os passaportes para carimbá-

los, mas passado pouco tempo mandaram-me sair da fila, juntamente com a

minha filha e o meu irmão. O pandemónio instalou-se no momento em que dois

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agentes da polícia secreta começaram a esmurrar o meu irmão. Desmaiou quando

um dos homens o atacou com um bastão eléctrico. Aterrorizada, a minha filha

começou a gritar. Os

outros viajantes protestaram e afastaram-se da fila. Finalmente, para restaurar a

calma na alfândega, os guardas levaram-nos para um pequeno gabinete.

Vociferando, queriam saber onde fora que obtivera o meu passaporte. Cheia de

medo, emudeci, mas louvado seja Alá, o meu irmão, entretanto, recobrara os

sentidos e explicou que pedira a um respeitável gabinete de passaportes em

Baçorá que emitisse o meu passaporte. Quando fora buscá-lo estava tudo em

ordem.

«O homem do bastão eléctrico bradava, dizendo que eu viajava com um

passaporte roubado. Estava tão furioso que, ali mesmo, nos aplicou choques

eléctricos, a mim e ao meu irmão.

«Nenhum dos agentes da polícia secreta acreditou na nossa inocência e fomos os

três transportados para o Centro de Detenção de Al-Ramadi. Ficámos presos

durante três semanas. Ninguém nos interrogou nem nos torturou. Parecia que se

tinham esquecido de nós. Por fim, libertaram o meu irmão, sem fornecer qualquer

explicação, mas ele nada podia fazer por mim, pois eu era a detentora do

passaporte. Fiquei detida Icom a minha filha durante seis meses. A minha pobre

bebé era levada comigo para a sala de interrogatórios. Era forçada a Ver a mãe

ser espancada. - O rosto de Aliya ensombrou-se pelo sofrimento, ao recordar-se

daqueles momentos. - O mais difícil que fiz em toda a minha vida foi abafar os

gritos enquanto eles me torturavam. Espancavam-me, mas eu mordia a língua até

sangrar. Queria poupar a minha filha ao tormento de ouvir a mãe gritar de dor. Um

guarda, o mais cruel deles todos, amarrou certa vez a minha bebé a uma mesa e

começou a escarnecer de mim, ameaçando torturá-la. Como eu também estava

amarrada a uma cadeira, nada pude fazer senão ver a minha menina ser

chicoteada. Gritou tanto que o seu umbigo saltou para fora. Quando viram o que

lhe acontecera, (aqueles monstros desataram a rir à gargalhada.

«Nunca vira o umbigo de um bebé saltar daquela maneira. Pedi a presença de um

médico para examinar a minha filha, mas, como é óbvio, eles disseram que não.

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Assim, enrolei o meu lenço da cabeça à volta do seu estômago, convencida de

que o umbigo voltaria à posição inicial, mas tal não aconte-

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ceu. Contudo, o pior viria depois. Durante uma das sessões de tortura, dois

homens ameaçaram violar-me, a mim e a Suzan. Felizmente, não violaram a

minha bebé.

Aliya fez uma pausa e indicou uma mulher-sombra que estava sentada, sozinha, a

um canto.

- Rasha esteve comigo naquela prisão durante os piores momentos.

Mayada e as outras mulheres-sombra voltaram-se para olhar para Rasha.

Mayada achou estranho que ela não revelasse qualquer emoção pela situação de

Aliya.

Aliya esperou que Rasha confirmasse a sua história, mas Rasha limitou-se a olhá-

la fixamente, antes de voltar a concentrar a atenção no seu tapete de orações, que

sacudiu, recusando-se a fornecer a Aliya a confirmação por que ela tanto ansiava.

Aliya suspirou.

- Pobre Rasha... Está tão inocente como eu. Nunca nos tínhamos conhecido.

Éramos perfeitas estranhas, mas agora estamos unidas de uma maneira que

nunca poderíamos ter imaginado... - Aliya voltou-se mais uma vez para Rasha. -

Posso contar-lhes a tua história?

Rasha recusava-se a falar, mas emitiu um grunhido, e Aliya interpretou aquele

som desagradável como um assentimento.

- Um dia, estava eu sentada na minha cela com a minha pequena Suzan nos

braços, quando a porta se abriu de rompante. Encolhi-me, convencida de que iam

levar-me para ser novamente espancada. Mas, ao invés, lançaram para o chão da

cela uma mulher que fora torturada quase até à morte. O seu rosto estava em

carne viva, pelos golpes profundos que o marcavam, e tinha o crânio rachado. Um

esguicho de sangue jorrava-lhe de um orifício na cabeça, que parecia ter sido feito

com um berbequim eléctrico. Haviam-lhe arrancado três unhas e esmagado

tantos cigarros nas pernas que o cheiro a carne queimada depressa invadiu a

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cela. Essa mulher era Rasha.

«Todas as prisioneiras da cela trataram dela, tentando salvar-lhe a vida. Por duas

ou três vezes quase morreu, até que uma das mulheres convenceu os guardas a

levar Rasha para o

102

hospital. Voltou à cela no dia seguinte mas ainda estava inconsciente e foi precisa

toda a nossa habilidade para cuidar dela e devolver-lhe a vida.

«Ao fim de três dias recuperou os sentidos, mas a partir do momento em que abriu

os olhos o nosso infortúnio aumentou.

«É que, sabem, o passaporte confiscado em Traibeel era na realidade o

passaporte de Rasha. Tinha avisado as autoridades no ano anterior que o tinha

perdido, mas fora imediatamente detida. Desse modo, a polícia secreta,

acreditando que ia desmantelar uma importante rede de espionagem, queria

obrigar uma de nós a denunciar a outra.

Aliya meneou tristemente a cabeça.

- Os interrogatórios tornaram-se ainda mais brutais. Todos os dias, tanto eu como

Rasha éramos submetidas, separadamente, a choques eléctricos. Depois

interrogavam-nos juntas. Os nossos carrascos arrancavam as unhas dela,

enquanto ordenavam que lhes dissesse a quem vendera o seu passaporte.

Depois, esmagavam cigarros acesos nas minhas pernas, insistindo que eu

admitisse pertencer à mesma rede de espionagem de Rasha. Uma vez que nada

do que eles alegavam correspondia à verdade, nenhuma de nós conhecia um

nome que pudesse indicar. Os nossos protestos de inocência apenas suscitavam

mais fúria e mais torturas.

Para demonstrar quanto havia sofrido, Aliya baixou a gola do vestido até ao

cotovelo e levantou o saiote até aos joelhos. As mulheres-sombra abafaram um

grito. Os seus braços e pernas estavam cobertos por feridas profundas, que ainda

não haviam cicatrizado. Contudo, como Aliya revelou, as piores marcas eram as

que lhe marcavam o abdómen, as coxas e as nádegas.

Mayada apercebeu-se, apavorada, de que os carrascos de Aliya a haviam despido

com o intuito de a humilhar enquanto a torturavam, e perguntou a si própria se

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Aliya teria sido violada, mas não lhe perguntou, porque nenhuma mulher

muçulmana jamais admitiria ter sofrido tal desonra.

- Por qualquer motivo - prosseguiu Aliya, - Rasha e eu temos sido transferidas de

prisão em prisão. A pior foi a da

103

minha cidade natal, Baçorá. Estar tão perto de casa e não poder ir para casa foi a

maior tortura de todas. Sabia que a minha família se achava apenas a algumas

ruas de distância da prisão onde eu estava. - As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto,

mas continuou: - Enquanto estivemos presas em Baçorá, houve um pequeno

motim, em que a população exigiu o fim do regime de Saddam. O governo

acusou-os imediatamente de rebelião e prendeu milhares de pessoas, ordenando

às tropas que deitassem abaixo as suas casas. Famílias inteiras foram atiradas

para a prisão. Homens, mulheres e crianças viram-se de repente fechados em

celas com capacidade para menos de metade dos prisioneiros que continham. As

pessoas começaram a morrer de fome e de várias doenças. Na minha cela, vi

mais de uma dúzia de crianças desidratarem-se lentamente até à morte. Tentei

proteger Suzan, mantendo o seu rosto coberto com a minha abaaya, mas é

impossível manter uma criança daquela idade quieta e aninhada no colo durante

dias e noites a fio. Por causa disso, a minha menina apanhou uma terrível

infecção. Certo dia começou a tossir. Depois, o muco começou a pingar-lhe do

nariz e formaram-se crostas secas em volta dos olhos, até não conseguir abri-los.

Passado muito pouco tempo, chorava sem parar. A sua tosse tornou-se seca e

cavernosa, até que deixou de responder à minha voz. Pensei que morreria a

qualquer momento.

«Apesar da sua doença, continuei a ser torturada. Outras mulheres da minha cela

ofereceram-se para tomar conta de Suzan. Pela primeira vez, não sentia o chicote.

Só queria que me chicoteassem rapidamente e me despachassem para poder

voltar para junto da minha menina. Uma vez entrei na sala de tortura e gritei:

"Chicoteiem-me! Vá, chicoteiem-me! Depressa!", o que deixou os carrascos

estupefactos. Aliás, penso que foi a única vez que pousaram o chicote e me

mandaram voltar para a cela. Eu estava possessa. Só pensava na minha filha.

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«Louvado seja Alá por Suzan ter sobrevivido. No ano seguinte, as nossas vidas

melhoraram um pouco, quando o meu irmão conheceu um homem que, por sua

vez, conhecia um dos guarda-costas de Saddam. Esse homem conseguiu dizer ao

meu irmão onde estávamos detidas. Ao fim de três meses de

subornos, o meu irmão obteve permissão para me visitar. - Aliya indicou os seus

pertences. - Trouxe-me roupas, tapetes de oração, cobertores e comida.

Conseguiu inclusivamente autorização para levar a minha pequena Suzan da

prisão, que vive agora com o meu irmão e a mulher dele. Nunca me esquecerei de

como a minha adorada bebé gritou quando o meu irmão ma tirou dos braços e se

afastou, mas é uma grande bênção para mim saber que ela está a salvo.

Aliya começou a chorar e Samara deu-lhe uma palmadinha nas costas, enquanto

concluía a história da recém-chegada.

- A nossa Aliya é uma mulher instruída. E engenheira bioquímica. Recebeu até

vários diplomas e certificados. Proibida de leccionar em escolas públicas, por não

ser membro do Partido Baas, deu aulas particulares.

Aliya chorou ainda mais.

- O meu marido é engenheiro. Trabalha como padeiro. Eu sou professora. Agora,

vou apodrecer na prisão. A minha filha será uma mulher adulta quando eu sair

daqui! E nunca fiz nada contra o governo!

Todos os olhos na cela se encheram de lágrimas pelo triste destino de Aliya.

Através da parede, ouviram Ahmed, o jovem devoto convertido à seita Wahhabi,

iniciar as suas preces nocturnas. De súbito, as preces transformaram-se em gritos.

Mayada ficou tão nervosa que se pôs de pé e agarrou Samara por um braço,

enquanto gritava:

- Vão matá-lo! Vão matá-lo!

- Não, não vão matá-lo - retorquiu Samara, com voz grave. - Mas o que lhe vão

fazer é ainda pior, principalmente para um muçulmano devoto.

Mayada não compreendeu o significado daquela frase até ouvir os homens

arrastar Ahmed para o corredor. Pararam em frente da porta da cela 52 e então,

todos violaram Ahmed sucessivamente. Mayada estava horrorizada. A violação

brutal durou mais de uma hora, até Mayada ouvir um dos guardas rir-se como uma

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hiena, depois de dizer a Ahmed:

- Agora és a mulher de três homens e tens de nos agradar a todos.

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105

4

Saddam Hussein

Com a cabeça ainda a latejar por causa dos gritos de Ah-med, Mayada deixou-se

ficar sentada em silêncio enquanto observava as mulheres-sombra afastarem-se

uma a uma de Aliya, que permaneceu onde estava, apesar de Samara lhe haver

pedido que arrumasse as suas coisas, porque atravancavam a minúscula cela.

Aliya olhava tão fixamente para as mãos apertadas uma na outra sobre o regaço

que Mayada perguntou a si própria se ela estaria a pensar na filha e em como

nunca voltaria a ter a oportunidade de a ter nos braços e de a proteger, porque

Suzan seria uma mulher e, provavelmente, mãe, antes que Aliya fosse libertada

de Baladiyat.

Por breves instantes, Mayada teve inveja da indiferença de Rasha, por estar

ciente de que, ao escutar as histórias das outras mulheres-sombra, o peso da

mágoa e do sofrimento delas juntava-se ao seu.

Apesar de tais pensamentos lhe passarem pela mente, Mayada sabia que nunca

poderia distanciar-se daquelas mulheres porque se afeiçoara rapidamente a cada

uma delas. Foi então que Samara a surpreendeu ao estender-lhe um pequeno

cântaro com água para que lavasse o rosto e as mãos. Mayada sentiu-se um

pouco mais animada. Embora soubesse que era proibido os prisioneiros terem

objectos contundentes, descobrira que Samara praticamente operava milagres,

pelo que lhe perguntou se havia alguma maneira de esta arranjar um pequeno

espelho.

Samara olhou de soslaio para as companheiras, baixou dis-

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cretamente a cabeça, virou costas e começou a remexer os seus pertences, que

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guardava nas dobras de um cobertor militar. Depois de um murmúrio de

contentamento, virou-se, orgulhosa. Segurava na mão um pequeno espelho

partido, que exibia entusiasticamente.

- Tivemos connosco na cela até à semana passada uma jovem muito bonita -

sussurrou. - Um dos guardas interessou-se por ela e ofereceu-lhe este espelho,

depois de ela lhe prometer que não o partilharia com as companheiras de cela.

Quando ele foi transferido para Baçorá, conseguiu que a sua protegida também

fosse transferida e ela deixou-me o espelho.

Mayada imaginava o preço que a pobre rapariga devia estar a pagar por o guarda

a privilegiar, mas afastou aquele pensamento do espírito. Sabia que a violação era

uma forma de tortura infligida tanto a mulheres como a homens nas prisões do

Iraque, mas as mulheres mais bonitas eram violadas repetidas vezes por vários

homens diferentes. Pela primeira vez na vida Mayada sentiu-se contente por não

ser nada por aí além.

Com um suspiro resignado, pegou no espelho e olhou-se nele. Estremeceu de

espanto. Incrédula, virou e tornou a virar

o espelho, olhando para a parte de trás, coberta com uma camada de chumbo, e

depois para a parte da frente, espelhada, antes de ganhar coragem para olhar o

seu reflexo uma segunda vez. A estranha no espelho era realmente a filha mais

velha de Nizar e Salwa e a mãe de Fay e Ali.

Tocou no rosto com a ponta dos dedos. Custava-lhe acreditar que haviam

passado apenas vinte e quatro horas desde o momento em que fora detida, mas a

pele do seu rosto tornara-se flácida e pendia-lhe agora das faces, em pequenas

pregas, enquanto rugas que ela nunca vira contornavam os seus olhos cor de

avelã.

Enquanto contemplava a sua imagem, ouviu uma das mulheres-sombra comentar

que até os cães eram mais bem tratados do que os prisioneiros e ouviu a sua

própria voz replicar involuntariamente:

- Não há dúvida de que alguns cães são mais bem tratados do que nós, mas não

Mukhtar, o dobermann do nosso presidente.

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Algumas mulheres-sombra remexiam os seus haveres pessoais, outras

penteavam-se, entrançando o cabelo ou apertando os seus lenços na cabeça. À

excepção de Aliya, todas pararam ao ouvir as palavras de Mayada, fitando-a.

Com uma alegre entoação na voz, Samara perguntou:

- Que disparates estás para aí a dizer, Mayada? Quase ao mesmo tempo, e em

tom incrédulo, Roula, a

mais religiosa das mulheres-sombra da cela 52, exclamou:

- Um cão chamado Mukhtar:

O cepticismo de Roula era compreensível porque mukhtar significa «o escolhido»

e é um dos muitos nomes que Deus atribui ao profeta Maomé no Alcorão. Apelidar

um cão de Mukhtar é um insulto inacreditável ao grande profeta.

Sem sequer pensar nas consequências de falar de Saddam Hussein, Mayada

começou a contar o que sabia às mulheres-sombra.

- Sim, é verdade. Durante os primeiros anos do seu governo, quando Saddam

ainda sentia algum afecto pela mãe dos seus filhos, deu a Sajida um dobermann

pinscher chamado Mukhtar. Foi o próprio Saddam que escolheu um nome tão

impróprio. Cheguei a conhecer o cão, depois de Saddam o condenar à morte.

Acreditem no que vos digo: prefeririam ver a vossa pena nesta prisão ser

duplicada do que sofrer o que o pobre animal sofreu.

- Tem cuidado com o que dizes - avisou Samara. - Se eles estão a ouvir-nos - e

inclinou a cabeça na direcção da porta da cela - cortar-te-ão a língua e deixar-te-

ão esvaíres-te em sangue até morreres. E nada poderemos fazer.

Todos os iraquianos sabiam que criticar Saddam ou alguém da sua família

implicava cortarem-lhe imediatamente a língua antes de morrer. Mayada

compreendeu a apreensão de Samara. Dirigiu-se para a parede do fundo da cela,

depois do que se sentou no chão e reduziu a sua voz a um murmúrio. As

mulheres-sombra revelavam curiosidade em ouvir a história dela e, pela segunda

vez naquela manhã, formaram um círculo, sentando-se à volta de Mayada.

- O que vou contar-vos aconteceu em mil novecentos e setenta, durante os

primeiros dias do governo de Saddam -

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continuou Mayada, em voz baixa. - Sajida e Saddam ainda não se odiavam

mutuamente e, com o seu novo cargo político, Saddam preocupava-se com a

segurança dos filhos. Assim, ofereceu um dobermann a Sajida, pôs-lhe o nome de

Mukhtar, só Deus sabe porquê, e mandou treiná-lo para que atacasse mediante

uma ordem simples: "Vai, MukhtaA" Certo dia, Sajida estava a nadar e, quando

saiu da piscina e pegou numa toalha, o cão estava junto à beira da piscina a olhar

para ela. Sajida é uma mulher cruel, que maltrata os seus criados, pelo que não é

pessoa para se preocupar com os sentimentos de um animal. Não queria o cão ali

por perto e, sem pensar, atirou-lhe a toalha e exclamou: "Vai, Mukhtarl"

«Mais tarde, Sajida confidenciou ao médico da família de Saddam, que era

também o médico que tratava da minha família nessa altura, que as suas palavras

haviam confundido o cão, e que Mukhtar olhara para todos os lados mas, como

não visse ninguém, a atacara. Sajida enrolou rapidamente outra toalha que enfiou

na boca do cão, mas entretanto os guardas ouviram os gritos dela, apareceram e

levaram Mukhtar. Sajida não sofreu o mais leve ferimento.

Uma jovem solteira, que respondia pelo nome de Sara, deixou escapar um

pequeno grito, mas depressa tapou a boca com a mão.

Mayada sorriu-lhe, antes de contar o resto da bizarra história.

- Quando Saddam foi informado do incidente ficou tão furioso com o cão que

encenou um julgamento. Contaram-me que se sentou atrás da sua secretária, com

o cão à sua frente preso a uma pesada corrente que um guarda segurava.

Saddam fez de juiz e de jurado e sentenciou que Mukhtar devia morrer à fome e à

sede, apesar de o animal se ter limitado a obedecer à ordem para que fora

treinado. Antes que o cão fosse retirado da sala, Saddam pegou num bastão

eléctrico e infligiu vários choques ao animal.

«A pior parte, contudo, é que Saddam não só queria que o cão morresse, mas,

segundo terá afirmado, o crime de atacar um membro da família do presidente

exigia uma agonia prolongada antes da morte, pelo que condenou Mukhtar a

sofrer

109

durante o máximo de tempo possível. Saddam deu instruções aos seus guardas

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para que o cão fosse acorrentado a um poste de ferro que entretanto havia sido

colocado no terreno contíguo à piscina. Esses guardas relataram mais tarde que

Saddam afirmara que seria cómico ver o cão morrer à sede, enquanto estava

acorrentado a poucos centímetros de uma piscina cheia de água.

O pobre cão foi acorrentado de tal maneira que o seu focinho quase se

esborrachava contra o poste, o que o impedia de se sentar ou deitar. E ali ficou,

dia após dia, à torreira do sol, enquanto Saddam o observava e se ria com os

uivos do cão. Além disso, uma ou duas vezes por dia, Saddam ou o seu filho mais

velho, Uday, que todos sabemos ser ainda mais cruel do que o pai, infligiam

choques eléctricos ao pobre animal.

« Todos naquela família desumana têm um coração de pedra, à excepção da filha

mais nova, Hala, mas a agonia do cão era um espectáculo tão horrível que até

mesmo Sajida se sentia mal por vê-lo naquele estado. Mas claro que ninguém se

atrevia a interceder pelo animal junto de Saddam.

Mayada concluiu a triste história:

- Quando o médico voltou ao palácio para examinar Sajida, por causa de outro

problema de saúde, viu Mukhtar moribundo e perguntou a um dos guardas o que

se passara. Quando lhe disseram que Saddam havia condenado o animal à morte,

o médico encheu-se de coragem, entrou novamente no palácio e disse a Saddam

que precisava de um cão de guarda para sua segurança. Depois, perguntou-lhe se

podia ficar com o cão que estava junto à piscina. Por qualquer motivo, Saddam

encontrava-se nesse dia num estado de indiferença total. Encolheu os ombros e

disse ao médico que podia ficar com o animal. O médico aproximou-se de Mukhtar

e ordenou a um dos guardas que cortasse a corrente que estrangulava o pobre

cão, tão apertada estava. Esse médico contou-me que havia testemunhado ao

longo da sua carreira os mais terríveis sofrimentos, mas que teve que reprimir as

lágrimas quando se apercebeu do estado em que Mukhtar se encontrava. Em

consequência dos esforços do animal para tentar libertar-se, a corrente cravara-

se-lhe no pescoço. O médico pensou que Mukh-

110

tar já estava morto, mas, mesmo assim, formou uma concha unindo as mãos e

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tirou da piscina um pouco de água que deixou pingar sobre a cabeça do cão. Foi

quando viu uma pálpebra tremer muito ao de leve. Pegou em Mukhtar nos braços,

transportou-o até ao seu carro, e levou-o para casa, onde tratou do dobermann até

ele recuperar completamente.

« Cerca de um ano mais tarde, visitei a casa desse médico, em Mossul, e não

imaginam como fiquei feliz por ver o cão vivo e saudável. O médico contou-me,

muito orgulhoso, que o dobermann, que entretanto recebera um nome mais

apropriado, era um animal de estimação maravilhoso. - Mayada riu-se. - Até tenho

uma fotografia do cão, sentado na sala de estar, com os restantes membros da

família do médico !!

As mulheres-sombra deixaram-se ficar sentadas, em silêncio. Apesar de cada

uma delas haver sofrido às mãos das forças de segurança de Saddam, todas

mantinham a esperança de que, se o presidente conhecesse os pormenores das

suas histórias pessoais, interviria e mandá-las-ia libertar. No entanto, depois de

ouvir aquela história, davam-se conta pela primeira vez de que o seu presidente

era um louco e que talvez fosse ele o responsável por toda a brutalidade que

grassava em Baladiyat e nas outras prisões do Iraque.

Uma mulher-sombra pequenina de cabelo preto e olhos azuis chamada Eman

dirigiu-se a Mayada pela primeira vez. Estava demasiado assustada para fazer

qualquer pergunta acerca de Saddam, mas quis saber o nome do médico que

salvara Mukhtar.

- E melhor eu não o revelar. Ainda continua a ser um dos médicos de Saddam.

Sem dizer palavra, Eman abanou a cabeça para demonstrar que compreendia a

posição de Mayada. Todos os iraquianos que não trabalhavam no vasto aparelho

de segurança do Iraque, tinham o cuidado de proteger os outros, da única forma

que sabiam: mantendo-os anónimos.

A conversa foi interrompida pelos gritos de um homem. Implorava misericórdia

enquanto os guardas o arrastavam pelo corredor. Quando passou pela porta da

cela 52, conseguiu escapar a um dos carcereiros. As mulheres-sombra ouviram-

no

111

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embater contra a porta de metal e, em estado de pânico total, começar a dar

murros na porta, rogando que o deixassem entrar na cela, como se acreditasse

que podia dessa forma escapar ao seu infortúnio. Os guardas não tardaram a

agarrá-lo e, pelos sons que se seguiram, espancaram o homem. Após um sem-

número de insultos e de murros violentos, o prisioneiro foi levado.

Mayada olhou para Samara por breves instantes, antes de lhe perguntar por que

razão havia tanta tortura naquela manhã, quando Samara lhe garantira que os

guardas só torturavam os prisioneiros ao fim do dia.

Samara corou, encolheu os ombros e ergueu as mãos delicadas e alvas para o ar.

- Por vezes, abrem uma excepção...

Mayada sentiu um súbito afecto pela companheira, pois percebera que Samara

lhe mentira para tentar apaziguar o seu medo.

- Mesmo assim, eles procedem à maior parte das torturas durante a noite -

acrescentou Samara.

Roula murmurou que Samara estava a dizer a verdade.

As mulheres-sombra tinham ficado sentadas em silêncio enquanto escutavam os

gritos, até que uma delas, mais velha e de óculos com lentes grossas, afirmou:

- Nunca admiti até hoje a hipótese de Sajida ser uma mulher cruel. Senti pena dela

quando Saddam escolheu Sami-ra Shabendar como a sua esposa mais nova. Foi

quando decidi que gostava de Sajida.

- Agora, sabemos que desperdiçaste a tua compaixão, Iman - comentou Samara,

com um suspiro.

- Fazia uma ideia dela que não correspondia à realidade - admitiu Iman.

Mayada queria que o mundo inteiro soubesse toda a verdade sobre a família de

Saddam.

- Ela é ainda mais estúpida do que cruel, e pode dar-se por muito feliz por Saddam

não se haver divorciado dela - sussurrou. - Saddam odeia-a e ela odeia-o a ele. A

única coisa que têm em comum são os filhos e, apesar de ainda estarem

legalmente casados, raramente se vêem.

112

- De verdade? - exclamou Samara.

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- O que estou a contar-vos é a pura verdade.

Uma das mulheres-sombra mais novas, chamada Muna, perguntou, ofegante:

- Conheces Saddam?

Mayada não respondeu, mas Samara riu-se baixinho e murmurou:

- Claro que o conhece!

Até mesmo Aliya decidira escutar a história de Mayada e fora juntar-se ao círculo.

Olhou para Mayada e perguntou:

- Podes falar-nos dele?

Mayada acenou afirmativamente, sem hesitar. Sim, ia falar. O seu mundo virara-se

do avesso nas últimas vinte e quatro horas, e abandonara a sua habitual cautela

quanto a revelar o que sabia sobre Saddam, a família dele e o seu círculo íntimo

de oficiais. Mudara tão radicalmente desde que fora detida na manhã anterior que

o seu único pesar era falar para uma assistência tão pequena. Se conseguisse

que as mulheres-sombra acreditassem que ela dizia a verdade, então a sua

assistência multiplicar-se-ia até o mundo inteiro ouvir o que ela sabia sobre

Saddam Hussein.

- Não te esqueças de falar em voz baixa! - preveniu Samara, uma vez mais.

- Vou contar-vos tudo desde o princípio - declarou Mayada, sorrindo a Samara -, e

a minha voz não será mais

do que um débil murmúrio.

Samara mostrava-se compreensivelmente nervosa com o assunto:

- Temos de estar preparadas. Se a porta se abrir, vou fingir que estou a falar dos

meus pratos preferidos. - Virou-se para uma mulher mais velha, de cabelo louro,

cujo nome Mayada ainda não conhecia. - Tu, Anwar, vais fingir que estás a discutir

comigo por eu não saber o que é boa comida. Quanto a vocês, comecem a

tagarelar sobre ninharias, de maneira a que nada do que estivermos a dizer possa

ser compreendido. - Por fim, olhou para Mayada e sorriu. - Aqueles homens

pensam que não passamos de um bando de mulheres estúpidas.

Rindo-se, Anwar concordou em desempenhar o seu papel

113

na farsa. Só depois todas as mulheres-sombra fitaram ansiosamente Mayada e

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lhe pediram que continuasse.

Mayada revelou-lhes que a sua mãe, Salwa, conhecera Sad-dam em 1969, um

ano após o impopular golpe militar do Partido Baas que levara Ahmed Hassan al-

Bakir à presidência. Relembrou-lhes que o Partido Baas não era bem aceite pelos

intelectuais iraquianos, acrescentando que os seus pais nunca se haviam filiado

no partido. Na realidade, quando o Partido Baas alcançara o poder, reinava a

confusão política no Iraque e muitos antigos ministros e presidentes aguardavam

que a verdadeira faceta dos novos governantes se revelasse, antes de decidir se

permaneceriam no Iraque ou fugiriam para outro país árabe.

- Os meus pais tinham sido convidados para uma festa dada por uma embaixada

e, porque era Verão, foi servido um bufete no jardim. O meu pai, Nizar,

conversava com um dos embaixadores estrangeiros presentes, e a minha mãe

servia-se, enquanto tagarelava com a esposa do embaixador do Líbano. Era uma

função social de rotina, com as mulheres a falar dos eventos que marcariam a

próxima estação, e os homens a discutir política, embora todos se mostrassem

mais desconfiados do que o habitual, uma vez que se espalhara o boato em Bag-

dade de que os líderes do Partido Baas eram avessos à crítica. O meu pai disse-

me que os membros do partido não tinham a menor paciência para a contestação

política amigável, que, como vocês sabem, é uma forma inocente de

entretenimento no mundo árabe - os homens têm fama de ficar sentados, durante

horas a fio num café a opinar alegremente sobre o partido que se encontra no

poder.

«Mesas redondas cobertas com toalhas brancas e decoradas com arranjos florais

espalhavam-se pelo jardim. A senhora libanesa sugeriu que ela e a minha mãe

procurassem um lugar onde pudessem conversar e dirigiram-se a uma mesa com

dois lugares vagos. À mesa estavam dois homens sentados a comer. Mais tarde,

a minha mãe descreveu um desses homens como sendo jovem e bem-parecido.

Se reparara nele fora porque a maior parte dos homens iraquianos tem péssimos

hábitos à mesa mas os modos daquele jovem diferenciavam-no dos restantes.

114

O jovem olhou para ela e cumprimentou-a, sem sequer se apresentar. Mais tarde,

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a minha mãe lembrar-se-ia de que o jovem tinha olhos grandes, pretos e muito

redondos, com um brilho invulgar que, por qualquer motivo, lhe recordavam os

olhos de um animal.

«A minha mãe continuou a conversar com a senhora libanesa. Pouco tempo

depois, a esposa do embaixador do Koweit aproximou-se da mesa, beliscou

amigavelmente o braço da minha mãe, debruçou-se e sussurrou-lhe ao ouvido:

"Não sabia que o conhecia. Telefone-me amanhã para me contar tudo."

«Perplexa, sem saber a que se referia a senhora do Koweit, a minha mãe nada

disse e continuou a conversa. Volvidos poucos minutos, o jovem dos grandes

olhos redondos abordou-a e perguntou: "Como está, Ustaha (1) Salwa?"

«Seguindo as normas da boa educação, a minha mãe, depois de responder à

pergunta, agradeceu e, por sua vez, fez a mesma pergunta. O jovem comentou

enigmaticamente: "Bom, é um fardo pesado."

«A minha mãe não fazia a menor ideia que fardo pesado carregava aquele jovem,

mas julgou que o comentário se relacionava com os problemas inerentes a uma

grande família ou a um negócio. O jovem teceu alguns comentários a que a minha

mãe não prestou grande atenção, porque já ouvira elogios semelhantes sobre o

seu pai da boca de muitos iraquianos: "Sou um grande admirador de Sati Al-

Husri", disse o jovem. "Costumava visitá-lo de duas em duas semanas, à sexta-

feira, quando não passava de um pobre estudante de Direito, no Cairo. Fazia-lhe

muitas perguntas, mas aquele grande homem nunca me ignorou nem se cansou

de me responder." A minha mãe agradeceu-lhe, lutando contra a tristeza que a

invadia. O pai morrera no ano anterior, quatro meses depois de o Partido Baas

chegar ao poder, e a sua morte deixara um grande vazio no seu coração. Pensou

perguntar ao jovem como se chamava, mas, pensando que seria falta de

educação, uma vez que ele julgava que ela o conhecia, não o fez. Por essa altura,

os elogios do jovem a Sati haviam-se multiplicado: "Sempre

( 1 ) - Ustaha: «professora».

115

afirmei que Sati Al-Husri podia ser o homem mais rico do Médio Oriente se

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cobrasse algumas moedas por cada um dos compêndios de que foi autor. Mas,

em vez de dinheiro, ganhou a admiração e o carinho de milhões de pessoas." Era

sabido que os compêndios de Sati eram utilizados em todas as escolas árabes e

que ele recusara receber uma percentagem pelos direitos de autor, alegando que

o conhecimento era como o ar e devia ser gratuito. Por isso, dera autorização para

que as escolas imprimissem e usassem os seus compêndios como bem

entendessem, sem quaisquer encargos. Apesar de receber uma percentagem

pelos livros vendidos nas livrarias, nunca aceitou dinheiro pelos usados nas

escolas.

«A minha mãe começava a sentir-se constrangida e, por pensar que o jovem tinha

problemas nos seus negócios, achou que o meu pai talvez pudesse ajudá-lo.

Assim, disse ao jovem que levasse a esposa e nos fosse visitar, oferecendo-lhe a

ajuda do meu pai.

«Segundo a minha mãe, os olhos do jovem brilharam, antes de baixar as

pálpebras e esboçar um sorriso algo divertido. Mais tarde, quando descobriu que

estivera a falar com Sad-dam Hussein, o homem conhecido como "senhor

Substituto", deu-se conta de que fora naquele instante que Hussein percebera que

a minha mãe não reconhecera o homem que detinha o segundo cargo mais

importante do país.

Várias mulheres-sombra riram-se em surdina, por lhes ser difícil imaginar o estilo

de vida deslumbrante que a família de Mayada levara, e por serem incapazes de

conceber que Mayada tivesse uma mãe tão optimista que considerara o Partido

Baas como um bando de novos-ricos que abandonaria tão depressa o poder que

ela nem precisava de se dar ao trabalho de reconhecer o poderoso vice-

presidente.

No início, Saddam preferira passar por um ilustre desconhecido e evitar as luzes

da ribalta. O Partido Baas alcançara primeiro o poder em 1963, mas chegara e

partira tão rapidamente que, quando regressara em 1968, a maioria das pessoas

não o levara a sério, acreditando que a sua segunda relação com o poder seria

tão breve quanto a primeira.

Mas todas essas pessoas haviam subestimado Saddam Hussein.

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Apesar de ter apenas trinta e um anos quando o Partido Baas chegou ao poder

pela segunda vez, aprendera com os erros cometidos em 1963 e fora

suficientemente esperto para se manter na sombra até o futuro do partido estar

assegurado. Todos os iraquianos sabem hoje que Saddam consolidou o seu poder

no partido através dos serviços secretos. Desde o princípio, a Mukhabarat - a

organização governamental do terror e da intimidação - dependia directamente de

Saddam e, embora ele fosse o único arquitecto do terror e houvesse

pessoalmente tirado a vida a muitos iraquianos, procedeu a um esforço

concertado para se apresentar como um cavalheiro de fino trato.

Mayada contou-lhes que o seu primeiro encontro com Saddam Hussein se dera

durante a época mais triste da sua vida, pelo que afastara até agora da sua mente

esse momento.

- O meu pai morreu de cancro do cólon em mil novecentos e setenta e quatro e,

antes do funeral, recebemos um telefonema de Saddam, que ainda era vice-

presidente. Apresentou-nos as suas condolências e afirmou que esperava poder

estar presente no fattiha1,

No Iraque, quando uma família está de luto as portas da sua casa mantêm-se

destrancadas durante sete dias. As pessoas entram e saem sem bater à porta ou

tocar à campainha. Nesse mesmo dia, um enviado do palácio presidencial entrou

na casa da mãe de Mayada e entregou um sobrescrito que Saddam enviara.

- Quando a minha mãe espreitou para o interior do sobrescrito, viu que continha

três mil dinares iraquianos2 para comprar uma casa, mas felizmente já tínhamos

uma. A minha mãe achou que devíamos telefonar a Saddam para lhe agradecer,

mas lembrei-lhe que no Iraque não se reage dessa forma a um acto de bondade.

Apesar de os Iraquianos manifestarem o seu apreço por uma oferta, fazem-no

mais tarde, preferindo retribuir com outro favor do que através de um

agradecimento verbal; apesar disso, a minha mãe teimou que seria um acto de

' Fattiha: luto dos homens. 2 Cerca de onze mil dólares.

116

117

muito má-criação não agradecer ao vice-presidente do Iraque o seu gesto. A

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minha mãe levava a peito as ideias do pai sobre o nacionalismo árabe, e sempre

afirmara que não era iraquiana, nem síria, nem libanesa, mas simplesmente

árabe. Por conseguinte, revelaria ter boas maneiras, mesmo que eu não as

tivesse.

«Uma vez que a minha mãe não tinha filhos, cabia-me», a mim, como sua filha

mais velha, representar a família, mas eu não queria telefonar. Desde que me

conheço que sempre fui muito influenciada pelas ideias e opiniões do meu pai.

Como ele não gostava do Partido Baas, eu também não gostava, e apesar de

muitos dos meus colegas da escola serem membros do partido nunca me filiei.

Como sabem, o regime obriga todos aqueles que entram nas universidades a

inscrever-se no partido, mas os descendentes de Sati Al-Husri constituíram uma

excepção a essa regra; mesmo não pertencendo ao Partido Baas, tínhamos

prioridade em muitas coisas. Não obstante, eu não queria falar com Saddam

Hussein, o homem de quem o meu pai tanto desconfiava.

«Contudo, a minha mãe não é pessoa a quem se recuse seja o que for, e tive de

fazer o que ela queria. Eu tinha apenas dezoito anos, mas telefonei para a linha

directa do vice-presidente. Reparei que tinha uma voz anasalada, e que era muito

bem-educado. Eu queria desligar o mais depressa possível e, por isso, agradeci-

lhe pelo seu bondoso gesto e fiquei à espera que ele se despedisse. Saddam

disse-me que lamentava muito, mas que não poderia estar presente no fattiha,

pelo que pedia desculpa à família. Mostrou-se tão humilde durante a nossa curta

conversa que me conquistou - confessou Mayada. - Tenho vergonha de dizê-lo,

mas, quando desliguei, tornara-me partidária de Saddam Hussein.

Samara baixou a cabeça e o mesmo fizeram várias das outras mulheres-sombra,

demonstrando que compreendiam. No princípio do regime de Saddam Hussein,

muitos iraquianos haviam-no apoiado. Ele chegara ao poder com ideias

ambiciosas para modernizar o país, e depressa começou a efectuar mudanças

que beneficiaram a maior parte dos iraquianos. Havia sido influenciado pela

crença de Sati na educação para todos,

118

e lançara um programa de educação em larga escala, que incluía a construção de

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escolas em todas as aldeias para os jovens do Iraque e a formação de

professores para os cidadãos mais velhos. Depois, concentrara-se no sistema de

saúde, construindo hospitais e centros de saúde. Passados poucos anos, deu

oportunidade às mulheres de aceder a qualquer profissão, criando no Iraque uma

atmosfera de igualdade entre mulheres e homens, algo nunca visto em qualquer

país do Médio Oriente. Durante um breve período, parecia que o Iraque iria ter

apenas coisas boas. E, claro, Saddam fora tão reservado quanto aos seus planos

de construir uma organização de segurança interna que o cidadão comum não

fazia a menor ideia do pesadelo que se vislumbrava já no horizonte.

- A minha mãe era considerada uma das mulheres mais elegantes e chiques do

Iraque e viajava frequentemente até Paris para assistir aos desfiles dos estilistas

franceses, altura em que escolhia o seu guarda-roupa de Primavera ou de Outono.

Saddam sabia disso e, pouco depois de a conhecer na festa da embaixada, o

palácio enviou-lhe um catálogo de roupa de homem com um bilhete de Saddam

em que este lhe pedia que desse uma vista de olhos ao catálogo e escolhesse os

trajes mais apropriados para um homem com a sua posição.

«Todos os que o conheciam sabiam que ele gostava muito de roupas. Mudava de

fato, sempre desenhado por estilistas, cinco vezes por dia. A minha mãe

confessou-me sentir pena daquele rapaz de uma aldeia pobre que se encontrava

agora numa posição em que lhe era possível comprar uma loja inteira de roupa de

marca, se quisesse. Assim, consultou as páginas e os fatos que Saddam indicara

serem os seus preferidos e ficou espantada por ver que ele gostava dos fatos de

veludo usados pelos croupiers nos casinos, os quais não têm bolsos, por motivos

óbvios. A minha mãe convivera com líderes políticos de todo o mundo ao longo da

sua vida, pelo que não teve qualquer pejo em dizer a Saddam que as escolhas

dele não eram apropriadas, aconselhando-o a nunca, mas nunca, comprar um

casaco de veludo sem bolsos. De qualquer maneira, depois de lhe escrever o

bilhete acerca dos casacos de veludo, consultou novamente o catálogo, fez uma

selecção de fatos

119

que considerava adequados e pediu ao nosso motorista que entregasse o

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catálogo no palácio. Mais tarde, quando Saddam apareceu na televisão durante

vários actos governamentais, pudemos ver que ele usava variações das escolhas

que ela havia feito.

As mulheres-sombra, cada vez mais surpreendidas com as revelações de

Mayada, instaram-na a continuar.

- Em mil novecentos e oitenta, a minha mãe era directora de uma comissão que

estava a compilar um livro de promoção do Iraque. A produção do livro era muito

dispendiosa, com fotos a cores, e, quando ficou pronto, Saddam, que entretanto

derrubara Bakri, em mil novecentos e setenta e nove, e se nomeara a si mesmo

presidente, recebeu um exemplar especial, entregue em mão, do livro produzido

pela comissão dirigida pela minha mãe. Gostou tanto do livro que pediu à minha

mãe que o fosse visitar e levasse as duas filhas consigo. Abdiya casara

recentemente e vivia em Tunis, pelo que fui sozinha com a minha mãe.

«Mal chegámos ao palácio, fomos escoltadas até ao gabinete de Saddam. A

guerra com o Irão ainda não começara e Saddam usava um traje civil. Optara por

um fato branco, com camisa preta e gravata branca. Ao vê-lo, a minha mãe deu-

me uma cotovelada discretamente. Tive de fazer um grande esforço para não

desatar a rir, quando olhei para a minha mãe e vi que me fazia uma careta,

entortando os olhos, pois com aquele fato o presidente do Iraque parecia uma

versão renovada do mafioso Al Capone. Quando saímos do palácio, a minha mãe

afirmou que Saddam Hussein era um daqueles homens que nunca deveria ter

autorização para escolher as suas próprias roupas, mas isso depressa deixou de

constituir um problema, porque Saddam pôs de parte os trajes civis quando

rebentou a guerra com o Irão. Nunca mais ninguém o viu a não ser envergando

uniforme militar, e a minha mãe comentou certa vez que aquele fora o único

benefício de uma guerra terrível. «Em Junho de mil novecentos e oitenta e um, eu

tinha uma coluna ao fim-de-semana, intitulada «Itlalat»1, no jornal

' ItLalaP. «pontos de vista».

Al-Jumhuriya, e escrevera um artigo sobre a noção do tempo, comparando-a ao

tempo de Alá, que é ilimitado, e em que falava da teoria de Einstein, dos efeitos de

o tempo poder recuar e de como desejava que o dia tivesse quarenta e oito horas

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em vez de vinte e quatro.

«Todos os meus colegas no jornal elogiaram o meu artigo e foi então que recebi

um inesperado telefonema da minha mãe, pedindo que voltasse para casa quanto

antes. Alguém do palácio telefonara e ia telefonar novamente. Desliguei, um

pouco assustada. Receava que o meu artigo não tivesse agradado ao presidente,

que se tornara cada vez mais irascível desde o início da guerra. Daí o meu mal-

estar. Poucos minutos depois de chegar a casa, o telefone tocou. Era um homem

chamado Amjed. Com modos muito educados, identificou-se como secretário

particular de Saddam. Disse que o presidente queria ver-me às cinco da tarde do

dia seguinte. Informou-me de que devia apresentar-me no Al-Qasr Al-Jumhouri, o

Palácio Republicano em Karadda, nas margens do rio Tigre.

«Sentia-me tão ansiosa que julguei não aguentar uma noite inteira imaginando

qual o motivo por que Saddam me mandara chamar, pelo que perguntei

directamente ao secretário se havia algum problema. Amjed riu-se. "Não, não,

irmã. Pergunte antes o que foi que correu bem, pois vai ser condecorada pelo

presidente em consequência do seu trabalho."

«As suas palavras tranquilizaram-me e telefonei ao meu editor, Sahib Hussain Al-

Samawi, para lhe contar o que acontecera. Como é evidente, ele ficou encantado

e pediu-me para passar pelo seu gabinete e lhe contar todos os pormenores,

assim que saísse do palácio.

«Eu estava casada, nessa altura, mas as coisas corriam mal com Saiam. No

entanto, ficou feliz com a novidade e disse-me que iria pedir uma licença na sua

base militar para me levar à presença do presidente. O seu comandante

concedeu-lhe uma licença para o dia inteiro. Assim, às 11.30 do dia seguinte,

Saiam chegou a casa, tomou banho, mudou de roupa e assegurou-me que estaria

de volta às 4.00 da tarde para me conduzir ao palácio.

120

121

«O meu casamento não corria bem porque Saiam andava com várias namoradas,

e quando às 4.30 ele não apareceu soube que me mentira uma vez mais. Tive de

apressar-me a arranjar um taxi que me conduzisse ao palácio, porque a minha

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mãe, fiada na promessa de Saiam, usara o carro e o motorista para ir a uma

recepção.

«Cheguei ao palácio cinco minutos antes da hora marcada, com o cabelo em

desalinho e sem fôlego, mas lá ajeitei o cabelo e me recompus. Fui escoltada por

um secretário através de vários salões até chegar finalmente a uma vasta sala de

estar, repleta de iraquianos que esperavam a sua vez de falar com Saddam.

Apesar da guerra com o Irão, havia grande abundância no palácio. Serviram-nos

sumos de frutas e várias outras bebidas em copos altos de cristal, que valiam mais

do que a maioria dos iraquianos ganhava numa semana. Após alguns minutos*

fomos todos conduzidos a uma segunda sala, ainda maior, onde havia uma mesa

de bufete com todo o tipo de comida. Ao centro da mesa encontrava-se uma

montanha do mSãs caí0 caviar de esturjão, mas as pessoas ali presentes eram

pobres e nunca haviam visto caviar. Por isso, recusaram-se a comer as pequenas

ovas de peixe, pretas e reluzentes, mesmo depois de eu lhes assegurar que era

uma comida muito cara e considerada um pitéu em todo o mundo. Havia uma

segunda mesa, com doces e todos os tipos de frutos, desde ananases a mangas e

cerejas.

«Eu estava muito nervosa para comer, mas todos os outros comiam

entusiasmados. Uma mulher de cabelo sedoso e rui-vo-claro aproximou-se de

mim e entabulou conversa dizendo-me que estava desejosa por conhecer

Saddam. Havia-lhe escrito uma carta acerca de uma herança perdida, e tinha a

certeza de que ia ser bem-sucedida no seu intento de reaver aquilo que era seu

de direito. Deu a entender que tinha uma paixoneta pelo presidente, o que me

deixou desconfiada e me fez afastar discretamente para o lado oposto da sala,

onde meti conversa com outra mulher mais idosa. A pobre mulher, no entanto,

estava tão nervosa que mal conseguia balbuciar o nome, e as suas mãos tremiam

tanto que deixou cair dois copos de sumo no tapete persa; por isso, resolvi deixá-

la em paz.

122

«Terminada a refeição, o grupo foi levado novamente para a sala de estar, onde

nos serviram chá. Sentámo-nos, à espera, e quando começava a pensar que se

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tinham esquecido de nós, um homem de uniforme entrou na sala e pronunciou o

meu nome em voz alta. Quando saí da sala, julguei sentir olhares invejosos

cravados nas minhas costas.

«O homem levou-me para outra sala de estar, mais pequena mas ainda mais

luxuosa do que a anterior. Pouco depois, ouvi um grande rebuliço. Militares

corriam pelo palácio, berrando que Saddam acabara de chegar. Volvida uma hora,

um segundo militar entrou na sala e pediu-me que o seguisse. Naquela altura, já

estava exausta, mas fiz o que ele me pediu. Fui levada para outra sala, onde havia

uma grande secretária de madeira ao meio e algumas cadeiras azuis

acolchoadas, com motivos a ouro incrustados na madeira.

«O homem apertou-me a mão, felicitou-me pelo meu artigo e deu-me algumas

instruções sobre como deveria comportar-me quando estivesse na presença do

presidente. Realçou que eu não devia ser a primeira a falar, nem devia tão-pouco

estender a mão para apertar a de Saddam, fazendo-o apenas se ele estendesse a

sua.

«Fiquei admirada, porque Saddam havia sido muito acessível e humilde da última

vez que estivera com ele. Então, disse a mim mesma que a verdadeira faceta dele

começara a vir à tona.

Samara riu-se e sussurrou:

- Talvez tenha sido sempre essa a sua verdadeira faceta, enquanto a outra é que

era falsa.

Mayada acenou afirmativamente, antes de terminar a sua história.

- Duas portas altas de madeira foram abertas por um mordomo, também

uniformizado. Saddam estava sentado atrás de uma secretária, numa outra sala.

Usava óculos de armação grande, algo que eu nunca o vira usar, e vestia o seu

traje militar, mas a sua aparência era a mesma desde a última vez que o havia

visto. Continuava a ser um homem moreno com cabelo muito encaracolado e

queixo bem marcado, e ainda tinha aquela pequena tatuagem verde-clara na

ponta do nariz, que removeu alguns anos mais tarde.

123

«Saddam surpreendeu-me então ao sorrir e estender a mão, que apertei, de

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acordo com as instruções que recebera. Perguntou: "Como está a nossa criativa

escritora?" Respondi-lhe com o cumprimento que se tornara tradicional no Iraque,

dizendo que, se ele se sentia bem e com saúde, todos os iraquianos estariam

felizes e prósperos. Depois, perguntou-me como estavam os meus colegas do

jornal e repliquei que todos eles me haviam pedido para transmitir toda a

admiração e respeito que sentiam pelo presidente.

«Saddam esboçou um sorriso de satisfação, antes de exclamar: "Li o seu artigo e

gostei muito. Você é uma neta à altura do grande Sati Al-Husri. Ele teria ficado

contente." Deu-me uma leve pancadinha no ombro e acrescentou: "Quero que me

prometa que, aconteça o que acontecer, a sua caneta continuará a escrever em

prol da nossa grande revolução. Escreva o que a sua integridade achar apropriado

e estará no bom caminho."

«Agradeci-lhe as simpáticas palavras, e depois ele perguntou-me se eu tinha

automóvel. Respondi-lhe que sim. Perguntou-me se eu estava satisfeita com a

casa que possuía, e tornei a responder afirmativamente, o que pareceu diverti-lo.

"É a filha de Salwa. Não precisa de nada nem de ninguém", exclamou, o que me

pareceu um comentário estranho, mas, depois de reflectir nas suas palavras,

apercebi-me de que me fizera um elogio, porque o meu avô Sati criara a filha para

que se tornasse uma mulher determinada, com opinião própria, e fizera tudo para

que ela tivesse uma excelente instrução, o que a tornaria independente; essas

duas qualidades juntas numa mulher árabe são uma raridade no Iraque.

«Nessa altura, Saddam chamou alguém pelo telefone e um fotógrafo entrou na

sala e tirou várias fotografias. Saddam, mais uma vez, surpreendeu-me ao beijar-

me na testa, recomendando-me que continuasse a fazer com que o grande Sati

Al-Husri se orgulhasse de mim. Antes de se despedir disse ainda: "Só de pensar

no seu avô, Sati Al-Husri, e no que ele defendeu, sinto-me orgulhoso de ser

árabe." Por fim, apertou-me a mão, mais uma vez, e saiu da sala.

«Quando entrei na sala contígua, Amjed, que havia sido o

124

meu primeiro contacto no que dizia respeito àquele meu encontro com Saddam,

entregou-me um sobrescrito e dois estojos de couro. Informou-me que um carro

Page 110: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

me esperava para me levar onde eu desejasse. Disse-lhe que gostaria que me

levassem à redacção do Al-Jumhuriya, onde ia encontrar-me com o meu chefe,

Sahib Hussain Al-Samawi, como lhe havia prometido.

«Sahib estava tão eufórico com o encontro e os elogios de Saddam que começou

a fazer planos para publicar o meu artigo uma segunda vez, na edição do dia

seguinte. Haveria também um editorial focando o interesse de Saddam pelo

trabalho de Mayada Al-Askari e sobre a admiração do presidente por aquele artigo

em particular.

«Quando cheguei a casa abri o sobrescrito, que continha, como da outra vez,

muito dinheiro. No interior dos estojos de couro havia dois relógios. Um era um

modelo Patek Phillipe, muito caro, com diamantes sobre ouro branco e um

mostrador com «Saddam» inscrito nele. O outro era um Omega de ouro com o

retrato de Saddam no mostrador. Resolvi pregar uma pequena partida à minha

mãe. Quando ela chegou a casa eu tinha posto um relógio em cada pulso. A

minha mãe engasgou-se de tanto rir. Ainda usei um dos relógios durante algumas

semanas, mas depressa os guardei numa gaveta por ser insustentável ter

continuamente debaixo dos olhos o nome ou o rosto de Saddam.

«Alguns dias depois, um representante do palácio apareceu na redacção do jornal

e entregou-me uma pasta de couro debruada a ouro. No interior encontrei duas

fotografias de Saddam comigo. Sahib pôs uma numa moldura e colocou-a na sua

secretária, enquanto a minha mãe colocou a outra, devidamente emoldurada,

numa estante da nossa sala de estar.

Mayada fez uma pausa. As mulheres-sombra fitavam-na, à espera que ela

contasse mais histórias. Samara disse-lhe que não devia parar. Tinha de lhes

narrar todos os pormenores de todos os encontros com Saddam.

Mayada riu-se, replicando que não tinha voz para falar durante muito mais tempo,

mas que partilharia os aspectos mais importantes dos seus encontros com o

presidente.

125

- Em mil novecentos e oitenta e dois - continuou -, escrevi um conto para a revista

Fonoun, intitulado «Este Belo Silêncio». Ainda que estivesse relacionado com a

Page 111: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

guerra, era acima de tudo uma narrativa romântica sobre uma mulher que diz a

um homem que não precisa de palavras para demonstrar os sentimentos que

nutre por ele porque o seu amor era como a grande poesia. Muhammed Al-

Jazaeri, o redactor-chefe da Fonoun, telefonou-me no dia em que o conto foi

publicado. Visivelmente entusiasmado, informou-me que La-tiff Nusaif Jassim, o

ministro da Informação, não só me iria endereçar uma carta de felicitações, como

oferecer-me uma grande soma em dinheiro e um televisor, indicando que deveria

apresentar-me no ministério no dia seguinte às dez da manhã.

«Nessa noite, não preguei olho, tão perplexa estava por um conto romântico haver

despertado o interesse de Saddam.

- Porque ficaste admirada? - exclamou Iman. - Todos sabem que Saddam é um

homem romântico.

- É verdade - corroborou Aliya. - O meu irmão general conhece um dos seus

guardas, e ele contou-lhe que Saddam gosta muito de histórias que falam de belas

mulheres que se apaixonam por bravos guerreiros. Saddam deve ter-se

identificado com a personagem do teu texto.

- Talvez - aquiesceu Mayada. - Seja como for, na manhã seguinte apresentei-me

no Ministério da Informação às dez em ponto. O ministro revelou-se muitíssimo

simpático. «Os seus artigos nunca deixam de fazer com que Abu Uday1, o nosso

grande líder, que Alá o conserve, se sinta feliz», declarou. Disse-me que estas

haviam sido as palavras usadas pelo presidente, que acrescentara: «E como uma

lufada de ar fresco ler os artigos dela, enquanto me encontro no exercício do meu

dever», uma alusão à guerra com o Irão. O ministro terminou dizendo: «O

presidente lamenta não poder entregar-lhe o prémio pessoalmente, mas encontra-

se na frente de combate, a comandar os nossos heróis.»

Mayada não partilhou com as outras o resto da história,

«Pai de Uday», ou seja, Saddam Wwsein.

que tivera um final triste para ela. O conto fora publicado uma segunda vez na

semana seguinte com uma referência ao prémio, ou takreem, como lhe chamam

no Iraque, atribuído por Saddam à autora, e a revista decidira publicar uma

fotografia dela. Como consequência, Mayada recebera centenas de cartas de

Page 112: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

soldados que combatiam na linha da frente. Houvera uma de um soldado anónimo

que ela nunca esqueceria. O soldado dizia-lhe que sempre havia lido os seus

textos, mas nunca mais voltaria a lê-los, por saber agora que ela «era um deles» -

referindo-se aos partidários de Saddam - e que escrevia apenas o que lhe

mandavam. Mayada ficara profundamente magoada pois nunca escrevera por

encomenda. Nunca se dedicara ao comentário político escrito para não se ver

obrigada a seguir as linhas definidas pelo partido; limitara-se a escrever sobre o

que pensava e sentia acerca da vida e do amor, e Saddam meramente se

interessara pelos seus textos.

- O meu terceiro takreem - continuou -, foi-me atribuído em mil novecentos e

oitenta e três, depois de regressar de uma longa viagem oficial ao Sudão. Escrevi

um texto intitulado «Raios de sol verticais», referindo-me ao calor tórrido do

Sudão, falando da pobreza do país e de como, enquanto lá estivera, me

apercebera do quanto amava o Iraque.

«Mais uma vez recebi um telefonema do Ministério da Informação, informando que

o presidente me ia atribuir um takreem e que devia dirigir-me ao palácio às 16.45

do dia seguinte.

«Embora nos encontrássemos em fins de Novembro, ainda estava calor. Quando

cheguei ao palácio, fiquei admirada por ver que os jardins estavam apinhados de

centenas, talvez milhares, de homens, mulheres e crianças, e por breves

segundos pensei que fora organizada no palácio uma feira ou outro tipo de

entretenimento destinado àquela gente. Contudo, ao observar melhor a multidão,

não vi qualquer felicidade no rosto das pessoas, mas miséria e sofrimento. As

mulheres vestiam de preto, de luto por filhos e maridos, mártires mortos na linha

da frente. O próprio palácio parecia em tão mau estado como aqueles pobres

iraquianos acocorados no relvado, e lembrei-me de que todos os lucros da venda

do petróleo iam direiti-

126

127

nhos para o esforço de guerra, pelo que não era de estranhar que o palácio

tivesse perdido o luxo e a opulência de outros tempos.

Page 113: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

«Percebi então que aquela multidão se encontrava ali para receber dinheiro.

Ouvira nas notícias que cada viúva ou família que perdera um filho receberia cinco

mil dinares iraquianos1 pelo seu sacrifício. Aqueles pagamentos eram

considerados uma diyya, uma recompensa, pela morte dos seus entes queridos.

Eu conhecia o protocolo. Saddam recebia cinco pessoas de cada vez. Cada uma

delas entregava-lhe uma carta explicando onde o pai ou o filho havia sido morto.

Saddam lia a carta e atribuía uma quantia. Depois, a viúva ou o órfão levava a

carta ao gabinete de contabilidade, onde lhe pagavam a soma estipulada pelo

presidente.

«Apesar de inicialmente o governo proceder a esses pagamentos, o dinheiro

depressa se esgotou. Havia demasiados soldados mortos em combate. Mais

tarde, foi-me dito que os governos da Arábia Saudita e do Koweit haviam enviado

dinheiro para o pagamento das diyya. O Irão tornara-se seu inimigo, e tanto a

família Al-Sabah, do Koweit, como a família Al-Salud, da Arábia Saudita,

recompensavam os Iraquianos por manterem os Iranianos à distância.

«Quando entrei no palácio, o secretário conduziu-me ao gabinete de Hussain

Kamil, um homem que era na altura apenas um oficial subalterno, mas que mais

tarde se casaria com Raghad, a filha mais velha de Saddam, tornando-se um dos

assassinos de confiança do presidente. Tudo isso acabou quando Uday, o filho

mais velho de Saddam, ficou com inveja das grandes quantias de dinheiro que

Kamil desviava de vários projectos governamentais. Uday tornou-se o maior

inimigo do cunhado. Sabendo que Uday, que todas sabemos ser louco varrido,

acabaria por matá-lo, Kamil fugiu para a Jordânia e humilhou Saddam com a sua

deslealdade, revelando aos inimigos do Iraque tudo quanto sabia sobre o

programa de armamento iraquiano. Quando Saddam o convenceu a regressar,

assegurando-lhe que estaria a salvo, indo ao ponto de colocar

a mão no Alcorão e jurar que nunca faria mal ao pai dos seus netos, Kamil caiu na

cilada e, como é evidente, foi assassinado poucos dias depois de regressar.

«No dia em que estive com Kamil ele ainda não caíra nas graças, ou melhor, em

desgraça - Mayada riu-se, mas apressou-se a tapar a boca com a mão. - Tenho

de confessar que senti um ódio instantâneo por Kamil. Não por ser feio, baixo e ter

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um nariz comprido e torto que lhe tapava o bigode espesso. Senti uma enorme

repulsa quando fitei os seus olhos. Deixavam transparecer um enorme desprezo

por todos os que o rodeavam, incluindo eu.

«Contudo, cumpriu à risca o seu dever. E ali estava eu, juntamente com um poeta

e um músico que também iam receber prémios culturais.

«Ambos eram invulgares. O músico era um homem alto e moreno, cujos olhos

brilhavam de felicidade. Escrevera uma canção patriótica muito popular, com um

refrão apelativo, e Saddam recomendara que fosse tocada em todas as bases

militares. Os versos eram: "O terra, o teu solo é o meu kafour."1 Lembram-se

dessa canção?

Algumas mulheres-sombra acenaram afirmativamente. Sa-mara balouçou a

cabeça, enquanto trauteava baixinho algumas notas da canção.

- O poeta era o oposto do músico: baixo, escanzelado e com pele amarelada.

Escrevera um poema que celebrava a grandiosidade de Saddam e expressava o

amor que os Iraquianos sentiam pelo presidente.

«Fomos os três conduzidos para outra sala. Fui a primeira a ser chamada.

Quando deixei aqueles dois, estavam tão eufóricos com a perspectiva de estar

pela primeira vez na presença de Saddam que o músico desatara aos saltos,

entoando a plenos pulmões a sua canção, enquanto o poeta começara a declamar

os seus versos.

Samara soltou uma gargalhada e Mayada também se riu.

- Não sabem como fiquei aliviada quando deixei aqueles

' Quinze mil e quinhentos dólares.

1 Kafour: substância que os muçulmanos aspergem em volta das roupas de um

morto, antes de o enterrarem. ...

128

129

dois sozinhos. Mesmo assim, ainda podia ouvir as vozes deles a ecoar pelo longo

corredor que atravessei.

Todas as mulheres-sombra riram.

Concentrando-se na sua história, Mayada continuou.

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- Este encontro foi diferente dos anteriores. Quando cheguei junto de Saddam,

parecia preocupado. Eu conhecia o motivo da sua preocupação. A guerra contra o

Irão não estava a correr bem. Saddam subestimará Khomeini. Ainda sinto calafrios

quando penso que Khomeini usou crianças para limpar campos de minas. Como

podia o Iraque derrotar um tal adversário?

«Saddam felicitou-me pelo meu texto. Afirmou estar contente por eu ser uma livre

pensadora, acrescentando que não esperava menos da neta de Sati Al-Husri. O

seu discurso tornou-se mais acalorado quando me disse que, independentemente

do que os outros pensassem, o seu maior desejo era o de que os escritores

fossem diversificados, porque era isso que ele queria dar ao povo. Repetiu que os

meus artigos lhe agradavam e que a última coisa que desejava era que o

jornalismo usasse uniforme. Nunca me esquecerei que disse que os Iraquianos

precisavam de pensar em outras coisas para além da guerra, e que o sonho de

qualquer homem era ser amado por uma mulher que lhe fosse leal.

«Bom, fiquei tão admirada com o seu discurso sobre "liberdade" que mal

conseguia falar. Por fim, ele sorriu e anunciou: "Vamos tirar uma fotografia."

«Percebendo que ele estava com muita pressa e que queria despachar os seus

compromissos, repliquei que já era a orgulhosa proprietária de uma fotografia com

Sua Excelência e que não queria roubar-lhe muito tempo.

«Quando disse aquilo, ele riu-se pela primeira vez desde que eu entrara na sala, e

exclamou: "Então, façamos um álbum, e se continuar a escrever com tanto talento,

esse álbum será o seu futuro!" Tirada a fotografia, perguntou-me se havia algo em

particular de que eu precisasse, porque queria oferecer-me um presente especial.

Ele aparentava tão boa-disposição que lhe disse o que realmente queria: levar a

minha filha Fay a

130

Londres, para visitar a avó, que recuperava de uma operação. Saddam perguntou-

me se eu também queria levar o meu marido, Saiam, mas respondi que o meu

marido estava a combater na frente e que nunca me atreveria a afastá-lo do seu

dever, então, sem mais nem menos - Mayada estalou os dedos -, Saddam

anunciou que o meu desejo seria concedido. Penso que nunca tive uma surpresa

Page 116: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

tão grande em toda a minha vida. Como todas sabemos, os Iraquianos não podem

sair do Iraque em tempo de guerra a não ser em missões oficiais. Ali fiquei,

emudecida, enquanto ele telefonava ao secretário e lhe dava ordens para arranjar

bilhetes de avião para mim e para a minha filha. íamos a Londres. Foi então que

Saddam conseguiu surpreender-me ainda mais com uma segunda ordem: que me

dessem cinco mil e duzentos dinares para a viagem. Nunca esquecerei a

expressão do secretário. Eu não pertencia ao círculo íntimo de Saddam e o

homem não conseguiu ocultar o seu espanto por eu constituir uma excepção.

«Apesar do meu estilo agradar a Saddam, eu sabia que o meu parentesco com

Sati era o grande motivo para ser tão privilegiada. Ao abandonar o palácio, pensei

no respeito e admiração granjeados pelo meu avô junto de todos os iraquianos,

incluindo Saddam Hussein, e na forma como influenciava a minha vida de uma

maneira tão positiva. Agradeci ao meu Ji-do Sati, na esperança de que pudesse

ouvir-me.

«A partir desse dia, fiquei a saber que Saddam lia regularmente os meus artigos.

Em mil novecentos e oitenta e quatro, a Agência Noticiosa do Iraque em Londres

chamou a minha mãe, quando ela e eu visitávamos a Inglaterra, informando-a de

que o presidente Saddam Hussein elegera os meus artigos como os melhores de

mil novecentos e oitenta e três. Mas o que me admirou foi descobrir que os artigos

que mais haviam intrigado Saddam eram os que eu havia escrito sobre a

cartomancia. Havia-os redigido nos dias mais desesperados da guerra, quando a

previsão do futuro se tornara muito popular no Iraque. Os Iraquianos procuravam

soluções para os seus problemas, através de métodos muito pouco ortodoxos.

Também havia escrito um artigo sobre parapsicologia, como parte de um

programa oficial privado de Saddam; fora dirigido pela

131

Comissão Central de Vigilância das Publicações, que, embora fizesse parte do

Ministério da Informação, era na realidade um departamento completamente

autónomo.

«Certo dia, recebi um telefonema do palácio com uma mensagem informando-me

que Saddam queria fazer-me algumas perguntas acerca da minha investigação

Page 117: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

sobre parapsicologia. Dirigi-me ao palácio, esperando encontrá-lo bem-humorado,

mas estava ainda deprimido por causa da guerra com o Irão. Foi directamente ao

assunto. Disse-me que estava muito interessado em algo chamado percepção

extra-sensorial, e queria que eu efectuasse uma pesquisa especial para ele sobre

as experiências que algumas pessoas haviam tido fora do seu corpo. Por fim,

confidenciou-me que os Russos estavam a efectuar um excelente trabalho nesse

campo.

«Trabalhei o mais que pude na pesquisa e apresentei-a à comissão, mas nada

soube da reacção de Saddam, e depressa me esqueci do trabalho que havia feito.

Então, em mil novecentos e oitenta e seis, recebi uma mensagem da Federação

dos Jornalistas dizendo-me que o presidente Saddam Hussein ficara tão

impressionado com aquela minha pesquisa que me oferecera dois terrenos

situados numa área chamada Saydyia, em Bagdá. E acaba aqui a minha história

dos meus encontros com Saddam.

Não querendo que terminasse aquela manhã cheia de histórias, Samara

perguntou:

- E quanto à mulher de Saddam? Prometeste contar-nos mais coisas acerca dela.

Mayada acedeu ao pedido de Samara, mas nesse momento um guarda entrou de

rompante na cela. Esboçava um sorriso maquiavélico e, quando pronunciou o

nome de Samara, ela começou a chorar, por saber que ia ser levada de novo para

a sala de tortura.

Depois de Samara sair, as mulheres-sombra perderam toda e qualquer disposição

para ouvir mais histórias. Mayada levantou-se e sentou-se no beliche, enquanto as

outras mulheres regressavam lentamente às suas camas. Sentadas, esperaram,

porque sabiam que Samara precisaria da ajuda delas quando voltasse. Saber o

que estava a acontecer a Samara era tão de-

132

primente que Mayada depressa cedeu ao desespero. Algumas horas mais tarde, a

porta da cela abriu-se e o guarda empurrou Samara para dentro, que tropeçou e

caiu no chão como um fardo. Aos seus ténues gemidos, as mulheres-sombra

juntaram-se em torno dela. Mayada percebeu rapidamente que Samara sangrava

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do nariz e dos ouvidos e tinha os braços marcados por queimaduras de cigarros.

Não conseguiu conter as lágrimas ao baixar-se para ajudar Samara a levantar-se.

Por algum motivo, veio-Lhe à memória o rosto do pai. Sempre lhe ensinara a ser

afável, afirmando que, se ela não discutisse nem brigasse, nunca ninguém brigaria

com ela. Contudo, ao olhar para Samara, percebeu que o seu pai estava

profundamente enganado.

133

5

«Lady» Sajida, a mulher de Saddam

Ansiosas por ajudar Samara, duas ou três mulheres-sombra tentaram erguê-la,

mas não conseguiram e Samara escorregou, ficando estendida no chão. Mayada

também tentou ajudá-la; contudo, para grande surpresa sua, a visão turvou-se-lhe.

O braço de Samara pareceu-lhe, primeiro, minúsculo e distante, para depois

parecer muito grande e próximo. Abalada, Mayada apoiou-se à parede e deixou-

se ficar muito quieta. Sentia a frescura do cimento espesso no rosto e no corpo,

mas a escuridão toldava-lhe praticamente a visão. As mulheres-sombra não eram

mais que silhuetas indistintas, espirais de fumo prestes a desvanecer-se.

O alcance da visão de Mayada reduziu-se ainda mais, pelo que se voltou para a

parede procurando algum conforto. O cimento apresentava falhas e Mayada

reparou pela primeira vez nos pequenos entalhes da parede, sulcos finos feitos

por unhas. Recuou, apavorada, ao perceber que aquelas marcas pertenciam a

outros iraquianos, como ela desejosos de escapar ao inferno em que as suas

vidas se tornara. Mayada pousou as mãos nos pequenos sulcos e descobriu

horrorizada que os entalhes pareciam feitos à medida para os seus dedos. Quis

gritar e fugir, mas não havia lugar algum para onde fugir. Estava presa numa cela

minúscula com outras mulheres. Deixou-se deslizar pela parede, procurando

recobrar a calma. Nada podia fazer, mas ouvia as outras mulheres tentando ajudar

Samara.

Recordações de um dia distante sobrepuseram-se ao hediondo presente. Estava-

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se em 1982. O Dr. Fadil passara pela

134

casa de Salwa para devolver dois livros que levara da extensa biblioteca da mãe

de Mayada. Pouco depois de sair, Mayada ouvira retinir a campainha da porta.

Como a mãe se encontrasse no jardim das traseiras a ler um livro, Mayada fora

atender. A visitante, inesperadamente, era Um Sami, uma vizinha.

Ainda que as duas famílias vivessem próximo uma da outra, os contactos

limitavam-se a encontros fortuitos acompanhados de saudações cordiais. Nos

últimos tempos, Mayada e a mãe haviam tido oportunidade de falar acerca de Um

Sami, por ser uma mulher bastante forte quando a viram pela primeira vez mas se

apresentar agora bastante magra, passadas poucas semanas. Além disso, Um

Sami fora vista com alguma frequência a divagar pelo jardim, puxando o cabelo e

as vestes, sinais evidentes de luto. Uma semana antes desta inesperada aparição,

Mayada abordara-a, perguntando-lhe se algum familiar seu morrera; Um Sami

indicara-lhe com um aceno que a deixasse em paz, o que Mayada fizera.

Esperava agora descobrir a razão das lágrimas da pobre mulher.

Um Sami permaneceu na soleira da porta por alguns momentos, antes de

perguntar em tom febril:

- Foi o doutor Fadil que vi sair desta casa? O director da polícia secreta?

Mayada acenou afirmativamente, sabendo que qualquer iraquiano reconheceria o

Dr. Fadil, pois o seu retrato estava sempre a aparecer nos jornais e na televisão.

Percebendo que algo de terrível ocorrera na vida da vizinha, confirmou:

- Sim, era o doutor Fadil.

Um Sami precipitou-se para ela, exclamando:

- Tenho de saber o que aconteceu aos meus filhos! São gémeos, chamam-se

Ornar e Hassan, e têm catorze anos. Foram ao mercado comprar uma bola de

futebol e nunca mais regressaram!

Mayada encaminhou delicadamente Um Sami para a sala de estar.

- Sente-se, por favor - pediu-lhe. Um Sami continuava a falar.

- Procurámos por toda a parte. Fomos aos hospitais, às

135

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esquadras de polícia. Até aos cemitérios. Não encontrámos rasto deles. Nada.

Nada! Os meus queridos filhos desaparece-

ram.

Mayada apressou-se a oferecer a Um Sami um copo de água e sentou-se ao lado

da sua desesperada vizinha. Perscrutou o rosto da mulher e pegou-lhe nas mãos

trementes.

Um Sami bebeu um gole de água, depois do que colocou o copo com todo o

cuidado numa mesa a seu lado. Depois pigarreou e iniciou o seu relato.

- Hoje de manhã, o meu marido recebeu um telefonema anónimo de um homem

que afirmou ter estado numa das prisões da polícia secreta. Os meus filhos

encontravam-se na mesma cela e deram-lhe o nosso número de telefone. Do que

se recordava de lhe haverem contado, caminhavam pela rua quando dois homens

lhes saltaram para cima e começaram a bater, afirmando que eles os tinham

«fitado». Eram agentes da Mukhabarat. - Um Sami virou o rosto para Mayada,

exibindo o seu assombro. - Fitado? Desde quando fitar constitui um crime?

Mayada apertou-lhe as mãos e pediu:

- Continue, por favor.

Um Sami esbofeteou o próprio rosto e gritou:

- Os meus filhos são crianças. Andam a estudar e nunca se meteram em sarilhos!

Mayada sentiu náuseas ao lembrar-se de ver Ornar e Has-san a jogar à bola na

rua. Os gémeos eram bem-educados e simpáticos, sempre com um sorriso nos

lábios. Nunca deixavam de interromper o jogo assim que ouviam Mayada pôr o

carro em marcha. E agora estavam presos? Pelo «crime» de fitar? Tinha a certeza

de que tal coisa não era proibida por qualquer lei.

- Que posso fazer por eles? - perguntou.

Um Sami tinha no rosto uma expressão vaga e estranha, quando tocou com a

mão na face de Mayada.

- Sei que o doutor Fadil pode ajudar-me. Por favor, telefone-lhe. Peça-lhe que me

ajude a encontrar os meus meninos - Começou a bater no queixo e continuou: -

Sei que foram presos. O homem que nos telefonou descreveu-os correcta-

mente. Dois rapazes altos, esguios, com cabelo castanho. Ambos têm uma

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pequena mancha acastanhada na face. Quantos gémeos em Bagdá

correspondem a tal descrição? - Um Sami baixou o tom de voz, mas logo de

seguida voltou a elevá-lo. - O homem afirmou que eles foram torturados.

Torturados! Tenho de encontrá-los! - Um Sami voltou a esbofetear-se até Mayada

lhe pegar nas mãos e as segurar nas suas. Sabia que o mais prudente era não

fazer nada, mas não se sentia capaz de permanecer insensível ao desespero

daquela mulher.

- Vou contactar o doutor Fadil amanhã. Pedir-lhe-ei que descubra onde eles se

encontram. Se estiverem numa cadeia e cie conseguir descobrir em qual,

promoverá certamente a sua libertação.

Um Sami pôs-se de pé, num salto, e começou a beijar repetidamente as faces de

Mayada.

- Tinha a certeza de que podia contar com o seu auxílio!

Naquele momento, a atenção de ambas foi despertada pelo som de um televisor

que permanecera ligado. Havia começado o noticiário da tarde. No ecrã, uma

figura masculina sorria, enquanto por cima do seu ombro se projectavam imagens

de soldados e de efeitos pirotécnicos.

O homem começou a entoar um hino em louvor de Sad-dam, sempre repetido

antes de cada noticiário:

O Saddam, o vitorioso;

o Saddam, nosso idolatrado:

Trazes o alvorecer da nação

Sob o teu olhar.

Ó Saddam, contigo

Tudo é bom.

Alá! Alá! Sentimo-nos felizes

Porque Saddam ilumina as nossas vidas.

A imagem de Saddam Hussein repetia-se no ecrã. Primeiro, a acariciar as

cabeças de estudantes de cabelo encaracolado e negro, com os seus ondulantes

vestidos brancos; depois, debruçado sobre o parapeito de uma varanda acenando

a uma multidão que o aclamava com cânticos. A figura do apresenta-

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136

137

dor reapareceu e o homem continuou a exaltar a grandeza do presidente.

Mayada e Um Sami olharam para a imagem de Saddam no televisor e depois uma

para a outra. Nenhuma disse o que pensava, mas Mayada percebeu que a vizinha

encarava Saddam como a encarnação do Mal.

Durante anos, os Iraquianos haviam passado por uma série de angústias e de

esperanças, provenientes de sucessivos golpes e tentativas de golpe, o que

afastara o cidadão comum do interesse pelos governantes. Quando em 1968 o

Partido Baas retirou o poder ao governo então em funções, os Iraquianos julgaram

que o novo partido não era constituído por tiranos que haviam derrubado outros

tiranos e, a princípio, Saddam conseguira encantar o povo e despertar a sua

simpatia. Agora, porém, o véu que ocultara Saddam de olhares mais

perscrutadores ondulava por vezes, e os Iraquianos podiam vislumbrar

ocasionalmente o tirano por detrás dele.

Um Sami tentou esboçar um sorriso mas não conseguiu mais do que um esgar,

enquanto se dirigia para a porta repetindo:

- Eu disse ao meu marido que me ajudaria. Eu sabia que me ajudaria.

Na manhã seguinte, Mayada acordou cedo. Vestiu-se e foi para o emprego uma

hora antes do que era habitual, a fim de telefonar para o gabinete do Dr. Fadil e

expor-lhe o caso.

A princípio amistoso, o Dr. Fadil depressa demonstrou a sua irritação e, numa voz

fria e indiferente, disse-lhe:

- Mayada, eu preferia que não se metesse onde não é chamada.

Mayada insistiu, dizendo:

- Neste caso não posso. Um Sami está a ficar louca pelo desespero. Aqueles

rapazes só têm catorze anos. Eu pude ver a inocência brilhar nos seus olhos. Sei

que pode ajudá-los. Por favor...

O Dr. Fadil manteve-se em silêncio. Mayada podia imaginá-lo a mordiscar os

lábios, enquanto pensava no que fazer. Por fim, falou:

- Diga a Um Sami para se dirigir ao quartel-general da

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138

polícia, no Parque Al-Sadoon. Avise-a de que deve lá estar às dez da manhã de

amanhã. - Depois acrescentou: - Mayada, por favor, não volte a fazer isto. É

possível que os tais rapazes sejam assassinos ou contrabandistas. Como sabe, os

filhos são sempre inocentes aos olhos das mães.

Mayada desligou, sem responder, e largou o trabalho, para poder contar a Um

Sami a maravilhosa notícia: o Dr. Fadil ia ajudá-la a encontrar os filhos.

Passaram-se alguns dias, com Mayada à espera de boas novas acerca dos

rapazes. Quando o Dr. Fadil passou por sua casa para fazer algumas perguntas a

Salwa acerca de um dos livros de Sati, Mayada perguntou-lhe acerca da acusação

de «fitar», mas o Dr. Fadil respondeu-lhe com outra pergunta, em voz gélida:

- Acredita que os criminosos falam verdade? - E acrescentara rapidamente: -

Prefiro não discutir assuntos que me estão confiados fora do meu gabinete.

Pediu depois para falar com a mãe de Mayada e virou-lhe as costas para

examinar uma colecção de livros de Sati, empilhados numa mesa próxima. Os

seus modos desencorajaram Mayada de formular outras perguntas.

Sentiu-se tão desapontada com a sua falta de humanidade que saiu da sala tão

depressa quanto as regras de cortesia lho permitiram. Mais tarde, sozinha no seu

quarto, permitiu-se imaginar o momento em que Um Sami lhe bateria à porta

acompanhada pelos filhos. Ornar e Hassan voltariam a jogar à bola na rua e ela

saudá-los-ia de passagem quando se dirigisse para o trabalho. Sentia-se tão

revigorada com a ideia de que os gémeos seriam salvos que decidiu confeccionar

um bolo e oferecê-lo aos rapazes logo que voltassem para casa, para que eles

pudessem fazer uma pequena festa com os seus amigos.

Sem notícias durante vários dias, e impaciente por ver os garotos sãos e salvos

em casa dos pais, resolveu finalmente fazer uma visita aos vizinhos. Um Sami

veio abrir a porta e, ao ver o semblante de expectativa de Mayada, colocou o dedo

nos lábios para dar a entender que não era seguro conversarem dentro da casa e

conduziu Mayada para o jardim.

Enquanto seguia atrás da vizinha, Mayada apercebeu-se do

139

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estado de desmazelo em que a pobre mulher se deixara cair. As suas roupas

achavam-se bastante amarfanhadas, como se tivesse dormido com elas, tinha o

cabelo despenteado e os sapatos que calçava eram velhos e cambados.

Mayada soltou um suspiro e desviou a sua atenção para o jardim. Estava-se na

Primavera e nas árvores e nos arbustos desabrochavam flores. Um aroma

agradável espalhava-se no ar. Mayada tocou com a mão nas flores brancas que

pendiam de um tronco baixo e ficou a ver a chuva de pétalas que se soltaram,

indo cair sobre o carreiro estreito, levadas pela brisa. Quando chegaram ao canto

mais recuado do jardim, Um Sami olhou ansiosamente à sua volta, antes de

sussurrar a Mayada:

- Além dos gémeos, tenho mais dois filhos. Estão casados e vivem nas suas

próprias casas. Ameaçaram agir contra eles se eu falasse do caso com alguém,

mesmo consigo, que conhece o Dr. Fadil.

Num silêncio tenso, Mayada permaneceu ao lado de Um Sami, arrependida de ali

ter ido. Manteve-se ali, embora o seu maior desejo fosse correr para o seu

santuário, o seu quarto. Não desejava senão instalar-se num local familiar para

poder ler um livro de que gostasse e esquecer a crueldade do mundo em que

vivia. Humedeceu os lábios e encheu-se de coragem para ouvir o relato da

vizinha.

- Dirigi-me à recepção, como me foi ordenado - começou Um Sami. - Havia

centenas de pessoas à espera do lado de fora do portão, mas os nossos nomes

constavam da lista, pelo que nos deixaram entrar. Os guardas tratavam-nos com

ressentido respeito, porque o Dr. Fadil interviera no nosso caso. Conduziram-nos

para uma sala quadrada, ao fundo da qual uma porta larga dava acesso a uma

câmara frigorífica, suficientemente vasta para conter dúzias de corpos. Fiquei em

estado de choque porque fora ao Parque Al-Sadoon com a convicção de que iria

encontrar os meus filhos numa cela e poderia levá-los para casa comigo, mas o

meu estômago começou a dar voltas quando nos apresentaram uma lista de

nomes que estava dependurada numa parede ao lado da câmara frigorífica.

Disseram-nos que procurássemos os nomes deles; lemos toda a lista mas não

descobrimos os nomes de Ornar e Has-

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140

I

san. Fomos conduzidos para outra sala, onde um horrível odor fétido me fez

recuar; cobri a boca com a minha abaaya e forcei-me a entrar. Lá dentro havia

inúmeros cadáveres, e entre eles localizei imediatamente os dos meus filhos. Tal

como haviam passado a vida juntos, juntos continuavam também depois de

mortos. Ali estavam eles, naquele horrível lugar, lado a lado, sentados. Os lábios

de Um Sami tremeram ao continuar o relato. - Os meus queridos filhos haviam

sido horrivelmente torturados. Tinham os rostos, as mãos e os pés cobertos de

sangue enegrecido e eram bem visíveis as marcas de queimaduras.

«Soltei um grito, mas um guarda empurrou-me cruelmente para trás, berrando:

"Cala-te!" Fui obrigada a enfiar parte da minha abaaya na boca para abafar o meu

desespero.

«Enquanto o meu marido procedia à identificação dos corpos, não pude conter o

impulso de olhar à minha volta. Teria sido naquele local que eles haviam exalado

o último suspiro? Vi coisas que nenhuma mãe devia jamais ver. Vi um rapaz cujo

peito exibia a marca calcinada de um ferro eléctrico. Outro jovem tinha o peito

aberto, por lho haverem rasgado desde o pescoço até ao estômago, e a um

terceiro haviam cortado as pernas. Vi ainda um rapaz a quem tinham arrancado os

olhos; os globos oculares pendiam-lhe do rosto desfigurado.

«Disseram que nos devíamos dar por muito felizes! Felizes! Imagine! Tudo

porque, segundo referiram, haviam recebido ordens para que pudéssemos levar

os corpos connosco. Fora o Dr. Fadil que dera essa ordem. Recusaram-se a

explicar por que razão haviam eles sido presos, mas não pude deixar de

perguntar-lhes se "fitar" era agora um crime punido com a pena de morte.

Mandaram-me calar e acentuaram que devíamos enterrar os nossos filhos com a

máxima discrição e que não nos seria permitido contar fosse a quem fosse como

haviam morrido.

Numa espécie de espasmo súbito, Um Sami agarrou o braço de Mayada:

- Sem a sua ajuda, ainda continuaríamos à procura deles. Agradeço-lhe o que fez

por mim.

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Depois de olhar em volta, perscrutando as sombras, como

141

se acreditasse que havia um agente da Mukhabarat por trás de cada árvore

florida, Um Sami disse com veemência:

- Saia do Iraque, se puder. Se os meus pobres e inocentes filhos foram presos e

mortos, ninguém mais pode considerar-se a salvo.

Mayada abraçou a infeliz vizinha e depois retirou-se sem dizer palavra. Ficara tão

impressionada com a história da morte dos gémeos que a árvore de flores brancas

que tanto lhe havia agradado lhe parecia agora deprimente. Todas aquelas belas

árvores eram naquele momento outros tantos pilares ameaçadores, cujas longas

folhas se uniam para impedir a passagem dos redentores raios de sol. O ar que

respirava estava saturado de dor e desespero e estugou o passo, com pressa de

chegar ao fim do carreiro que a afastava do local mais lúgubre do mundo.

Ficara tão impressionada pelo triste relato de Um Sami que não contou a ninguém

o que ouvira, nem sequer à mãe, com quem habitualmente compartilhava as suas

confidências.

Pouco tempo depois, Um Sami e o marido venderam a casa e abandonaram

aquela zona. A sua ausência permitira-lhe reprimir a recordação daquele dia, até

ao momento em que a recuperou, na cela fria em que agora se encontrava.

A essa seguiram-se outras recordações outrora dispersas, que formavam agora

um quadro regular de encarceramento e morte de inocentes.

Fora em 1970. Uma colega de escola, chamada Sahar Sir-ri, estava a chorar. Era

amiga de Mayada, e pertencia a uma família proeminente do Iraque; o general

Mithat al-Haj Sirri, seu pai, era um dos comandantes do exército iraquiano.

Gozava de grande popularidade entre os soldados e Saddam - que já era o

verdadeiro governante do país, não obstante o título presidencial atribuído a Bakri

- convencera-se de que ele representava uma ameaça, pelo que ordenara que o

prendessem e torturassem. O pai de Sahar apareceu na televisão nacional,

confessando ser um espião ao serviço de Israel - invenção que não convencera

ninguém - mas de que resultava ter sido dependurado pelos pulsos e chicoteado

durante dias a fio. Depois daquela confissão, foi enforcado. Sahar, a sua amiga, já

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142

não tinha pai. Daí em diante, toda a família de Sahar foi perseguida, impedida de

viajar e alguns dos seus membros foram presos e interrogados. A própria Sahar

chegou a sofrer o mesmo tratamento e chegava por vezes à escola com os olhos

vermelhos de tanto chorar.

Um colega do jornal confidenciara certa vez a Mayada que as forças de segurança

recebiam prémios em dinheiro por prenderem iraquianos e promoções no aparelho

do partido se demonstrassem um zelo especial durante as sessões de tortura.

Depois de receberem dinheiro por efectuarem detenções, extorquiam avultadas

somas às famílias dos prisioneiros, em troca da promessa de os tratarem com

maior brandura. As famílias menos abastadas vendiam casas e automóveis e

arruinavam-se, na esperança de salvar um familiar. O colega de Mayada conhecia

uma família que ficara na penúria para salvar um filho inocent e de uma pena de

quinze anos de prisão. O mais que conseguira fora uma redução para oito anos.

Mayada examinou os rostos das mulheres que compartilhavam a cela superlotada

e imunda que era agora a sua casa. Desde o primeiro dia do seu encarceramento,

Mayada ficara chocada pelo regozijo que os guardas de Baladiyat demonstravam

por torturar mulheres inocentes e aterrorizadas. O desejo de obter dinheiro fresco

e promoções seria suficiente para explicar, por si só, a crueldade manifestada

pelos carrascos? Era matéria que dava muito que pensar. Mayada virou a cabeça

ao ouvir vozes. As mulheres-sombra falavam todas ao mesmo tempo, discutindo

entre si o que podiam fazer para socorrer Samara.

Mayada espreitou por cima do ombro de uma delas e olhou para a silhueta da

amiga. As pernas de Samara estavam torcidas, com os joelhos levantados, de

forma a tocarem no peito. Mayada inclinou-se mais e perscrutou o rosto de

Samara. Tinha os olhos fechados e o seu rosto, de traços finos, estava

desfigurado pela dor. Abrira a boca, procurando avidamente respirar melhor.

Mayada apercebeu-se de que Samara provavelmente ia morrer em Baladiyat,

rodeada por mulheres que nada sabiam a respeito da sua vida até poucos meses

antes, e, impressionada pela bondade de Samara, perguntou a si

143

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própria como é que alguém podia martirizar deliberadamente aquela mulher tão

doce e bela, cujo coração transbordava de ternura.

Todas as mulheres-sombra se haviam reunido em volta de Samara. As mãos

delas pegaram no corpo ferido, segurando a companheira pelas costas, pelos

ombros e pelo peito. Conseguiram assim erguê-la e levá-la até ao minguado

conforto do seu beliche. Os pés e as pernas de Samara arrastaram-se pelo chão e

ela gemeu debilmente quando a depositaram, com todo o cuidado, sobre a cama.

Uma mulher chamada Dr.a Sabah, de que Mayada apenas sabia que se licenciara

em Engenharia, dirigiu-se ao único lavatório da cela e molhou uma ponta da sua

longa saia azul. Depois voltou para junto de Samara e humedeceu-lhe a testa e os

lábios. A voz gentil da mulher contrastava com a cólera que lhe dardejava dos

olhos.

- Habibti1, tenta pensar. Achas que tens alguma lesão interna?

Samara chorou baixinho, sem responder.

Querendo ajudar a amiga mas sem ter a certeza do que devia fazer, Mayada

aproximou-se de Samara e limpou-lhe o rosto com as mãos. Ansiava por aliviar o

desespero e a dor da companheira de cela.

- Samara! - sussurrou. - Samara!

A Dr.a Sabah olhou para Mayada e, contristada, abanou a cabeça, murmurando:

- A pobre infeliz já foi torturada muitas vezes, mais vezes do que nós todas juntas.

Mayada tomou a cabeça de Samara entre as mãos, limpou-lhe a saliva dos lábios

e do queixo e, em voz mais alta, perguntou:

- Samara, consegues ouvir-me?

A jovem Muna, de rosto meigo, deu palmadinhas nas mãos de Samara.

- Diz-nos o que podemos fazer por ti, habibti. Por favor... Queremos ajudar-te.

' Habibti: «minha querida».

Mayada permaneceu de pé, com o coração destroçado. A desoladora verdade era

que todos os prisioneiros de Bala-diyat acabavam sempre por ser torturados, mais

cedo ou mais tarde. Mayada estremeceu, ao pensar que em breve também ela se

veria confrontada com os ganchos do tecto, os tornos para os pés e os choques

eléctricos. No entanto, nada podia fazer quanto a isso, pelo que voltou a

Page 129: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

concentrar o espírito em Samara e nas outras mulheres-sombra que a rodeavam.

Individualmente, cada uma delas achava-se indefesa perante os homens cruéis

que mandavam em Baladiyat, mas todas juntas convertiam-se numa grande força

reconfortante, cujo amor, carinho e devoção mostravam ser tão fortes que podiam

evitar a travessia da porta preta que conduzia à morte.

Samara gemeu baixinho e retirou a mão da de Muna, colocando-a sobre o peito e

o estômago, enquanto dizia:

- O guarda gordo das botas pesadas agrediu-me com pontapés. Senti alguma

coisa dar de si dentro do meu corpo.

A Dr.a Sabah e Muna trocaram olhares ansiosos.

- Sei quem é - resmungou Muna. - Aquele homem é uma autêntica besta.

Mayada sabia que lhes era possível aliviar ferimentos externos com massagens

nas zonas afectadas ou queimaduras de cigarros com água fria, mas que não

dispunham de quaisquer meios para tratar lesões internas.

- Não acham que devíamos chamar os guardas? - murmurou Mayada. - Eles

podem levá-la para o hospital.

Lembrava-se do afável Dr. Hameed na sua primeira noite em Baladiyat, e sabia

que o bondoso médico trataria de Samara se pudesse fazê-lo.

A Dr.a Sabah fechou os olhos e abanou a cabeça.

- Ainda não. Só os chamamos quando alguma de nós está em risco de vida. Se os

chamássemos sempre depois de cada tortura, acabariam por nos espancar a

todas.

Mayada acenou, indicando compreensão. Até então, não encontrara o mínimo de

paciência ou de compreensão em qualquer dos guardas de Baladiyat. A Dr.a

Sabah e Muna desapertaram a roupa de Samara para tentar descobrir sinais de

algum ferimento grave, enquanto Mayada permanecia de pé, sem se mexer, a

observar.

144

145

Samara gemeu de novo, e Mayada reparou na pele alva e no cabelo em desalinho

da amiga, antes de se fixar nos seus olhos, agora escurecidos e imóveis. Sentiu a

Page 130: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

dor de Samara tão nitidamente como se tivesse sido ao seu próprio corpo que os

guardas haviam infligido queimaduras de cigarros, pontapés no ventre e choques

eléctricos. Enquanto fitava o rosto angustiado da companheira de cela, chegaram

até ela, vindos da cultura do seu passado, excertos de um poema há muito

esquecido do inglês Thomas Gray:

A cada um o seu sofrimento. v

Todos são homens condenados iv

A gemer por igual. '

A compaixão pela dor alheia,

O esquecimento da própria.

Porque haviam de conhecer o seu destino,

Se a tristeza nunca vem demasiado tarde,

E a felicidade se desvanece tão rapidamente?

Apercebeu-se de que a Dr.a Sabah a fitava com os seus olhos encovados e

negros. A mente de Mayada ficou subitamente vazia, pelo que perguntou a si

própria o que fizera para atrair a atenção inquisidora da engenheira.

Muna sorriu perante o ar espantado de Mayada.

- Estavas a recitar poesia - disse a Mayada -, dizendo algumas palavras em inglês

e outras em árabe. Era fascinante. Quem escreveu esse poema?

- Nem sequer me lembro de o haver recitado em voz alta - confessou Mayada,

atónita e convencida de que a falta

de oxigénio naquela pequena cela estava a afectar-lhe a capacidade de raciocínio.

Esboçou um sorriso e explicou:

- Este ar viciado perturba-me o cérebro. Não sei porquê

mas nem me dou conta do que faço.

- Creio que recuaste no tempo - alvitrou Muna, a tristeza invadindo-lhe o rosto. -

Disseste que a felicidade se desvanece rapidamente, mas a felicidade é algo de

que já nem consigo recordar-me.

Samara voltou a gemer e murmurou penosamente:

- Desta vez, julguei que morria.

Mayada voltou-se e pediu a uma das mulheres que trouxesse um copo de água.

Page 131: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Várias prisioneiras se moveram simultaneamente. Aliya pegou num copo,

enquanto Iman foi buscar o jarro de água.

Mayada encostou o copo aos lábios de Samara e disse-lhe:

- Bebe.

As mãos de Samara tremiam-lhe, enquanto levava o copo à boca.

- Obrigada, querida amiga.

Aliviadas pelo facto de Samara conseguir falar, as mulheres-sombra voltaram a

juntar-se em seu redor e a Dr.a Sabah comunicou-lhe:

- Examinei todo o teu corpo, com muita atenção, e não notei nada que ponha em

risco a tua vida. No entanto, devemos manter-nos vigilantes. - Tocou no ombro da

companheira e concluiu: - Pregaste-nos um grande susto. Agora, vais ficar deitada

durante uns dias.

- Se eles deixarem - sussurrou Samara. - Estão cada vez mais violentos.

Depois, olhou para Mayada e fez um gesto com a cabeça.

- Ouvi o poema. - Fez uma pausa e concluiu: - Também eu conheço um poema.

Mayada inclinou-se para ela e recomendou:

- Não desperdices energias.

- Embora não possa mexer-me, consigo falar. - Com um sorriso, Samara fechou

os olhos e murmurou: - Na última prisão em que estive, havia um poema escrito

na parede. Uma pobre mulher, anónima e martirizada, morrera ali. Com o

propósito de que um pouco dela continuasse vivo, decorei o poema e recito-o para

mim própria todos os dias.

- Fala-nos dele mais tarde - aconselhou a Dr.a Sabah.

- Não. Deixem-me recitá-lo para vocês, por favor. Mayada olhou para a Dr.a

Sabah, que acedeu.

- Está bem, mas não te canses.

O rosto e o corpo de Samara contorceram-se e, com voz vacilante, compartilhou

com as companheiras o poema que Itão decididamente havia decorado:

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Tiraram-me de minha casa

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Esbofetearam-me, quando gritei pelos meus filhos

Fecharam-me numa prisão

Acusaram-me de crimes que não cometi

Interrogaram-me sobre factos que eu não conhecia

Torturaram-me com as suas mãos cruéis

Apagaram cigarros na minha carne

Cortaram-me a língua

Violaram-me

Cortaram-me os seios,

Chorei, sozinha, de dor e de medo

Condenaram-me a morrer

Encostaram-me à parede

Implorei misericórdia

Deram-me um tiro entre os olhos

Atiraram o meu corpo para uma cova rasa,

Enterraram-me sem mortalha

Depois de me matarem

Descobriram que eu estava inocente.

Enquanto permanecia de pé, como as outras mulheres-sombra, Mayada disse a si

própria que estava a viver um dos maiores momentos da sua vida e que era seu

dever jamais esquecer uma só das palavras que ouvira da boca de Samara. Cada

uma delas, cada um dos movimentos dos seus lábios iria fazer parte de si própria

até ao dia em que morresse.

Chorou em silêncio, e pouco depois todas as mulheres-sombra choravam com ela.

Mayada olhou em volta e as suas palavras quebraram a tristeza que pesava sobre

todas as suas companheiras.

- Somos companheiras de lágrimas - comentou, e algumas das mulheres-sombra

sorriram por entre as lágrimas.

Samara estendeu a mão e tocou no braço de Mayada.

- Porque não nos falas da mulher de Saddam? Prometeste contar-nos mais coisas

acerca dela.

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- Noutra ocasião - sugeriu Mayada, que não sentia a mínima disposição para

contar histórias, muito menos acerca de Saddam Hussein.

148

- A espera, o medo e o silêncio geram neste lugar um tédio que ameaça eternizar-

se. Mayada, os teus relatos são como uma arca a abarrotar de fotografias raras e

interessantes - disse a Dr.a Sabah, com um sorriso.

Samara não desistia.

- A doutora Sabah tem razão. O tédio é uma constante das nossas vidas, aqui

nesta cela. Agora que sinto a pele a arder, se partilhares as tuas histórias

connosco o meu espírito será desviado para coisas mais amenas.

Mayada acabou por aceder. Não podia recusar a Samara fosse o que fosse. As

mulheres-sombra instalaram-se em vários recantos da cela minúscula. Wafae

desfiava as contas de oração, enquanto todos os olhos se fixavam em Mayada,

com grande expectativa.

Mayada dobrou a manta que lhe haviam entregado até formar um quadrado

espesso. Colocou aquele improvisado assento no solo, em frente do beliche de

Samara. Nunca se acostumaria a sentar-se num chão de cimento. Sentou-se na

manta e cruzou as pernas. A sua voz assumiu um tom vago, quando começou a

falar.

- A minha mãe nunca se teria cruzado com a mulher de Saddam se ela e o meu

pai tivessem fugido do país em mil novecentos e sessenta e oito. Toda a gente se

admirou por os meus pais permanecerem em Bagdá depois de o Partido Baas se

apossar do poder naquele ano. Recordados da forma como os seus membros

haviam molestado os intelectuais durante a fugaz passagem do partido pelo

governo em mil novecentos e sessenta e três, todos os nossos familiares, quer do

lado da minha mãe quer do meu pai, partiram para um exílio seguro em mil

novecentos e sessenta e oito, quando o Partido Baas tomou pela segunda vez as

rédeas do país. Mas a luta que o meu pai travava contra o cancro reteve-nos em

Bagdá, onde ele estava a ser submetido a tratamento médico. Depois da sua

morte, em mil novecentos e setenta e quatro, os nossos familiares aconselharam a

minha mãe a sair do Iraque, mas ela decidiu ficar. Creio que se encontrava ainda

Page 134: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

em estado de choque pela morte do marido e o certo é que teimou em que aquele

não era o momento adequado para tomar decisões im-

: 149

portantes. Na altura, era uma das directoras do Ministério da Informação, adorava

a nossa casa, tinha bons amigos em todo o país e eu e a minha irmã

frequentávamos um colégio de Bagdá. Além disso, sempre se mostrou confiante

em que podia viver tranquilamente no Iraque, apesar de saber que os dirigentes

do Partido Baas não viam com bons olhos os intelectuais. A minha mãe ouviu por

mais de uma vez da boca de altos membros do partido que Saddam tinha tão

grande admiração por Sati que a sua filha e as suas netas estavam sempre a

salvo enquanto ele governasse. Por isso resolveu ficar, esperando que tudo

corresse pelo melhor, e o certo é que conseguiu levar uma vida desafogada e sem

preocupações, pelo menos durante os primeiros anos.

«Manteve-me a seu lado até chegar o momento de ir para a faculdade. Dando

satisfação aos desejos que o meu pai expressara, fui para o Líbano, a fim de

frequentar a Universidade Americana, em Beirute. Por essa razão, não me

encontrava em Bagdá quando a minha mãe se encontrou pela primeira vez com

Sajida, mulher de Saddam e mãe dos seus cinco filhos.

«Viemos a saber mais tarde que o próprio Saddam aconselhara Sajida a tornar-se

amiga da minha mãe, para dela obter conselhos sobre a vida em sociedade. Por

isso, a minha mãe recebeu muitos convites para se apresentar no palácio

presidencial, mas, em regra, estava demasiado ocupada para os aceitar. - Mayada

gracejou: - Felizmente, isso aconteceu antes da época em que a recusa de tais

convites passou a ser motivo para tortura e encarceramento. - Ao passar o olhar

pela cela onde se encontrava a contar histórias da sua mãe, a sua voz adquiriu um

tom mais emocionado. - O mais leve odor desta cela bastaria para Salwa Al-Husri

cair morta.

«A minha mãe foi visitar-me a Beirute depois de receber novo convite do palácio

presidencial. Sajida mostrara interesse em que estivesse presente numa reunião

com mulheres de embaixadores. Como no dia marcado não tinha outros

compromissos, acedera.

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«Eu tinha curiosidade em saber coisas acerca da mulher de Saddam e pedi-lhe

que não omitisse qualquer pormenor. -

150

Sem se dar conta, Mayada sorriu. - Não podia haver duas mulheres mais

diferentes uma da outra do que a minha mãe e Sajida Khayrallah Tilfah. O seu

encontro estava desde o início condenado ao malogro.

«Como sabem, a minha mãe levara uma vida muito pouco usual para uma mulher

árabe. Era licenciada em Ciências Políticas e chegara a frequentar a Universidade

de Oxford, em Inglaterra, para continuar os estudos. A sua avó era sultana, ou

princesa, fazendo parte da família real otomana, e o pai, Sati, era um dos homens

mais admirados no mundo árabe, que colocava o saber e a educação acima de

todas as coisas deste mundo. Jido Sati dispusera de residências em muitas

regiões árabes e, por isso, ele e a família viajavam constantemente. Desde o

tempo em que, ainda criança, se sentava nos joelhos do pai, a minha mãe estava

habituada a conversar com reis e primeiros-ministros. Foi tão estimada pelo rei

Ghazi, filho do rei Faiçal I, que ele tinha um retrato dela na sua secretária, ao lado

da fotografia do filho.

«Sajida, mulher de Saddam, era filha de um camponês, Khayrallah Tilfah. Cresceu

na casa do pai, na margem ocidental do rio Tigre, num bairro de gente pobre em

Tikrit. Recebeu uma educação que não podia comparar-se com a da minha mãe e

pouco ou nada conhecia do mundo, para além de Tikrit e Bagdá. Muito nova

ainda, casou-se com Saddam Hussein, sobrinho de seu pai, e, em poucos anos,

foi mãe de cinco filhos. Quando Saddam se apossou do poder, Sajida não estava

preparada para a sua nova posição de mulher do presidente do Iraque.

Mayada puxou uma das pontas da manta para tapar os tornozelos nus.

- Mais tarde, a minha mãe contou-me que detestava Sajida Tilfah. Não fiquei

surpreendida quando me disse que a antipatia era recíproca.

«Perguntei-lhe como era Sajida ao vivo. Embora tivesse visto algumas fotografias

dela nos jornais, sempre considerei difícil conhecer a verdadeira aparência de uma

pessoa através de retratos. A minha mãe disse-me que a sua primeira impressão

de Sajida fora a de que parecia um palhaço. Tinha o rosto

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151

coberto por uma espessa camada de maquilhagem e, quando a vira, julgara que

alguém lhe havia atirado farinha à cara. A tez de Sajida era cor de azeitona, o que

poderia torná-la atraente, não fora o seu desejo de aparentar um tom de pele

muito mais claro. Além disso, pintara o cabelo por diversas vezes, até torná-lo

amarelo e quebradiço.

«A minha mãe disse-me que sentira pena dela durante cerca de cinco minutos, até

ver a maneira como gritava com os criados e os maltratava, altura em que a

simpatia inicial se desvanecera.

«Depois da recepção, Sajida contou à minha mãe que pretendia comprar peças de

prata antigas, e que o marido afirmara que Salwa era a pessoa indicada para

reconhecer as melhores e mais bem trabalhadas. Recomendara-lhe que

convidasse a minha mãe a acompanhá-la nas suas visitas às lojas. Pensando que

se tratava de uma pessoa que precisava de encaminhamento na vida social, a

minha mãe aceitou o convite, embora rapidamente se arrependesse de o ter feito.

Quando ficaram sozinhas, Sajida apalpou o casaco de peles da minha mãe e

perguntou se as peles eram verdadeiras; depois, pegou-lhe na mão e fez rodar o

seu anel de esmeraldas, tendo o descaramento de perguntar se não se tratava de

uma imitação. A minha mãe quase explodiu, tão exasperada ficou, porque não é

mulher que use peles falsas ou imitações de pedras preciosas. Sentiu-se ofendida

e ficou furiosa. Ainda tentou pensar numa razão plausível para voltar com a

palavra atrás e anular a planeada ida às lojas, mas compreendeu que não havia

forma de fugir ao compromisso. Assim, acompanhou Sajida na sua visita a um

antiquário, embora me tivesse confiado que se sentira envergonhada por ser vista

na companhia de uma mulher tão inculta e malcriada. Acabou por perguntar a si

própria por que razão fora convidada, uma vez que aquela imbecil não lhe pediu

qualquer conselho, antes percorreu a loja agarrando de passagem no mais

espalhafatoso que encontrava. A seguir, ainda humilhou mais a minha mãe ao sair

sem pagar, dizendo ao atónito comerciante que alguém do palácio ali iria dentro

de pouco tempo para tratar da conta.

«A minha mãe veio a saber mais tarde que todos os lojistas

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152

de Bagdá receavam ver Sajida entrar nos seus estabelecimentos. Na realidade, se

um comerciante fosse prevenido de que Sajida vinha a caminho, apressava-se a

fechar a porta, pretextando uma qualquer emergência familiar. Era bem sabido

que, não obstante a sua fortuna, no fundo extorquida ao povo iraquiano, Sajida

nunca pagava o preço das coisas e, na maioria dos casos, nem preço algum. Os

donos de algumas lojas tiveram de abandonar o negócio, depois da sua visita.

Mas a quem podiam queixar-se? Seriam mortos se ousassem dar a entender que

a mulher de Saddam não passava de uma vulgar ladra.

«Depois de entrarem no carro, de regresso ao palácio, Sajida começou a falar em

voz alta de uma questão que a opunha a uma iraquiana chamada Sara,

pertencente a uma família da velha aristocracia cristã do Iraque. Sara fora havia

anos viver para Paris, onde Sajida a visitara, sempre que fora à capital francesa.

Da última vez pedira-lhe um «pequeno favor» para a sua irmã, casada com

Barzan Al-Tikriti, meio-irmão de Saddam. A irmã de Sajida pretendia ir a Paris por

seis dias. Enquanto estivesse na cidade, precisava de uma pequena ajuda,

declarara Sajida. Queria alongar as pestanas uns dois centímetros e meio e

estreitar as ancas cerca de doze centímetros. Queria ainda visitar a De Beers para

comprar alguns diamantes sem defeito a preço razoável.

«Sajida não acreditou em Sara quando esta lhe explicou que nunca ouvira falar de

qualquer método para alongar pestanas. E, acrescentou ainda Sara, o único

processo para tirar doze centímetros às ancas implicava uma intervenção

cirúrgica, cuja convalescença levaria certamente mais de seis dias. Por fim,

informou Sajida de que a De Beers se dedicava ao comércio por grosso e não

vendia a retalho. Sajida julgou que Sara estava a mentir e que apenas não queria

ajudá-la. Sabia bem que uma pessoa que residisse em França podia obter tudo o

que pretendesse, desde que tivesse dinheiro, e a sua irmã, confidenciou à minha

mãe, aliás desnecessariamente, tinha ao seu dispor toda a riqueza do Iraque.

«Sajida explicou por fim que ia fazer com que Sara caísse numa armadilha,

levando-a a visitar o Iraque por forma a que, quando tal acontecesse, pudesse

mandar encerrá-la numa prisão.

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153

«A minha mãe ficou parva. Tal como Sati, acreditava que as pessoas estúpidas

são sempre perigosas. Murmurou a Sajida qualquer coisa em resposta à história

desta, afirmando não fazer ideia das potencialidades da medicina moderna, pelo

que não era a pessoa indicada para se pronunciar sobre os argumentos de Sara.

Isso enfureceu claramente Sajida, que se afastou para um dos lados do automóvel

e não voltou a falar.

«A minha mãe conhecia Sara, e telefonou-lhe de imediato, prevenindo-a para não

voltar ao Iraque - acrescentou Mayada, dirigindo-se às mulheres-sombra.

A Dr.a Sabah resmungou:

- Meu Deus! Não fazia ideia que Sajida fosse tão desagradável.

- Mas é, disso não restam dúvidas - confirmou Mayada, continuando a narrar

outras recordações acerca da primeira mulher de Saddam. - Na verdade, não

passa de uma ladra - sublinhou. - Alguma de entre vós se lembra do que

aconteceu em mil novecentos e oitenta e três, quando Saddam afirmou que todas

as famílias iraquianas tinham de oferecer ouro para suportar as despesas com o

exército na guerra contra o Irão?

Algumas das suas companheiras acenaram afirmativamente e uma delas, uma

mulher mais idosa, comentou, em voz baixa:

- Eu não possuía nenhum objecto de ouro. O meu marido estava na frente de

combate e não consegui arranjar dinheiro bastante para comprar sequer o mais

pequeno adorno de ouro. Fui obrigada a vender o fogão e, a partir daquela altura,

passei a confeccionar as refeições numa fogueira, no exterior da casa.

Ao ouvir aquelas palavras, Mayada sentiu um aperto no coração, porque sabia

que os donativos não haviam passado de uma fraude e que o ouro nunca chegara

ao seu proclamado destino.

- Vou contar-lhes a verdadeira história dessa decisão do presidente. A mulher de

um dos ministros era amiga íntima da nossa família. Chamava-se doutora Lamya

e estava casada com o doutor Sadoun Hammadi, que foi primeiro-ministro durante

um curto período, em mil novecentos e noventa e

154

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um, mas cedo foi demitido porque era demasiado honesto para ser bem-sucedido

no governo corrupto de Saddam. A doutora Lamya não era uma mulher

gananciosa e, na verdade, só possuía um conjunto de jóias mais caras: uma bela

colecção de objectos de ouro com safiras que era composto por um colar, brincos,

uma pulseira e um anel. Fora a prenda de casamento do marido, mas ele obrigou-

a a doá-los para suportar a causa nacional na luta contra o Irão. Segundo nos

contou, chorou durante uma semana, antes de se ver forçada a separar-se das

jóias que tanto estimava.

«Pois bem; passado um ano, a doutora Lamya foi convidada para uma festa em

que participaria a mulher de Saddam e mal pôde acreditar nos seus olhos, quando

viu Sajida entrar na sala ostentando o seu precioso conjunto de belas jóias,

exactamente as mesmas que havia oferecido para auxiliar os jovens soldados do

exército iraquiano e que, em vez disso, se encontravam agora no pescoço e no

pulso de Sajida. Ficou tão atónita que não conseguiu dar um passo; no seu

pasmo, manteve-se pregada ao chão olhando esgazeada a mulher do presidente.

Sajida apercebeu-se do seu olhar e ordenou a um dos guardas que fosse gritar

com a doutora Lamya para que afastasse os olhos da «Lady», como ela exige que

a tratem.

- Que rica «Lady» - comentou a Dr.a Sabah, não podendo conter a sua raiva.

- Sabendo que o seu sacrifício fora em vão, a doutora Lamya correu para casa e

foi queixar-se ao marido. O doutor Hammadi recomendou-lhe que se calasse; uma

queixa não traria as jóias de volta mas de certeza atirá-los-ia a ambos para uma

prisão. Disse depois o que toda a gente sabia: Sajida Til-fah tinha olhos tão

invejosos que não ficariam satisfeitos enquanto não fossem tapados pela terra da

sepultura.

«E não é tudo. A cobiça de Sajida era de tal forma insaciável que deu ordens para

que todas as jóias roubadas aos Ko-weitianos durante a Guerra do Golfo fossem

levadas para o palácio. Carradas de jóias e de pedras preciosas foram

transportadas em camiões e depositadas directamente nas suas mãos. Todas as

jóias das famílias ricas do Koweit encontram-se agora no palácio da mulher do

presidente.

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155

«Há um episódio curioso que nunca esquecerei. Alguns criados do palácio

confidenciaram que Sajida chegou a ter uma séria discussão com o seu segundo

filho, Qusay, a propósito dos tesouros do Koweit. Qusay apreciou em particular um

conjunto de diamantes e disse à mãe que ia oferecê-los à sua mulher, mas Sajida

ordenou-lhe que saísse imediatamente do palácio. Ela queria tudo para si própria!

Mayada esboçou um largo sorriso e continuou:

-Alguns desses criados comentaram mais tarde que ver Sajida em correria pelas

salas do palácio levando nas mãos recipientes a abarrotar de jóias fora um dos

espectáculos mais ridículos a que jamais haviam assistido. Aquela mulher

gananciosa escondeu uma imensidão de jóias valiosas em diversos recantos do

palácio e avisou os criados de que mandaria cortar a língua àqueles que se

atrevessem a divulgar a localização dos esconderijos até mesmo aos seus

próprios filhos.

Iman emitiu um som gutural de repulsa e comentou:

- Estou enojada! Nós, iraquianos, morríamos à fome e ela com mãos-cheias de

pérolas e diamantes!

Fez uma profunda e irónica reverência e começou a imitar uma dama a abanar o

leque. Era óbvio que Iman não mais seria uma cega defensora de Sajida, a mulher

de Saddam.

A cela encheu-se de gargalhadas mal contidas.

Outras recordações enterradas na memória de Mayada afloravam agora à

superfície.

-Apesar de tudo, era capaz de admitir mais facilmente a sua cobiça do que a sua

crueldade - continuou. - Ela é incrivelmente dura para com a criadagem.

A religiosa Roula virou-se e fitou Mayada.

- Isso não me surpreende. A cobiça anda sempre de mãos dadas com a

crueldade.

Mayada concordou.

- Houve um episódio que me impressionou particularmente. Diz respeito a uma

pobre rapariga cristã chamada Rosa, da família da ama de Haia - Mayada

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explicou. - Como sabem, Haia é a filha mais nova de Sajida e Saddam e o único

dos seus descendentes que não nasceu com um coração pervertido. É sabido que

costuma escapulir-se às escondidas de

Sajida para prestar assistência aos pobres infelizes que despertam a ira da mãe.

Haia preocupa-se verdadeiramente com os Iraquianos, ao contrário do que sucede

com os restantes membros da família. Sabe-se que chegou a tirar dinheiro aos

pais para o distribuir pelos pobres. A familiar de Rosa julgou que a rapariga seria

uma boa companhia para Haia, que, segundo contou, em regra ficava sozinha no

palácio. Quando Haia estava na escola, Rosa desempenhava funções de criada

do palácio. Certo dia, disseram-lhe que fosse aspirar o soalho do enorme quarto

de Sajida. A meio da tarefa, ouviu um ruído metálico no interior do tubo do

aspirador. Desligou-o e examinou o conteúdo do saco. Para sua grande surpresa,

encontrou um magnífico anel de diamantes no meio do lixo.

«Rosa levou-o à governanta, que, por sua vez, o entregou a Sajida; esta mostrou-

se tão contente que resolveu oferecer o anel a Rosa como recompensa. Seria

uma boa lição para o resto da criadagem, entre quem declarou, havia muitos

ladrões. «Rosa ficou radiante com a sua boa sorte. Depois de acabar o trabalho

desse dia, correu para casa e deu o anel aos pais; estes foram a um ourives e

venderam a jóia. Com o dinheiro obtido, foram ao mercado e compraram algumas

iguarias; pagaram contas atrasadas e conseguiram até adquirir rou-

pas decentes e algumas peças de mobília. Com o resto do dinheiro

encomendaram obras de reparação da casa em que viviam e que se encontrava

em mísero estado.

«Pois bem; algumas semanas mais tarde, Sajida mandou chamar Rosa e

perguntou-lhe pelo anel. Disse-lhe que julgava tratar-se de um anel de vidro, pelo

que o dera a Rosa. Como entretanto descobrira que o anel tinha um diamante raro

com tonalidades azuis e brancas, exigia que Rosa o restituísse ime-

diatamente.

«Rosa quase desmaiou. Contou à patroa que, como na sua

família ninguém precisava de um tal anel, este fora vendido no próprio dia em que

Sajida lho dera.

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«Sajida desatou aos berros, praguejando e ameaçando demolir a casa de Rosa se

o anel não fosse devolvido no dia seguinte.

«Rosa correu para casa e contou aos pais aquela inesperada

156

157

mudança de atitude da patroa. Dirigiram-se ao ourives para tentar obter a

restituição do anel, que lhe disse que o anel fora vendido a uma senhora nesse

mesmo dia. A compradora pagara em dinheiro e não deixara qualquer indicação

do seu nome ou morada.

«A pobre Rosa, no dia seguinte, teve de enfrentar a patroa, confessando-lhe que o

anel desaparecera para sempre e explicando que a família não dispunha de meios

de reembolsar o preço de uma jóia tão valiosa.

«Sajida pôs-se de pé de um salto, e, praguejando, agrediu a rapariga. Sajida já

esqueceu as dificuldades por que passou na juventude e não faz ideia da pobreza

em que vivem os Iraquianos; por isso, recusou-se a acreditar que a família de

Rosa vendera o anel para comprar roupas e comida. Acusou a rapariga de querer

guardar o anel para si própria e chamou os guardas, enquanto andava furiosa

para trás e para a frente. Depois, agarrou o cabelo comprido e negro de Rosa, de

que a rapariga tanto se orgulhava e ordenou aos guardas que lho rapassem. A

pobre criada desatou aos gritos, à beira da histeria.

«Como Rosa protestava e lutava com os guardas que lhe estavam a rapar o

cabelo, Sajida exigiu que ela fosse chicoteada. Os guardas obedeceram e

chicotearam as costas de Rosa até as deixar em carne viva. Sajida estava por

esta altura com-pletamente fora de si, e deu ordens para que lhe trouxessem um

ferro de engomar. Ligaram o ferro à tomada e Sajida ordenou aos guardas que

obrigassem Rosa a espalmar as mãos no chão e as passassem a ferro. Os gritos

de Rosa enfureceram Sajida ainda mais, levando-a a dizer aos guardas que

calcassem o ferro sobre as mãos e os dedos da rapariga o mais que pudessem.

As mãos da infeliz criada ficaram horrivelmente queimadas. Sajida soltou uma

gargalhada e disse a Rosa que podia agora devolver o anel, porque os seus

dedos estavam de tal maneira desfigurados que decerto não conseguiria usá-lo.

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«Rosa foi então expulsa do palácio. Vagueou pelas ruas, com o cabelo rapado, as

costas em carne viva e as mãos queimadas, até que um bondoso motorista de táxi

se apiedou dela e a levou para casa.

Os olhos de Mayada estavam enevoados, quando olhou para as mulheres-sombra

uma a uma.

158

- Tudo isto, minhas queridas companheiras de cela, serve para expor o verdadeiro

coração da mulher que quer que a tratem por «Lady».

Nunca naquela cela se fizera maior silêncio. Embora fosse sabido que muitos

homens iraquianos compartilhavam com o ditador as suas práticas cruéis, as

prisioneiras raramente tinham ouvido falar de uma mulher tão impiedosa, capaz de

infligir maus tratos a uma compatriota.

Todas olharam para a Dr.a Sabah quando esta pigarreou para aclarar a voz. Os

seus sentimentos reflectiam-se-lhe nos olhos escuros e nos lábios comprimidos.

A Dr.a Sabah colocou o manto sobre os ombros e atou-o, à frente com um grande

nó. Depois disse:

- Quero falar-lhes da minha vida. Nasci e cresci pobre, mas ao contrário de Sajida

nunca me esqueci disso. O meu

pai era um simples operário numa fábrica de cigarros nos arredores de Bagdá e a

minha mãe uma dona de casa analfabeta. Vi-os sempre a trabalhar até

envelhecerem prematuramente. Eu queria fugir do trabalho árduo que convertera

os meus pais em dois inválidos, e por isso, em vez de esforçar o corpo, [preferi

não dar descanso ao cérebro. Todos os anos fui a primeira da escola e acabei por

enveredar por uma carreira no domínio da engenharia. Tal como muitos outros

iraquianos, fui compelida a inscrever-me no Partido Baas, mas o meu coração não

estava de acordo com o seu programa. Proferia o palavreado necessário para

afastar suspeitas e concentrei-me na minha carreira.

«Trabalhei mais do que qualquer homem ao serviço do Ministério das Obras

Públicas. Os meus superiores chegaram a dizer-me que o próprio Saddam

soubera do meu empenho e da minha competência. Em mil novecentos e setenta

e nove, Saddam ordenou que eu fosse nomeada directora-geral da Implantação

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de Projectos de Construção. Pensei que a minha aposta estava ganha. Tinha

chegado aos lugares de topo num domínio habitualmente reservado aos homens e

conseguira essa proeza em poucos anos.

«No entanto, pouco depois da minha promoção a directora-geral, tudo se

desmoronou. Ordenaram-me que estivesse

159

presente numa reunião no quartel-general do partido. Um dos meus camaradas

havia sido acusado de conspirar contra Sad-dam. Conhecia-o bem. Fora meu

colega na universidade e era também meu colega de trabalho. Também conhecia

a mulher dele e andara com os seus filhos ao colo. Eu tinha a certeza de que ele

nunca conspirara contra Saddam mas agora exigiam que, como directora-geral,

participasse na sua execução.

«Fiquei paralisada. - Com um ligeiro sorriso, a Dr.a Sa-bah olhou à sua volta. -

Recusei-me a empunhar a arma que me apresentavam. Que fiz? Vomitei! Vomitei

por toda a parte, sobre os meus sapatos e os sapatos do dirigente do partido que

me mandara executar o meu colega. Ele ordenava: "Mata-o , e eu vomitava; ele

berrava: "Pega na arma!" e eu voltava a vomitar. Por fim, fugi do edifício e corri

para casa, a trinta ruas de distância. Dei parte de doente no dia seguinte e no

outro. Ao terceiro dia recebi a visita de dois homens com óculos escuros. Foram

delicados. Trocaram apertos de mão comigo e depois revelaram que pertenciam à

Mukhabarat. Sabiam que eu desobedecera a ordens e que vomitara em lugar de

executar um criminoso que ameaçava a estabilidade interna do Iraque. Eu estava

transida de medo como um coelho apavorado; não conseguia falar nem mexer-

me, mas apercebi-me de um pormenor curioso. Os dois homens mantinham-se à

distância. Devem ter receado que eu vomitasse para cima dos seus sapatos

negros bem engraxados. Cansaram-se de esperar uma resposta da minha parte e

um deles informou-me que a minha actuação era do conhecimento de Saddam. O

nosso estimado presidente pedira que me transmitissem a sua compreensão pelas

razões dos meus vómitos; eu vomitara porque era mulher. A rematar, disseram-

me que as minhas férias haviam chegado ao fim e que devia acompanhá-los de

regresso ao trabalho. Julguei que iam levar-me para a prisão, mas disseram-me

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que Saddam ordenara que não me prendessem, mas que me dessem uma

segunda oportunidade.

«A caminho do meu gabinete, um dos homens fitou-me, com um trejeito, e

perguntou: "Como está o seu irmão mais novo, Ahmed? De boa saúde?" E disse-

me fazer votos para que Ahmed tivesse um grande futuro à sua frente.

160

«Compreendi imediatamente que toda a minha família corria perigo. Como desejei

voltar à vida simples que levara quando jovem. Como não podia fazê-lo nem sabia

como alterar aquele estado de coisas, voltei para o meu trabalho, mas a partir

daquele dia não mais tive um minuto de descanso. Estava sempre à espera de

uma nova ordem para matar este ou aquele. Felizmente, tudo decorreu sem

problemas durante um longo período. Casei-me com um homem adorável, tive

dois filhos maravilhosos e uma bela filha. Não mais me pediram para matar fosse

quem fosse. Depois tudo voltou a desmoronar-se novamente, em mil novecentos e

noventa e dois. Desta vez, o problema foi diferente. Com todo o Iraque a suportar

as sanções, Saddam convocou uma grande reunião para debater as restrições

financeiras. Construía palácio atrás de palácio, mas disse-nos que, enquanto

directores, devíamos encontrar meios de arranjar dinheiro para pagar todas as

despesas do nosso ministério. Declarou que, a partir daquele momento, todos os

nossos subsídios seriam suspensos. O governo não disponibilizaria mais dinheiro

para pagar os salários dos funcionários, para fazer face às despesas de

funcionamento dos serviços nem para executar os projectos de construção. Nós,

os directores, devíamos estabelecer um plano para fazer dinheiro com o objectivo

de suportar o governo.

«Depois da reunião, alguns de nós foram autorizados a ser recebidos por Saddam

para lhe agradecer a oportunidade que lhes era concedida de auxiliar o país.

Quando me dirigi a Saddam, ele riu-se pela primeira vez naquele dia. Perguntou-

me se havia tido recentemente outros acessos de vómitos. Todos os presentes se

riram e eu também. Respondi que não e agradeci-lhe a preocupação.

A Dr.a Sabah continuou então com ímpeto:

- Pensei para comigo: «Riam-se à vontade.» Era a única

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pessoa ali que não tinha as mãos manchadas de sangue. Saí da

reunião preocupada. Tinha a certeza de que, se não arranjasse

maneira de fazer face às despesas, perderia muito mais que o

emprego. Tinha um marido e filhos que adorava, irmãos e irmãs que me eram

igualmente muito queridos e que também

tinham filhos. Durante vários dias, andei como que hipnotiza-

161

da, dando voltas à cabeça para descobrir como iria arranjar dinheiro suficiente

para financiar um departamento inteiro.

«Um dia, ao visitar uma obra, tive uma ideia. Em redor via enormes quantidades

de madeira, cimento, parafusos e pregos. Voltei para o meu gabinete, chamei o

meu adjunto, Abu Kanaan, e expus-lhe o meu plano.

«O meu departamento fora criado apenas para elaborar projectos de construção.

Depois, contratávamos diversos empreiteiros para os executar, empreiteiros

independentes e que pertenciam ao sector privado. Um fornecia o equipamento,

outro, a madeira, outro, o cimento e por aí fora. Decidi dar início a uma nova

política. Cada empreiteiro que trabalhasse num projecto seria obrigado a

prescindir de todo o material que não tivesse sido utilizado na execução do

projecto. Tal medida não iria ser muito penalizante para cada um deles,

considerado individualmente; e, no seu conjunto, o material excedentário

ascenderia a um valor considerável. Por causa das sanções havia carências em

todo o Iraque, pelo que estava certa de obter preços elevados para todo esse

material. Faríamos leilões, e com o dinheiro obtido poderíamos pagar os salários e

outras despesas.

«Quanto mais pensava no meu plano, mais convencida ficava de que constituía

uma ideia brilhante, capaz de nos salvar.

«Apresentámos o projecto directamente a Saddam. Ele estudou as estimativas e

pareceu ficar bem impressionado, dizendo-me que avançasse com o plano. O

nosso departamento pô-lo desde logo em prática, e durante vários anos

conseguimos ter êxito e financiar todas as despesas.

«Há cerca de cinco meses, recebi nova visita de dois homens com óculos escuros.

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Vieram ter comigo ao meu gabinete e fiquei aterrorizada por pensar que iam

obrigar-me a matar alguém. Perguntei se podia telefonar ao meu marido e aos

meus filhos, mas não o consentiram. Disseram que só iriam precisar de mim

durante uma ou duas horas, porque havia algumas questões que tinham de ser

esclarecidas. Trouxeram-me directamente para este edifício e vendaram-me os

olhos ao sair do automóvel. Fizeram-me subir alguns degraus. Não podia

162

ver nada, mas sabia que o pior acontecera quando senti um intenso e

nauseabundo odor de urina. Retiraram-me a venda dos olhos e vi-me frente a um

homem que imediatamente me esbofeteou, berrando: "Bem-vinda, ladra!"

«Quando me interrogaram, disseram-me que fora presa por me servir da minha

posição para "roubar" bens e equipamentos do sector privado. O meu "crime" é

uma "conspiração" para arruinar a economia do país. Isto não obstante o facto de

nunca haver guardado para mim um dinar que fosse. Todo o produto de cada

leilão foi directamente para os cofres do ministério.

A fronte da Dr.a Sabah enrugou-se.

- Os meus carrascos insinuam que serei condenada a uma pena de vinte e cinco

anos de prisão. Não creio que o meu marido e os meus filhos saibam onde me

encontro, embora os guardas me tenham dito que os informaram de que eu era

uma ladra.

A Dr.a Sabah suspirou e olhou para a parede. Mayada fitou-a, sem palavras. Os

olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Vinte e cinco anos! A Dr.a Sabah nunca

sobreviveria a uma pena tão longa porque entrara já na casa dos cinquenta.

Mayada pegou na manta que havia dobrado para sobre ela se sentar e encostou-a

à cara. Alguns fios do espesso tecido entraram-lhe na boca e teve de reprimir um

espirro e um ataque de tosse. Voltou a pôr a manta enrodilhada debaixo das

pernas.

Desejava consolar a Dr.a Sabah, mas não sabia o que dizer. Começou a falar,

sem saber bem que palavras ia pronunciar:

- A nossa vingança há-de chegar, ainda que não a vejamos - afirmou, em voz alta.

- Saddam procura furiosamente promover a sua reputação. Passa o tempo a

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empolar e exaltar os seus êxitos. Como se idolatra a si próprio, julga que também

é idolatrado pelos outros. Só pretende uma coisa: ser recordado para sempre no

mundo árabe como um grande herói. Mas isso jamais acontecerá.

«Lembro-me do que me disse Jido Sati uma vez: a História nunca dorme. Quando

os historiadores escreverem acerca de Saddam Hussein encherão páginas e

páginas com os seus erros e malogros; mesmo que pesquisem todos os arquivos,

163

não conseguirão encontrar uma só coisa boa acerca dele e das suas acções. Que

poderão escrever? Apenas que Saddam Hus-sein construiu uma quantidade de

palácios, um fútil legado de pedras.

Mayada olhou em seu redor. As mulheres-sombra pareciam escutá-la, mas não

estava absolutamente certa disso. Suspirou, levantou-se, enrolou a manta e

encostou-se a um canto da cela. Manteve-se em silêncio, estudando um a um os

rostos das mulheres-sombra. Aquela pequena cela era, em si mesma, um mundo

de preocupações, em que cada prisioneira vivia atormentada, receando pela

família, com as mães desesperadas por não verem crescer os filhos.

Muna, com o seu rosto tão doce, chorava baixinho.

Os lábios da Dr.a Sabah viravam-se para baixo num trejeito, e parecia vencida sob

o peso das suas mágoas.

A face de Aliya estava tão avermelhada que parecia incandescente.

Ao examinar cada um daqueles rostos tão expressivos, tornava-se claro que uma

profunda mágoa se alojava no coração de cada mulher-sombra. «É assim a vida

na prisão», pensou. «Lágrimas, medo e mágoa.»

Voltou a olhar para Samara. A encantadora mulher xiita mantinha-se em silêncio,

mas o seu semblante desolado falava por ela. Acreditaria Samara que a sorte a

abandonara para sempre? Seria ela, Mayada, a testemunha forçada de uma

tragédia terrível? A bela Samara iria ser torturada até à morte? E, tal como a

autora do poema anónimo, seria lançada para uma cova prematuramente?

O pensamento de Mayada procurou encontrar os responsáveis por tanta dor e

sofrimento. Embora fosse Saddam Hussein quem convertera o Iraque moderno

num inferno, um outro homem era igualmente responsável por tantas lágrimas

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iraquianas - um homem que ela jamais esqueceria.

Mayada olhou para o tecto, recordando um dos homens mais atraentes que

encontrara na vida. A imagem daquele belo rosto flutuou em frente dos seus olhos

e lembrou-se do sorriso cativante que tantas vezes lhe aflorara aos lábios. Era tão

belo que, segundo se dizia, muitas mulheres ficavam apaixonadas

por ele à primeira vista. Quando o encontrara pela primeira Vez, o seu marido,

Saiam, destruira já qualquer amor que pudesse existir no casamento. O coração

de Mayada estava livre e ela sentia-se vulnerável, mas felizmente o verdadeiro

carácter daquele homem tão bonito cedo se revelou; por isso, nunca chegara a

acalentar qualquer ideia de uma relação romântica com ele. Descobrira

rapidamente que por trás daquele rosto tão belo se escondia uma alma abjecta.

Mayada descobriria que este homem, Ali Hassan al-Majid, conhecido como Ali, o

Químico, era um dos homens mais cruéis do Iraque.

164

165

6

Ali, « o Químico » e o véu

Mayada conheceu Ali Hassan al-Majid, primo direito de Saddam Hussein, em Abril

de 1984. Nessa altura, pouco se sabia do homem recentemente nomeado para o

cargo de responsável máximo da polícia secreta do país, após a promoção do Dr.

Fadil a director dos serviços secretos.

Aquele mês de Abril desabrochara suave e encantador. O esplendor da Primavera

iraquiana estava no seu auge. Arbustos e árvores curvavam-se sob o peso de

botões de flores de todas as cores, impregnando o ar com o seu inebriante

perfume. Os dias primaveris eram amenos e solarengos e as noites frescas e

agradáveis. Bagdá sabia que mal o longo Verão se abatesse sobre a cidade as

classes mais abastadas recolheriam ao interior das suas casas, a fim de escapar

ao calor tórrido. Assim, na Primavera, a alta sociedade de Bagdá preenchia a

agenda mundana com festas ao ar livre.

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Várias noites por semana, o jardim bem cuidado de Salwa tornava-se o cenário de

magníficos bufetes servidos à noite. Antes de os convidados chegarem, os criados

mudavam sofás e cadeiras do interior da casa para pontos estratégicos no jardim

por baixo das imponentes tamareiras, acolhendo os visitantes que chegavam

pouco depois do pôr do Sol, quando o céu azul-marinho se tornava rosado.

O ar enchia-se do suave ruge-ruge das árvores oscilando e do alarido dos

insectos nocturnos, enquanto Salwa e Mayada recebiam algumas das pessoas

mais fascinantes de Bagdá. Naquela época, Mayada acompanhava as últimas

tendências

166

da moda e gostava de exibir as suas roupas chiques compradas pela mãe em

Paris, Roma e Londres. Não sabia que aquele seria o último Verão em que a

considerariam uma das mulheres mais elegantes de Bagdá. Melancólicas

beldades iraquianas de cabelo negro apanhado e ornado por flores coloridas,

passeavam pelo jardim de Salwa exibindo a última moda do estrangeiro,

desafiando os limites do aceitável para o Médio Oriente, enquanto homens

elegantes fumavam charutos, esvaziavam pequenos cálices de licor e

confidenciavam apreensões quanto à guerra em curso, seguros de que as suas

opiniões se achavam ao abrigo de ouvidos indiscretos no santuário que era o

jardim de Salwa Al-Husri.

Apesar daqueles momentos aprazíveis, uma crescente escuridão invadira o

Iraque. A terrível guerra com os Iranianos durava havia quatro longos anos,

surpreendendo os Iraquianos, habituados a guerrilhas que não duravam mais que

um mês. Contudo, os Iraquianos haviam-se dado conta de que tinham muito

pouca experiência em lutar contra outros muçulmanos. As guerras do Iraque eram

travadas geralmente contra os Israelitas, e todos sabiam que as guerras contra os

judeus

] nunca duravam muito.

Os Iraquianos tinham bons motivos para supor que aquele conflito com o Irão

seria de pouca dura. Pouco depois do início da guerra, em 1980, a Liga Árabe

nomeara uma «Comissão de Boas Intenções», constituída por oficiais árabes, que

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enviara para o Irão com o propósito de restabelecer a paz. Os Iraquianos haviam

acreditado que a comissão regressaria rapidamente a Bagdá com um acordo.

Mayada, contudo, mostrara-se reticente quanto ao êxito da comissão, pelo

contacto, partilhado por poucos iraquianos, com a opinião estrangeira sobre o

assunto. A venda da grande

' maioria das publicações estrangeiras era proibida no Iraque, mas Salwa

regressara recentemente de uma viagem ao estrangeiro com as malas a abarrotar

com coisas proibidas, incluindo revistas e jornais. Ninguém na fronteira se atrevera

a revistar a bagagem de Salwa Al-Husri, amiga íntima do Dr. Fadil, o que lhe

permitira distribuir jornais e revistas estrangeiros, alguns

dos quais analisavam a guerra entre o Iraque e o Irão. Mayada

167

lera tudo, pedindo a amigos que lhe traduzissem os artigos escritos em línguas

que ela não conhecia.

Uma das publicações era o conceituado semanário alemão Der Spiegel. Um dos

cartoons do jornal fizera Mayada reflectir na assustadora missão com que se

confrontava o exército iraquiano. O cartoon mostrava Saddam de uniforme a dar

pontapés a Khomeini, e o texto dizia: «Pronto, já cá estás dentro. Agora, como

vais fazer para sair?»

Mayada sentia-se desmoralizada com o espectro da personalidade obstinada de

Khomeini, apoiado por milhões de ira-nianos dispostos a morrer pelo seu líder.

Com uma população três vezes mais numerosa que a do Iraque, o Irão podia

suportar três baixas por cada baixa iraquiana. E estava sob o comando de um

homem tão teimoso como Saddam Hussein. Por conseguinte, a sorte não parecia

favorável ao Iraque.

Em Outubro de 1980, dois meses depois do início da guerra, Mayada e alguns

colegas haviam-se reunido na redacção do Al-Jumhuriya, no quarto andar do

edifício do jornal, com uma vista soberba sobre Bagdá. Não querendo confessar

aos colegas que havia tido acesso a artigos publicados em revistas e jornais

estrangeiros, opinara que o conflito podia revelar-se moroso e difícil. Os colegas

haviam-se rido dela, afirmando que era ingénua. Calando as suas dúvidas,

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Mayada pusera de lado as suas reticências e participara na conversa. Os colegas

acreditavam que daí a dez dias o Irão seria conquistado. Haviam mesmo

começado a esboçar um texto para celebrar a vitória. A derrota era tão impensável

que nem fora discutida.

Começou então a chegar da frente um impressionante número de cadáveres. As

ruas de Bagdá encheram-se subitamente de estandartes negros, tendo cada um

inscrito o nome e o local onde o soldado morrera, um versículo do Alcorão, «Os

mártires nunca morrem», e um slogan de Saddam: «Os mártires são mais

generosos que todos nós.» O número de estandartes negros aumentava de dia

para dia, e rapidamente todos perceberam que o exército iraquiano suportava uma

mortandade terrível.

No início, Saddam dava à família de cada mártir um lote

168

de terra, cinco mil dinares e um Toyota novo. Em consequência dos tempos

conturbados de guerra, uma canção infantil muito popular recebera rapidamente

uma nova letra, através da qual os Iraquianos expressavam o seu menosprezo

pelo crescente toque de finados:

O meu pai vai voltar da linha da frente Dentro de um caixão.

A minha mãe vai casar-se com outro homem, Mas eu vou andar num Toyota novo!

Apesar de Mayada sofrer muito durante os terríveis raides aéreos, receando pela

vida da sua filha de um ano, sentia-se estranhamente indiferente ao dia-a-dia do

conflito. Ao contrário da maioria dos iraquianos, não tinha um irmão, um pai, um tio

ou um primo na guerra. Todos os homens da família de Mayada já haviam falecido

ou viviam no exílio. Quanto ao seu marido, Saiam, não corria perigo iminente,

porque estava destacado para uma base militar perto da cidade. Na realidade,

Saiam era tão privilegiado que podia ir a casa dia sim, dia não.

Mayada gozava inclusivamente de uma carreira bem sucedida como colaboradora

da revista AlefBa em Bagdá. A sua situação profissional era invulgar, uma vez que

uma carreira na comunicação social só era acessível aos membros do Partido

Baas, mas, pouco depois de Al-Bakir e Saddam alcançarem o poder, haviam

deixado bem claro que todos os membros da família Al-Askari e da família Al-Husri

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eram tão leais ao nacionalismo árabe que não tinham de prová-lo através da sua

inscrição no Partido Baas. Mayada completara o ensino secundário e estudara

numa universidade no estrangeiro sem nunca pertencer ao partido. A sua irmã

Abdiya gozara do mesmo regime de excepção, apesar de um colega de

universidade haver uma vez tentado forçá-la a ingressar no partido. Depois de

Abdiya replicar calmamente «Terei de pedir a opinião de Saddam acerca do teu

convite, e depois digo-te qualquer coisa», o jovem nunca mais abordara o assunto.

Após o Dr. Fadil se tornar amigo da família, em 1979,

169

outras benesses inesperadas, para uma iraquiana que não pertencia ao partido,

vieram atapetar o caminho de Mayada. Foi nomeada repórter e colunista de várias

publicações. Foi convidada para ingressar na Federação dos Jornalistas e na

Associação dos Escritores. Trabalhou na Organização Árabe do Trabalho durante

oito anos e, contrariamente aos outros iraquianos que faziam parte da organização

- e graças ao passado da sua família e à influência do Dr. Fadil -, nunca tivera de

cooperar com os agentes dos serviços secretos, o que a teria forçado a espiar

colegas, amigos e a própria família. Conhecera um homem que denunciara a

própria mulher por haver ridicularizado Uday, o filho mais velho de Saddam. A

infeliz fora condenada a uma pesada pena de prisão. Mas nunca ninguém a

incitara a alistar-se no Partido Baas.

Apesar do seu isolamento, o bom-senso prevenira-a de se imiscuir nas águas

turbulentas do jornalismo político. Preferira escrever sobre o seu genuíno amor

pelo Iraque e dedicar-se a criações de pendor romântico. Tais trabalhos não

deixavam de a gratificar pessoalmente, além de que tinha plena consciência que

artigos opinativos criavam muitas vezes problemas aos seus autores. Agora que

era mãe, tinha de zelar pela sua segurança pessoal.

Numa quinta-feira de manhã, contudo, em Abril de 1984, o feliz alheamento de

Mayada face ao jornalismo político cessou abruptamente. O redactor-chefe da

AlefBa, Kamil Al-Shar-qi, mandou chamá-la ao seu espaçoso gabinete e

disse-lhe:

- Estamos a passar por momentos difíceis. Todos os iraquianos devem fazer

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sacrifícios. Temos muitos repórteres na linha da frente e os nossos colunistas

principais não podem negar-se a fazer outros trabalhos.

Mayada acenou em concordância, apesar de não saber aonde aquela conversa

podia levar.

- Foste escolhida para escrever um artigo sobre Saddam e a política de segurança

iraquiana durante a guerra com o Irão. Tenta entrevistar Ali Hassan al-Majid, para

lhe fazeres perguntas sobre Saddam e a política de segurança nacional. E tenta

descobrir mais pormenores sobre o homem. Os Iraquianos querem saber mais

sobre o misterioso primo do nosso grande presidente e general, Saddam Hussein.

... ,.

170

Apanhada de surpresa por aquele pedido, Mayada lançou a cabeça para trás.

Muito embora Saddam a houvesse distinguido com alguns prémios, não fazia

parte do círculo íntimo do presidente. Será que Kamil acreditava que lhe bastava

discar o número de telefone particular do presidente e pedir-lhe que convencesse

o primo a conceder-lhe uma entrevista? Se assim era, Kamil estava enganado.

Mayada tentava lembrar-se do pouco que ouvira dizer acerca de Ali Hassan al-

Majid. O Dr. Fadil fora recentemente promovido a director dos serviços secretos e,

quando falara da sua promoção a Mayada e a Salwa, mencionara de passagem

que o primo direito de Saddam, Ali Hassan al-Majid, ia ocupar o seu antigo cargo

de director-geral da polícia secreta iraquiana, mais conhecida como Amin Al-

Amma, o que o tornaria um homem muito poderoso. Era além disso um dos

homens mais importantes no aparelho do Partido Baas. Todavia, apesar do seu

novo estatuto Mayada ouvira alguns jornalistas mais velhos comentar que o primo

de Saddam pouco recorria à comunicação social e recusava todos os pedidos de

entrevistas, na tentativa de manter uma imagem pública discreta.

Mayada comprimiu os lábios.

- Pelo que sei, ele não dá entrevistas. Como queres que o convença? - exclamou.

Kamil encolheu os ombros, sorrindo.

- Tenho a certeza de que vais encontrar uma maneira.

- Não tenho tanta certeza... - replicou Mayada. Kamil levantou-se e acompanhou-a

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à porta.

- Hás-de consegui-lo. Só tens de pensar como! Ainda que estivesse contente por

alguém a levar a sério a

nível profissional, Mayada saiu do gabinete de Kamil com um mau pressentimento.

Ia entrar em território desconhecido, mas não podia declinar tal proposta, se

queria progredir na carreira. Contudo, tendo em conta que Ali Hassan al-Majid

detestava a imprensa e se recusava a ser entrevistado, Mayada não sabia por

onde começar. Além do mais, Ali era primo de Saddam Hussein e um homem

muito ocupado, especialmente, agora, em tempo de guerra. O que o levaria a

conceder uma

171

entrevista a ela, conhecida escritora do que muitos consideravam ser um estilo

jornalístico leve e de mulher? Mayada passou toda a tarde a telefonar aos mais

influentes dos seus amigos que talvez tivessem algum contacto com Ali Hassan al-

Majid. Depois de mais de dez deles lhe dizerem que não podiam ajudá-la,

afirmando que estava a perder o seu tempo correndo atrás de um homem que não

dava entrevistas, Mayada decidiu ir para casa. Talvez a mãe tivesse alguma ideia.

Nessa noite, depois de adormecer Fay, sentou-se para jantar com a mãe. Depois

de a cozinheira as servir e voltar para a cozinha, Mayada contou à mãe o seu

delicado problema.

Salwa escutou-a atentamente e apresentou despreocupada-mente a sua

sugestão:

- Pede ao doutor Fadil que interceda por ti. Telefonou há pouco e disse que

passava por cá a caminho de casa. - Perante a expressão de cepticismo da filha,

Salwa assegurou-lhe: - Tenho a certeza de que ele vai ajudar-te.

Mayada não estava convencida. Ouvira o Dr. Fadil insultar Ali Hassan al-Majid por

mais de uma vez, sendo óbvio que antipatizava claramente com o homem. O Dr.

Fadil considerava Ali al-Majid um bronco, sem maneiras, como a maioria dos

familiares de Saddam. Muito embora o novo cargo do Dr. Fadil enquanto director

dos serviços secretos o colocasse hierarquicamente acima de Ali al-Majid, o primo

de Saddam arrecadava mais simpatia junto do presidente, o que lhe conferia

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vantagem emocional em qualquer conflito político com o Dr. Fadil; este devia estar

ciente daquela realidade, o que explicava a sua antipatia para com al-Majid.

Porque haveria de contactar um homem que odiava? Só para lhe prestar a ela um

favor?

Enquanto esperava pelo Dr. Fadil, Mayada pegou numa caneta e numa folha de

papel e anotou tudo o que sabia sobre Ali Hassan al-Majid.

Pelas poucas fotografias que havia visto, Ali al-Majid era um homem atraente, que

devia rondar os quarenta anos. Nascido em Tikrit, era o filho mais velho do tio de

Saddam, irmão do seu falecido pai. Tal como a de Saddam, a família de Ali

pertencia ao clã muçulmano sunita al-Bejat, integrado na

172

ilibo al-bu Nasir, predominante no distrito de Tikrit. Como acontecera com todos os

iraquianos naquela altura a lealdade tribal desempenhara um papel fulcral na

juventude de Ali al-Majid, o que o levara a estabelecer amizades para toda a vida

com os outros membros do clã, incluindo Saddam.

Desde o princípio, Ali al-Majid revelara-se um fervoroso adepto do Partido Baas,

mas, ao contrário de Saddam, o seu estatuto era muito baixo. Na realidade, antes

da revolução de 1964, Ali era um mero soldado arvorado a cabo que exercia as

funções de simples mensageiro do exército com a sua motorizada; mas à medida

que o primo consolidava o poder, a influência de Ali aumentara.

Ali já demonstrara a sua apetência pelo poder ao casar com a filha de Ahmed

Hassan Al-Bakir, presidente do Iraque depois da revolução de 1968. Quando

Saddam afastou o sogro de Ali e tomou para si a presidência, em 1979, Ali

manteve-se leal à sua tribo e ao primo e não ao pai da esposa, o que não foi uma

surpresa para a sociedade tribal iraquiana. Quando forçado a escolher, um

homem mantinha-se sempre leal à sua tribo e não à família da mulher.

Depois de Saddam se tornar presidente, Ali subira rapidamente na hierarquia do

partido, tornando-se um dos oficiais de maior confiança de Saddam. Era um

veterano do Partido Baas e um membro importante do Conselho de Comando da

Revolução. Com a Guerra Irão-Iraque a decorrer, Ali era agora um dos mais

influentes conselheiros militares de Saddam.

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Assim que o Dr. Fadil chegou, Salwa conduziu rapidamente a conversa para o

assunto que lhe interessava. Serviu uma bebida ao Dr. Fadi e elogiou

efusivamente o último livro que ele escrevera, antes de afirmar:

- Mayada tem um pedido especial a fazer-lhe.

Mayada atentou na reacção do Dr. Fadil, que não pareceu ficar particularmente

satisfeito. Desde que se tornara frequentador assíduo da casa de Salwa, enquanto

grande admirador de Sati, Mayada pedira por mais do que uma vez o seu auxílio

para vizinhos e amigos que tinham problemas com a polícia secreta. Na maioria

das ocasiões, o Dr. Fadil revelara-se muito

173

prestável. Todavia, após o apelo desastrado que lhe fizera havia dois anos para

que ajudasse Um Sami a localizar os filhos gémeos, o Dr. Fadil passara a

alimentar uma viva desconfiança em relação aos pedidos de ajuda de Mayada.

O Dr. Fadil rodeou o copo com ambas as mãos.

- Com certeza - respondeu. - Farei tudo o que estiver ao meu alcance, Mayada.

Afinal, é uma orgulhosa filha do Iraque.

Mayada aproveitou aquela deixa:

- Kamil deu-me um trabalho difícil - explicou, falando muito depressa. - A minha

missão é contactar Ali Hassan al-Majid e conseguir uma entrevista. Kamil quer que

a nossa revista faça um artigo sobre a política de segurança do Iraque. E sobre

Saddam. Por fim, disse-me para tentar descobrir o «verdadeiro» homem por

detrás do oficial do exército. Até agora, ninguém conseguiu ajudar-me. Ao que

parece, Ali Hassan al-Majid é um homem muito esquivo.

O Dr. Fadil esboçou uma careta.

- Ali Hassan al-Majid? Porque se interessam os Iraquianos por ele? - Indignado,

fingiu cuspir. - Pois eu cuspo-lhe na cara!

Mayada recuou, assustada, e olhou para a mãe. Salwa assistia ao acesso de raiva

do Dr. Fadil com um meio sorriso.

Bebeu um gole de café e só depois interveio.

- Não se preocupe se não puder ajudar Mayada, doutor Fadil. Parece que

ninguém consegue convencer esse tal al-Majid a ser entrevistado. Tenho a

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certeza de que ele não acederá ao seu pedido, como fez em relação a todos os

outros. Tornou-se demasiado poderoso para se preocupar com aqueles que julga

estarem abaixo dele.

A estas palavras, uma desconhecida e ameaçadora expressão passou pelos olhos

do Dr. Fadil. Sentou-se de boca aberta por uns instantes antes de empurrar a

cadeira violentamente e levantar-se de um salto, entornando o copo. O seu rosto

estava vermelho.

- Acredita realmente que ele se atreveria a negar-me um pedido? Nunca! - bradou.

Olhou para Mayada e declarou: - Obterá a sua entrevista. Não se preocupe. - Dito

aquilo, saiu da

174

sala, gritando por cima do ombro: - Telefono-lhe amanhã para lhe indicar a hora e

o local da entrevista!

Assim que bateu com a porta, Salwa começou a rir-se e a fingir bater palmas.

- Espero que tenhas aprendido a lição, minha filha. Nenhum homem árabe tolera

que se lhe diga que outro homem é mais poderoso do que ele, e tudo fará para

provar o contrário.

Salwa debruçou-se e apertou carinhosamente as faces de Mayada.

- Ouve o que te digo. Obterás a tua entrevista. - Depois, alisou a parte da frente do

vestido e bocejou. - Bom, estou cansada. Acho que vou deitar-me cedo e

aproveitar para ler um pouco. Há um novo artigo recentemente publicado sobre o

teu Jido Sati e quero verificar se o autor descreveu os factos correctamente.

Enquanto Salwa se afastava graciosamente, Mayada sentiu por ela uma súbita

admiração. A mãe obtinha sempre o que queria.

Na manhã seguinte, Mayada estava deitada na cama, ansiando pela tarefa que a

esperava, quando o telefone tocou, era o Dr. Fadil, que, num tom de voz formal,

quase brusco, declarou:

- Mayada, Ali Hassan al-Majid terá muito gosto em recebê-la. Dirija-se ao meu

antigo gabinete. é ali que ele passa a maior parte dos dias. Esteja lá segunda-feira

de manhã às nove em ponto. Depois diga-me como decorreu o encontro.

E desligou antes que Mayada pudesse agradecer-lhe.

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Mais uma vez, o Dr. Fadil interviera em seu favor. Saltou da cama com energias

renovadas. Mal podia esperar para ver a cara de Kamil quando soubesse que ela

conseguira marcar uma entrevista com o esquivo Ali al-Majid. O artigo seria uma

vitória para a revista.

Muito embora tivesse ficado contente, Kamil não revelou o espanto que Mayada

esperava. Ao invés, pediu-lhe que a acompanhasse ao seu gabinete para

prepararem juntos as perguntas da entrevista. Estava-se em princípios de Abril e o

ani-

175

versário de Saddam celebrava-se a 28 desse mês. Kamil queria ser o primeiro a

publicar um artigo sobre o aniversário do presidente, e se Ali al-Majid achasse

conveniente fazer alguns comentários a respeito dele, isso seria óptimo. Kamil deu

a reunião por encerrada, dizendo:

- Mayada, é difícil dar-te conselhos para esta entrevista. Ninguém conhece o

homem. É a primeira vez que dá uma entrevista. Segue a tua intuição, e vê aonde

te leva.

Na segunda-feira seguinte, Mayada chegou ao antigo gabinete do Dr. Fadil às

nove em ponto. Estava ansiosa, e por instantes desejou estar ali para ver o Dr.

Fadil e não o seu intimidante sucessor. As mãos tremiam-lhe, de tão nervosa que

estava e por não saber o que a esperava.

Foi escoltada ao gabinete de Ali al-Majid e ficou admirada ao ver que ele não

alterara a decoração do local. O tecto ainda apresentava o mesmo mau gosto, os

tabuleiros de jogo e as outras peças de mobiliário continuavam no mesmo sítio.

Mayada baixou os olhos, olhando para o tapete que o Dr. Fadil tantas vezes

pisara. Ainda cobria o chão. Olhou então para o fundo do amplo gabinete.

Ali Hassan al-Majid achava-se de pé atrás da secretária.

Era alto e magro, com ombros largos. Os seus olhos negros eram grandes e

expressivos e o seu nariz pequeno mas bem proporcionado para o rosto. A pele

da cara era lisa e clara. Um bigode impecavelmente aparado sombreava-lhe os

lábios, que se abriam num sorriso revelando dentes perfeitamente alinhados e

muito brancos. Com um porte militar, contornou a secretária e avançou para

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Mayada. A expressão do seu olhar era um tudo-nada preocupada. Indicou uma

cadeira que se achava em frente da sua secretária.

- Seja bem-vinda ao meu gabinete. Por favor, sente-se e esteja à vontade.

Mayada acedeu, sentou-se e começou a procurar na mala a caneta e um bloco de

apontamentos. Devidamente equipada, fez as perguntas de enfiada, sem sequer

parar para pensar, anotando as respostas de Ali sem prestar grande atenção. Só

queria concluir o mais depressa possível aquela perigosa entrevista.

176

Ali al-Majid olhou para ela intrigado enquanto Mayada fazia aquela figura de

pateta.

- Então, é a neta do grande Sati Al-Husri?

Mayada levantou os olhos dos seus apontamentos e viu que Ali al-Majid a

examinava com os olhos semicerrados enquanto esfregava o queixo.

- Sou, sim. Sati Al-Husri era o pai da minha mãe.

- Saddam afirma que o seu avô foi um dos maiores árabes de todos os tempos.

Segundo ele, Sati Al-Husri era um homem invulgar, um sábio com nervos de aço.

É verdade que ele não permitiu que os Ingleses roubassem todos os nossos

tesouros?

Mayada sentiu-se um pouco menos apreensiva.

- Bom, ele não os recebeu de adaga em riste. Jido Sati era sensato mas

habilidoso. Por isso, resolveu derrotá-los pela astúcia.

Ali al-Majid reflectiu na resposta dela.

- Conte-me como tudo aconteceu - pediu.

Graças à sua referência a Sati, Mayada sentiu-se de súbito tão à vontade que

resolveu brincar um pouco com aquele homem tão poderoso:

- Mas eu estou aqui para entrevistá-lo e não o contrário...

- Nesse caso, conte-me só uma história de como um homem derrota os seus

inimigos sem recorrer à força física. E quando Ali al-Majid começou a flectir os

músculos dos braços como se fosse um atleta de circo, Mayada teve de se conter

para não desatar a rir. Ali al-Majid fitava-a com um sorriso algo matreiro.

- Continue. Estou a dar-lhe uma ordem. Conte-me uma história sobre o seu avô e

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revelar-lhe-ei tudo o que quer saber acerca de mim.

A entrevista estava a correr melhor do que Mayada alguma vez imaginara. Kamil

ia ficar eufórico.

- Muito bem - anuiu, enquanto pousava a caneta sobre o bloco e se recostava na

cadeira. - Quando eu era criança, passava muitas horas com o meu Jido Sati, e

lembro-me do dia em que ele me contou esta história. Por isso, sei que cada

palavra corresponde à verdade.

177

«Quando foi criado o Iraque moderno, o rei Faiçal dependia do meu avô para

muitas coisas. Jido Sati era o director-geral da Educação, reitor do Colégio de

Direito e consultor do rei para as antiguidades do país, ainda que o alto-comissário

inglês do Iraque, Sir Percy Cox, houvesse nomeado Gertrude Bell directora

honorária do Departamento de Antiguidades. Após a morte de Miss Bell, contudo,

Sati assumiu a direcção total do departamento.

«Como provavelmente sabe, Gertrude Bell foi uma pessoa notável. Além de

escritora, revelou-se uma mulher aventureira; foi amiga íntima de Lawrence da

Arábia e mesmo conselheira de reis. Era uma representante muito poderosa do

governo britânico. Poucos conseguiam estar à altura da sua personalidade forte e

geralmente o governo inglês apoiava as suas iniciativas ousadas. Chegou mesmo

a intervir na escolha de Faiçal para rei do Iraque.

«Miss Bell levou a sua nomeação muito a sério. Cerca de um ano depois de o

Iraque ser reconhecido como nação, Miss Bell entrou no gabinete de Sati com um

documento, afirmando que queria que ele convencesse o Conselho de Ministros

iraquiano a aprovar uma nova lei. Informou o meu avô de que já tinha uma

expedição a escavar em Ur e que queria que aquela nova lei passasse, porque iria

alterar o método de lidar com os tesouros descobertos.

«O meu avô era o homem mais honesto deste mundo, e quando levou o

documento para casa e o leu ficou horrorizado ao perceber que Miss Bell

propunha uma nova lei baseada num tratado assinado entre as Forças Aliadas, na

Turquia - uma lei que permitiria a qualquer expedição ficar com os objectos que

encontrasse durante uma escavação. Por outras palavras, Miss Bell poderia levar

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muitos dos tesouros do Iraque para a Inglaterra. O meu avô estudou então a lei

otomana, que sempre se aplicara na região, e descobriu que todas as

antiguidades desenterradas pertenciam ao governo - as expedições arqueológicas

podiam apenas ficar com réplicas ou com moldes. E no caso de se tratar de

expedições estrangeiras, não tinham sequer permissão para levar para fora do

país quaisquer objectos antigos.

«No dia seguinte, Gertrude Bell regressou ao gabinete de lido Sati para recolher o

documento já assinado, mas não obteve a reacção que esperava, o meu avô

falou-lhe da pesquisa que efectuara e disse-lhe que lamentava muito mas que não

podia pedir ao Parlamento que assinasse a nova lei que ela propusera, porque

prejudicaria o Iraque.

Mayada riu-se.

- Jido Sati contou-me que nunca viu uma mulher enfurecer-se tão depressa. O

rosto de Miss Bell ficou escarlate, e respirava tão depressa e pesadamente que

mais parecia soprar numa trombeta. Estava só à espera que ela começasse a

gritar-lhe, mas ainda assim manteve-se impassível. Miss Bell recobrou contudo a

sua fleuma britânica, acalmou-se e falou de outros assuntos. Mas Jido Sati sabia

que ela estava já a pensar numa forma de contornar o problema em que ele

próprio se (ornara. E não se enganou. Três dias mais tarde, foi informado pelos

ingleses de que a tutela das escavações arqueológicas passara a ser da

competência do Ministério dos Transportes e das Obras Públicas. O homem que

se achava à frente do ministério era um fraco e depressa sucumbiu às exigências

de Miss Bell.

«O meu avô contou-me que tiveram de transigir durante algum tempo, altura em

que o Iraque perdeu muitos dos seus tesouros por causa da lei proposta por Miss

Bell, mas que mais tarde ele conseguiu que uma nova lei fosse aprovada,

salvando assim muitos outros tesouros iraquianos. Gertrude Bell ficou descontente

com o meu avô, para dizer o mínimo.

Ali al-Majid parecia animado com a história contada por Mayada.

- Continue - exclamou. - Conte-me mais.

- Pouco depois, deu-se um outro incidente ainda mais interessante, relacionado

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com a antiga Harpa Dourada. Um representante inglês marcou uma audiência

com o rei Faiçal para o avisar de que o rei Jorge V da Inglaterra celebraria em

breve o seu aniversário. Foi então que o homem sugeriu que o rei Faiçal

oferecesse a Harpa Dourada dos Sumérios ao rei inglês.

178

179

«Aquela sugestão colocava o rei Faiçal numa situação delicada, porque os

Ingleses pareciam determinados em obter a mais rara harpa do mundo. Assim,

desculpou-se junto do enviado inglês e replicou. "Logo se verá, logo se verá."

Assim que o enviado inglês saiu, o rei Faiçal mandou chamar Jido Sati para lhe

pedir a sua opinião e ajudá-lo a evitar uma tal catástrofe. Sati tranquilizou-o,

dizendo-lhe que se encarregaria pessoalmente da questão e atrairia a ira dos

Ingleses sobre si mesmo. Sati foi falar directamente com os Ingleses e disse-lhes

que o rei Faiçal não estava em condições de oferecer a Harpa Dourada dos

Sumérios, por muito que quisesse prestar homenagem ao rei Jorge V, porque

havia uma lei que proibia aquele tipo de exportação. Depois, acrescentou que

podia indicar o proprietário de um armazém de antiguidades cujas réplicas já se

achavam expostas em muitos museus iraquianos e que teria todo o gosto em

ajudar o enviado inglês a escolher a imitação mais perfeita da famosa harpa para

o aniversário do rei Jorge V.

«Os Ingleses ficaram completamente desnorteados, porque se orgulhavam de

serem cumpridores da lei. Assim, tiveram de contentar-se com uma réplica, em

vez de ficarem com a preciosa Harpa Dourada.

«Depois desse incidente, o rei Faiçal não perdia uma oportunidade para brincar

com Sati a propósito do incidente da harpa mas, num tom mais sério, acabava

sempre por afirmar que aquela preciosa antiguidade havia sido salva graças à

forte personalidade de Jido Sati, repetindo que o meu avô era o único homem em

todo o país que podia salvar o património do Iraque. Sem Sati, os gananciosos

ingleses teriam podido passar os seus dedos pelas cordas daquele instrumento

único no mundo.

«Quanto aos Ingleses, passaram a odiar o meu avô. Só ficaram contentes quando

Page 164: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

o expatriaram do Iraque, anos mais tarde, aproveitando uma revolta popular como

pretexto para colocar Sati na lista dos indesejáveis.

Ali al-Majid parecia aborrecido com aquela conversa sobre antiguidades. O seu

sorriso esmorecera e, de súbito, bradou:

- Deixe-me ver esse anel! - Tinha os olhos fixos no dedo de Mayada, ornado por

um anel com um diamante e uma safira que a mãe lhe oferecera recentemente.

180

Mayada reparou que, quando Ali falava em voz alta, empregava um tom nasal,

muito semelhante ao de Saddam. Ficara tão perplexa com o seu pedido que fez

deslizar o anel do dedo e lho entregou.

Ficou a ver Ali al-Majid examinar o anel, virando-o nas mãos para poder espreitar

a parte inferior do engaste das pedras preciosas.

- Meu Deus! Estas pedras são verdadeiras? Mayada empertigou-se.

- Claro que são verdadeiras. A minha mãe comprou o anel na Tiffany's, para

celebrar o nascimento da minha filha, Fay.

Ali al-Majid apontava agora para o vestido que ela usava.

- Onde arranjou essa roupa?

- A minha mãe comprou este vestido em Paris.

A beleza física daquele homem desvanecia-se aos olhos de Mayada a cada nova

palavra que ele proferia.

Ali sorriu e inclinou a cabeça para o lado, de uma forma encantadora, quase

juvenil.

- Meu Deus! Pinta o cabelo?

O nervosismo inicial de Mayada regressara, enquanto Ali a olhava rudemente.

Podia ser um dos homens mais poderosos do país, mas não passava de um rapaz

de aldeia sem maneiras. Incapaz de controlar a sua curiosidade, revelava ser

descarado e completamente destituído da mais pequena ideia de como se

comportar em sociedade. Mayada pensou então que talvez fosse Saddam

Hussein quem não permitia que Ali al-Majid concedesse entrevistas. Ao contrário

do homem que estava sentado à sua frente, Saddam esforçara-se para

aperfeiçoar os seus conhecimentos do mundo. Frequentara a Universidade de

Page 165: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Direito no Cairo, aprendera a comer com modos e a vestir-se como um cavalheiro

- fizera tudo ao seu alcance para poder distanciar-se do seu passado rústico. No

caso de Ali, a história era completamente diferente. Mayada tinha agora a certeza

de que Saddam receava sentir-se envergonhado se a sociedade de Bagdá

descobrisse que um homem como aquele era seu primo direito.

181

Aali al-Majid esboçara então um sorriso jovial, aparentemente feliz por se libertar

da contenção que impusera a si próprio - ou que lhe fora imposta por Saddam.

Respondera a todas as perguntas de Mayada, dera-lhe o seu número de telefone

pessoal e pedira-lhe para ela lhe telefonar depois das comemorações do

aniversário de Saddam para que pudesse dar-lhe uma entrevista mais

aprofundada sobre a sua história pessoal.

- Contar-lhe-ei toda a minha vida - prometera, com um sorriso cativante.

Quando Mayada saíra do gabinete de Ali Hassan al-Majid, dirigira-se

imediatamente para a redacção da revista. Kamil esperava-a à porta e conduziu-a

até o seu gabinete. Ficou surpreendido e encantado quando ela lhe leu os

apontamentos que tirara.

- Ele abriu-se contigo - comentou, eufórico. - Eu sabia!

Mayada ainda tinha mais boas novas para dar ao chefe.

- Prometeu que me concederia uma entrevista mais aprofundada. Afirmou que vai

contar-me todos os pormenores da sua vida pessoal.

Kamil riu-se com ela.

- Esta entrevista foi um grande êxito. Nunca ninguém conseguiu fazer falar esse

homem.

Depois, apressara-se a mandar retirar um texto programado para o próximo

número da revista, de forma a que o artigo de Mayada sobre Saddam ainda

constasse da edição. Uma semana mais tarde, o artigo de Mayada foi publicado e

não se falou noutra coisa, em toda a cidade, porque era a primeira vez que Ali

Hassan al-Majid dava uma entrevista.

Ali Hassan al-Majid cumpriu a sua promessa de fornecer informações sobre a sua

vida a Mayada, para que ela pudesse escrever um artigo sobre ele próprio.

Page 166: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Quando Mayada ligou para o gabinete de Ali, pouco depois das comemorações do

aniversário de Saddam, ele convidou-a a lá voltar. Quando ali entrou de novo ficou

mais uma vez surpreendida com a beleza exterior daquele homem, ainda que esta

já não a impressionasse.

182

Ali al-Majid mostrou-se efusivo ao ver Mayada, anunciando que reorganizara a sua

agenda para poder recebê-la. Gritou para que lhe trouxessem chá e biscoitos e,

antes que Mayada pudesse dizer o que quer que fosse, ordenou-lhe abruptamente

que se sentasse.

- Hoje, quem fala sou eu!

Parecia tão entusiasmado como uma criança. Mayada sentou-se e escutou-o.

De braços estendidos, Ali agarrou-se ao rebordo da secretária e olhou impaciente

para Mayada enquanto ela preparava a caneta, o bloco e o gravador. Feito isto, o

homem começou a debitar a história da sua vida; parecia ter esperado a vida toda

por uma assistência atenta.

Eufórico, anunciou em voz alta:

- Esta é a vida de Ali Hassan al-Majid Al-Tikriti, orgulhoso filho de Hassan Majeed

Al-Tikriti! Tenho três irmãos: Abid Hassan, Hashim Hassan e Suleiman Hassan.

Voltou a sorrir, antes de continuar:

- Graças ao nosso grande líder, Saddam, que Deus o conserve e o abençoe,

todos sabem que nasci na pobre zona rural de Tikrit. Em criança faltei muito à

escola, porque eu e os meus irmãos revezávamo-nos para tomar conta das

ovelhas, tinha de percorrer longas distâncias a pé para encontrar pastos, mas

estava sempre atento aos lobos e nunca nenhum atacou uma ovelha quando eu

estava de guarda. Nem uma! Juro por Deus que os meus irmãos não me

chegavam aos calcanhares, quando se tratava de tomar conta das ovelhas! Mas

aqueles maldosos lobos aproximavam-se de mansinho pelos flancos do rebanho e

eu tinha de lhes atirar pedras e de os escorraçar com as mãos abertas, assim!

E imitou os movimentos de outros tempos, agachando-se e estendendo as mãos

no ar, numa postura que Mayada tinha de admitir ser feroz. Mas não tinha medo e

riu-se, o que fez com que Ali Hassan al-Majid também se risse.

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- Por Deus, aqueles tempos em que guardava as ovelhas transformaram-me num

soldado alerta, em alguém que nunca tira os olhos de cima do inimigo.

«Éramos tão pobres que eu só soube que havia cinemas Buando já era adulto.

Por isso, não cultivei o hábito de ir ao

183

cinema, e vi um único filme em toda a minha vida, um filme religioso sobre o

profeta José. - Ali encolheu os ombros. - Não era mau, mas gosto mais de ler

jornais e revistas.

«Eu tinha níveis altos de açúcar no sangue que se desenvolveram em diabetes, e

sou forçado a injectar-me todos os dias com uma dose de insulina. - Dito aquilo,

levantou-se, dirigiu-se a um armário e abriu uma gaveta, de onde tirou uma

seringa fina e um pequeno frasco. Depois, à frente de Mayada, injectou-se no

braço.

Riu-se quando ela se encolheu, mas Mayada explicou-lhe que a sua reacção fora

mais provocada pela surpresa do que pelo medo das seringas, confidenciando

ainda:

- Antes de o meu pai morrer de cancro, aprendi a administrar-lhe injecções para as

dores. Quando a enfermeira saía de nossa casa todas as tardes, eu ficava com a

responsabilidade de tratar dele. E aprendi também a dar injecções intravenosas.

Ali al-Majid mostrou-se genuinamente sensibilizado pelo sofrimento do pai de

Mayada e fitou-a, compadecido, afirmando que lamentava muito porque perder um

pai devia ser a pior coisa para uma rapariga nova. Ele também amava o pai mais

do que a própria vida, mas falaria disso a Mayada mais tarde. Regressou então ao

assunto da diabetes.

- É uma pena eu sofrer de diabetes, porque gosto de doces mais do que de

qualquer outra coisa. Por vezes, como grandes quantidades de doces e confio na

sorte. O meu preferido é um bolo com creme e gelatina, com camadas de doce de

ovos e fruta, mas também gosto de chocolates. - Como ainda se achasse de pé

junto a Mayada contornou a secretária para alcançar a parte de baixo e premir um

botão. Quando um empregado entrou no gabinete, Ali exclamou:

- Tragam-me uma caixa de todas as marcas dos meus chocolates preferidos!

Page 168: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Mayada protestou, porque controlava o seu peso desde que se tornara adulta, e

nunca queria empanturrar-se com chocolates. Mas de nada lhe serviu. Pouco

depois caixas com Mars, Kit Kat e tubos de Smarties empilhavam-se no regaço de

Mayada. Uma vez que Ali parecia encantado por lhe oferecer aquela pequena

prenda, Mayada aceitou pensando para si distribuí-las pelos colegas da redacção.

184

- Quero que assista a um casamento que vai celebrar-se daqui a quatro dias. O

meu irmão vai casar-se com a cunhada do doutor Fadil.

- Já tinha ouvido dizer - murmurou Mayada, ainda surpreendida que dois homens

que se detestavam consentissem que as respectivas famílias se unissem daquela

forma tão íntima. Para evitar uma discussão sobre o Dr. Fadil, Mayada mudou o

rumo da conversa.

- Que idade tem a noiva?

- Dezasseis anos.

- Ainda é muito nova - protestou Mayada, pensando na filha, que daí a quinze dias

faria dezasseis. Mayada nunca permitiria que a sua adorada Fay se tornasse

noiva tão cedo. Para ela, a tradição árabe das noivas muito novas era primitiva.

Ali al-Majid riu-se.

- É a idade ideal para uma rapariga se casar. O meu irmão é um homem com

sorte. Vai poder moldá-la como muito bem entender!

Mayada nada disse, mas mais uma vez percebeu a sorte que fora haver nascido

no seio de uma família instruída, em que as mulheres tinham tanto valor como os

homens.

Ali al-Majid pegou numa bola encarnada de borracha que se encontrava em cima

da secretária e começou a apertá-la entre os dedos, antes de abordar o assunto

que Mayada tentara evitar.

- Como conheceu o doutor Fadil Al-Barrak?

- Em mil novecentos e setenta e nove, ele contactou a minha mãe para pedir

emprestados os livros e papéis do meu avô Sati - explicou Mayada. - Estava a

escrever um livro e precisava deles para a sua pesquisa. Depois, tornou-se um

amigo generoso da família. A amizade desenvolveu-se por causa de Sati, é claro -

Page 169: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

apressou-se a acrescentar.

Ali oscilou o seu corpo, da cabeça aos pés, numa demonstração de desdém.

Atirou a bola à parede e ficou a vê-la ressaltar pelo gabinete.

- Não gosto de Fadil - declarou.

- Porquê? Não consigo pensar em nada de mau acerca dele.

185

As palavras de Mayada fizeram com que Ali franzisse as sobrancelhas,

apressando-se a explicar os motivos da sua antipatia por Fadil.

- Quando me tornei director da polícia secreta, recebi uma queixa acerca de Fadil

por parte de um grupo de ciganos. Fadil ordenara-lhes que abandonassem um lote

de terra onde eles viviam e que ficava nos subúrbios de Bagdá. Mandei chamar o

chefe dos ciganos ao meu gabinete e fiquei a saber que era irmão de Hamdiya

Salih, um cantor cigano muito conhecido. Gosto dos ciganos. Afinal, são seres

humanos como nós. De qualquer forma, aquela pobre gente não tinha onde viver.

Telefonei a Fadil e disse-lhe que mandasse um dos seus oficiais mais

credenciados até cá, para acompanhar o pobre cigano ao seu novo gabinete - Ali

começou a rir-se, muito alto. - Ordenei a Fadil que pedisse desculpa ao chefe dos

ciganos e lhe devolvesse o lote de terra. Segundo sei, Fadil construíra entretanto

uma grande casa no terreno abandonado, mas teve de devolvê-lo aos ciganos.

Ali não conseguia parar de rir, ao lembrar-se da humilhação por que fizera passara

o Dr. Fadil.

«Está tudo explicado!», pensou Mayada. Agora já percebia por que motivo o Dr.

Fadil odiava Ali Hassan al-Majid. Devido ao parentesco de Ali com Saddam, o Dr.

Fadil fora forçado a obedecer às suas ordens, apesar de ocupar um cargo mais

elevado. Mayada ainda se sentia pouco à vontade. Não querendo denegrir de

qualquer forma o Dr. Fadil, lembrou-se de uma das tácticas de Salwa e lisonjeou o

homem que tinha à frente. : ;

- Foi um acto muito generoso da sua parte. Ali al-Majid fitou-a, muito sério.

- Eu sou assim, sabia? Sou o homem mais bondoso que pode haver! O mais

bondoso! - Ali al-Majid sentou-se no tampo da secretária e começou a balouçar os

dois pés.

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- Deixe-me contar-lhe outra história. Uma mulher veio procurar-me, dizendo que o

seu único filho fora executado por ser um activista islâmico. Ela não tinha mais

ninguém a quem recorrer. O marido morrera. O filho morrera. Não tinha irmãos.

Era velha e estava quase cega. Ordenei que lhe

186

dessem uma casa e uma renda mensal de cem dinares. Lá porque o filho seguira

por maus caminhos, isso não significava que devêssemos castigá-la.

Olhou para Mayada e sorriu.

- O que me diz a isto?

Mayada acenou para demonstrar a sua compreensão.

- Fico contente por saber que ajudou essa pobre mulher - replicou. - Odeio a

crueldade. A sério. - No entanto, perguntava a si própria porque tivera o filho

daquela mulher de ser assassinado. Agora, quem no Iraque fosse demasiado

devoto arriscava-se a ser condenado à pena de morte, e isso entristecia-a e, ao

mesmo tempo, enfurecia-a.

- Só escreve para a revista?

- Não. Tenho outros projectos. Estou a escrever um livro de contos.

- Por Deus! Tenho dois ou três histórias perfeitas para o Sseu livro! - Então,

começou a falar tão depressa que mal

conseguia fazer uma pausa para respirar. - Ouça! É uma história sobre soldados.

Há algumas semanas, um dos nossos soldados fugiu da sua unidade e escondeu-

se nos pântanos de Umara. Para sobreviver, bebeu água dos pântanos e comeu o

peixe que conseguia apanhar. Então houve um dia uma grande ofensiva dos

Iranianos contra as unidades iraquianas que se achavam na zona e aquele jovem

soldado esqueceu-se de que era um desertor. Combateu ao lado de uma outra

unidade e acabou por se tornar um herói ao capturar cinco iranianos. Só depois se

lembrou de que era desertor e que se achava na unidade errada. Confessou tudo

ao comandante dessa unidade e foi condenado à morte. Bom, teve sorte por eu

tomar conhecimento da sua história antes de ser executado. Contactei com o

presidente e falei-lhe deste herói, que apenas tivera um momento de cobardia. O

nosso líder Saddam, que Alá o conserve, disse-me para salvar a vida do soldado e

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levá-lo ao palácio. Assim fiz e adivinhe o que aconteceu! O soldado recebeu a

Wissam Al-Shajaa, a Medalha de Coragem, das mãos de Saddam, que Alá o

conserve, e até um prémio em dinheiro. Inclua esta história no seu livro. E tenho

outra! - exclamou, saltando da secretária e batendo com os pés no chão.

187

Mais que contar uma história, a voz de Ali alterou-se. Parecia entoar uma balada

para o mundo acerca da sua imensa bondade.

- Há algumas semanas, ia eu a caminho do meu gabinete com o meu maivkib1, e

vi-me ultrapassado por um automóvel que seguia a grande velocidade. Quando o

condutor passou pelo meu carro e me reconheceu, parou imediatamente. Os

meus guarda-costas cercaram o seu automóvel e ordenaram-lhe que saísse. Por

Deus, aquele pobre homem parecia tão assustado que mal conseguia manter-se

de pé e caiu no chão. Eu saí do carro e tentei acalmá-lo. Por fim, disse-lhe que me

acompanhasse. Tremia quando entrou no meu automóvel, mas falei com ele e

levei-o para o meu gabinete, onde lhe serviram chá e biscoitos. Gracejei com ele,

e finalmente lá percebeu que eu não ia mandar prendê-lo só porque me tinha

ultrapassado. - Fitou Mayada com ar intrigado. - Não compreendo porque é que

as pessoas têm tanto medo de mim. Protejo o Iraque dos nossos inimigos. Isso é

mau?

Mayada não teve coragem de explicar que talvez houvesse um motivo válido para

o medo dos Iraquianos, tendo em conta os castigos infligidos pela polícia secreta.

Por isso, limitou-se a acenar, mas veio-lhe à memória o que acontecera a Um

Sami. Como desejava contar aquela triste história a Ali al-Majid, mas não foi

capaz. Dada a situação em que se encontrava, Mayada mantinha uma

surpreendente calma. Concluiu que Ali lhe fazia lembrar uma rapariga que

conhecera na escola e que aborrecia os colegas com as suas histórias até todos

começarem a evitá-la, e perguntou-se se o médico de Ali já o aconselhara a tomar

sedativos.

A euforia dele alcançara uma intensidade alarmante.

- Já lhe disse que eu era muito pobre, mas agora estou bem na vida e gosto disso.

Claro, a sua família é próspera há muitas gerações, e por isso não faz ideia do

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que é ter fome e andar descalço, não ter os livros que quer ler ou não poder

comprar os vestidos que gosta de usar. Nasceu com sorte. Mas

1 Mawkib: Carro que transporta guarda-costas e que acompanha a viatura oficial.

188

se sofri na minha infância agora conduzo carros com que dan-les só podia sonhar.

E vivo numa casa que para mim é um verdadeiro museu. Saddam, o nosso grande

líder, que Alá o conserve, visita-me regularmente, e tem olho para a beleza. De

cada vez que me visita, diz-me: «Ali, arranja um aquário! Ali, muda a forma da

piscina! Ali, manda derrubar aquela parede!» l;. uma espécie de piada entre mim e

o meu adorado primo mais velho, Saddam. Ele está convencido de que nunca

terei a casa que ele acha apropriada para mim. Certa vez, disse-me que eu devia

ter estudado para ser arquitecto, a fim de levar a cabo as sugestões dele. - Ali al-

Majid sorriu de felicidade. - () nosso presidente quer que eu tenha todas as coisas

boas que nunca tivemos em Tikrit. Ele é um bom primo.

«Que mais? - Ali al-Majid pigarreou. - Que mais tenho para lhe contar? Ah, os

meus filhos! O meu filho mais velho é Ornar. Tenho um segundo filho chamado

Hassan. Depois, a minha mulher engravidou pela terceira vez. Eu sempre soube

que ia ter uma filha e decidi que, se fosse uma rapariga, lhe daria uma prenda

especial, um nome original. Assim pus-lhe o nome de Hibba, que quer dizer

«dádiva». Achava que mais nenhum iraquiano, ou mesmo nenhum árabe, havia

pensado em atribuir à filha um nome tão bonito. Então, certo dia, quando circulava

pela cidade, o meu guarda-costas avistou uma geladaria chamada Hibba. Fiquei

tão surpreendido que parámos e saí. Ao ver-me, o dono da geladaria começou a

tremer. Pedi-lhe que se acalmasse, porque só estava ali para comprar um gelado.

Quando ele me serviu, perguntei-lhe porque pusera o nome de Hibba à loja. Ele

explicou-me que o escolhera porque era o nome da sua filha mais velha. Fiquei

surpreendido. Descobri que Hibba era um nome corrente e que muitas filhas de

homens orgulhosos se chamavam assim. - Acrescentou timidamente: - E eu que

julgava ter sido o primeiro a pensar naquele nome...

Ali parecia absorto nas suas recordações, tentando lembrar-se de outras histórias.

As suas contemplações levaram-no a ralar novamente do medo que inspirava aos

Page 173: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

outros.

- Não compreendo por que motivo tantas pessoas têm medo de mim. - Olhou

então para Mayada com um sorriso malicioso. - Tem medo de mim?

189

Pela primeira vez desde que estava ali, Mayada sentiu-se assustada e sussurrou:

- Devia ter?

Um brilho de júbilo passou pelos olhos de Ali, antes de replicar:

- Nunca! É a neta de um grande homem. Todos os iraquianos a estimam, tal como

o seu Jido Sati a estimava.

Quando ele se virou para servir a si próprio um copo de água, Mayada consultou o

relógio e apercebeu-se de que aquele homem falava sem parar havia três horas.

Felizmente, o telefone tocou e Ali atendeu. Murmurou algumas palavras e, depois

de desligar, informou Mayada de que tinha um outro compromisso. Antes de se

despedir pediu-lhe que regressasse na manhã seguinte porque ainda tinha muitas

histórias interessantes que ela devia incluir nos seus artigos e livros.

Quando saiu do gabinete de Ali al-Majid, Mayada experimentava sentimentos

contraditórios. Por um lado, ainda lhe custava a acreditar na sua sorte. Nada fizera

para conquistar a confiança daquele homem, que sempre se recusara a emitir um

comunicado de imprensa que fosse, e que no entanto se abrira com ela quase lhe

implorando que publicasse a história da sua vida na revista para a qual trabalhava

e no livro que pretendia escrever. Por outro lado, porém, aquele homem grosseiro,

que se achava único no mundo, podia manter um escritor atarefado durante

muitos anos.

Foi Salwa que encontrou a explicação mais plausível para o estranho

comportamento de Ali al-Majid, ao supor que Saddam havia encorajado o primo a

abrir-se com Mayada. Caso contrário, Ali nunca se atreveria a falar da sua vida

daquela maneira. Desde os seus tempos de estudante pobre no Cairo Saddam

sempre demonstrara um grande fascínio pela reputação e conduta irrepreensíveis

de Sati Al-Husri. Sabia que o grande homem nunca voltara costas a um estudante

pobre que lhe fazia muitas perguntas com o propósito de aprofundar os seus

conhecimentos. Aquele fascínio de Saddam por Sati fora automaticamente

Page 174: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

transferido para a filha e as netas do homem que ele tanto admirava.

190

Durante os três dias que se seguiram, Mayada escutou em silêncio, acenou

educadamente e anotou tudo o que Ali al-Majid lhe revelou. Havia momentos em

que erguia o olhar, durante uma pausa, e verificava que Ali tinha os olhos

cravados no rosto dela. Noutros, fitava-o atentamente, mas depressa se dava

conta de que Ali não a via, tão concentrado se achava a imaginar-se como

personagem principal de um livro. O seu comportamento maníaco deixou-a

exausta e deprimida, e sentiu um enorme alívio quando apresentou o seu trabalho

a Kamil, que lhe garantiu entusiasmado que ela recolhera material suficiente para

vários artigos e para um livro.

A partir daquela altura, a carreira de Mayada progrediu rapidamente. Espalhara-se

o rumor de que ela era capaz de entrevistar até mesmo o mais esquivo membro

do governo. O êxito preencheu o vazio deixado pelo casamento; havia alturas em

que Mayada se sentia muito feliz, como se tudo de bom a esperasse no futuro.

Poucos meses mais tarde, o chefe do gabinete de Ali al-Majid, um homem

chamado Dr. Saad, telefonou para casa de Mayada.

- Vai haver um exercício democrático amanhã. Ali al-Majid gostava que fosse a

repórter desse evento.

Mayada concordou imediatamente, por saber que seria um grande furo

jornalístico. Telefonou a Kamil para lhe contar a novidade. Não ia trabalhar no dia

seguinte, porque tinha de se dirigir ao gabinete de Ali al-Majid.

Quando Mayada se deitou, nessa noite, sentia-se entusiasmada, crente de que a

sua carreira tomara um rumo importante.

Nunca havia estado num evento daqueles e apresentou-se no velho quartel-

general do Dr. Fadil às 8.45 do dia seguinte.

Era um belo dia de Verão em Bagdá. Mayada envergava um vestido novo, branco

e fresco, de estilo marinheiro, com laços azuis, que a mãe lhe comprara em

Londres. Aspergira os pulsos e a parte de trás das orelhas com uma das

fragrâncias de Fashion De Leonard. Sentia-se livre e dona do mundo.

O quartel-general da polícia secreta era imenso, mas Mayada foi conduzida por

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um dos assistentes de Ali a uma sala de reuniões. O evento iria ter lugar no

ginásio. Tinha

191

uma piscina interior e um grande estrado, sobre o qual se viam uma mesa e várias

cadeiras, assim como dois microfones, um em cada extremidade. Filas

meticulosamente alinhadas de cadeiras haviam sido colocadas em frente do

estrado.

Mayada foi conduzida à fila da frente. Era a primeira a chegar, e sentou-se, à

espera que o exercício começasse, enquanto outras pessoas ocupavam os seus

lugares. Por qualquer motivo, deu consigo a entoar a famosa canção dos Mamas

and the Papas, Monday, Monday.

O ginásio depressa se encheu e o burburinho feito pela multidão reduziu-se a um

murmúrio quando Ali al-Majid entrou, rodeado pelos seus guarda-costas,

seguindo-se um grupo de outras altas entidades do governo.

Ali al-Majid olhou para o recinto e viu Mayada, sentada na primeira fila.

Cumprimentou-a com um aceno de cabeça, sorriu-lhe e, logo de seguida, postou-

se em frente de um dos microfones.

Fez um discurso breve, anunciando à assistência que, a partir daquele dia, os

assuntos do seu gabinete seriam tratados de maneira diferente, porque ele havia

procedido a profundas alterações desde que substituíra o Dr. Fadil. Explicou que,

com o total apoio do seu primo, o líder Saddam Hussein, que Alá o conservasse

por muitos e bons anos, o departamento que ele chefiava passaria a ser

verdadeiramente democrático.

Todos sorriram e aplaudiram, um pouco espontaneamente de mais.

Quando a salva de palmas esmoreceu, Ali al-Majid retomou o seu discurso,

anunciando que guardara a parte mais importante do exercício democrático para o

fim. Então, pela primeira vez, o seu rosto tornou-se triste e sério.

- Antes de ser nomeado para este cargo, qualquer malfeitor deste país

desaparecia misteriosamente. Era condenado a uma pena de prisão, ou mesmo

executado, sem a família saber onde estava detido ou quantos anos de prisão

teria de cumprir pelo seu crime... Sem sequer saber se estava vivo. Este era um

Page 176: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

procedimento errado, mas, por Deus, agora acabou! A partir de hoje, sempre que

um criminoso for detido, acusado e condenado, a sua família será notificada.

Talvez opte por renegar esse traidor, mas caber-lhe-á tomar tal decisão.

192

Nota do Corrector :

Seguem-se um conjunto de páginas com fotografias com legendas. Uma vez que

os textos das legendas se podem reproduzir, optei por numerar as fotos fazendo

corresponder a esse número de ordem o texto respectivo…

- Foto 1 ( pág. I ) - A princesa Melek (bisavó materna de Mayada), que era prima

direita do sultão otomano Abdul Hameed. Aqui, fotografada com a sua tiara de

diamantes. Possuía uma medalha com diamantes do tamanho de uvas. Mayada

herdou seis desses diamantes, que foi forçada a vender durante o período de

sanções. Também herdou da bisavó o Shehname (um decreto assinado pelo

sultão, atestando que, por atingir a maioridade, Melek passava a ser uma sultana,

e onde eram enumeradas todas as propriedades que ela recebia). Ainda conserva

esse documento em seu poder.

Pág. II :

- Foto 2 - Mustafa Al-Askari ( pai de Jafar e bisavô de Mayada ), em Bagdá :

comandante do 4º Exército Otomano.

- Foto 3 - Jafar Al-Askari no seu traje dervixe, quando atravessou, incógnito, as

linhas do inimigo até ao Cairo, a fim de comprar provisões para o seu exército.

- Foto 4 - Jafar Al-Askari, com o seu uniforme militar.

- Foto 5 - ( pág. III ) - 1955: Mayada, aos cinco dias de vida, em Beirute, Líbano,

com a mãe, Salwa, o pai, Nizar, e Scottie, o cão.

Page 177: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Pág. IV :

- Foto 6 - 1957 : Mayada, com quase dois anos de idade, num balouço com a sua

boneca, em Bagdá.

- Foto 7 - 1965 : Sati Al-Husri com a filha, Salwa, e as duas netas, Mayada e

Abdiya, em Broummana, Líbano .

Pág. V :

- Foto 8 - 1981 : Mayada ao lado de Saddam Hussein, aquando da atribuição do

seu primeiro prémio literário.

- Foto 9 - 1983 : Mayada ao lado de Saddam Hussein, aquando da atribuição do

seu terceiro prémio literário.

Pág. VI :

- Foto 10 - 1923 : Sati Al-Husri na sua biblioteca particular, em Bagdá.

- Foto 11 - 1923 : Jamila, mulher de Sati, na sua bioblioteca, em Bagdá.

- Foto 12 - ( pág. VII ) : 1953 - Salwa Al-Husri com o tio do marido, Nouri Al Said,

primeiro-ministro do Iraque durante quarenta anos, que foi assassinado durante

um golpe político em 1958, juntamente com a família real iraquiana. Esta foto foi

tirada no Hotel Dorchester, em Londres, em Novembro de 1953, durante um baile

que tinha por tema As mil e uma noites …

Pág. VIII - Foto 13 - 1993: Os filhos de Mayada, Fay e Ali, com a avó, Salwa, em

Amã, Jordânia.

Mayada, constrangida, olhou em seu redor. Muitas pessoas ali presentes

mudavam de posição nas suas cadeiras, algo incomodadas. Ninguém conseguia

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acreditar na espontaneidade do discurso de Ali al-Majid, que, aparentemente não

se preocupava com o facto de que criticar um outro departamento do governo lhe

podia trazer problemas. Uma tal franqueza era um tabu no Iraque do Partido Baas,

mesmo para um parente próximo de Saddam, sobretudo num fórum público.

Mayada concluiu que iria passar-se algo de muito importante. Parou de escrever,

ligou o gravador e, com o coração a bater mais depressa, escutou atentamente.

- Quero que as famílias de todos os criminosos saibam exactamente o que

aconteceu aos seus entes queridos. Por Deus, é uma questão de justiça! - Olhou

então para o fundo do estrado e pronunciou um nome. Um homem alto, magro,

com pouco cabelo e rosto afável, aproximou-se, parou em frente do segundo

microfone e anunciou:

- O meu único filho foi preso há seis meses. Não sei onde está. Aqui está o nome

dele.

Dito aquilo, dirigiu-se a Ali al-Majid e entregou-lhe um papel. Ali leu o nome e

depois amarrotou o papel, antes de consultar dois ou três documentos que o seu

assistente entretanto lhe trouxera.

- Sim. O seu filho foi acusado de alta traição e executado. Desconhece-se o local

onde se encontra a sua sepultura. Tem aqui uma cassete com a confissão dele.

Vá para casa e escute-a para não chorar mais a morte desse traidor.

O pobre homem recuou, espantado. Por uma fracção de segundo, tentou não

sucumbir ao choque, mas, não o conseguindo, tocou no ombro de Ali e gritou,

desesperado:

- O meu filho está morto? O meu filho está morto?

Dois assistentes agarraram-no, antes de ele desfalecer. Ao ser conduzido para

fora do palco improvisado, Mayada viu que agarrava com força a cassete como se

fosse tão preciosa quanto os restos mortais do seu filho.

Mayada não conseguia desviar o olhar, agora fixo no rosto de Ali al-Majid.

Esboçava um sorriso patético e clamou, com patente convicção:

193

- É bom que este pai saiba que o seu filho é um traidor. Sim! Talvez tenha errado

enquanto pai, mas agora pode redimir-se e tomar mais atenção à forma como

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educa as filhas.

Mayada baixou os olhos e fitou os próprios pés.

Escutou Ali al-Majid chamar por uns familiares esperançados, que assistiam

àquele exercício democrático na crença de que tinham vindo buscar um parente

há muito desaparecido para o levar de volta para casa e celebrar o seu regresso.

Ficou a ouvir os passos dos que avançavam confiantes para o estrado, ciente de

que ninguém iria receber boas notícias. Na sua mente, ouvia uma enorme corrente

que se arrastava pelo palco, uma corrente de iraquianos, agrilhoados a uma dor

terrível, ouvindo o triste destino da pessoa querida.

Mayada ali ficou, sentada, como uma pedra tão solidamente encaixada quanto as

pedras da Grande Pirâmide, até que alguém lhe tocou no ombro e lhe sussurrou

ao ouvido:

- Atenção, eles estão a olhar.

Mayada ergueu a cabeça e olhou em frente, sem nada ver, fingindo-se

interessada no horrendo espectáculo.

Chegavam-lhe aos ouvidos os sons de conversas ansiosas entre as famílias dos

prisioneiros, agora mortos ou condenados, enquanto mantinha os olhos cravados

em Ali al-Majid. A expressão galvanizada daquele homem deixou patente que

estava a divertir-se muitíssimo, quando fez transmitir a gravação de um jovem que

estava a ser torturado, com os seus gritos a ecoar pelo grande auditório. A mãe do

jovem morto saltava e esbracejava, como se acreditasse que podia impedir o

suplício do filho. Os seus gestos arrebatados provocaram risos na assistência e,

quando desmaiou, tombando pesadamente no estrado, o público desatou a rir à

gargalhada.

Mayada sabia que todos os que se achavam na assistência se sentiam tão

incomodados como ela, mas temiam o poderoso Ali al-Majid e achavam que

deviam apoiar todas as suas acções, porque tinham consciência de que, se não o

fizessem, o seu futuro podia incluir uma longa caminhada até ao estrado para

ouvir a gravação do suplício de um ente querido.

Mayada atentou nos rostos dóceis de duas jovens, quando ouviram que o pai fora

condenado a uma pena de vinte e cin-

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194

co anos por contrabando. Sob o efeito do choque, murmuravam que o pai era

professor mas perdera o emprego e havia levado os pneus porque a sua família

estava a morrer à fome. Não revelando a menor atenção pelo desgosto das duas

jovens, Ali olhou, sorridente, para a assistência.

- Contrabando é contrabando! - vociferou. - É um crime muito grave, mas estamos

a entrar numa nova era, em que estas pessoas podem ficar a saber a verdade

acerca dos seus entes queridos.

Olhou, de relance, para Mayada, sorriu-lhe e continuou:

- Sou um homem bondoso, por Deus! Imediatamente, a assistência aplaudiu

entusiasticamente. «Meu Deus, será que ele não vai parar de sorrir?» Mayada

estava tão abatida que todo o seu corpo tremia. Sentia-se aterrorizada por pensar

que aquele homem a conhecia.

Olhou para o seu regaço, porque não sentia coragem de ver um outro rosto

esperançado ensombrar-se pela desilusão. para se abstrair daquele horrendo

espectáculo, cheirou o perfume que exalava dos seus pulsos.

Quando voltou a erguer o olhar, empalideceu. Um homem alto e esquelético, com

roupas esfarrapadas, achava-se no estrado. A pele do seu rosto estava tão

queimada que o cabelo se derretera, deixando à vista o couro cabeludo

enegrecido pelas queimaduras. Com a boca completamente desdentada e os

dedos cobertos de sangue coagulado, aquele homem esquelético parou junto de

Ali al-Majid. Este fitou-o, compadecido, e apertou-lhe a mão ensanguentada com

todo o cuidado. Então, voltou-se para a assistência. Os seus olhos negros

brilhavam como dois pedaços de carvão em brasa. Anunciou o nome do homem e

chamou uma mulher, explicando que era a esposa da criatura cadavérica.

O mal-estar de Mayada aumentava a cada minuto que passava. Então, uma

mulher baixa e gorda, que não devia ter mais de trinta anos, abriu caminho, por

entre a assistência, para se ir colocar em frente do segundo microfone. Usava

uma baaya, segundo a tradição iraniana, presa por baixo do queixo. Olhou para Ali

al-Majid com medo e desconfiança.

O seu frágil marido tinha os olhos fixos nela, deixando transparecer uma

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expressão de raiva e de desilusão.

195

Ali al-Majid virou-se para o homem.

- Devias ter-te divorciado desta prostituta há muito tempo. Sabias que ela era

iraniana. Devias ter-lhe partido um dos ossos e inspeccionado o que havia lá

dentro, porque terias descoberto que só continha merda.

O homem dirigiu-se à assistência, pronunciando cada palavra com dificuldade e

exprimindo um pesar inexprimível com voz debilitada.

- Vêem estas mãos? - perguntou, estendendo-as. - Vêem como não têm unhas?

Foram-me arrancadas uma a uma, de cada mão, durante dez dias. E os dedos

dos meus pés? - Tentou erguer um pé, mas estava demasiado fraco para se

equilibrar numa só perna. - Não tenho unhas nos dedos dos pés, que também me

foram arrancadas, uma a uma, durante dez dias seguidos. Depois, levaram-me

para uma sala pequena e sentaram-me numa cadeira. Ataram-me as mãos à

cadeira. Um homem arrancou-me os dentes um por um com um alicate. Depois

disso, meteram-me num forno grande, em que cabiam dois homens. Disseram que

me iam assar até eu morrer e dar aos cães o que sobrasse de mim. Deixaram-me

lá dentro o tempo suficiente para tostar a minha pele e derreter o meu cabelo. -

Passou as mãos ensanguentadas pelo couro cabeludo enegrecido. Olhou com

tristeza para a esposa e mal conseguiu prosseguir. - E tudo por causa da minha

mulher se ter zangado e ter escrito uma carta à polícia secreta. Disse-lhes que eu

era membro do Partido Islâmico e que planeava assassinar oficiais do governo.

Mayada não se mexeu, perplexa com a ideia de uma vingança tão implacável. O

seu marido desiludira-a muitas vezes, mas nunca teria conspirado contra ele.

Perscrutou o rosto da mulher. Uma centelha de revolta cresceu no íntimo de

Mayada. Como podia uma mulher fazer aquilo ao pai dos seus filhos? O pobre

homem desfez-se em lágrimas e ninguém podia reconfortá-lo, apesar de Ali tentar

acalmá-lo, dizendo-lhe que ele seria muito bem recompensado pelas torturas que

lhe haviam sido infligidas, devido a uma acusação falsa, e acrescentando que ele

próprio já havia assinado os documentos que recompensariam aquele homem

com uma substancial quantia.

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196

Então, Ali al-Majid fitou a mulher, que tremia.

- Que foi que fizeste, rameira, ao teu próprio marido? A mulher estava tão

assustada que não conseguiu falar,

mesmo depois de abrir e fechar a boca por duas ou três vezes. Ali relatou as

circunstâncias do crime.

- Isto - sibilou, cuspindo para o chão, para dar mais ênfase ao seu desdém - é uma

prostituta iraniana. Vive em Karbala. Teve três filhos do marido. Quando ele foi

chamado para a linha da frente, a fim de cumprir o seu dever patriótico,

defendendo a sua terra santa dos agressores iranianos, esta miserável prostituta

recebeu homens na casa deles. Mesmo com três filhos menores, transformou a

casa num bordel.

«O nosso herói iraquiano regressou da frente de combate e ficou a saber o que se

passava. Confrontou esta prostituta e, claro, como é uma mentirosa descarada,

negou tudo. Quando

o marido voltou para a frente de combate, ela escreveu uma carta anónima,

acusando-o de ser um traidor. Ele foi preso, interrogado e castigado. Só mais

tarde soubemos que ela era uma prostituta iraniana e prendemo-la. Que

descobrimos então? Toda esta história sórdida. Ela mentira. Queria que o marido

morresse para poder continuar a manter os seus hábitos de prostituta.

Ali fitou a mulher com expressão ameaçadora.

- Ouve, miserável prostituta. Hoje, serás abandonada, com os teus filhos, na

terra de ninguém entre o exército iraquiano e o exército iraniano. Os

bombardeamentos da artilharia são tão intensos que, mais cedo ou mais tarde, tu

e os teus filhos irão morrer, o que será uma bênção para o Iraque. -

Dito aquilo, Ali al-Majid começou a rir-se como uma criança. - Sou um homem

bondoso! Sou um homem bondoso e quero que se faça justiça, em nome deste

pobre homem! E continuou a rir-se, enquanto fitava a assistência com olhos

esgazeados.

Mayada estremeceu. A assistência riu-se baixinho, antes de começar a aplaudir.

Os aplausos intensificaram-se até se transformarem numa demonstração de

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concordância.

Mayada tentou respirar fundo, porque lhe faltava o ar, enquanto olhava para o

infeliz homem, cujas pernas queimadas

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finalmente haviam cedido. Tombara no chão. Ia perder os seus filhos. Mayada

quis gritar a Ali al-Majid que não cometesse uma tal injustiça. Sim, a mulher devia

ser castigada com uma pena de prisão, mas as crianças estavam inocentes.

Ali al-Majid, no entanto, parecia satisfeito com o seu veredicto, e Mayada

compreendeu que nada podia fazer para alterar aquela decisão. Fincou as unhas

no assento da sua cadeira, combatendo uma vontade imensa de se levantar e

fugir dali, para o lugar mais longe possível.

Dois homens subiram ao estrado, agarraram na mulher e levaram-na, enquanto

dois enfermeiros conduziam o ofendido marido para o fundo do estrado.

Aquele pesadelo de seis horas terminou às três da tarde, quando Ali Hassan al-

Majid agradeceu a todos por haverem vindo, acrescentando que passaria a

organizar aqueles exercícios democráticos uma vez por mês.

- Por Deus, sou um homem justo e, como responsável máximo da polícia secreta,

notificarei os iraquianos sobre o destino dos seus entes queridos!

Mayada forçou-se a sorrir, antes de abrir caminho por entre a multidão, em

direcção à saída. Quando se achava junto da porta, um dos assistentes de Ali

interceptou-a e disse-lhe que o seu chefe lhe pedia que permanecesse um pouco

mais, a fim de falar com ele sobre o êxito da sessão democrática. Mayada sempre

se pautara pela verdade, mas não hesitou em mentir.

- Agradeça-lhe pela sua bondade em me ter convidado. Diga-lhe que a minha

bebé precisa de mim e que falarei com ele, mais tarde.

E fugiu daquele auditório, como se algo a arrancasse dali à força. Fugiu de Ali

Hassan al-Majid, um homem que, percebia-o agora, sofria de distúrbios mentais,

que ora condenava um filho único, ora, no momento seguinte, recompensava a

mãe desse filho com uma pensão vitalícia. Mayada conduziu tão depressa quanto

o limite de velocidade máxima lhe permitia. Voltou para casa, tirou o vestido de

marinheiro que a mãe lhe oferecera e enfiou-se no chuveiro. Mesmo debaixo da

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água quente, sentiu calafrios a percorrerem-lhe o corpo.

198

Quando regressou à redacção, na manhã seguinte, Mayada passou por Kamil e

pediu para ser recebida por Suhail Sami Nadir, um homem maravilhoso e afável,

que era responsável pela publicação. Mayada e Suhail não eram muito chegados,

mas sempre achara que ele gostava dela. Colocou a sua vida nas mãos daquele

homem, ao confiar-lhe os seus sentimentos sobre o que havia testemunhado no

dia anterior.

- Não posso voltar a ver aquele homem. Não poderei escrever o artigo sobre ele,

como me pediram. Peço a demissão. Não posso continuar a ser uma repórter no

Iraque.

Suhail fitou-a atentamente. Concordou de imediato com Mayada, como se já

houvesse reflectido sobre o caso.

- Ouça. Se quer retirar-se, não a impedirei, mas faça-o gradualmente. Passei por

uma experiência parecida, há uns tempos. Recusei-me a escrever um artigo. E

que me aconteceu? Os agentes da Mukhabarat mantiveram-me preso durante três

anos. O artigo pode ser publicado sem o seu nome. Depois, pouco a pouco,

poderá afastar-se do jornalismo político. É a melhor maneira...

Mayada compreendeu então por que motivo Suhail parecia sempre tão reservado

e distante. Só então se lembrou de que ele coxeava e que não dobrava

completamente um dos braços. Suhail tinha no próprio corpo várias recordações

do cárcere.

Durante alguns meses, Mayada ainda recebeu telefonemas frequentes do

gabinete de Ali Hassan al-Majid, informando-a de um ou outro evento em que

queria a sua presença. Como mãe, Mayada tinha sempre uma desculpa credível,

com uma filha de tenra idade sujeita às doenças e febres tão comuns na infância,

e que não podia ficar sozinha. Passado pouco tempo, os telefonemas do gabinete

de al-Majid cessaram; o único desejo de Mayada era o de que ele a tivesse

definitivamente esquecido.

Porém, a sua vida ficara cortada ao meio no dia do exercício democrático, criando

duas partes, ambas pertencentes à mesma mulher. Fora nesse dia que Mayada

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começara a sentir um misterioso apelo para mudar o seu estilo de vida. Ela, que

em tempos fora uma das mulheres mais chiques da sociedade de

199

Bagdá, vestida sempre à moda, começou a transformar-se lentamente numa

muçulmana devota. Habituou-se a usar véu. Sentia um grande conforto em velar o

rosto, apesar das acusações encolerizadas da mãe de que ela estava a regredir

ao passado primitivo dos Árabes.

Após o nascimento de Ali, Mayada divorciou-se do marido e as suas únicas

alegrias passaram a ser os seus filhos e as páginas do Alcorão. A sua vida

mudara para sempre.

Mas agora pancadas fortes na porta da cela 52, em Bala-diyat, trouxeram-na de

volta ao presente. A porta abriu-se e Mayada afastou-se, quando dois homens

corpulentos entraram.

- Saiam! Saiam! Todas!

A Dr.a Sabah correu na direcção de Samara, enquanto tartamudeava:

- Esta mulher não pode andar. Foi ferida.

- Saiam! Todas!

Cientes de que era inútil esperar misericórdia, Muna e a Dr.a Sabah carregaram

entre si o corpo de Samara, cujos pés mal tocavam no chão. As outras mulheres-

sombra apressaram-se a avançar para a porta e Mayada foi empurrada para fora

da cela.

O director da prisão esperava-as no corredor. Era um homem alto e gordo, de

tronco maciço. Lançou-lhes um olhar fulminante e vociferou:

- Ponham-se em linha! Formem uma linha recta! - Mayada tremia, apavorada. -

Formem uma linha recta! - repetia ele, olhando para elas, uma por uma. - Já!

Sigam até ao fim do corredor! Agora!

As mulheres-sombra haviam-se juntado de tal maneira que cada uma delas tocava

na mulher da frente e na de trás, formando um cortejo de puro terror.

Mayada achava-se atrás de Roula e à frente de Iman.

- Sigam em frente!

Chegaram ao fim do corredor e foram conduzidas como ovelhas pela porta

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estreita. Um grito abafado percorreu o grupo, quando entraram na estranha

divisão. Era uma cave. As pa-

redes escuras haviam sido escavadas. Baldes cheios até acima

com urina alinhavam-se no chão, enquanto se viam pilhas de excrementos

humanos.

- É aqui que eles executam os prisioneiros! - exclamou Samara.

Um terrível grito de pavor saiu das bocas das mulheres-sombra.

As que eram mães começaram a gritar os nomes dos filhos, enquanto as solteiras

começaram a chamar as suas mães.

Foi então que mais guardas entraram pela porta aberta, hatendo-lhes com bastões

e varas e forçando-as a encostar-se

contra a parede.

- Vamos morrer! - gritaram as mulheres-sombra. Mayada preparou-se para a

morte e, em voz alta, rezou:

- Que Deus me perdoe por todos os pecados que possa ter cometido na vida. Que

Deus proteja os meus filhos. Por favor, tira-os do Iraque para que possam ter uma

vida condigna.

Prantos de sofrimento ecoaram pela cave.

Naquela escuridão, Samara começou a cantar baixinho, porque estava muito

fraca. Entoou o refrão de uma velha canção de embalar iraquiana, com mais de

duzentos anos, alterando as palavras para que se adaptassem àquele momento.

Perdi a minha mãe,

Quando era ainda criança,

Mas lembro-me de como ela costumava embalar-me,(

Acarinhando-me nos seus braços.

Agora imploro-te, ,

Caminha com cuidado sobre este solo,

Talvez eles a tenham enterrado aqui,

Por isso caminha com cuidado sobre este solo.

Outras vozes juntaram-se à de Samara, entoando as novas palavras. Enquanto as

mulheres-sombra continuavam a cantar, mais cinco guardas entraram na cave.

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Traziam espingardas ao ombro.

- Virem-se contra a parede! Preparem-se para morrer! - bradou o director.

200

201

As mulheres-sombra juntaram-se, de encontro à parede, formando um pequeno

círculo. Abraçadas umas às outras, não conseguiam parar de chorar. Duas delas,

mais velhas, desmaiaram.

Três ou quatro guardas correram para elas e levantaram-nas, puxando-as pelos

cabelos e dando-lhes murros nos rostos. Os seus gemidos de dor misturaram-se

aos gritos das outras e às gargalhadas dos guardas.

Mayada sentiu que se alheava de tudo. Era a vontade de Alá que aqueles fossem

os seus últimos momentos na terra. Fechou os olhos e cobriu o rosto com as

mãos. Preparou-se para o fim, porque não tinha outra alternativa.

Ainda ouviu as palavras azedas e sarcásticas do director, quando berrou:

- Rezem ao vosso Deus, se quiserem, mas Ele não vos escutará! Hoje, sou eu o

vosso Deus!

Não conseguia parar de rir.

- Sou eu o vosso Deus! Gargalhadas cruéis ecoaram na cave.

Os risos enlouqueceram Mayada, que conteve a respiração e esperou que as

balas lhe perfurassem o corpo. Foi então que ouviu vários estalidos. Os guardas

estavam a preparar as suas armas.

- Mãe! Mãe! - gritava Sara. Um guarda deu-lhe uma bofetada. Muna, abraçada a

Mayada, soluçou:

- Não posso morrer. Tenho um bebé que precisa da mãe. Sou muito nova para

morrer!

Os pensamentos de Mayada sucediam-se a um ritmo alucinante. Sentiria as balas,

quando lhe penetrassem no corpo? Sofreria? Perderia a consciência, antes de

morrer?

Os homens não paravam de rir.

As mulheres-sombra esperavam a morte.

Não se ouviam tiros.

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E as mulheres-sombra continuaram à espera da morte.

Por fim, Mayada abriu os olhos e virou a cabeça, discretamente, tendo o cuidado

de não se mexer.

As armas dos homens estavam apontadas para o chão.

A única coisa apontada na direcção delas era uma máquina fotográfica.

202

As outras mulheres começaram a abrir os olhos e a fitar os punidas.

- Virem-se! - ordenou o homem que tinha a máquina futográfica. - De frente para

mim!

Mayada sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Talvez o homem da câmara quisesse

registar o fuzilamento. Sabia que era frequente o governo tirar fotografias de

execuções. Iriam passar a sua execução na televisão? Seria assim que os seus

filhos descobririam que ela morrera? Através de um programa de televisão?

O director gritou:

- São um bando dos diabos! - Cuspiu para o chão, em demonstração de desdém

pelo terror e medo daquelas mulheres. - Agradeço a Alá por ter em casa uma

mulher e irmãs que nem sequer sabem como comprar mantimentos no mercado -

o que queria dizer que eram tão religiosas que não saíam de casa. - Olhem para

vocês! Um bando de criminosas! São a desgraça das vossas famílias! E, ainda por

cima, também são cobardes!

E, mais uma vez, cuspiu para o chão.

- Estão aqui para tirar o retrato! - informou ele. Depois começou a rir-se. Riu-se

tanto que se dobrou, enquanto dava palmadas na própria coxa.

Os outros também se riam. Um guarda resolveu parodiar o medo revelado pelas

mulheres-sombra. Encostou-se a um canto e imitou Sara, berrando:

- Mãe! Mãe!

Os outros ainda se riram mais.

Mayada compreendeu de súbito o que acontecera. Os guardas de Baladiyat

deviam estar fartos da rotina e alguém se lembrara daquela brincadeira para

aterrorizar as mulheres.

A maioria das companheiras de cela de Mayada ainda chorava. Viu que três ou

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quatro jaziam no chão, inconscientes.

Sentia-se atordoada. Mal conseguiu mexer-se quando lhe ordenaram que se

colocasse num determinado local para que lhe tirassem a fotografia que

preencheria a sua ficha prisional

Depois de lhe tirarem várias fotografias, afastou-se aos tropeções para um canto e

ficou a ver as outras mulheres serem Fotografadas.

203

Ao fim de uma hora, foram conduzidas novamente à sua cela, mas ninguém disse

nada.

Mayada deitou-se no seu beliche, virou-se para a parede e chorou. Pela primeira

vez, as suas lágrimas eram de consolo. Não morrera naquela noite. Talvez Deus

permitisse que ela voltasse a ver os seus filhos.

204

7

Tortura

A execução simulada aguçou ainda mais a crueldade dos guardas. Gritos e

gemidos agonizantes perpassaram pelas paredes de Baladiyat durante toda a

noite.

A sala de tortura ficava a poucas portas da cela 52, e Mayada podia ouvir cada

soluço. Há alguns anos lera o romance de Alexander Soljenitsyne Arquipélago de

Gulag, onde ele dizia que era mais penoso escutar as torturas a que eram sujeitos

os seus companheiros do que ser torturado. Mayada compreendia agora o que ele

quisera dizer.

A longa noite arrastou-se. Os prisioneiros estavam atentos ao som das botas que

ecoavam pelos corredores. Ouviam os espancamentos. Escutavam as palavras

proferidas pelos guardas, invariavelmente seguidas pelos gritos lancinantes dos

prisioneiros.

Sempre que as botas soavam, as mulheres-sombra receavam ouvir o som de uma

chave a abrir a porta da sua cela.

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Ao nascer do dia, Mayada ouviu o chamamento musical para a oração.

- Deus é grandioso. Não existe outro deus senão Deus, e Maomé era o Seu

Profeta. Venham orar, venham orar. Deus é grandioso, não existe outro deus

senão Deus.

As mulheres-sombra acolheram a manhã e o chamamento para a oração da

alvorada, que lhes trazia alguma esperança. Após o silêncio imposto pelas suas

preces, a apinhada cela atravancada agitou-se, quando vinte mulheres

começaram a preparar-se para um novo dia. Alisaram as roupas, entrança-

205

ram o cabelo comprido e revezaram-se para usar a retrete, antes de se sentarem,

à espera do pequeno-almoço. Mayada voltou para o seu beliche depois das

orações e sentou-se em silêncio. Cruzou os braços, afagando-os nervosamente

enquanto olhava as mulheres com quem partilhava a cela.

Samara ainda estava demasiado dorida para se mexer. Quando o pequeno-

almoço chegou, Muna adoptou o papel geralmente desempenhado por Samara e

distribuiu a comida por todas. Mayada aceitou a fatia de pão e a pequena caneca

de água que Muna lhe deu. A minúscula cela não permitia que todas as

prisioneiras se pudessem sentar confortavelmente e algumas das mulheres-

sombra optaram por andar de um lado para o outro enquanto comiam as lentilhas

e a fatia de pão bolorento e bebiam a água tépida.

Algumas horas depois, a porta da cela estremeceu com um repentino barulho. Os

guardas davam murros na porta enquanto uma chave girava na fechadura. Três

homens preencheram todo o espaço da soleira da porta, provocando uma viva

comoção e gemidos entre as vinte mulheres.

- Jamila! Estamos à espera!

Mayada virou-se para o grupo de mulheres, sentadas no fundo da cela. Jamila

fora detida havia três meses, e somente Samara fora mais torturada do que ela.

Confinada na pequena cela, Jamila não podia passar despercebida, porque não

parava de contorcer os ombros de uma forma perturbante, por parecer

completamente inútil.

Mayada viu o rosto de Jamila cheio de terror, sentada no chão entre as outras

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prisioneiras. A boca estava aberta, revelando uma pasta de lentilhas e de pão.

Após um breve momento de hesitação, acabou de mastigar e engoliu.

- Jamila! - berrou o guarda segunda vez. As suas sobrancelhas hirsutas e negras

crisparam-se ao olhar cada uma das mulheres.

Suspirando profundamente, Jamila fitou o guarda. Ela tinha quarenta e oito anos e

era mãe de muitas rilhas e de um filho. No ano anterior, o marido e o filho haviam

sido acusados de ser activistas islâmicos. Quando a polícia secreta invadira a

casa de Jamila a meio da noite para prendê-los, desco-

206

briira que os dois homens haviam rugido para a Turquia. A polícia levara Jamila

como refém, dizendo que ela ficaria presa no lugar do marido e do filho enquanto

eles não regressassem ao Iraque para serem executados. Desde o seu primeiro

dia de encarceramento, Jamila chorava continuamente. Explicava que as suas

lágrimas eram pelas suas bonitas filhas, que agora viviam sem a protecção de

uma mãe e de um pai. Mas pensar nas filhas não havia fortalecido o espírito de

Jamila, que cedera a uma profunda depressão.

Como todas as outras mulheres-sombra, Mayada fitou-a, enquanto o guarda se

impacientava na soleira da porta. Ainda no dia anterior, Mayada ouvira Jamila

pedir a Muna que a ajudasse a cobrir as costas com um emplastro improvisado,

feito de várias mantas, para que pudesse mexer-se sem ter dores. Quando Jamila

levantara a parte de cima do seu pijama para que as outras lhe colocassem o

emplastro, Mayada vira que as costas dela estavam marcadas por cicatrizes

arroxeadas, cobertas por crostas de feridas mais recentes, e compreendera por

que motivo Jamila não parava de contorcer os ombros. Mais tarde, explicara-lhe

que as suas feridas não só lhe provocavam dores como um intenso prurido.

Lentamente, Jamila inclinou-se e pousou o prato de lentilhas no chão, colocou a

meia fatia de pão em cima das lentilhas e empurrou a caneca de água de encontro

à parede. Só depois se pôs de pé.

Vestia o mesmo pijama rosa que usava quando a haviam detido. Ao fim de três

meses, tornara-se pardo pela sujidade da prisão, ficara largo e apresentava vários

rasgões. O elástico do cós estava tão lasso que as calças ameaçavam cair a todo

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o momento, o que obrigava Jamila a puxá-las até ao peito. Como tivesse o casaco

do pijama aberto, Jamila demorou-se a abotoar o botão de cima e a alisar com as

mãos a parte da frente.

Tão apresentável quanto podia estar naquelas circunstâncias, Jamila olhou para

os guardas. A pele da testa dela apresentava-se muito esticada e os olhos negros

encovados. Timidamente, deu um passo em frente, para, depois, recuar. Olhou de

novo para os três homens, que a fitavam com ar ameaça-

207

dor. Avançou, tropeçou e recuou, como se uma corda invisível a puxasse para a

frente e para trás, contra a sua vontade. Um dos guardas perdeu a paciência.

- Vais pagá-las! Por Deus, vais pagá-las! - bradou. Jamila dirigiu-se

maquinalmente para a porta, descalça;

tão apavorada ficara que se esquecera de calçar os chinelos.

As mulheres-sombra seguiram-na tristemente com o olhar, em silêncio, enquanto

dois dos guardas a agarravam pelos braços e a puxavam para fora da cela.

Quando a porta se fechou, com força, um dos guardas praguejou.

Jamila deixou escapar um grito agudo.

Sob as instruções de Samara, Muna, a Dr.a Sabah e Maya-da começaram a

preparar-se para o momento em que Jamila regressaria à cela. Estenderam vários

cobertores no chão e juntaram dois panos limpos. Despejaram a água que restara

das suas canecas para uma pequena taça e puseram-na ao lado da cama

improvisada. Nada mais tinham para tratar dos novos ferimentos de Jamila.

- Ela sangra muito das costas - recordou Samara. - Podem tirar um dos meus

cobertores para estancar a hemorragia, se for necessário.

Nesse mesmo instante, ouviram Jamila gritar de dor e implorar misericórdia.

As mulheres-sombra entreolharam-se, aflitas, mas mantiveram-se em silêncio.

Jamila chorou, gemeu e gritou sem parar, durante uma hora.

- Nunca ouvi gritos tão lancinantes - murmurou Samara.

Então, de súbito, os gritos de Jamila cessaram.

As mulheres-sombra aguardaram nervosamente pelo seu regresso.

Durante os longos meses de reclusão, Wafae enrolara habilmente os fiapos que

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pendiam de um velho cobertor para fazer um conjunto de contas de oração. Agora

aquelas contas já muito gastas eram passadas de mão em mão, enquanto todas

rezavam para que Jamila regressasse.

Depois de várias horas, Mayada começou a sentir uma crescente agitação.

Rezou, contorceu as mãos nervosamente e rezou mais um pouco. O seu coração

começara a bater mais depressa, e olhou para Samara em busca de uma

resposta.

Por fim, Samara respondeu à pergunta silenciosa de Mayada.

- Sim, tens razão. Alguma coisa se passa.

Mais tarde, um guarda de nariz achatado abriu a porta da cela e perguntou:

- A prisioneira Jamila deixou aqui alguns pertences pessoais?

Todas olharam para o guarda, mas ninguém respondeu.

- Onde estão as coisas dela? - berrou o homem, irritado.

Muna levantou-se e começou a recolher os parcos haveres de Jamila.

- Onde está Jamila? - perguntou Samara, do seu beliche.

As mulheres-sombra olharam esperançadas para o guarda, que lançou um olhar

fulminante a Samara e se recusou a responder-lhe. Quando Muna lhe entregou os

pertences de Jamila, um chinelo puído caiu ao chão. O homem baixou-se

para apanhá-lo, arrancou o que restava dos pertences miseráveis de Jamila

das mãos de Muna e saiu da cela, sem dizer palavra.

- Acabaram por matá-la. Sabia que este dia chegaria - murmurou Samara, com

voz trémula.

- Porque achas que eles a mataram? - quis saber Muna.

- Muitos prisioneiros têm ataques cardíacos. Conheci alguns cujo coração parou

durante um espancamento mais cruel - explicou Samara, num tom de voz

desalentado.

As mulheres-sombra choravam a morte de Jamila, quando a porta da cela 52 se

abriu mais uma vez e dois guardas surgiram.

O mais alto tinha um ar cruel e trazia na mão um pequeno chicote.

- Onde está Mayada Nizar Jafar Mustafa Al-Askari? Ao ouvir o seu nome, o medo

envolveu Mayada como um

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manto espesso. Com os olhos fixos no rosto do homem do chicote, a sua

respiração tornou-se difícil.

208

O homem batia com o chicote, devagar, contra a própria coxa e repetiu o nome de

Mayada, num tom destinado a transformar o seu orgulhoso nome num insulto.

- Mayada Nizar Jafar Mustafa Al-Askari?

- Vai ser libertada? - apressou-se a perguntar Samara.

O ódio do guarda por aquelas mulheres forneceu a resposta. Uma intensa

expressão de nojo passou pelo rosto do homem quando ripostou:

- Não. Ela não vai ser libertada.

E, num tom de voz áspero, gritou o nome completo de Mayada pela terceira vez.

O pavor cravou-se no coração de Mayada, que olhou à volta, desejando

ardentemente poder desaparecer. O seu corpo tremia levemente, quando

finalmente respondeu:

- Sou eu.

O guarda fitou-a.

- Tu! Anda! - vociferou, apontando para a porta com o chicote.

Mayada tentou levantar-se do chão, mas uma fraqueza que nunca experimentara

antes percorreu-lhe todo o corpo. Tirou-lhe a força dos ombros, dos braços, das

ancas e das pernas. Receando não conseguir erguer-se e ciente de que cada

momento de atraso podia enfurecer ainda mais o guarda, Mayada oscilou o corpo,

de um lado para o outro, no esforço desesperado de se levantar. Forçando o

corpo a fazer o que o espírito lhe proibia, Mayada sentiu uma cãibra do lado direito

e gemeu baixinho.

- Ajudem-na - pediu Samara a ninguém em particular. Muna e a Dr.a Sabah

ajudaram Mayada a levantar-se do

chão.

Já de pé, a sua cabeça e os seus ombros tremeram como efeito dos seus soluços

sem lágrimas. Muna deu-lhe uma pal-madinha nas costas e a Dr.a Sabah apertou-

lhe gentilmente a mão.

Quando Mayada passou pela porta, ainda ouviu Samara dizer-lhe:

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- Ficaremos à tua espera, pequena pomba.

210

Mayada caminhou pelo corredor entre os dois guardas. Não a haviam vendado, o

que lhe deu alguma esperança, pensando que talvez ainda houvesse a

possibilidade de ser libertada. Talvez Samara tivesse razão. Talvez ela fosse

libertada. () guarda do chicote dissera que não, mas até que ponto conhecia ele os

pormenores do seu caso? O coração de Mayada encheu-se de esperança perante

a maravilhosa possibilidade de voltar a ver Fay e Ali. Talvez o Dr. Hadi Hameed, o

jovem médico que a examinara na primeira noite, tivesse telefonado para sua

casa. Depois de receber o recado dele, Fay devia ter telefonado para a avó, em

Amã, e Salwa Al-Husri já devia ter contactado todos os oficiais do governo de

Saddam até alguém ordenar a libertação da filha. Afinal, Mayada sabia por

experiência própria que a mãe era a mulher mais tenaz do Médio ()riente, talvez

até do mundo inteiro. Salwa Al-Husri obtinha sempre o que queria. Sim, devia ter

sido o que acontecera, concluiu Mayada.

Confiante de que encontraria a libertação assim que a sua marcha entre os dois

guardas terminasse, Mayada voltou-se para observar o rosto do mais novo, que

seguia atrás dela. Ainda não havia falado e Mayada perguntou-lhe, com patente

confiança:

- Vou ser posta em liberdade?

Não obteve resposta de nenhum dos guardas, muito embora o mais velho, que

marchava à sua frente, parasse. Voltou-se, fitou-a e desatou a rir à gargalhada,

mas, tão abruptamente como começara, calou-se e franziu o sobrolho.

Mayada apressou-se a baixar os olhos, para evitar o olhar ilo guarda, que se virou

novamente para a frente. Ela seguiu-o, forçando o corpo a mexer-se, enquanto

tentava alhear-se da esperança e do terror, mas todas as suas esperanças se

desvaneceram por completo quando pararam em frente de uma porta de metal e

Mayada ouviu gemidos abafados do outro lado. Aquela porta dava para a sala de

tortura. Uma pobre alma estava a ser torturada, ali, naquele momento.

- Espera aqui - ordenou-lhe um dos guardas, e afastou-se. Sob a vigilância do

guarda mais novo, Mayada ficou de pé

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no corredor durante o que lhe pareceu uma eternidade, o que aumentou a sua

apreensão.

211

Esforçou-se por ignorar os gemidos que vinham da sala de tortura. Para não

imaginar o que se passava do outro lado da porta de metal, analisou as feições do

jovem guarda. Reparou na sua pele pálida e nos seus olhos azuis acinzentados.

Parecia afável e não devia ter mais de vinte anos - não passava de uma criança.

Sentindo que ela o fitava, o jovem voltou-se e, pela primeira vez, olhou

directamente para Mayada. Então, num tom de escárnio, perguntou-lhe:

- Para onde estás a olhar, velha puta?

Mayada desviou o olhar, desejosa de lhe perguntar por que razão um homem tão

novo já tinha tanto ódio no coração, mas preferiu manter-se em silêncio.

Foi então que a porta se abriu de rompante. O ser humano mais descomunal que

Mayada alguma vez vira ocupava todo o espaço da soleira. Era tão alto que teve

de se curvar para que a sua cabeça passasse por baixo da porta. O seu tronco

largo forçava-o a virar-se de lado para sair da sala. A sua aparição repentina

assustou até o jovem guarda, que se desviou, numa reacção tão nervosa quanto a

de Mayada. O gigante carregava um prisioneiro inconsciente aos ombros e a porta

fechou-se com força atrás dele.

Mayada recuou, fitando aterrorizada o prisioneiro desmaiado. Tinha o rosto lívido,

a sua cabeça balouçava para a frente e para trás e os seus braços e pernas

estavam torcidos de uma forma estranha. Uma auréola húmida manchava a parte

da frente das suas calças. No seu medo e sofrimento, o pobre homem urinara

sobre si próprio.

Mayada olhou então para o gigante, atenta a cada expressão do seu rosto.

Quando ele se voltou para a fitar, Mayada soube que não a haviam chamado para

a libertar. Ia ser torturada.

Tudo se alterou numa fracção de segundo. Sem uma palavra, o gigante lançou

violentamente o prisioneiro ao jovem guarda, que cambaleou sob o peso do corpo.

Instintivamente, Mayada voltou-se para fugir, mas o gigante agarrou-a, puxando-a

por um braço com tanta força que a ergueu do chão e a arrastou para a sala de

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tortura. Mayada

212

gritou, mas de imediato o gigante apertou-lhe o pescoço com uma das suas mãos

enormes.

Com a mão daquele homem em volta do seu pescoço, o único desejo de Mayada

era agarrar-se à vida. Fay e Ali precisavam dela. Combateu o seu medo e tentou

manter o controlo, olhando em volta. A sala de tortura não era muito maior do que

a cela 52. Homens que ela nunca vira achavam-se nos recantos obscuros da sala,

e ao vê-la apressaram-se a avançar na sua direcção. Mayada nunca sentira tanto

medo em toda a sua vida, nem mesmo no dia em que fora presa.

Um dos carrascos saudou-a com um pontapé nos rins, enquanto o gigante a

atirava ao chão. Mayada gritou, enquanto o homem se ria.

- Bem-vinda, Mayada Nizar Jafar Mustafa Al-Askari - exclamou, em tom

zombeteiro.

Mayada quis ganhar coragem para ripostar, mas estava em desvantagem.

O gigante arremessou-a para uma cadeira velha, de madeira, que apresentava

arranhões. Antes que ela pudesse protestar, (dois homens ataram-na à cadeira

com correias brancas de plástico.

Em poucos segundos, ficou com as mãos e os pés imobilizados. Tentou em vão

libertar-se das correias, mas estava com-pletamente indefesa.

Uma luz potente cegou-a.

Se bem que tiritasse de medo, focou a sua atenção no único rosto que conseguia

ver à sua frente. Um homem feio, de rosto largo e corado, com uma cabeça muito

grande para o seu corpo, fitava-a.

- Então, apoias os Xiitas - acusou-a, enquanto balouçava o seu bastão de

borracha a poucos milímetros da cabeça de Mayada.

- Ela conspira com eles - denunciou uma outra voz, ao fundo da sala.

Uma terceira voz acrescentou:

- Tais acções trazem sempre consequências desagradáveis.

213

Aquela acusação deixou-a perplexa. Havia sido educada por pais sunitas

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moderados, que tinham sócios e amigos de todos os credos religiosos. Mayada

nunca sentira quaisquer preconceitos contra outro iraquiano - fosse sunita, xiita,

cristão ou judeu. Os seus empregados eram xiitas. Na tipografia, aceitava

trabalhos de qualquer pessoa ou empresa, desde que a ordem de impressão

estivesse em ordem. Desde que abrira a loja, ninguém lhe pedira para imprimir

fosse o que fosse contra o governo.

Mas subitamente lembrou-se de algo. Há alguns meses, aceitara uma encomenda

para imprimir uns livros de oração xiitas. Seria esse o problema? Se a impressão

de livros de oração era ilegal, nunca a haviam informado disso. No entanto,

Mayada sabia que o governo de Saddam odiava tudo o que se associasse à

população iraquiana xiita.

Esforçando-se para que o pânico não fosse aparente no rosto, Mayada protestou

em vão:

- Não cometi nenhum crime!

O seu terror aumentou quando detectou movimentos atrás de si e se apercebeu

de que estava cercada de carrascos.

- Isto é o que acontece a quem apoia os Xiitas - declarou o algoz da cabeça

grande, quando avançou e lhe deu três bofetadas violentas.

Mayada gritou com a surpresa daquela agressão.

O algoz fez um sinal e outro homem, que ela não conseguia ver, vendou-lhe os

olhos.

Apesar do seu medo, Mayada disse, em voz alta, para que todos a pudessem

ouvir:

- Estou inocente! ; Como resposta, ouviu um coro de

gargalhadas. Deram-lhe outra bofetada.

Deram-lhe pontapés nas canelas.

O bastão atingiu-lhe os dedos das mãos.

Mayada gritou de dor.

Seguiu-se outra bofetada.

- Cala-te!

Com o medo, o seu coração começou a bater tão depressa que podia ouvir as

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suas próprias pulsações.

214

Sentiu que alguém lhe descalçava a sandália do pé direito e lhe comprimia o dedo

num grampo. Uma mão forte puxou-lhe o cabelo para trás e um segundo grampo

apertou-lhe o lóbulo da orelha direita.

Apesar das dores provocadas pelos grampos e da desorientação que lhe causava

a venda, ouviu um equipamento pesado raspar o chão, quando alguém o trouxe

para junto dela. Estavam a preparar algo de terrível.

- Que Deus me deixe viver, por Fay e Ali - rezou. Um homem vociferou:

- Isto é o que acontece aos traidores!

Mayada ouviu o zunido de uma máquina. Logo de seguida, a primeira descarga

eléctrica atravessou-lhe o corpo e a sua cabeça lançou-se involuntariamente para

trás, enquanto a electricidade lhe descia pelo pescoço até às axilas, às virilhas e

às pernas e Mayada perguntava a si própria se o seu corpo se tinha incendiado.

- Ahhhhhhhhh....!

Abriu a boca para conseguir respirar, chorando convulsivamente.

A voltagem percorreu-lhe o corpo uma, duas, várias vezes. Mayada foi acometida

por tremores e espasmos tão fortes que continuavam a atirar-lhe a cabeça para

trás. A dor tornou-se insuportável.

- Parem! Por favor!

Em resposta, ouviu risadas.

- Não! Por favor!

Os choques eléctricos cessaram por breves instantes. Mayada estava tão fraca

que não conseguia falar, mas ainda pôde ouvir uma voz perguntar:

- Diz-nos tudo o que sabes sobre os xiitas que andam a conspirar contra o Iraque.

Mayada gemeu e meneou a cabeça. Quando tentou falar, nada saiu da sua boca,

além de sons desconexos. A sua língua parecia presa.

- Tu é que decides. Dá-nos nomes. Mayada abanou a cabeça novamente.

Ouviu os passos de alguém e depois o rugido da máquina. Antes mesmo que a

corrente eléctrica a atingisse, gritou.

215

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Chorou e gritou, enquanto a corrente penetrava nas partes mais recônditas do seu

corpo.

A venda alheava-a de tudo menos do fogo que lhe percorria as veias, que lhe

penetrava os tendões.

Quando pensava que a sua agonia não terminaria nunca, ouviu o grito estridente

de uma mulher ao longe, um urro de dor muito diferente de tudo o que já ouvira.

Antes de perder os sentidos, murmurou uma prece sentida pela criatura que

soltara aquele grito arrepiante.

Uma hora depois, a porta de cela 52 foi destrancada e Mayada atirada para o

chão de cimento.

Estava inconsciente e as mulheres-sombra não conseguiam reanimá-la.

Para Mayada, as horas que se seguiram passaram-se num crepúsculo confuso.

Era um dia solarengo e estava em Beirute, a deliciar-se com o seu gelado

preferido. Olhou para a varanda de uma vivenda pintada de rosa. Ali estavam Jido

Sati e o seu pai, lado a lado, cada um sorrindo-lhe e acenando-lhe para que ela

entrasse em casa, para o conforto dos seus abraços. Mayada apressou o passo

para os alcançar, mas por mais depressa que corresse não conseguia diminuir a

crescente distância que a separava do pai e do avô. Ambos começaram a afastar-

se mais e mais. Mayada começou por chorar, desiludida, para depois gritar de

medo quando acontecimentos terríveis a dominaram por completo. Cigarros eram

apagados nos seus olhos; estava algemada e alguém introduzira uma estaca

entre os seus cotovelos e os joelhos. Estava agora pendurada de um gancho; fora

enfiada dentro de um pneu e girava de um lado para o outro; fora amarrada a uma

cama e fustigavam-lhe as plantas dos pés com um chicote; dois cintos prenderam-

lhe os braços e fora dependurada de uma ventoinha de tecto que girava e girava,

fazendo o tempo voltar para trás e levando-a para a sua infância.

Como a maioria das famílias da classe alta do Iraque, os pais de Mayada viviam

em Bagdá entre Setembro e Maio, enquanto durante os meses quentes de Junho,

Julho e Agosto viajavam por todo o Médio Oriente e pela Europa Ocidental.

216

Quando não estava em viagem, Mayada vivia com a mãe, o pai e a ama numa

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casa antiga e encantadora situada na margem do rio Tigre. Uma fila de belas

vivendas abrigava a mãe de Nizar e os seus três irmãos, Tarik, Zaid e Qais. Uma

brisa refrescante trazida pelo rio passava pelas janelas abertas das casas até

chegar aos jardins sossegados e com árvores imponentes. A diminuta e afável

vizinhança sentia-se de tal forma em segurança que as amas das várias famílias

não tinham qualquer problema em deixar Mayada e os primos correrem

alegremente de um jardim para o outro sem a vigilância de um adulto. Scottie, o

seu pequeno cão preto, seguia-os sempre.

Aqueles haviam sido os dias mais felizes da sua vida. O seu passatempo favorito

era nadar. Se ela era boa nadadora, a irmã, Abdiya, sabia mergulhar como

ninguém. Após muitos dias a nadar ao sol, os corpos das duas meninas

ganhavam um tom dourado, e o pai chamava-lhes, por brincadeira, «os meus dois

peixinhos».

Salwa não era uma dona de casa no sentido tradicional, porque nunca aprendera

a cozinhar ou a ocupar-se da lida doméstica, mas era especialista em ensinar os

empregados a manter a casa em ordem. Para grande deleite das filhas, Salwa

oferecia as melhores festas de Bagdá.

Organizava sempre uma festa de aniversário dupla para as filhas, antes do final de

cada ano lectivo, de forma a que as duas irmãs pudessem festejar o dia de anos

com os seus primos e amigos iraquianos, antes de a família partir para as férias

de Verão. Aquelas festas de anos eram famosas em Bagdá, porque Salwa as

preparava meticulosamente, com meses de antecedência. Mandava vir fogo-de-

artifício do Líbano e enfeites para os bolos de Londres. As meninas escolhiam o

recheio do bolo - geralmente chocolate, laranja, baunilha ou limão - e Salwa

encarregava-se da decoração. Num ano, o bolo podia ter a forma de um coração

para, no ano seguinte, ter a forma de um comboio. Salwa encomendava

inclusivamente cestos especiais do Harrods, em Londres, que enchia com várias

prendas.

Também organizava vários jogos. Havia sempre uma caça ao tesouro, em que as

crianças tinham de procurar bonecos de pelúcia escondidos pela casa. A criança

que descobrisse o

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217

maior número de bonecos ganhava um prémio, geralmente um brinquedo caro.

Salwa também organizava um outro jogo, que consistia em pregar a cauda a um

burro de cartão, ou pendurava do tecto uma saca de papier mâché cheia de

bombons e de tabletes de chocolate. As crianças eram vendadas e munidas de

um taco de basebol para poderem atingir a saca e lançar centenas de bombons

pelo ar.

Por baixo do verniz de alegria fervilhavam os graves conflitos da política iraquiana.

Os Iraquianos não pareciam capazes de fazer perdurar a paz. Desde que Jafar

morrera, havia já muitos anos, os governos do Iraque tinham sido manchados por

destituições violentas e os sucessivos golpes de Estado assolavam a história

moderna do país. A instabilidade afectava a vida de todos os iraquianos. Durante

a infância, Mayada mudara de casa várias vezes, à medida que os seus pais

atentavam às diferentes tensões políticas e procuravam preservar a segurança da

família.

Depois do golpe de Estado de 1958, em que toda a família real iraquiana fora

assassinada, a família de Mayada mudara-se para Beirute. O regresso em 1961

para uma Bagdá ainda debaixo de grande tensão havia sido de curta duração, e

Nizar tivera de levar a mulher e as filhas de volta para a segurança de Beirute.

Embora sentissem saudades do Iraque, a vida em Beirute era agradável, pelo

menos durante um certo tempo. A família vivia num amplo apartamento da Rua

Hamra, por cima da Farmácia Al-Madina e ao lado de uma loja de chocolates, de

nome Chantie. O cheiro a chocolate subia pelo edifício e entrava no apartamento,

o que fazia com que as recordações de infância de Mayada e de Abdiya fossem

maravilhosamente aromáticas.

Mayada tinha apenas seis anos quando um problema mais sério surgira na sua

vida. Certo dia, a mãe chamou-a de parte e deu-lhe um anel ornado por uma bela

pérola, dizendo-lhe que devia guardar o anel até os pais voltarem de uma longa

viagem. Como filha mais velha, devia tomar conta de Abdiya e zelar pela sua

segurança. Mayada assustara-se. Sondara os olhos castanhos da mãe, receosa

daquela inesperada novidade

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da sua vida. Não percebia por que razão ficava para trás. Até mesmo o avô, de

quem Mayada tanto gostava, não conseguiu mimá-la, quando ela, a irmã e as

respectivas amas ficaram entregues a Sati. Nesse ano, abundantes chuvadas

diminuíram o tempo que as duas meninas passaram ao ar livre, e Mayada

passava horas sozinha a acariciar a pérola enquanto espreitava pela varanda,

ansiosa por ver os pais regressarem.

Passaram-se vários anos até Mayada saber o motivo daquela longa viagem: ao

seu pai, Nizar na altura com quarenta quilos, fora diagnosticado um cancro do

cólon. O maior receio de Nizar era deixar duas crianças pequenas sem pai, como

acontecera com ele quando o seu pai, Jafar, morrera, e que, por sua vez, perdera

muito novo o pai, Mustafa. A dada altura, Nizar exprimira o seu receio de que uma

maldição pairasse sobre os homens da família Al-Askari.

Apesar de a família ser feliz em Beirute, o seu amor pelo Iraque nunca

esmorecera. Com a esperança de que os dias mais conturbados já tivessem

passado definitivamente, fizeram as malas e regressaram a Bagdá em finais de

1962. Passados poucos dias, a família retomara a boa vida de Bagdá, e Nizar

mostrara-se animado pela primeira vez desde 1958. Então, os ventos do destino

haviam mudado novamente de direcção e a crise abatera-se, a 8 de Fevereiro de

1968, quando o Partido Baas tomara o controlo do governo iraquiano. Apesar de a

família sobreviver sem qualquer dano pessoal, os militares apropriaram-se de

algumas das propriedades privadas de Nizar. Como não era um homem cobarde,

confrontara os líderes do Partido Baas, dizendo-lhes que não queria as suas

propriedades expropriadas. Apesar de os novos dirigentes lhe assegurarem que

se tratava de uma situação temporária, haviam-se mostrado decididos. Deixaram

bem claro que Nizar não detinha quaisquer direitos relativamente às suas

propriedades e desconfiou compreensivelmente de que as promessas de justiça

do Partido Baas não passavam de mentiras. Rodeado de homens armados e não

querendo nada mais do que viver para as filhas, Nizar aceitara o que não podia

alterar.

Na casa da família de Nizar Al-Askari, a doença sobrepôs-se à importância da

política, quando o cancro atacou de no-

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218

219

vo. Lutou pela vida, mas, no quarto 52 do Nun's Hospital, em Bagdá, soube que o

seu tempo junto da esposa e das filhas estava a chegar ao fim.

As três meninas de Nizar, como ele lhes chamava, manti-nham-se à cabeceira da

sua cama sempre que possível. A sua determinação em viver prolongou o tempo

de vida de Nizar, e Mayada e Abdiya visitavam-no todas as tardes depois das

aulas. Quando o fim se aproximou, os médicos deixaram-no voltar para casa,

durante uns tempos. Mayada ajudava as enfermeiras a dar os medicamentos e as

injecções ao pai. Mas Nizar depressa regressou ao quarto 52, onde morreu numa

manhã depois de agradecer à enfermeira que segurava a bacia onde ele acabara

de vomitar. Mayada e Abdiya estavam na escola quando receberam a notícia da

morte do pai. No gabinete da directora, Mayada estava em estado de choque. O

seu desgosto foi tão intenso como se o pai tivesse sucumbido de morte súbita.

Agora, no seu delírio na cela 52 de Baladiyat, Mayada pensava em Fay e Ali. Não

queria que eles perdessem a mãe como ela havia perdido o pai, e chamava pelos

filhos.

- Fay! Ali! Venham para junto de mim!

- Mayada! Mayada! Consegues ouvir-me? Abre os olhos! - Samara inclinara-se

para examinar o rosto de Mayada, enquanto o humedecia com um pano. -

Mayada! Acorda!

Mayada tocou os lábios com a língua. Tinha um gosto esquisito na boca, a

madeira queimada. Percebeu que alguém lhe erguia a cabeça e pressionava

levemente um copo contra os lábios. Bebeu alguns goles de água. Sentia-se

confusa. Onde estavam os seus filhos? Não sabia onde se encontrava. Abriu os

olhos e viu um grupo de rostos femininos que olhavam para ela com afecto.

- Mayada! Sou eu, Samara! Voltaste para junto de nós, na cela cinquenta e dois!

Ainda atordoada, Mayada murmurou:

- Quem és tu? !

- Sou Samara - respondeu a mulher, com uma débil risada.

Mayada abriu os olhos pela segunda vez.

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220

- Samara?

- Sim, estou aqui, pequena pomba.

Mayada gemeu, ao mexer-se. Tinha o corpo todo dorido.

- O que aconteceu? Onde estão os meus filhos? Fay e Ali?

Samara trocou um olhar preocupado com a Dr.a Sabah.

- Estás viva e isso é a única coisa que conta. Estás viva. Mayada olhou

novamente para a mulher. Muitos rostos

preocupados fitavam-na. Viu a Dr.a Sabah, Muna, Wafae, Aliya, Sara e muitas

outras, mas sentiu um nó no estômago, quando se lembrou de que era uma

prisioneira de Baladiyat.

- Que estou a fazer estendida no chão?

- Foste levada, durante pouco tempo, mas agora estás a salvo - murmurou

Samara.

Muna e a Dr.a Sabah sentaram-se a seu lado, enquanto Wafae, Aliya e as outras

mulheres se aproximaram um pouco mais.

- O que foi que eles te fizeram? - perguntou a Dr.a Sa-kih.

- Não sei - respondeu Mayada, sinceramente. - Dói-me a cabeça e os braços. -

Tocou com cuidado na perna. -

Sinto dores no corpo todo, mas não consigo lembrar-me do que eles me fizeram.

A Dr.a Sabah examinou então Mayada, observando-lhe o rosto, os braços e as

pernas.

- Olhem para isto! - exclamou. - A pele da orelha di-ititã está calcada. E tem uma

marca idêntica no dedo do pé direito. Deram-lhe choques eléctricos.

- Fizeram-lhe mais alguma coisa? - quis saber Samara, que, pela preocupação,

começara a falar depressa.

- Nada que eu consiga detectar. Muna?

Muna ergueu gentilmente os pés de Mayada e examinou-os.

- Não lhe chicotearam os pés, o que já é bom sinal. Samara tocou na face da

amiga.

- Por muito terrível que tenha sido para ti, não foste muito maltratada.

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221

- Lembro-me de algumas partes... - Mayada começou a chorar. - Deram-me

pontapés no estômago. E bofetadas na cara.

- Ela tem as faces avermelhadas - corroborou Muna, acariciando o rosto de

Mayada.

- Alguém me deu um pontapé - soluçou Mayada.

- Sentes um gosto a madeira ou a metal na boca? - perguntou Aliya.

- Sinto um gosto a madeira.

- E o resultado dos choques eléctricos - afirmou Aliya, com a certeza de quem já

passara por aquela tortura.

- Ajuda-me a levantar-lhe a cabeça - pediu a Dr.a Sa-bah a Muna.

As mãos suaves das duas mulheres humedeceram a nuca de Mayada com um

pano frio. A Dr.a Sabah colocou-lhe outro pano na testa.

- Vai ajudar a fazer passar a dor de cabeça.

A pouco e pouco, Mayada começou a lembrar-se do pesadelo da tortura dos

choques eléctricos e, tremendo, soluçou:

- Não consigo resistir a este tipo de tortura. Vou morrer em Baladiyat.

- Shiu... Ouve o que te digo: sei do que falo. Vais ser libertada antes de nós. És

um caso especial - murmurou Samara, enquanto lhe pegava na mão.

Contudo, Mayada não acreditava nela e chorou ainda mais.

- Mayada, quero que penses nisto: o teu carrasco foi cuidadoso. Não deixou uma

só marca no teu corpo. Não te chicotearam os pés, nem as costas. Podem negar

tudo, se os acusares. Disso não restam quaisquer dúvidas. Receberam ordens

para terem cuidado contigo.

Mayada estava farta de vãs esperanças, e recusava-se a ser consolada.

- Nunca mais vou voltar a ver os meus filhos. Nunca. Os meus filhos vão ficar sem

mãe.

O rosto de Samara revelou uma paciência extrema.

- Mayada, tu tens um curso universitário, mas eu tenho um curso de Baladiyat.

Conheço este lugar. Conheço aqueles homens. Serás libertada em breve, assim

que as ordens forem dadas. Sinto-o nos meus ossos.

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222

Mayada lembrou-se de outra coisa.

- Acho que me dependuraram do tecto e me fizeram girar, presa a uma

ventoinha. Depois, enfiaram-me num pneu e fizeram-me girar em volta da sala.

Samara, incansável, continuou a consolá-la.

- Não, minha doce pomba. Essas coisas horríveis só aconteceram nos teus

pesadelos. A excepção das bofetadas, do pontapé e dos choques eléctricos, o teu

corpo não apresenta marcas de tortura. Deliraste, depois de regressares à cela.

Isso acontece com todas nós, especialmente no princípio. - Samara esboçou um

sorriso algo matreiro. - Além do mais, poucas de nós caberiam num pneu...

Numa outra ocasião, Mayada ter-se-ia rido. De facto, era demasiado larga para

caber no interior do pneu de um automóvel. Devia ter tido alucinações.

- Quando aqui cheguei, fui dependurada do tecto pelos braços - confirmou

Samara. - E fizeram-me girar. Os meus braços deslocaram-se e passaram-se

muitas semanas antes que pudesse levantá-los. - E ergueu os dois braços de

Mayada para lhe provar o que afirmava. - Vês, os teus braços movem-se

perfeitamente. Não te dependuraram do tecto. - Samara fez uma pausa antes de

sorrir com doçura. - E agradecemos a Deus por isso.

- Eu fui dependurada de um gancho e espancada, mas vejo que não te fizeram

isso - acrescentou a Dr.a Sabah, tocando ao de leve no rosto de Mayada.

Mayada olhou para cada uma das mulheres-sombra. Os seus rostos estavam

pálidos de tanta preocupação - por elas, pelos filhos, pelas vidas que haviam

deixado, ao serem encarceradas em Baladiyat, mas também pelo bem-estar de

Mayada. Nunca conhecera mulheres tão bondosas. Apesar de cada uma das

prisioneiras da cela 52 haver tido uma vida menos privilegiada do que a sua,

nenhuma a invejava por isso.

- Agora, tens de comer um bocado de pão - insistiu Samara, pegando numa colher

que continha açúcar. - O pão vai ajudar a dissipar o gosto a madeira que sentes

na boca e o açúcar servirá para eliminar a fraqueza que ainda sentes nas pernas e

nos braços.

223

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Antes que Mayada pudesse responder, as mulheres-sombra sobressaltaram-se,

quando a porta da cela se abriu e três guardas entraram. Um homem alto,

escanzelado e de bigode farfa-lhudo, que Mayada não conhecia, anunciou com

voz fraca e anãsalada:

- Viemos buscar Safana.

Muna levantou-se tão depressa que o seu cabelo castanho e brilhante oscilou de

um lado para o outro, enquanto olhava para o fundo da cela, alarmada.

Mayada não conseguiu virar a cabeça para procurar o rosto de Safana, mas sabia

que era uma jovem curda, de vinte e muitos anos, com um rosto de pele escura e

lisa, marcado por olheiras profundas. Era muito baixa e entroncada. Safana fora

presa ao mesmo tempo que Muna, porque ambas trabalhavam no mesmo banco,

e as duas mulheres costumavam chorar no ombro uma da outra. Mayada pouco

mais sabia sobre Safana, mas perguntara a si própria várias vezes qual seria a

história da jovem.

Safana avançou, com o punho enfiado na boca, enquanto as lágrimas lhe

escorriam pelo rosto.

- E eu? - perguntou Muna. O guarda escanzelado fitou-a.

- Hoje só vamos cozinhar um ganso - ripostou, no seu tom de voz nasal, antes de

puxar Safana por um braço e de a empurrar para fora da cela.

Os belos olhos de Muna encheram-se de lágrimas. Quando a porta da cela se

fechou, deixou-se cair no seu beliche, chorando amargamente.

- Safana não passa de uma testemunha. Não fez nada. Nada!

Mayada procurou Samara com o olhar, para obter uma resposta.

A custo, Samara ergueu-se até ficar sentada. Aquele simples movimento

provocara-lhe o aparecimento de pequenas gotas de suor por cima do lábio

superior, tão grande era o seu esforço, porque ainda não recobrara

completamente da sua sessão de tortura.

224

- Tem cuidado! Não te canses! - aconselhou Mayada, muito séria, enquanto

pensava que, àquele ritmo alucinante de torturas, a cela 52 albergaria muito em

breve apenas mulheres lendas.

Page 209: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Samara enxugou o suor do rosto com a mão.

- Pobre Muna! Pobre Safana! Foram testemunhas de um caso de desvio de

fundos de um banco. O director-geral era um ladrão.

- Nem sequer foram acusadas? - quis saber Mayada, incrédula.

- Não. Deixa-me contar a história delas. Depois perceberás.

- Fala devagar, por favor - pediu Mayada. - A minha cabeça ainda não se libertou

das descargas eléctricas.

De facto, Mayada sentia um zumbido nos ouvidos que parecia expandir-se até ao

cérebro.

- Está bem. - Samara olhou para a colher, que estava pousada no chão, ao lado

de Mayada. - Come o açúcar. Ficarás melhor dos zumbidos.

- Não consigo.

- Então, como eu.

Samara, com dificuldade, pegou na colher e lambeu-a, antes de começar a contar

a triste história.

- A nossa doce Muna vem de uma família pobre, que ainda ficou mais pobre

depois da guerra de mil novecentos e noventa e um. A casa dos pais dela ficava

em Al-Horiya Al-

Uola. Muna frequentou a escola pública e a universidade e, quando se formou, era

uma das dez melhores estudantes do seu curso. Na escola, conheceu um rapaz

simpático, se bem que proviesse de uma família ainda mais pobre do que a dela.

Apaixonaram-se, mas o pai de Muna opôs-se ao casamento.

queria um marido mais endinheirado para a filha, mas Muna estava apaixonada e

convenceu o pai de que, como ambos tinham cursos universitários, poderiam levar

uma vida próspera. Por fim, o pai de Muna concordou com o casamento.

«Muna casou-se e mudou-se com o marido para uma pe-

quena casa perto de Khark, na margem do Tigre, num bairro li amado Al-

Rahmaniya. É uma zona com uma grande densidade populacional, em que as

casas estão encostadas umas às

225

outras, mas Muna e o marido eram felizes. Quando os bancos de investimento

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começaram a abrir no Iraque, Muna, por ser tão inteligente, foi contratada para

trabalhar num banco.

«Agora, falemos da nossa inofensiva Safana - continuou Samara, depois de

respirar fundo. - Como já deves ter percebido, Safana é curda, de descendência

persa. Nunca casou e é filha única. Vivia com a mãe na região pobre de Habibiya,

não muito longe do edifício principal da polícia secreta. O pai morreu durante a

guerra contra o Koweit, embora não fosse soldado. Safana e a mãe tentaram gerir

a pequena loja que ele lhes deixou. É bom que se diga que Safana estudava, ao

mesmo tempo que ajudava a mãe na loja. Ia à escola de dia e ficava à frente da

loja até à hora de se recolher.

«Depois das sanções, contudo, não conseguiram repor os stocks da loja, que se

esvaziara. Só que Safana também era muito inteligente. Tirara o curso de

Economia e ainda tivera aulas de gestão comercial, na Universidade de Bagdá.

Não podia pensar em casar, porque todo o seu tempo era dedicado aos estudos e

ao trabalho na loja. Sem um pai ou irmãos mais novos, sabia que era responsável

pela mãe, uma mulher doente havia muitos anos.

«Safana teve sorte e encontrou um emprego a tempo inteiro no mesmo banco em

que Muna trabalhava. Safana era feliz porque finalmente tinha dinheiro para

comprar comida e medicamentos para a sua querida mãe, que entretanto se

tornara inválida. Usava fraldas, como um recém-nascido. Todas as manhãs, antes

de ir trabalhar, Safana dava de comer à mãe, lavava-a, mudava-lhe a fralda,

colocava um resguardo de plástico debaixo do lençol e deixava-lhe o almoço

numa mesa perto da cama. Depois do trabalho, Safana regressava imediatamente

para casa para tratar dela.

«Safana trabalhava tanto e tão bem no seu novo emprego que foi promovida e

passou a ser chefe de uma das secções do banco. Sentiu-se muito feliz nesse dia.

«Entretanto, a nossa Muna engravidara. Ela e o marido estavam tão felizes que

decidiram aproveitar ao máxima a licença de maternidade de Muna para que ela

ficasse em casa com o bebé o mais tempo possível. Deu à luz um menino, a quem

226

pôs o nome de Salim. Certo dia, quando Muna estava em casa com Salim, um

Page 211: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

vizinho dela tocou à porta e informou-a de que os directores do banco haviam

telefonado e que ela tinha

defalar com eles quanto antes, dado ser assunto urgente. O marido de Muna

estava a trabalhar, mas ela correu para o telefone, com Salim nos braços. A

pessoa do outro lado da linha era o oficial de segurança do banco. Disse a Muna

que devia dirigir-se imediatamente ao banco porque uns documentos importantes

haviam desaparecido. Muna explicou-lhe que não tinha ninguém a quem deixar o

filho, mas o homem insistiu, pedindo-lhe que fosse ao banco com o seu bebé, o

que ela fez, tão preocupada ficara com aquele telefonema.

«Quando Muna chegou ao banco, Safana estava lá, ao lado de dois homens que

ela não conhecia, no gabinete do oficial de segurança. Depois de lhe dizer para se

sentar, o oficial anunciou que Safana e Muna iriam ser levadas para o quartel-

general da polícia secreta. Muna pressentiu que se passara algo de muito grave e

implorou ao homem que lhe contasse o que acontecera, mas não obteve dele

qualquer explicação. Aflita, perguntou se podia deixar o seu bebé com o pai e a

mãe dela, mas o homem não acedeu ao seu pedido, dizendo-lhe que o filho iria

com ela. Muna ainda pediu para usar o telefone, mas o homem não a deixou.

Muna nada mais pôde fazer do que ficar sentada e chorar.

«Safana tinha as mãos atadas, atrás das costas da cadeira, mas não fizeram o

mesmo a Muna, para que pudesse pegar no pequeno Salim. Então, sem uma

palavra de explicação, aquelas três pobres almas foram trazidas para a nossa

cela. Eu já cá estava, quando elas chegaram. Estavam mais assustadas do que

tu, Mayada, no dia em que apareceste. Uma semana mais tarde, os interrogatórios

começaram. Foi quando Muna e Safana descobriram toda a verdade. Os guardas

ordenaram-lhes que revelassem tudo o que sabiam sobre o director-geral do

banco onde trabalhavam. Ambas disseram tudo o que sabiam, que, basicamente,

pouco ou nada era. Fora um bom chefe para elas. A verdade é que o director-

geral passara a si próprio um cheque no valor de quinze milhões de dinares e que

fazia desfalques havia muitos anos. Quando Muna e Safana disseram

227

que ele era um bom homem, em vez de afirmarem que era um ladrão, foram

Page 212: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

espancadas. Como deves calcular, nenhuma delas fazia a menor ideia de que o

homem era um burlão, caso contrário, tê-lo-iam dito.

- Meu Deus! Quando é que isto irá acabar? - exclamou Mayada.

Samara aproximou-se um pouco mais e a sua voz reduziu-se a um murmúrio.

- Isto não é o pior. A história ainda se torna mais triste, a partir daí. Ao fim de uma

semana de prisão, o pequeno Salim, filho de Muna, começou a chorar e não

houve maneira de acalmá-lo. Muna fora esperta e levara uma grande quantidade

de leite para o banco, mas o leite depressa acabou. Demos água com açúcar ao

pequeno Salim durante alguns dias, mas ele começou a vomitar. Aquele pobre

bebé chorava dia e noite. Por fim, os guardas vieram uma manhã e ordenaram a

Muna que lhes entregasse o filho. Como podes imaginar, Muna opôs-se. Os

guardas atingiram-na com um bastão eléctrico e ela desmaiou. Quando caiu ao

chão, os guardas agarraram no pequeno Salim e saíram. Nunca mais voltámos a

ver o bebé.

- Achas que eles mataram um bebé? - perguntou Mayada, ofegante.

Samara encolheu os ombros, tocou no ombro da amiga e, com a cabeça, indicou

Muna, que chorava baixinho.

- Rezo todos os dias para que eles tenham entregado o bebé ao marido ou à mãe

de Muna. Os guardas recusam-se a dizer-lhe o que quer que seja.

O olhar de Mayada cruzou-se com o de Samara.

- E Safana? Também está sempre a chorar.

- Safana não pára de chorar, porque ninguém sabe em que estado se encontra a

mãe dela. Quando ela disse aos guardas que alguém devia ir verificar se a mãe

estava bem, deram-lhe uma bofetada. Safana pensa que a mãe foi esquecida e

morreu à fome. Pensa nisso, Mayada - prosseguiu Samara. - Duas criaturas

indefesas que usavam fraldas, uma velha, outra nova, sem ninguém para cuidar

delas.

Mayada nem queria acreditar, tão horrorizada se sentia. fechou os olhos e rezou,

porque não sabia que mais podia dizer.

Um gemido colectivo espalhou-se pela cela 52 quando a porta se abriu mais uma

vez e os guardas chamaram outra mulher-sombra: - Sara! Apresenta-te!

Page 213: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Mayada viu Sara passar por ela devagar. Sara era uma das mais novas

prisioneiras da cela 52. Tinha apenas vinte e um anos. Era estudante de Farmácia

e estava presa sem qualquer motivo concreto, tanto quanto se sabia. Agora ia

deixar a segurança da cela 52 para ficar à mercê de um guarda desejoso de a

torturar. Os olhos dela deixavam transparecer o seu ter-ior. A porta, voltou-se para

as companheiras:

- Samara, lembra-te do que eu te disse. Se eu morrer, alguém tem de contactar a

minha mãe. Sou a última filha viva que lhe resta.

- Não vais morrer, pequena Sara. Sê forte. Ficaremos aqui a rezar por ti - retorquiu

Samara, tentando tranquilizá-la.

O guarda praguejou e Sara voltou-se e saiu. A porta fechou-se atrás dela.

Samara ergueu-se do beliche, tanto quanto foi possível, e começou a dar

instruções.

- Dentro em pouco teremos duas mulheres que vão precisar de nós. Vamos deitar

Mayada no seu beliche e preparar duas camas para Safana e Sara.

Com a Dr.a Sabah a seu lado, Mayada encaminhou-se em silêncio para o beliche.

Depois de se deitar, fechou os olhos. Tremia como se tivesse febre e fez um

esforço para recuperar as forças. Queria ter força suficiente para ajudar Samara a

tratar de Safana e de Sara quando elas voltassem.

Deitada, muito quieta, pensou na sua antiga vida, que, em

[tempos pensara ser constituída apenas por trabalho e preocupações, uma vida de

que fora forçada a desistir de um momento para o outro. Mas agora essa vida de

trabalho e preocu-

pações parecia-lhe tão maravilhosa que a ideia de a perder para sempre a

aterrorizava.

228

229

Ouviu a voz doce de Samara dar instruções às outras mulheres. O que fariam

naquela cela sem Samara? Era como uma mãe para todas elas.

Lembrou-se das palavras de Samara: as mulheres-sombra tinham de sobreviver

por amor aos seus filhos. E ela sobreviveria, por amor a Fay e Ali.

Page 214: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

230

8

O Dr. Fadil e a família de Mayada

Mayada pensou nos seus dois filhos, tentando imaginar o que fariam naquele

preciso instante. Estariam a comer? A dormir? Onde estariam? Em Bagdá? Se

fosse esse o caso, teriam ficado com o pai do pai, o único avô que conheciam? Ou

teriam fugido para a Jordânia, para a protecção de Salwa?

Atormentada pela ideia de nem sequer saber onde se en-contravam, Mayada

verteu grossas lágrimas, que lhe rolaram pelo rosto e foram empapar o cobertor.

Tremia perante o seu total desamparo, mas, ao recordar-se do conselho que

Samara lhe havia dado no dia em que chegara a Baladiyat, ergueu mentalmente

uma barreira em torno dos filhos e manteve-os em segurança no interior, porque,

se não tomasse aquela atitude, nunca seria capaz de gerir o seu desgosto.

Samara tinha razão. Consciente de que enlouqueceria se pensasse somente em

F'ay e Ali, Mayada traçou uma linha imaginária que a separava dos seus dois

filhos, e esforçou-se por pensar em outras coisas. A sua imaginação projectou

uma segunda imagem na parede da cela; era o rosto daquele que, em tempos,

havia sido o homem mais poderoso de todo o Iraque, o Dr. Fadil Al-Barrak. Era um

homem fisicamente atraente - alto, moreno, com cabelo castanho e olhos escuros.

A sua voz era agradável, com uma entoação alegre na maior parte das vezes.

Embora soubesse agora que ele tinha uma dupla personalidade, raramente havia

visto o seu lado mais obscuro.

Tinha a certeza apenas de uma coisa. Se o Dr. Fadil não tivesse morrido, a vida

dela ainda seria a mesma e estaria agora em casa com os filhos.

231

Os pensamentos de Mayada recuaram até 1979, ano em que havia conhecido o

Dr. Fadil. Contudo, quando fechou os olhos para regressar ao passado, uma das

mulheres-sombra aproximou-se de mansinho e pousou-lhe no rosto a mão

pequena e alva.

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Apanhada de surpresa, Mayada voltou-se.

- Sou eu... - murmurou gentilmente Samara, com os seus olhos verdes fixados em

Mayada.

As saudades que Mayada sentia dos filhos eram tão grandes que lhe parecia

terem-lhe arrancado o coração do peito.

- Sabes uma coisa, Samara? Sei que vou morrer nesta cela - afirmou Mayada,

teimosamente agarrada ao seu pessimismo.

- Pára!

- Parece que a família Al-Askari sempre foi perseguida pelo número cinquenta e

dois. O meu pai faleceu no quarto cinquenta e dois do Nun's Hospital, quando

tinha cinquenta e dois anos. O pai dele, Jafar, foi assassinado aos cinquenta e

dois anos. E agora, eu estou presa na cela cinquenta e dois, cela que será o meu

túmulo. - Mayada olhou para Samara e concluiu, com convicção: - A minha morte

será associada ao número cinquenta e dois. É o destino.

- Não sejas tão mórbida - repreendeu-a Samara, num tom de voz sempre dócil. -

Quanto a mim, digo-te que serás libertada em breve, muito antes de completares

cinquenta e dois anos de vida.

Mayada foi assaltada por um novo pensamento.

- Estou a ser castigada - teimou.

- Castigada? Castigada por teres feito o quê? Agitada pela sua nova ideia,

Mayada fincou os cotovelos

no cobertor e soergueu-se. Virou-se, para se certificar de que as outras mulheres

não podiam ouvi-la. Então, sussurrou:

- O doutor Fadil Al-Barrak foi nosso protector durante muitos anos.

- E...?

- O doutor Fadil foi director de locais como Baladiyat durante dez anos.

- O nome não me é estranho.

232

- Tenho a certeza de que ouviste falar dele, Samara. O doutor Fadil Al-Barrak era

tão poderoso que podia ordenar que se libertasse qualquer pessoa que estivesse

presa. E fê-lo, a meu pedido, mais de uma vez. - Um silêncio prolongado instalou-

Page 216: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

se entre as duas mulheres, antes de Mayada continuar. - Não compreendes?

Apesar de não o sabermos, eu e a minha mãe fomos protegidas por ele durante

vários anos, e agora estou a ser castigada por essa protecção.

Samara afastou o cobertor de Mayada e sentou-se na beira do beliche.

- Compreendo. Ajudaste-o a torturar pessoas, Mayada?

- Não, claro que não! Nem sequer fazia ideia da dimensão do seu cargo. Pelo

menos, de início. Sabes, mesmo agora custa-me a acreditar que ele fosse capaz

de torturar alguém, era um homem que vivia num mundo académico. Era tão

erudito que passava horas a falar dos livros que lia. No entanto, para chegar ao

cargo mais alto da segurança do país deve ter participado por certo em sessões

de tortura e em execuções, porque, caso contrário, Saddam nunca o teria

escolhido.

- E depois? Continuo sem perceber porque achas que és usponsável pelos actos

desse homem.

Mayada baixou o olhar.

- A minha mãe e eu devíamos ter fugido deste país e denunciado o regime de

Saddam assim que o corpo do meu pai foi sepultado.

- Estás a enervar-te, Mayada. Não vás por esse caminho. Precisas de manter

todas as tuas energias.

- Desculpa, mas sei que estou a ser castigada por ter ficado no Iraque com a

minha mãe - insistiu Mayada, com determinação. - Só agora me dou conta de que

a presença dos Al-Husri no Iraque conferia credibilidade ao governo de Saddam,

em virtude da reputação de Sati.

- Lembra-te de que nessa altura não sabias o que sabes hoje. Por acaso eras

vidente? Como podias saber o que se passava?

Mayada ponderou as palavras de Samara, mas, sempre com a mesma convicção,

replicou:

232

233

- Certa vez, ouvi alguém dizer que a alcunha do doutor Fadil era Beria, nome do

famoso carrasco russo. Por que motivo uma tal alusão me passou ao lado? - E,

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cada vez mais agitada, acrescentou febrilmente: - Sabias que o doutor Fadil foi

adido militar do Iraque na antiga União Soviética, antes de ser nomeado director-

geral da polícia secreta? Ora, deve ter aprendido métodos muito sofisticados de

tortura na União Soviética.

- Sei muito pouco acerca desse homem. ! -Toda a gente tinha medo dele.

Mayada bateu com a ponta do dedo indicador na face, pensativa.

- Estás interessada em conhecer o percurso do doutor Fadil? - perguntou

subitamente.

Samara olhou em seu redor, esboçou um sorriso vago e apontou com a mão para

a minúscula cela.

- Claro que estou. Que importantes tarefas me esperam? E deitou-se de lado na

cama de Mayada, que teve de ganhar forças para prosseguir.

- Já tinha ouvido falar do doutor Fadil, antes de o conhecer - sussurrou a custo. -

Foi em mil novecentos e setenta e oito. Eu tinha acabado de regressar de Beirute.

A guerra civil grassava no Líbano, e os conflitos haviam atingido uma tal

intensidade que sentia zumbidos nos ouvidos em consequência dos

bombardeamentos constantes. Assim, abandonei os meus estudos em Beirute e

regressei a Bagdá. Como não conseguisse encontrar um emprego decente, resolvi

continuar a estudar. Fui aceite no Instituto de Arquivo e Estudos Bibliotecários. Era

uma faculdade com cursos nocturnos, e as minhas aulas começavam às cinco da

tarde. Certo dia, uma rapariga muito tímida chamada Fatin Fuad veio ter comigo e

disse-me: «O noivo da minha irmã conhece a tua mãe, mas perdeu o número de

telefone dela. Podes dar-mo, por favor?»

«Desconfiada, perguntei-lhe quem era o noivo da irmã dela. "É o doutor Fadil Al-

Barrak Al-Tikriti", respondeu ela.

«O nome não me era estranho. Eu não tinha qualquer envolvimento com o

governo e vivera no estrangeiro durante vários anos, mas Fatin era uma rapariga

meiga, de rosto dócil, que conquistava a confiança de qualquer pessoa com um

sim-

234

ples olhar. Assim, dei-lhe o nosso número de telefone. Depois das aulas, voltei

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para casa e mencionei o nome à minha mãe, e apesar de ela me fitar

surpreendida não deu a entender até que ponto aquele homem era poderoso.

Quanto a mim, não me preocupei em fazer perguntas, uma vez que a minha mãe

conhecia todas as pessoas importantes do Iraque.

«Na manhã seguinte, acordei com o telefone a tocar. Não reconheci a voz do

outro lado do fio. Ainda meio a dormir, e squecera-me por completo da conversa

que tivera com Fatin. () homem que telefonara pediu para falar com a minha mãe.

Repliquei friamente que Salwa estava a trabalhar. "Estou a falar com quem?"

perguntou o desconhecido. "Com a filha", respondi. "Qual delas? " "A mais velha."

Após uma pausa, o homem riu-se e perguntou: "Como posso levá-la a dizer-me

como se chama?" Pensei que o sujeito estava a tentar seduzir-me, e não lhe

respondi. Disse-lhe que telefonasse mais tarde. Antes de desligar, contudo, o

homem ainda acrescentou: "Diga à sua mãe que Fadil Al-Barrak telefonou. Vou

dar-lhe o meu número de telefone particular". Nunca me esqueci daquele número.

«Mais tarde, nesse mesmo dia, vi Fatin no instituto, e resolvi descobrir mais coisas

sobre o noivo da irmã dela, que eu pensava estar a tentar seduzir-me. Fatin

afirmou prontamente: "Não me parece que seja esse o caso. Ele fala assim com a

maioria das pessoas, mas tenho de confessar que é um homem muito diferente

dos outros."

«Fatin levou-me depois para um canto do corredor onde estávamos e

confidenciou-me: "Vou contar-te uma história muito invulgar. O noivo da minha

irmã devia ser meu noivo."

«Reparando na minha expressão perplexa, acrescentou: "Eu explico. O doutor Al-

Barrak é homem muito importante e quando ele pediu a minha mão o meu pai

aceitou. O meu pai, além de juiz, é um homem muito antiquado e eu nunca tinha

visto o meu noivo. Só iria conhecê-lo no dia em que o nosso noivado fosse

oficializado. O doutor Al-Barrak chegou a nossa casa no dia combinado. Lá estava

eu, vestida com as minhas melhores roupas, prestes a ficar noiva. Foi então que

Ji-nan, a minha irmã mais nova, entrou na sala. Devias conhecê-

235

-la, Mayada. É a rapariga mais bela de Bagdá. De qualquer maneira, o meu noivo,

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o doutor Al-Barrak, assim que viu Ji-nan, ficou tão deslumbrado pela sua

estonteante beleza que se virou para o meu pai e chocou toda a família ao

declarar em voz alta: 'Quero antes esta.' O meu pai estava tão espantado que mal

conseguia falar. Eu mantinha-me no meu lugar, petrificada pela vergonha,

enquanto Jinan saía da sala, a correr. Bom, verdade seja dita, eu não tinha

vontade nenhuma de me casar com um homem que desejava a minha irmã, e

disse ao meu pai que, por mim, tanto fazia. Ele que casasse com Jinan, se era

isso que queria e se ela concordasse. Dadas as circunstâncias, a minha irmã

mostrou-se a princípio muito relutante, mas assegurei-lhe que o seu noivado não

afectaria a nossa relação nem o afecto que sentíamos uma pela outra. Lembrei-

lhe que só havia visto o doutor Fadil uma única vez, e que não nutria quaisquer

sentimentos por ele. Além do mais, o doutor Al-Barrak é um homem poderoso, nos

serviços secretos, e o meu pai receava contrariá-lo. Por isso é que a minha irmã

se vai casar em breve com o meu antigo noivo."

Samara meneou a cabeça.

- Enquanto Fatin me contava esta história eu observava-a atentamente e pude

perceber que a pobre rapariga fora humilhada, por muito que dissesse o contrário.

Fatin era linda. Tinha olhos verdes e um rosto redondo e muito belo. O seu cabelo,

de tom castanho-claro, era comprido e espesso, o que me fazia duvidar de que a

irmã pudesse ser ainda mais bonita do que ela. - Mayada lançou um rápido olhar

pela cela, antes de continuar. - Só mais tarde conheci Jinan. Samara, aquela

rapariga era a mulher mais bonita que eu jamais vira, abençoada com um rosto

que era impossível esquecer. Parecia-se com Brooke Shields, a modelo e actriz

americana. Tinha olhos grandes, azuis-esverdeados e as pestanas mais

compridas que alguma vez vi. Era tão bonita, mas tão bonita, que qualquer mulher

passava despercebida ao lado dela, até mesmo a irmã. Na realidade, era tão

bonita que o doutor Fadil deixou de levá-la consigo às festas. Um dos meios-

irmãos de Saddam, Barzan Al-Tikriti, apaixonou-se perdidamente por Jinan à

primeira vista, e o doutor Fadil temia que Barzan pedisse a Saddam que o

forçasse a divorciar-se da sua belíssima e jovem esposa.

236

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Mayada fez uma pausa.

- Como foi que a tua família o conheceu? - perguntou .Samara.

- Ele queria contactar com a minha mãe para ter acesso aos livros e documentos

pessoais de Sati, que a minha mãe guardava em casa. Quando o vi em pessoa

pela primeira vez fiquei espantada quando ele tirou do bolso uma chave que eu

conhecia e a fez girar à volta do seu dedo. A chave da nossa casa era única e dei

comigo a pensar: «Onde foi que ele arranjou a chave?» Ele apercebeu-se da

minha surpresa e, com um sorriso malicioso, explicou-me que a minha mãe lhe

dera permissão de entrar em nossa casa a qualquer hora do dia ou da noite, para

que pudesse analisar os documentos de Sati. A ideia não me agradava, mas

nada podia fazer. Mais tarde, o doutor Fadil enviou uma equipa a nossa casa para

que pulverizassem todos os documentos de Sati com um produto químico especial

que os impediria de serem destruídos pelos insectos. Depois disso, passou a

visitar regularmente a nossa casa e, a pouco e pouco, habituei-me a ver aquele

homem que não pertencia à minha família entrar sozinho em nossa casa, embora

nunca me acostumasse à pistola que ele deixava sempre na mesa do vestíbulo. O

doutor Fadil empunhava a sua arma com a mesma naturalidade com que eu

pegava num copo de água.

Mayada parou para pensar.

- Agora que me lembro de tudo isto, Samara, creio que o doutor Fadil era um

homem que vivia em dois mundos. Era muito culto, adorava livros e podia falar

durante horas sobre os assuntos mais fascinantes. Por outro lado, dirigia todas as

prisões do Iraque. Mesmo assim, continuarei a acreditar que ele se sentia

atormentado com o lado sombrio da sua vida, porque o seu rosto ostentava

sempre uma expressão oprimida. As poucas vezes em que parecia mais relaxado

era quando pecava num dos seus cinco filhos ao colo, ou quando estava na nossa

biblioteca a folhear um livro de que gostasse particularmente.

Notando o ar surpreendido de Samara, Mayada continuou.

237

- Nessa mesma altura, eu arranjara emprego numa publicação infantil intitulada

Majalaty Wa Al-Mizmar ( 1 ). Certo dia, recebi uma chamada de Lufti Al-Khayat,

Page 221: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

um grande jornalista do Al-Jumhuriya. Era o jornal mais lido em todo o Iraque, se

bem que não pertencesse ao partido. Como era nova e desejava progredir na

minha carreira, fiquei radiante por receber aquele telefonema, se bem que não

conseguisse imaginar por que razão um jornalista tão famoso contactara comigo.

Quando cheguei à redacção do Al-Jumhuriya, Lufti conduziu-me ao seu amplo

gabinete, onde quase desmaiei de tanta alegria. Um dos meus maiores sonhos

tornava-se realidade. Ia ser levada a sério como escritora. Lufti disse-me que lera

alguns dos artigos que eu havia escrito para as crianças e que perguntara a si

próprio se eu teria o mesmo talento escrevendo para adultos. A minha felicidade

era tanta que não quis perder aquela oportunidade e confidenciei-lhe que estava a

escrever um livro de contos para adultos. Lufti contratou-me. Foi-me dada uma

crónica semanal, intitulada «Itlalat». Então, pouco depois de começar a trabalhar

para o jornal, foi-me dito que o doutor Fadil Al-Barrak pedira que eu o

entrevistasse. O redactor-chefe do jornal, Sahib Hussein Al-Samawi, estava

radiante, porque os responsáveis pela polícia secreta nunca davam entrevistas,

enquanto eu fiquei de rastos, por perceber que não obtivera o emprego dos meus

sonhos por mérito próprio. Se a minha carreira como jornalista progredira

subitamente isso devera-se ao facto de o doutor Fadil ser amigo da família.

Quando cheguei a casa, telefonei-lhe para lhe perguntar se as minhas suspeitas

eram fundadas. Ele riu-se e disse: «Claro que sim!» Disse-me desejar que me

tornasse uma grande escritora e comentou: «Que melhor maneira do que começar

a escrever, desde já?» Assim, para provar que estava à altura do meu novo

estatuto, trabalhei mais do que qualquer outra pessoa naquele jornal. E acho que

consegui prová-lo.

«Desde esse momento até ao dia em que o doutor Fadil foi preso, as nossas vidas

passaram a ser preenchidas por "pequenos" milagres. No entanto, o melhor

aspecto do nosso relacionamento

( 1 ) - «A Minha Revista e O Clarinete.»

238

com o doutor Fadil era o de que me colocava numa posição de poder ajudar os

Page 222: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

outros, e, nalguns casos, até de salvar a vida de terceiros.

- Estás a ver? Eu bem te disse! - replicou Samara. - Serviste-te do teu

relacionamento com o doutor Fadil para praticares o bem, o que transformou essa

amizade numa virtude tua.

Mayada fechou os olhos por breves momentos, abriu-os de novo, e tornou a

fechá-los.

- Rezo todos os dias para que o que acabas de dizer seja verdade, Samara,

porque sinto um grande tormento só de pensar que podia ter agido de maneira

diferente.

- Se fosse esse o caso, eu dizia-te. Sempre fui muito sincera. - E com um brilho

nos olhos, pediu: - Mas fala-me de algumas das pessoas que pudeste ajudar.

Mayada hesitou.

- Vá lá, Mayada. Estou à espera - insistiu Samara, com um sorriso.

- Muito bem. Depois de conhecer o doutor Fadil, entre finais de mil novecentos e

setenta e nove e inícios de mil novecentos e oitenta, ainda vivia com a minha mãe.

Uma manhã, estava a preparar-me para ir trabalhar quando a campainha da porta

tocou. Um Aziz, a nossa criada, foi abrir e subiu a escada a correr para me dizer

que Jalela Al-Haidari, a esposa do doutor Saib Shawket, estava à nossa porta, em

camisa de dormir. Jalela Al-Haidari era uma senhora muito distinta, uma

verdadeira aristocrata, e compreendi imediatamente que havia acontecido algo de

terrível.

«Fui recebê-la e encontrei-a parada à porta. Pelo seu aspecto, dava a ideia de que

a haviam acordado a meio da noite. Estava desfeita em lágrimas. Puxei-a para

dentro, tentando acalmá-la, o que era difícil porque, ao ver-me, começou a chorar

ainda mais. Por fim, consegui convencê-la a dizer-me porque estava ali. Quando

ela começou a falar-me da quinta da família, em Al Dora, pensei que ela

enlouquecera. Indiferente ao que eu pudesse pensar, explicou-me que a quinta

era constituída por uma vasta extensão de terras, com belos laranjais plantados à

sombra de palmeiras. Depois começou a descrever-me uma bomba hidráulica.

Falava com tanto entusiasmo

239

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daquela bomba que por um momento pensei que pretendia vender-ma. Dizia-me

que a bomba fora comprada em Inglaterra e era tão grande que irrigava metade

das terras.

«Depois relatou uma história incrível sobre o presidente da Câmara de Bagdá,

Khayrallah Tilfah, tio de Saddam, que criou o sobrinho desde tenra idade. Disse-

me que o tio de Saddam visitava Al Dora quase todos os dias para pressionar o

marido dela a vender-lhe a quinta da família. O doutor Shaw-ket, na altura com

oitenta e três anos, não queria vender a sua quinta, por saber que nunca veria

dinheiro algum daquele homem, mesmo que estivesse disposto a fazer negócio

com ele. Todos os iraquianos sabem que os parentes de Saddam são famosos

pela sua ganância. Dizem sempre que querem comprar algo mas depois nunca

pagam. Ciente de que perderia a sua quinta mais cedo ou mais tarde, o doutor

Shawket propôs-se oferecer metade das suas terras ao poderoso tio de Saddam.

Khayrallah aceitou a oferta, mas sob condição de que a sua parte fosse a que

continha a famosa bomba hidráulica. O doutor Shawket pagara uma fortuna por

aquela bomba, e sem ela todos os seus laranjais morreriam. Criticou a insistência

de Khayrallah em querer a metade da quinta onde se achava a bomba até que o

tio de Saddam mudou de ideias mais uma vez e insistiu que só ficaria satisfeito se

o doutor Shawket lhe desse toda a quinta.

«Na manhã em que Jalela aparecera à nossa porta em camisa de dormir, a polícia

secreta invadira a sua casa e detivera o marido. Tinham-no levado em pijama.

Samara, aquele médico era o melhor cirurgião do Iraque e fundara a primeira

Faculdade de Medicina do nosso país, além de ter sido um dos primeiros ministros

da Saúde. A sua detenção deixou-nos a todos em estado de choque.

«Eu não sabia o que fazer perante tal catástrofe, e telefonei à minha mãe, que já

estava no seu emprego. Ficou muito perturbada com a notícia e disse-me que

telefonasse imediatamente ao doutor Fadil, porque tinha medo que o doutor

Shawket, um homem idoso, morresse de ataque cardíaco se não fosse resgatado

rapidamente.

240

«Telefonei ao doutor Fadil e contei-lhe o que sabia. Ele louviu-me em silêncio, e

Page 224: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

fez uma pausa, antes de dizer: "Ligue Ipara o nosso vice-presidente, já. A linha

privada dele está a funcionar. Conte-lhe toda a história."

«Eu fiquei admirada, mas segui as suas instruções. Disquei o número privado de

Saddam. O telefone tocou algumas vezes [antes de ele atender. Identifiquei-me e

disse-lhe que estava a Ifalar em nome da esposa do doutor Saib Shawket. Narrei-

lhe parte da história e informei-o de que o doutor Shawket fora detido por causa da

contenda em relação à quinta. Saddam escutou-me em silêncio. Pouco mais disse

a não ser que eu devia tranquilizar a esposa do doutor Shawket, porque tudo seria

tratado a seu contento. Devia também informá-la de que o marido regressaria

quanto antes, e dizer-lhe que o doutor Shawket deveria dirigir-se ao palácio

presidencial às quatro da tarde daquele mesmo dia.

«Ao fim de cinco minutos, o telefone tocou. Era o doutor Fadil. "Diga à esposa do

doutor Shawket que o marido dela acaba de deixar a prisão e que está neste

preciso instante a ser levado para casa." Antes que eu pudesse dizer alguma

coisa, o doutor Fadil desligou, sem sequer se despedir.

«Mais tarde, compreendi o motivo que levara o doutor Fadil a pedir-me para

telefonar a Saddam. Este ver-se-ia numa situação embaraçosa se soubesse pela

boca de um dos seus colaboradores mais próximos, como o doutor Fadil, que o

seu tio era um ladrão. Por conseguinte, era menos constrangedor para ele ficar a

par do sucedido através de alguém que lhe telefonasse em nome da vítima.

«Quando o doutor Shawket regressou da prisão, eu esperava-o com a esposa.

Ainda de pijama, o pobre homem achava-se em estado de choque. Lembro-me

das suas primeiras palavras. Parado, com uma expressão de assombro

estampada no rosto, afirmou: "Era um grupo muito malcriado de homens. Querem

crer que me esbofetearam?" E ali ficou, curvado e debilitado, passando as mãos

pelas faces avermelhadas.

«Depressa se recompôs, contudo. Mudou de roupa e dirigiu-se ao palácio

presidencial. Eu fiquei a fazer companhia à sua esposa, porque ela continuava

muito assustada. - Mesmo passados tantos anos, Mayada ainda sentia uma viva

indigna-

241

Page 225: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

ção ao narrar aquela história. - Eram duas pessoas de idade avançada, que

haviam servido o Iraque desde o primeiro dia em que se tornara nação

independente. Foi um escândalo.

- O que aconteceu no palácio? - perguntou Samara, enquanto afastava dos olhos

algumas madeixas do seu cabelo grisalho.

- O doutor Shawket ausentou-se durante mais de uma hora, mas quando

regressou narrou-nos o que acontecera. Fora recebido por Barzan Ibraheem Al-

Hassam Al-Tikriti, meio-irmão de Saddam do lado materno, e casado com a irmã

de Sajida. Barzan saudou o doutor Shawket com modos educados e disse-lhe que

Abu Uday, ou seja, Saddam, se achava também na sala onde estava o médico. Ao

ouvir aquilo, o doutor Shawket virou-se e olhou em seu redor, mas tanto quanto se

apercebia, estava a sós com aquele homem. Atónito, fitou Barzan, que apontou

para uma mesa no centro da sala. «Ali está ele», explicou. «Saddam está naquela

mesa.» O doutor Shawket era um homem velho e não via muito bem. Avançou

para a mesa. «Ainda não o vejo», murmurou, confuso. Barzan riu-se e pegou num

gravador. «Aqui está ele», explicou, dando a entender que Saddam escutaria mais

tarde tudo o que eles diriam.

«O doutor Shawket confessou-nos que ficara desconcertado com aquele estranho

episódio, e que tentara explicar a Barzan, da forma mais delicada possível, o que

acontecera. Escolhera as palavras com todo o cuidado porque a sua história

revelava uma faceta pouco lisonjeira de Khayrallah, tio de Barzan e de Saddam.

Os laços de família eram ainda mais estreitos porque Saddam e Barzan haviam

casado com as filhas de Khayrallah. Tendo plena consciência daqueles laços de

parentesco, o doutor Shawket sabia que havia uma fronteira invisível que não

podia transpor, caso contrário voltariam a encarcerá-lo.

«Por fim, Barzan incitou. "Doutor, conte-me a mim e a Saddam o que aconteceu, e

não se preocupe com as boas maneiras." Deu uma palmada no ombro do médico

e voltou a assegurar-lhe que podia falar com toda a franqueza. Depois, insultou o

seu próprio tio - e o de Saddam -, quando acrescentou, em tom trocista: "Acredite,

se Abu Uday não tivesse sido informado do que lhe aconteceu, o nosso tio e

242

Page 226: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

sogro teria confiscado tudo o que o senhor tem, até mesmo o casaco que traz

vestido." Barzan chocou ainda mais o doutor Shawket ao confessar: "O nosso tio é

um velho ganancioso. Somos forçados a mantê-lo debaixo de olho."

«O doutor Shawket teve dificuldade em crer que os sobrinhos de Khayrallah

admitissem uma tal coisa, mas, por outro Lado, ficou encantado por ouvir aquela

confissão.

«Assim, as valiosas terras do doutor Shawket continuaram em seu poder. Mais

tarde, visitou-nos com a esposa. O casal ficara tão grato pela minha intervenção

que o doutor Shawket queria oferecer-me alguns hectares de terra, mas é óbvio

que recusei. Disse-lhe que voltar a vê-lo já era prenda mais do que suficiente para

mim. Sugeri que me deixasse entrevistá-lo para a revista Alef Ba sobre a sua

carreira como médico desde a formação do Iraque. Ele aceitou.

«A entrevista foi publicada e lida por Saddam Hussein. Alguns dias mais tarde, um

dos secretários de Saddam telefonou ao doutor Shawket para lhe dizer que a sua

carreira era tão importante que iria ser condecorado por Saddam. Um satisfeito

doutor Fadil telefonou-nos para dizer que estivéssemos atentas às cerimónias

oficiais transmitidas pela televisão. Soltou uma gargalhada, acrescentando que era

eu a responsável pelo facto de o doutor Shawket receber uma medalha e não uma

sentença de prisão.

«O doutor Shawket foi condecorado durante uma cerimónia transmitida pela

televisão. Quando o programa terminou, escandalizei a minha mãe ao levantar-me

e começar a dar saltos mortais sobre o tapete persa, enquanto ria de tanta

felicidade. Estava radiante por haver contribuído para aquele final feliz. A minha

mãe, demasiado composta em certas ocasiões, ficou tão perplexa com a minha

reacção que me deu uma descompostura e me ordenou que me comportasse de

acordo com a minha idade. Mas durante semanas mantive um sorriso nos lábios,

por saber que um único telefonema meu salvara a vida do doutor Shawket.

- Vês? Uma vida salva! - felicitou Samara. - Sem ti, esse pobre homem nunca teria

voltado a ver a luz do Sol.

1

243

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A recordação daquele dia ajudou Mayada a dominar o desespero de se ver detida

em Baladiyat. Escondeu parcialmente o rosto com as mãos e riu-se baixinho.

- Acreditas que o tio de Saddam nunca desistiu de se apoderar da quinta? O

doutor Shawket faleceu de causas naturais seis anos mais tarde, em mil

novecentos e oitenta e seis. Aquele miserável ainda esperava ficar com a quinta,

apesar de já ser velho e doente e de ter as pernas amputadas, por causa da

gangrena. Khayrallah tinha pouco tempo de vida, mas não conseguia esquecer-se

da quinta e especialmente da bomba hidráulica. Depois do funeral do doutor

Shawket, Khayrallah dirigiu-se à quinta e esperou do lado de fora, dentro de um

carro. Quando Jalela saiu para ver quem era, ele chamou-a e perguntou-lhe

rudemente: "E agora? Está disposta a vender a quinta?"

«A viúva do doutor Shawket revelou uma grande coragem. Mesmo sabendo o que

acontecera ao marido seis anos antes, gritou "Nunca!", e afastou-se, não sem

antes olhar com vivo desdém para Khayrallah, um homem habituado a ter quase

tudo o que queria. Ele lançou-lhe um olhar fulminante, enquanto ordenava ao

motorista que arrancasse. No entanto, receava que Saddam viesse a saber que

ele continuava a perseguir a família do doutor Shawket, e, por isso, nada mais

podia fazer. Aquela quinta manteve-se na família, que era onde pertencia.

- Aposto que o facto de ele saber que podias telefonar ao doutor Fadil contribuiu

em muito para que a viúva não se visse obrigada a vender-lhe a quinta.

Mayada estava agora completamente imersa nas suas recordações.

- Bom, certa vez, até salvei a vida do meu marido, Saiam, acredites ou não...

- Então, és uma santa! - riu-se Samara, porque Mayada já lhe falara do

comportamento do marido.

- Isso aconteceu mais tarde, em mil novecentos e oitenta e quatro. Eu ausentara-

me do país durante dois meses, numa viagem oficial ao Sudão. Quando cheguei

ao aeroporto de Bagdá, telefonei para saber como estava Fay, que tinha apenas

um ano de idade. Foi quando me informaram que o meu marido acabara de ser

levado pelos agentes da polícia secreta.

244

«Saiam cumpria o serviço militar obrigatório como soldado na Guerra Irão-Iraque.

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Uma noite, o seu comandante ordenou-lhe que transportasse um soldado que

desertara. O rapaz, na sua inocência, voltara para casa, numa localidade

chamada Qalat Sukar, em Umara, a sul, e foi rapidamente detido. Depois da sua

detenção, Saiam recebeu ordens para conduzir aquele desertor ao quartel-

general.

«Apesar de ter sido um marido sem valor, Saiam não é um homem violento. Na

sua boa-fé, transportou o desertor sem o algemar primeiro. Quando parou num

sinal vermelho, o rapaz aproveitou para abrir a porta do carro e se escapulir,

desaparecendo na escuridão da noite. Por causa daquele incidente, Saiam ia ser

condenado a prisão perpétua.

«Fiz a única coisa que sabia fazer: telefonar ao doutor Fadil. Anunciei-lhe a

devastadora notícia. Disse-me que não saísse do aeroporto porque ia enviar um

carro para me ir buscar. a noite ia adiantada quando o doutor Fadil me recebeu no

seu gabinete. Assim que entrei, perguntou-me qual era o nome da unidade de

Saiam. Premiu um botão de uma central telefónica e obteve ligação imediata com

o comandante de Saiam. O doutor Fadil pediu-lhe mais pormenores sobre o

incidente e perguntou-lhe para onde havia sido levado Saiam. () comandante

informou-o de que Saiam já estava preso. () doutor Fadil ordenou ao comandante

que retirasse todas as queixas e libertasse Saiam imediatamente, de modo a que

pudesse estar em casa a salvo dali a uma hora.

«Lembro-me daquela noite como se tivesse sido ontem. () doutor Fadil olhou para

mim, com um sorriso gentil nos lábios. Inclinou a cabeça e passou os dedos pelas

têmporas. "Não se preocupe. O seu encantador marido estará a seu lado daqui a

pouco."

«Então, à frente dos meus olhos, aquele homem bondoso transformou-se num

monstro insensível. Telefonou de novo ao comandante e vociferou: "Fale-me mais

sobre esse desertor." <) comandante explicou-lhe que o desertor era oriundo de

Qa-l.it Sukar. O doutor Fadil telefonou então para o departamento da polícia

secreta do distrito de Qalat Sukar e ordenou ao responsável máximo que fosse a

casa do soldado e prendes-

245

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se todos os parentes do rapaz, mesmo as crianças. A família deveria ficar detida

até o desertor se entregar.

«Fiquei em estado de choque por ver como aquele homem, depois de praticar

uma boa acção, alterar o seu comportamento em segundos, cometendo um acto

tão cruel. Lembro-me de lhe dizer: "Por favor, não prenda mais inocentes."

«Com ar inflexível, o doutor Fadil respondeu-me que, à excepção de Saiam,

aquele caso não me dizia respeito.

«Por isso, para mim o regresso de Saiam ficou sempre associado a um complexo

de culpa. Só pensava naquela família inocente, mas nada podia fazer. Um muito

aliviado Saiam voltou para casa volvida uma hora, e vim a saber mais tarde que o

desertor se entregara às autoridades.

- Esse tal doutor Fadil era realmente um homem estranho. Pergunto a mim mesma

como conseguia ele oscilar tão depressa entre o bem e o mal - comentou Samara,

num tom de voz invulgarmente intenso e grave.

- Esse é o verdadeiro mistério - concordou Mayada. - O doutor Fadil chegou a

salvar-me da prisão por duas vezes. Da primeira, eu tinha, estupidamente, colado

um retrato de Khomeini no meu quarto; a polícia secreta descobriu-o, mas nada

me aconteceu, graças ao doutor Fadil. A segunda foi em mil novecentos e oitenta

e cinco. Já havia casado, Fay tinha dois anos e eu estava grávida de Ali.

Trabalhava para a Organização Árabe do Trabalho e era tão ingénua que não

fazia a menor ideia de que todos os meus colegas eram agentes da Mukhabarat

ou dos serviços secretos.

«Todos haviam recebido ordens para atentar nos comentários que pudessem ser

ambíguos. Um dos meus colegas escreveu um relatório negativo sobre mim.

Segundo relatou, eu não revelava suficiente respeito pelo presidente e falava com

demasiada franqueza. Além do mais, acrescentou, eu não recorria aos slogans do

Partido Baas nos meus discursos.

«Assim, fui surpreendida certo dia por um telefonema da polícia secreta. Um

homem, de seu nome Abu Jabbar, ordenou-me que passasse ainda de manhã

pelo seu gabinete. Não fazia ideia do que o homem queria de mim, mas coisa boa

não era de certeza. Telefonei ao doutor Fadil e contei-lhe o que

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246

se passava. O doutor Fadil achou tudo aquilo muito estranho, mas aconselhou-me

a que fosse ao gabinete do tal homem, enquanto ele procederia a algumas

investigações. Antes de desligar, pediu-me que lhe telefonasse logo após a minha

reunião com o sujeito.

«Dirigi-me ao gabinete do tal homem, embora não tivesse medo nem estivesse

assustada, por saber que o doutor Fadil estava a par de todos os meus passos.

Sabia que ele, se eu não ] lhe telefonasse passadas algumas horas, tentaria

imediatamente descobrir o motivo do meu silêncio.

«Entrei no gabinete de Abu Jabbar. Era um homem gordo e careca. Usava óculos

com as lentes mais grossas que jamais vi, o que lhe ampliava os olhos e lhe dava

o aspecto de um sa-jpo. Percebi rapidamente que o doutor Fadil já telefonara

àquele homem, porque ele parecia mais nervoso do que eu. [Antes de receber o

telefonema do doutor Fadil, o seu plano devia ser o de prender-me, mas agora

tinha plena consciência de que eu era como veneno para ele. Tinha de inventar

um [pretexto que não enfurecesse o poderoso doutor Fadil para o [facto de haver

convocado uma mulher grávida que tinha obviamente importantes contactos. Não

parava de resmungar baixinho, enquanto andava de um lado para o outro,

meneando a cabeça. De cada vez que eu lhe perguntava o que acontecera para

mandar chamar-me, ele apressava-se a responder: "Nada, nada." Contudo,

perante a minha insistência, acabou por explicar que mandara chamar-me para

tomar café comigo. Eu nem queria acreditar. Lembro-me de exclamar, em tom de

voz estridente, se fazia alguma ideia do que era convocar uma mulher grávida de

oito meses para tomar café com ele. "Tem noção de que fiquei acordada toda a

noite, consumida pela preocupação, e que podia ter sofrido um aborto

espontâneo?" «Abu Jabbar parou, fitou-me e replicou. "Deve estar a brincar.

Porque haveria a senhora de ter medo? Ofendi-a?" «Não me dei por vencida e

insisti: "Só quero que me diga por que motivo me chamou!"

«O homem estava tão aflito que falou num tom de voz mais alto. "Não imagina o

quanto lamento tê-la chamado. Esqueça o café, Agora, volte para casa e

descanse."

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247

«Saí furiosa do seu gabinete e segui directamente para casa, a fim de telefonar ao

doutor Fadil, que me falou do relatório do meu colega acerca do meu

comportamento e me pregou um sermão sobre o facto de eu haver sido criticada

por não adoptar o "discurso do Partido Baas".

«Agora, que penso nisso, suponho que devia ter adoptado algumas das ridículas

frases deles, tais como "Plantem e comerão", e outros disparates parecidos, de

que eles tanto gostavam. Mas, em meu entender, cada palavra que eles

pronunciavam era puro desperdício.

«O doutor Fadil explicou-me que na Organização Árabe do Trabalho todos

apresentavam queixa uns dos outros. Aconselhou-me a manter a boca fechada e

a dedicar-me única e exclusivamente às minhas tarefas. Pediu-me para não

confiar em nenhum dos meus colegas. Esta nova forma de encarar o meu trabalho

tornou-o francamente desagradável para mim, mas levou-me a ser mais

cautelosa. No entanto, recusei-me a juntar-me a eles e a citar chavões socialistas.

«Como vês, Samara, o doutor Fadil estava sempre disposto a ajudar-nos.

- Deus terá muita dificuldade em decidir se o doutor Fadil subirá ao Céu ou se

descerá ao Inferno - replicou Samara, meneando a cabeça.

- Tens razão. Era um homem que misturava alguns actos bondosos a uma

variedade de comportamentos cruéis. Lembras-te de quando se iniciou a

deportação de todos aqueles que tinham documentos com a menção «Tabaeya

Iramya», em mil novecentos e oitenta?

Samara, desalentada, fixou as mãos, antes de responder:

- Tenho uma vaga ideia. Os Xiitas tinham essa menção nos seus documentos e

foram deportados. Ouvi falar disso, mas nunca soube ao certo o que aconteceu e

muito menos porque se procedeu a essa deportação em massa. Tive vizinhos que

foram apanhados nas deportações. O que era aquilo, afinal?

- Sendo sunita de descendência otomana, a deportação não me afectou - explicou

Mayada. - Pelo menos, de início. Cedo compreendi, porém, que muitos iraquianos

iam ter

248

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graves problemas em consequência dos seus certificados de nacionalidade. O

Certificado de Nacionalidade foi um documento instituído em mil novecentos e

vinte e um, quando o Iraque foi criado, após a queda do Império Otomano.

Quando se procedeu ao primeiro recenseamento, foi dada aos Iraquianos a

oportunidade de declarar se eram de origem iraniana ou otomana. Se indicassem

que eram de origem iraniana, os seus filhos estariam isentos do serviço militar,

Por conseguinte, a fim de proteger os filhos, muitas famílias decidiram declarar

que os filhos eram de origem iraniana, mesmo quando as suas origens eram

otomanas. Por exemplo, numa mesma família, os filhos podiam ser declarados

iranianos e as filhas otomanas. Infelizmente, depois da revolução iraniana, essas

opções viriam a criar problemas a muitas famílias iraquianas.

«Quando Khomeini regressou ao Irão para se tornar o seu dirigente máximo,

Saddam decidiu deportar todos aqueles que no Iraque tivessem documentos de

identidade com a menção "Tabaeya Iraniyd'. Saddam deportou milhares de

pessoas, apesar de serem iraquianas, muitas desde o tempo dos seus tetravôs.

«Sei de casos em que as pessoas foram expulsas das suas casas sem qualquer

aviso prévio, e proibidas de levar o que quer que fosse. Foram encaminhadas a pé

e abandonadas na fronteira com o Irão. Quem tentasse voltar para trás era morto.

Pouco importava que entre os deportados houvesse velhos, deficientes, doentes

ou grávidas. Mães com bebés de colo nem sequer puderam levar um biberão.

«Os Iranianos também desconfiavam daqueles iraquianos, por recearem que

Saddam houvesse enviado um batalhão de espiões para o Irão, mas, passado

algum tempo, construíram centros de refugiados para os acolher.

«O mais estranho foi o facto de haver muito poucas pessoas que sabiam o que

estava a acontecer. Os soldados de Saddam visitavam no maior sigilo as famílias

para as expulsar do Iraque, e apesar de essa prática haver começado lentamente,

ganhou uma dimensão descomunal. Por volta de mil novecentos e oitenta e um,

ouviam-se murmúrios horrorizados nas ruas sobre o que estava a acontecer.

Então, um outro crime

249

muito grave foi perpetrado contra pessoas que eu conhecia. Encontrava-me no

Page 233: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

meu gabinete da Organização Árabe do Trabalho, quando um dos chefes de

departamento entrou, seguido por um homem, que respondia pelo nome de

Jaweed, um dos motoristas da organização. Jaweed parecia um farrapo humano.

Acabara de receber um telefonema da família, que lhe contara que um camião

apinhado de pessoas percorria o bairro, com grupos de soldados a verificar os

documentos de identidade dos moradores e a exigir a todos aqueles com a

menção "Tabaeya Iraniya" nos seus papéis de identificação que saíssem

imediatamente de suas casas. Jaweed recebera ordens para regressar a casa e

juntar-se à sua família. Iam ser deportados. Para onde? Jaweed não sabia.

«Levámo-lo ao director-geral da organização, que confessou a Jaweed nada

poder fazer. Mas, sentindo pena do homem, pediu ao departamento de pessoal

que desse a Jaweed os salários de um ano inteiro. O contabilista não se

encontrava no seu posto e o chefe de pessoal pediu a todos os funcionários que

esvaziassem os bolsos para ajudar o colega. Jaweed, partiu com um ano de

salário no bolso. Nunca mais o vimos.

«Nenhum jornal mencionou o caso. Ninguém fora do Iraque parecia saber o que

estava a acontecer.

«Foi então que começou a guerra, o que só aumentou a determinação de Saddam

em deportar todos aqueles que tivessem o mais remoto passado iraniano.

Qualquer iraquiano com as palavras "Tabaeya Iraniya" inscritas nos seus

documentos era considerado um espião e um inimigo de Saddam.

«Em Dezembro de mil novecentos e oitenta e dois, essa perseguição atingiu

familiares do meu marido.

«Certo dia, depois de uma viagem de negócios, resolvi ir visitar os pais de Saiam,

que tinha quatro irmãos e cinco irmãs. Fui encontrar toda a família reunida, num

ambiente de grande consternação. Nibal, uma das irmãs de Saiam, estava lá com

os filhos, Wissam, de três anos, e Bassam, um bebé de poucos meses. Os três

pareciam tão confusos como atormentados. Perguntei o que se passava. Nibal

começou a chorar, quando me disse que o marido, o doutor Kareem Al-Saadi, fora

preso.

250

Page 234: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

«O doutor Kareem era uns quinze ou dezasseis anos mais velho do que Nibal,

mas, de entre todos os pretendentes, ela decidira casar-se com ele porque era

instruído e obtivera uma licenciatura em Química Inorgânica, nos Estados Unidos.

Nibal explicara à família que um homem instruído, habituado aos usos e costumes

ocidentais, trataria melhor a esposa do que um iraquiano sem estudos, que nunca

houvesse saído do seu país, pelo que a deixaram casar-se com o doutor Kareem.

«A casa de Nibal ficava em Hai Al-Jamia, o bairro universitário, e às primeiras

horas daquela manhã três homens haviam tocado à campainha. Informaram que

iam deter o doutor Kareem porque os seus papéis de nacionalidade tinham a

menção " Tabaeya Iraniya".

«Ora, o doutor Kareem não era mais iraniano do que Saddam Hussein, mas

porque os seus pais haviam morrido quando ele era muito novo, e como tinha

quatro irmãos mais novos para criar, escrevera " Tabaeya Iraniya" nos seus

documentos. Ciente das suas responsabilidades, não podia deixar a família para

cumprir o serviço militar. Aliás, antes da revolução e da guerra com o Irão, os

Iraquianos não tinham qualquer receio em apor tal indicação aos seus

documentos.

«O doutor Kareem era o iraquiano mais trabalhador que conheci. Apesar de

trabalhar de dia e estudar à noite, conseguiu notas tão altas que pôde obter uma

bolsa de estudos para a América, onde também revelou o seu grande empenho,

até se licenciar e, mais tarde, fazer a tese de doutoramento. Por fim, regressou ao

Iraque e sustentou a família, para que os irmãos pudessem receber uma boa

instrução. Conseguiu-o de forma admirável. Duas das suas irmãs licenciaram-se

em Medicina, um irmão tornou-se dentista e outro engenheiro civil.

«O doutor Kareem não pensara em casar-se e constituir família para poder educar

os irmãos, mas agora estava a pagar um preço demasiado elevado por haver

evitado o serviço militar.

«Nibal disse-nos que os homens que tinham detido o doutor Kareem haviam sido

desnecessariamente brutais - forçando o marido a sair de casa em pijama. Depois

haviam ordenado a Nibal que pegasse nos seus dois filhos e saísse de casa. Não

lhe haviam deixado trazer o mais pequeno objecto. Tinham-lhe

Page 235: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

251

exigido inclusivamente que lhes entregasse a chave. Nibal foi despejada e ficou na

rua, em estado de choque, com duas crianças nos braços, enquanto via os

homens selar com cera vermelha a porta de sua casa.

«Aterrorizada, julgou que ia ser presa, juntamente com os filhos, mas um dos

homens informou-a de que ela tinha o direito de se divorciar do doutor Kareem em

qualquer tribunal, porque ele era iraniano.

«O doutor Kareem discutiu com os homens, explicando-lhes que mudara os seus

papéis de identidade após a morte dos pais para poder criar os irmãos.

«Nada do que disse os demoveu. A última coisa que Nibal viu foi o rosto do

marido pressionado contra o vidro da janela do carro, quando o levaram.

«Bom, eu sabia que tinha de fazer alguma coisa, mas não estava certa de quem

podia ajudar-me. Pensei no doutor Fadil e decidi que não custava nada pedir-lhe

conselho. O doutor Fadil pedira-me que lhe trouxesse alguns livros da Embaixada

do Iraque em Cartum e eu comprara duas pequenas estátuas de ébano para lhe

oferecer, o que me dava um excelente pretexto para ir vê-lo e falar-lhe do

problema de Nibal.

«Telefonei ao doutor Fadil no dia seguinte e disse-lhe que tinha umas lembranças

para lhe oferecer. Replicou que passaria por nossa casa depois do trabalho.

«Assim que ele chegou, dei-lhe os livros e as prendas. Só depois lhe disse que

precisava de falar com ele sobre um assunto urgente. Relatei-lhe tudo o que

acontecera, não me esquecendo de sublinhar que o doutor Kareem não era

iraniano nem tão-pouco de origem iraniana. Encontrava-se numa situação terrível

apenas porque alterara os documentos pessoais, havia alguns anos, para poder

tomar conta dos irmãos e irmãs, todos mais novos do que ele.

«O doutor Fadil não se mostrou minimamente comovido. Meneou a cabeça e

resmungou: "Lamento muito, mas ele não devia ter feito uma tal coisa."

«Ao ver a minha expressão de desalento, acrescentou: "Além do mais, nesta

altura já foi deportado e nada posso fazer.

252

«Contudo, eu tinha boas notícias. Ainda não era tarde de mais. Nibal soubera que

Page 236: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

o marido, devido ao seu estatuto de grande cientista, ainda não fora deportado e

continuava detido. «O doutor Fadil não se mostrou tão contente como isso ao

saber que a situação ainda se mantinha em aberto. Fez uma pausa mas acabou

por concordar em investigar o caso.

«Telefonei-lhe no dia seguinte, mas ele disse-me que estava muito ocupado.

«Telefonei-lhe no dia a seguir e deu a mesma desculpa. «Telefonei-lhe

diariamente durante nove dias. Nibal quase enlouquecia de medo. Não podia

voltar para casa. Os filhos choravam dia e noite e a polícia secreta começara a

prender os irmãos mais novos do doutor Kareem. Apesar de os seus papéis

indicarem que eram de descendência otomana, sofreriam o mesmo destino que o

irmão: a deportação. Depois, os maridos das irmãs do doutor Kareem receberam

ordens para se divorciarem das esposas.

«Nibal era professora do ensino secundário. O reitor já recebera ordens para

despedi-la se ela não se divorciasse.

«As vidas de todos os membros daquela família estavam a ser destruídas, uma a

uma. Para nada !!

«O doutor Fadil evitava-me. Não nos visitou durante uma semana, mas eu era

persistente. Quando lhe telefonei pela décima vez, o seu tom de voz deixou bem

claro que a minha 'perseverança o irritava. Expliquei-lhe que não lhe telefonara

por causa do doutor Kareem. Ele acalmou-se e falámos de outras coisas durante

uns minutos. Quando terminámos a nossa conversa, perguntei-lhe: "doutor Fadil,

se eu vier a ter um bebé do sexo masculino, ele poderá ingressar numa academia

militar do Iraque?" "Claro que sim, Mayada", foi a resposta do doutor Fadil, em tom

afável. "Mas porque me faz essa pergunta?" Respondi-lhe que estava

preocupada, porque se o tio do meu marido fosse deportado, o futuro do meu filho

poderia ser incerto.

«Seguiu-se um longo silêncio do outro lado da linha. Por fim, o doutor Fadil exalou

um suspiro. "Telefono-lhe mais tarde."

«Não esperava ter notícias dele tão cedo, mas telefonou-me antes da hora do

almoço. Às pressas, disse-me: "O dou-

253

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tor Kareem vai ser libertado daqui a uma hora. Diga à esposa dele que se dirija à

recepção da polícia secreta para recolher as chaves de casa."

«Quis agradecer-lhe, mas ele interrompeu-me: "Mayada, nunca mais aborde este

assunto comigo." E desligou. Ficara irritado com a minha insistência, mas

solucionara o problema.

«O doutor Kareem foi libertado. Samara, nunca vi um homem envelhecer tão

depressa. Tinha perdido mais de vinte quilos. O seu cabelo estava completamente

branco. Recusou-se a falar sobre a sua detenção. Na realidade, tinha medo de

falar sobre o que lhe acontecera.

«O doutor Fadil salvou membros da família do meu marido, mas milhares de

iraquianos morreram dessa maneira - concluiu Mayada, em tom revoltado. - Para

nada!

- O doutor Fadil alguma vez pediu, a ti ou à tua mãe, para que espiassem alguém?

- perguntou Samara.

- A mim, não. Nunca. Eu era estupidamente arrojada, naquela altura - respondeu

Mayada, com um sorriso. - A minha juventude levava-me a corrigir injustiças.

Sempre que tinha conhecimento de uma tragédia, telefonava ao doutor Fadil e

massacrava-o até obter a sua ajuda. Ele depressa se apercebeu de que me servia

da sua amizade para ajudar os outros, e nunca para espiar ou prejudicar terceiros,

pelo que nutria alguma desconfiança a meu respeito. Tinha sempre o cuidado de

não me contar nada de importante, mas com a minha mãe o caso mudava de

figura.

«Como sabes, desde que Saddam chegou ao poder, os Iraquianos não podem

travar amizade com diplomatas estrangeiros. No entanto, abriram uma excepção a

essa regra para a minha mãe. Provavelmente, ela constituiu a única excepção em

todo o Iraque, porque era um privilégio deveras invulgar.

«A minha mãe era tão cosmopolita que transmitia uma boa impressão do Iraque

aos diplomatas estrangeiros. Falava fluentemente inglês, francês, italiano e turco.

Era tão boa anfitriã que com apenas uma hora de antecedência podia receber

cinquenta pessoas. Tanto Saddam como o doutor Fadil a admiravam,

encorajando-a a transmitir uma boa imagem do Iraque nos seus contactos com

Page 238: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

estrangeiros.

254

«O doutor Fadil, contudo, ganhou uma tal confiança na amizade que a minha mãe

tinha por ele que cometeu um erro. Pediu que ela lhe falasse de certas pessoas. A

minha mãe recusou-se logo ali a fazê-lo, afirmando que não era nem nunca seria

uma espia. Outra vez, o doutor Fadil pedira autorização a minha mãe para instalar

microfones na nossa casa, de forma a que quando recebêssemos visitas de

diplomatas estrangeiros todas as conversas ficassem automaticamente gravadas,

mas a minha mãe insurgiu-se contra tal ideia e ele nunca mais tocou no assunto.

A minha mãe era uma acérrima defensora do Iraque, mas não do governo do

Iraque. O facto de a filha de Sati haver decidido viver no Iraque sob o regime do

Partido Baas era um motivo de orgulho para o governo de Saddam. Não queriam

contrariá-la porque não queriam perder a família Al-Husri. Essa espécie de

cedência tácita trouxe-nos muitas benesses e a minha mãe desempenhou um

papel importante no salvamento de uma inglesa, precisamente devido ao facto de

LSaddam e o doutor Fadil confiarem nela.

- Uma inglesa? Como? - sussurrou Samara, perplexa, inclinando-se mais para a

frente.

- O caso foi primeira página de muitos jornais por todo mundo. Um inglês foi

enforcado e uma inglesa foi condenada a uma pena de prisão longa.

- Não me lembro disso...

- Lembras-te, sim. Não te recordas do caso Bazoft, em mil novecentos e oitenta e

nove? O jornalista inglês Farzad Bazoft, que trabalhava para o British Observer, foi

executado, acusado de ser um espião a soldo de Israel, quando trabalhava num

artigo sobre uma explosão num complexo militar? Foi julgado, condenado e

enforcado, mas muitas pessoas esquecem-se de que também havia uma mulher

inocente envolvida no caso.

Um brilho passou pelos olhos de Samara.

- Agora me lembro! Foi um grande escândalo e apareceu nas primeiras páginas

de todos os jornais!

- Exactamente. Quando o escândalo rebentou, o governo iraquiano não teve

Page 239: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

quaisquer duvidas quanto à culpabilidade de Bazoft, mas já não estava tão seguro

a propósito da mulher

255

que o conduzira ao complexo, uma enfermeira inglesa chamada Daphne Parish.

Nessa altura, a minha mãe era amiga de Lady Terence Clark, esposa do

embaixador inglês no Iraque. Em consequência das suas conversas com Lady

Clark, a minha mãe percebeu que Daphne Parish se achava completamente

inocente. A enfermeira inglesa, que conhecia bem o Iraque, limitara-se a dar

boleia a Bazoft. A minha mãe sabia que Sad-dam estava furioso com o caso e que

o mais certo era o homem ser enforcado, mas ficou preocupada quando pensou

que podia acontecer o mesmo à mulher. Telefonou ao doutor Fa-dil e, pela

primeira vez, revelou-lhe as conversas privadas que tivera com Liz Clark,

pressionando o doutor Fadil a proteger a enfermeira inglesa. O doutor Fadil

acreditou na minha mãe, e depois de uma sucessão de reuniões em que as

conversas que ela havia tido com Liz Clark foram de importância vital ficou

decidido que Daphne Parish seria condenada a uma pena de prisão e não à pena

de morte, o que dava a possibilidade a Saddam e aos seus oficiais de lhe

conceder um perdão mais tarde.

«Assim, quando Bazoft foi julgado, dado como culpado e executado em Março de

mil novecentos e noventa, Daphne Parish foi condenada a uma pena de prisão de

quinze anos. As posteriores investigações provaram que miss Parish estava

inocente, como a minha mãe sempre afirmara. A enfermeira inglesa foi libertada

volvidos alguns meses, em Julho de mil novecentos e noventa, e regressou ao seu

país.

«A minha mãe ficou chocada quando, depois de haver informado o governo

acerca das conversas que tivera com a esposa do embaixador britânico, Saddam

lhe ofereceu uma bela vivenda de dois andares com vista para o rio Tigre num

bairro residencial chamado Al-Sullaikh. Quando a minha mãe saiu do Iraque,

entregou-me toda a documentação e eu decidi vender a casa. Foi então que o

agente imobiliário me pediu que o visitasse para falarmos sobre os antigos

proprietários da vivenda. Perguntou-me se os conhecia. Respondi-lhe que não. Só

Page 240: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

depois me revelou que aquela vivenda pertencera a uma família "Tabaeya

Iraniya". Segundo ele, toda a família fora levada para a prisão a meio da noite e

assassinada, antes mesmo que o governo procedesse à sua deportação.

256

«Telefonei à minha mãe, que se encontrava na Inglaterra, para lhe explicar o

melhor que pude o que acontecera aos verdadeiros proprietários da vivenda. A

minha mãe não é especialmente religiosa, mas sempre teve um elevado sentido

de ética e de moral. Quando ficou a saber da sangrenta história que envolvia a

casa que Saddam lhe oferecera, afirmou que nunca poderia obter quaisquer

rendimentos daquela tenebrosa oferta; era como ter um pedaço de carvão em

brasa nas mãos. Assim, pediu-me que procurasse os familiares da família

assassinada. Tentei mas não consegui encontrar ninguém.

«Passadas algumas semanas, informei a minha mãe de que não conseguira

encontrar nenhum parente da família a quem havia pertencido a vivenda. Ela

disse-me então que vendesse a casa e doasse o resultado da venda aos pobres,

porque para ela era a única forma de honrar as almas dos verdadeiros

proprietários da vivenda, que haviam sido privados da sua casa e mortos. Fiz o

que ela me pediu e distribuí o dinheiro da venda daquela casa pelas pessoas mais

carenciadas que eu conhe-Icia.

- É uma história muito bonita - murmurou Samara, docilmente, agarrando a mão

da companheira de cela.

- Não somos o tipo de pessoas que pudessem obter algo daquela forma.

- Mas voltemos ao doutor Fadil. Constou-me que Saddam o mandou matar.

- É verdade, e foi o princípio de todas as coisas negativas, pelo menos para mim.

Em mil novecentos e oitenta e nove, a minha vida alterou-se radicalmente. A

minha mãe decidiu ir viver para Inglaterra. O doutor Fadil foi transferido dos

Serviços Secretos para o palácio, onde iria exercer as funções de conselheiro de

Saddam. Lembro-me muito bem da última vez em que estive com ele. Passou

pela nossa casa para se despedir da minha mãe, e falou do novo cargo que ia

desempenhar no palácio presidencial. Sentia-se já reformado, conforme disse à

minha mãe, porque o seu trabalho se esvaziara. - Mayada recordou a cena. -

Page 241: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Sabendo o que sei hoje, pergunto a mim mesma do que é que ele sentia falta no

cargo precedente... 257

- Nunca conheceremos todos os seus actos, Mayada, tan to os maus como os

bons. Basta sabermos que ele praticou por vezes o bem. Agora retoma o teu

relato. Paraste na altura em que o doutor Fadil se despedia da tua mãe...

- A minha mãe estava radiante por sair do Iraque, o que me surpreendia, mas a

verdade é que o governo de Saddam ameaçava a vida de todos os iraquianos.

Estava desejosa de ir viver para Londres ou Beirute, as suas cidades favoritas.

Quanto a mim, esperava que corresse tudo bem. Tinha-me divorciado finalmente

de Saiam. A guerra contra o Irão terminara e os Iraquianos podiam viajar

novamente, pelo que sabia que poderia visitar a minha mãe sempre que quisesse.

O doutor Fadil ainda detinha uma posição muito importante no palácio. Ou, pelo

menos, eu assim pensava...

Mayada aproximou-se um pouco mais de Samara, escolhendo com cuidado as

palavras.

- Então, certo dia, o doutor Fadil desapareceu, sem mais nem menos. Telefonei

para sua casa. Ouvi o sinal de linha ocupada. Telefonei durante dias a fio, mas a

linha estava sempre ocupada. Por fim, telefonei a Fatin, a cunhada dele. Ninguém

atendeu. Haviam começado a circular boatos de que o doutor Fadil fora preso.

Toda a sua família desaparecera, inclusivamente a sua belíssima esposa e os

seus cinco filhos. Era como se tivessem embarcado para a lua ou coisa parecida...

Durante mais de um ano, nada soube do paradeiro deles. Nos anos que se

seguiram, comecei a juntar a pouco e pouco as peças do puzzle que constituía o

desaparecimento do doutor Fadil Al-Barrak e foi desse modo que vim a saber a

verdade.

«Quando a Guerra do Golfo terminou, em Junho de mil novecentos e noventa e

um, a minha mãe comprou uma casa em Amã e convidou-me, a mim e aos meus

filhos, a visitá-la. Comprámos bilhetes da linha de expressos, que são muito mais

confortáveis do que os autocarros normais.

«O autocarro estava a abarrotar de passageiros, mas reparei numa senhora de

idade, vestida de preto. Era muito distinta. Tinha pele muito branca, em contraste

Page 242: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

com os seus trajes negros, e pareceu-me uma pessoa invulgar.

«No entanto, não lhe dirigi a palavra. Depois de atraves-

258

sarmos a fronteira iraquiana, Fay e Ali adormeceram, enquanto eu pensava no

que ia fazer da minha vida. Foi então que o motorista passou a gravação de uma

canção iraquiana muito antiga, uma melodia triste sobre uma mulher que perde o

filho. A senhora idosa que me despertara a atenção começou a chorar em silêncio,

cobrindo o rosto com a ponta do tecido que lhe cobria a cabeça. A sua angústia

era tão grande que, só de vê-la, senti as lágrimas aflorarem-me aos olhos.

«Quis ajudá-la e ofereci-lhe um copo de água. Ela bebeu um gole, mas as

lágrimas continuavam a escorrer-lhe pelo rosto. Por fim, pediu ao condutor que

desligasse a gravação. Eu sabia que ela devia ter perdido um filho, e perguntei-lhe

o que se passava.

«Como já não estávamos no Iraque, aquela senhora sentiu-se em segurança e

abriu-se comigo. Tivera um filho maravilhoso, chamado Sabah, muito afeiçoado à

mãe idosa. Ele estivera detido durante dois anos em Al-Hakimiya, uma prisão

conhecida pela sua extrema violência. Duas semanas antes da sua partida para

Amã, as autoridades governamentais informaram-na de que o filho ia ser libertado,

e que ela devia ir buscá-lo à prisão e levá-lo para casa. Ordenaram-lhe que

levasse um agrupamento musical para que pudesse celebrar com o filho o

regresso deste. A senhora ficou eufórica. Contratou um conjunto de músicos e

dirigiu-se à prisão como lhe fora ordenado, para levar o filho para casa.

«Imagina o seu horror quando, em vez de ver o filho sair da prisão pelo seu pé,

deparou com um caixão. Depois disso, a pobre mulher sentia-se tão infeliz no

Iraque que decidiu ir viver para Amã.

«Foi então que me disse o nome completo do filho: Sabah Al-Ani. Eu fiquei tão

chocada que mal consegui articular palavra, ao descobrir que o filho daquela

mulher era o melhor amigo do doutor Fadil. Sem pensar duas vezes, exclamei:

"Por acaso, sabe alguma coisa acerca do paradeiro do doutor Fadil?"

«A mãe de Sabah retraiu-se de imediato. "Quem é você?", perguntou, em tom

glacial.

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«Disse-lhe que a minha mãe, Salwa Al-Husri, era amiga do doutor Fadil, e que

toda a minha família tentara descobrir o

259

paradeiro dele, desde que havia desaparecido, e que nem sequer sabíamos que o

filho dela fora preso.

«Ao ouvir isto, a mulher disse-me que o doutor Fadil havia sido morto na mesma

altura que o seu filho.

«Quando cheguei a Amã, contei à minha mãe tudo aquilo. Ela, por seu lado,

contou-me que estivera com o antigo embaixador do Egipto no Iraque e que ele

lhe fornecera mais pormenores sobre o destino do doutor Fadil. Afirmando possuir

informações fidedignas, explicou que o doutor Fadil fora alvo de uma cilada, que o

levara a ser acusado de espião, traidor e muitos outros crimes graves.

Acrescentou que alguém com uma posição de peso no círculo íntimo de Saddam

quisera afastar o doutor Fadil. Essa pessoa tinha contactos ao mais alto nível,

para poder abrir uma conta bancária na Suíça em nome do doutor Fadil, antes de

dizer a Saddam que o doutor Fadil trabalhava como espião para os Alemães, que

lhe haviam dado uma avultada soma de dinheiro como pagamento. Tanto eu como

a minha mãe sabíamos que era mentira, porque o doutor Fadil Al-Barrak prezava

o Iraque mais do que a sua própria vida. Mas Saddam era tão paranóico que,

quando descobriu uma conta bancária suíça em nome do doutor Fadil, nada pôde

salvar o nosso amigo.

«Mesmo assim, ainda sabíamos muito pouco sobre a sua detenção e

encarceramento. Haveríamos de conhecer os pormenores mais tarde.

«Quando regressei a Bagdá, descobri mais uma peça do puzzle. Existe uma

galeria de arte por trás da nossa casa. Um dia, ouvi tocar a campainha e fui abrir.

Era o dono. Perguntou-me se eu estava interessada em vender-lhe duas árvores

muito altas que tínhamos no jardim. Respondi-lhe que não, porque a minha mãe

gostava muito daquelas árvores. Então, pediu-me se podia entrar no jardim e olhar

para as árvores. O meu filho Ali, que ainda era muito pequeno, aproximou-se e

reconheceu o homem, porque o seu grande companheiro de brincadeiras vivia na

casa contígua à galeria. Percebendo que era uma pessoa respeitável, convidei-o a

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entrar e a tomar café.

«Sentámo-nos no jardim contemplando as árvores, enquanto conversávamos.

Fiquei a saber que aquele homem tira-

260

ra o curso de Direito e se tornara membro da Mukhabarat. Ao ouvir aquilo,

apressei-me a perguntar-lhe se sabia o que acontecera ao doutor Fadil. Talvez

porque ainda mantivesse a esperança de me convencer a vender-lhe as árvores,

confidenciou-me que o doutor Fadil fora alvo de acusações muito graves, entre

elas a de ser espião. Disse-me que o doutor Fadil ficara preso durante mais de um

ano no centro de detenção de AI-Hakimiya, tal como a mãe de Sabah Al-Ani me

dissera.

«Samara, não podes imaginar como fiquei triste quando aquele homem me

revelou que o passatempo favorito dos oficiais mais novos de Al-Hakimiya era o

de se dirigirem à cela do doutor Fadil para lhe dar pontapés, arrancar-lhe o cabelo

ou puxar-lhe as orelhas. Alguns haviam até instituído um ritual diário que consistia

em cuspir na cara do doutor Fadil.

«A tristeza apoderou-se de mim ao ouvir aquilo. Recordei o doutor Fadil, um

homem que tinha sempre um sorriso a bailar-lhe nos lábios e que gostava de falar

da grandeza do Iraque. Lembrei-me do doutor Fadil, pai babado, com a filha mais

nova ao colo, enquanto a bebé lhe mordia os dedos. Lembrei-me, acima de tudo,

do doutor Fadil, um ser humano bondoso que amava a esposa e os filhos e que

nunca se negara a ajudar-me, sempre que eu tentara reparar uma injustiça. No

entanto, soube mais tarde que o doutor Fadil se gabava de haver matado milhares

de xiitas do Hizb Al-Dawa Àl-Islamiya, o Partido da Convocação Islâmica.

«Em mil novecentos e noventa e três, foram-me fornecidas as duas últimas peças

do puzzle relativo ao trágico destino do doutor Fadil.

«Um homem chamado Usama Al-Tikriti apareceu no meu gabinete em Bagdá para

fazer perguntas sobre a minha mãe. Eu sabia que ela não planeava regressar ao

Iraque, mas não lho disse. Segundo o homem, o Instituto de Segurança Nacional

precisava da minha mãe para que ela desse aulas sobre regras de protocolo.

Assegurei-lhe que lhe transmitiria a mensagem. O teor da nossa conversa acabou

Page 245: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

por incidir sobre o doutor Fadil, porque aquele homem havia sido um dos seus

assistentes. Ficara triste com o que acontecera ao seu antigo chefe e contou-me

que, depois de ser preso, o doutor Fadil fora tortura-

261

do até confessar todo o tipo de crimes possíveis e imaginários contra Saddam. As

confissões foram gravadas. Os carrascos obrigaram então o doutor Fadil a usar

uma coleira e uma trela de cão, enfiaram-no na parte de trás de uma carrinha e

levaram-no até à sua tribo, em Tikrit, onde a sua confissão foi lida na presença

dos anciãos, que prometeram matar o doutor Fadil ali mesmo se fosse esse o

desejo do governo. Mas Saddam ainda não se dera por satisfeito, e o doutor Fadil

regressou à prisão, onde foi sujeito a mais torturas.

«Só mais tarde obtive a peça final do puzzle que constituía o fim trágico do doutor

Fadil. Foi no Verão de mil novecentos e noventa e quatro ou mil novecentos e

noventa e cinco, e eu tinha ido visitar a minha mãe a Amã. Ela convidara vários

amigos para o almoço e eu oferecera-me para confeccionar todas as minhas

especialidades. Preparei diferentes saladas, alguns legumes recheados com carne

e arroz, um assado, um prato de massa, uma receita de beringelas com carne

picada, molho de tomate e queijo e biryani1. Como sobremesa, fizera um Bolo

Floresta Negra e um mahalabi2, e servi também diversos frutos e chá.

«Todos se deliciaram com o almoço e se mostravam muito animados, mas no

meio daquela alegria reparei num dos convidados, por ser muito calado e parecer

absorto. O que me despertara a atenção fora o seu rosto, muito triste. Chamava-

se doutor Mohammed. Depois de eu servir o chá, todos os convidados da minha

mãe passaram à sala, a fim de verem as notícias na televisão. Mas o homem ficou

na sala de jantar, ajudando-me a levantar a mesa.

«O calor era intenso, mas o doutor Mohammed usava uma camisa de mangas

compridas. Quando se debruçou sobre a mesa para pegar num prato, uma das

mangas subiu e vi-lhe uma cicatriz avermelhada no pulso.

«Aquela cicatriz despertou a minha curiosidade e perguntei-lhe qual era a sua

especialidade médica. Respondeu-me que era cirurgião. Palavra puxa palavra e

ele acabou por me contar a sua história.

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1 Prato confeccionado com arfei muito picante, nozes e galinha.

2 Pudim de leite. .

262

«O seu pai fora uma alta patente do exército, durante a Guerra Irão-Iraque. Era

um homem justo e muito popular junto dos seus soldados. Essa popularidade

granjeou-lhe inimigos entre os outros generais, que o acusavam de ser demasiado

brando para com os seus homens e demasiado clemente para com o inimigo.

Mais tarde, foi acusado de ser o cabecilha duma conspiração contra Saddam,

acusação muito utilizada por todos os que rodeavam Saddam sempre que se

queriam livrar de alguém. Todavia, Saddam, ao conhecer a acusação, mandou

prendê-lo.

«Em virtude de o pai estar preso, a Mukhabarat instalou microfones na casa do

filho, sem ele o saber, claro.

«Isso viria a trazer-lhe problemas. Estávamos em mil novecentos e oitenta e cinco

e a guerra ainda grassava. O doutor Mohammed e a mãe estavam a ver televisão

quando foi transmitida uma notícia de última hora sobre Saddam e a família.

Saddam encontrava-se em Tikrit, de visita à esposa, Sajida, e à filha mais nova,

Haia, quando um míssil Scud ira-niano atingiu o palácio de Tikrit. O edifício ficou

quase totalmente destruído, mas tanto Saddam como a família sobreviveram ao

atentado. Como é natural, Saddam revelou-se muito transtornado e beijou a

mulher nas faces. Ora, como sabes, os árabes nunca beijam as esposas em

público, seja em que circunstância for.

«O doutor Mohammed olhou para a mãe e comentou, casualmente: "Ele devia

saber que não deve beijar a esposa em público."

«Dois dias mais tarde, os agentes da Mukhabarat apareceram na casa dele.

Detiveram o doutor Mohammed e a mãe e levaram-nos para Al-Hakimiya, uma

das piores prisões do Iraque. O doutor Mohammed foi encarcerado numa cela

minúscula com a mãe. Ali ficaram, votados ao abandono, durante um mês. Quase

não lhes davam comida para sobreviverem. Então, os guardas prisionais

começaram a levar o doutor Mohammed todos os dias para o torturar. As torturas

a que foi submetido eram muito violentas. Obrigavam-no a pisar chão molhado

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enquanto lhe davam choques eléctricos. Arrancaram-lhe as unhas e usaram

bastões eléctricos para queimar a carne viva da ponta dos dedos. Não houve um

só dia em que não tenha si-

263

do submetido às piores torturas. Quando estas terminavam, os guardas atiravam-

no, quase morto, para a cela. Os gritos de angústia da mãe despertavam-no, e

davam-lhe forças para continuar a viver, por ela.

«O doutor Mohammed e a mãe viveram assim durante vários anos.

«Disse-me que o pior de tudo era esperar pela sua vez para o torturarem. Os

guardas da prisão haviam instituído um ritual diário particularmente cruel. Todas

as manhãs, juntavam os prisioneiros que iriam torturar nesse dia. Depois,

algemavam-nos a um cano comprido que corria horizontalmente pelo corredor.

Cada prisioneiro não via mais do que as costas do que estava à sua frente. Por

vezes, esperavam oito ou dez horas para serem torturados.

«Um dia o doutor Mohammed não aguentou mais e cedeu à histeria. Estava

algemado ao cano havia mais de oito horas e não bebera uma só gota de água

durante todo esse tempo. Começou a gritar que era médico e filho de um

comandante do exército. Ninguém tinha o direito de tratar seres humanos daquela

maneira. Um dos seus carrascos, um homem chamado Abu Faisal, começou a

dar-lhe pontapés. "Não passas de um bocado de merda!", bradou. Depois, tirou

outro prisioneiro do cano e arrastou-o até este ficar em frente do doutor

Mohammed. "Julgas-te demasiado importante para seres torturado? Sabes quem

é este?" O guarda puxou o outro prisioneiro pelo cabelo, forçando-o a erguer a

cabeça. O homem fora tão maltratado que mal conseguia abrir os olhos. O jovem

doutor Mohammed quase desmaiou ao reconhecer o doutor Fadil Al-Barrak, um

homem que detivera um dos cargos mais importantes do governo.

«O doutor Mohammed compreendeu então que nenhum iraquiano estava a salvo.

Depois de ver em que estado se encontrava o doutor Fadil, perdeu toda a

esperança. Não suportaria nem mais um dia naquele lugar e decidiu suicidar-se.

Depois de ser torturado e de regressar à cela, esperou que a mãe adormecesse e

começou a cortar com os dentes a própria carne até alcançar as veias do pulso

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direito, que ostentava a cicatriz que eu vira.

«O doutor Mohammed estava mesmo decidido a morrer. No

264

dia seguinte, quando os guardas foram buscá-lo para o torturar, encontraram-no

quase morto. Levaram-no para o hospital da prisão e salvaram-lhe a vida. Foi

então julgado e condenado a uma pena de prisão de vinte anos por haver

difamado Saddam. A mãe foi infligida a mesma pena por ter ouvido o filho difamar

Saddam. Felizmente, concederam um perdão à mãe passado pouco tempo.

«Entretanto, o pai fora executado. Um dos amigos do pai, uma alta patente do

exército iraquiano, o general Al-Dulaimi, foi visitar a mãe do doutor Mohammed

para lhe apresentar os seus pêsames. Quando descobriu que o filho estava preso,

falou-lhe de um director de prisão que aceitava subornos através de uma famosa

dançarina cigana chamada Dollarat, que significa dólares. O contacto foi

imediatamente estabelecido e o director recebeu cinco mil dólares para arranjar

forma de o doutor Mohammed fugir da prisão.

«Acabou por escapar da prisão dentro de uma das sacas usadas para transportar

cadáveres. Com a ajuda de contrabandistas, atravessou a fronteira e entrou na

Síria, onde encontrou alguns oficiais iraquianos desertores que o conduziram até

Amã.

«Foi portanto através do doutor Mohammed que obtive a terceira confirmação de

que o doutor Fadil fora preso, encarcerado e torturado. Desconheço a data exacta

da sua execução. Tudo o que sei é que teve uma morte terrível. E a história não

acaba aqui. A lindíssima esposa do doutor Fadil foi forçada a casar-se com

Barzan, o meio-irmão de Saddam. Se bem te lembras, Barzan estava casado com

a irmã de Sajida, mas quando a mulher morreu de cancro, em mil novecentos e

noventa e oito, a primeira coisa que Barzan fez foi casar-se com a bela Jinan.

Samara abriu a boca para falar, mas nesse momento a porta da cela abriu-se.

Mayada ouviu um ruído surdo e espreitou por cima do ombro de Samara.

Sara jazia no chão, o rosto contra o cimento. Apesar das sessões de tortura

recentes que lhes haviam deixado marcas, tanto Samara como Mayada se

juntaram às outras mulheres-sombra, quando se precipitaram para Sara.

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265

Iman virou-a com cuidado. Nuvens de fumo saíam da boca da infeliz.

- O que é este fumo? - perguntou Mayada, em pânico, recuando.

- Ter-lhe-ão queimado as entranhas? - gritou Muna.

- Penso que desta vez mataram a pobre Sara - murmurou Samara.

- Que vamos fazer? - perguntou a Dr.a Sabah a Samara, que começara já a

examinar o corpo de Sara. A parte da frente do seu vestido fora rasgada de cima a

baixo.

- Vejam, ligaram-na à corrente em muitas partes do corpo. - Mayada examinou a

pobre Sara. As denunciadoras marcas vincavam as orelhas, os lábios, os

mamilos, os pulsos e os tornozelos de Sara. Lembrando-se de quanto fora

doloroso receber uma descarga eléctrica entre o dedo do pé e a orelha, Mayada

meneou a cabeça, incrédula. Duvidava que Sara sobrevivesse aos maus tratos

que lhe haviam infligido no interrogatório.

Samara, como sempre, começou a dar instruções.

- Ela está a fumegar das entranhas. Temos de molhá-la com água. Vamos levá-la

até ao chuveiro para que o seu corpo arrefeça.

Seguindo as instruções de Samara, Muna, a Dr.a Sabah e Aliya ergueram Sara do

chão e transportaram-na até ao único chuveiro da cela, que ficava ao lado da

retrete.

- Usem apenas água fria! - avisou Samara. Mantendo Sara em pé, a Dr.a Sabah

borrifou-lhe o rosto e

o corpo com água fria. Por pudor, não a despiram, apesar de o vestido estar

rasgado na parte da frente.

Sob o chuveiro, Sara começou a recobrar os sentidos. Abriu os olhos e fitou os

rostos que a rodeavam, enquanto se ia apercebendo, aos poucos, de onde estava

e do que acontecera. Quando a sua memória se reavivou, chamou entre soluços

pela mãe e pelo pai, de uma forma que metia dó:

- Youma! Yabba ! (1 ) Vejam o que aconteceu à vossa filha! Vejam o que

aconteceu à vossa filha! Youma! Yabbal - Sara

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( 1 ) - Respectivamente, «mãe» e «pai» em árabe .

266

Ergueu então a mão direita e começou a bater no próprio rosto e no corpo. -

Youma! Yabba! Ajudem a vossa pobre filha! Salvem-na! - Soluçava tanto que se

dobrou para a frente. - Youma, Youma, ajuda-me! Ajuda-me!

Não sabendo que mais fazer, Mayada começou a recitar o Fattiha, versos

consoladores do Alcorão, na esperança de que acalmassem a pobre rapariga.

- Em nome de Alá, o mais gracioso, o mais misericordioso. Todas as preces e

graças sejam para Alá, Senhor de Ala-min, o mais gracioso, o mais

misericordioso, o único detentor do dia da reparação. Tu, a quem adoramos e a

quem pedimos ajuda em tudo. Guia-nos pelo bom caminho. Guia-nos pelo

caminho daqueles a quem abençoaste com a tua graça e não pelo caminho

daqueles que provocaram a tua ira, nem daqueles que se transviaram.

Sara continuava a gritar, chamando ora pela mãe ora pelo pai, falecido havia

muitos anos.

As mulheres-sombra choraram com Sara, uma jovem inocente, solteira,

aterrorizada e sem a protecção dos pais. Juntas, os seus soluços transformaram-

se num bramido de lamentações que inspiraria dó até ao coração mais impiedoso.

Samara foi a primeira a recobrar o controlo das suas emoções, instruindo as

companheiras de cela a levar Sara para a sua cama. Depois de a deitar, taparam-

na gentilmente com um cobertor leve. As mulheres-sombra revezaram-se então a

manter o rosto e a cabeça de Sara humedecidos.

- A história dela é uma das mais tristes - confessou Samara a Mayada.

Sara pouco havia falado desde o dia em que Mayada fora presa. Assim, sabia

pouco sobre o passado dela ou sobre o motivo por que fora detida.

- O que lançou uma jovem como ela para aqui? - perguntou em voz baixa.

- Sara pertence a uma família da classe média. O pai morreu quando ela era ainda

muito nova, mas a mãe, uma engenheira agrícola, dedicou-se a Sara e aos seus

irmãos mais novos, Hadi e Adel. A mãe não quis voltar a casar e a família ficou

limitada apenas à mãe e aos três filhos.

267

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Desde que se divorciara e a mãe saíra do Iraque, a família de Mayada reduzira-se

a ela e aos seus dois filhos. Costumavam chamar-se, na brincadeira, «Os Três

Mosqueteiros». Por Isso, compreendia os laços fortes que uniam aquela pequena

família.

- A mãe de Sara fez muitos sacrifícios, porque tinha grandes projectos para os

filhos - continuou Samara. - Possuía um lote de terra que herdara do marido, e

dizia aos filhos que, assim que completassem os estudos, o venderia para os

ajudar no início das suas vidas profissionais.

«Foi então que, no ano passado, a tragédia lhes bateu à porta. Sara estava no

último ano da Faculdade de Farmácia e sonhava ter a sua própria farmácia. Os

dois irmãos haviam ingressado na Universidade de Medicina. Certo dia, Hadi

voltou para casa sem o irmão. Contou, entre lágrimas, que agentes da polícia

secreta haviam ido à faculdade e levado Adel. Quando Hadi viu Adel a ser detido

seguiu atrás do irmão. Os homens informaram que Adel ia ser levado para

interrogatório, mas que regressaria a casa passadas umas duas horas. Adel era

muito crédulo e disse a Hadi que não se preocupasse. Hadi, por seu lado, estava

mais céptico e começou a gritar com os homens em pleno átrio de entrada da

universidade, dizendo que não podiam levar o irmão. Um dos homens agarrou

Adel pelo pulso e quase lho partiu, murmurando: "Mete-te na tua vida, filho-da-

puta, ou mato-te já aqui."

«Os dias que se seguiram revelaram-se um verdadeiro pesadelo, com a família a

procurar Adel em todas as prisões. Nunca o encontraram.

«Uma semana depois, a polícia secreta foi a casa deles. Passava da meia-noite e

estavam todos a dormir. Hadi correu para a porta na esperança de ver Adel, mas

tratava-se dos mesmos três agentes que haviam detido Adel. Empurraram Hadi

para o lado, entraram na casa, ordenaram a Sara e à mãe que ficassem na

cozinha, e levaram Hadi para o quarto dele. Quando Sara e a mãe começaram a

ouvir grande alarido no quarto, saíram da cozinha a tempo de ver os três homens

sair porta fora.

«Sara e a mãe correram para o quarto de Hadi. O aposen-

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Page 252: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

to fora totalmente virado do avesso, como se tivessem andado à procura de

alguma coisa. Hadi jazia no chão, entre a cama e a parede. Fora assassinado.

«Sara e a mãe estavam de rastos. Numa semana haviam perdido os dois rapazes.

«Passados os tradicionais sete dias de luto, Sara ainda tinha medo de sair de

casa e regressar à faculdade. A pobre rapariga receava deparar-se com os

assassinos dos irmãos.

«Por insistência da mãe, Sara acabou por voltar à faculdade. E o seu pesadelo

tornou-se realidade. Dali a uma semana, os mesmos homens foram buscá-la.

Proibiram-na de telefonar à mãe, detiveram-na e fecharam-na aqui, em Baladiyat,

e torturam-na desde esse dia. Sara ficou a saber durante os interrogatórios a que

foi submetida que alguém acusara anonimamente Adel de fazer parte de uma

conspiração que se opunha ao regime de Saddam. Os guardas convenceram-se

de que Sara sabia o nome dos outros conspiradores. É óbvio que nunca houve

qualquer conspiração. Os rapazes estavam tão ocupados com os seus estudos

que nunca teriam tempo para tais coisas.

Apesar de tudo, Sara apercebera-se das palavras de Samara, porque o seu choro

se tornou ainda mais pungente.

- Youmal Yabba! Por favor, ajudem a vossa filha! - gritou. - Não posso mais! Não

posso mais!

Muna interrompeu, lembrando-se de outra mulher-som-bra cujo destino não

conheciam.

- Samara, também estou preocupada com Safana. Foi levada há já muito tempo...

- A cela cinquenta e dois transformou-se numa porta giratória - comentou Samara,

olhando tristemente para Mayada.

Os soluços de Sara preenchiam o espaço exíguo da cela. Todas as mulheres-

sombra se reuniram à sua volta, umas de mãos dadas, outras chorando baixinho.

Mayada sentou-se e fitou o tecto, desejando estar em casa, na sua cama, com

Fay e Ali perto de si.

269

9

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O chilrear do «qabaj»

As mulheres-sombra ergueram o olhar ansiosamente quando, cerca de uma hora

mais tarde, a porta foi aberta e uma mão invisível empurrou Safana. Apesar de

transpor a porta pelo próprio pé, não era a mesma Safana que deixara a cela 52

horas antes. Avançou dois ou três passos, hesitante, e teve de apoiar-se à parede

para não cair. Tinha de banda o lenço que lhe cobria a cabeça e abertas as abas

da sua abaaya. O suplício envelhecera-lhe o rosto juvenil, e as faces, outrora

firmes, mostravam-se agora avermelhadas e cheias de pequenas rugas. Arqueava

as costas, como se lhe houvessem torcido a coluna durante o interrogatório.

Perscrutou a cela, os olhos injectados de sangue. As pernas tremiam-lhe e

estavam dobradas como se fossem de borracha. Muna correu para ela, com as

mãos estendidas, e abraçou-a.

- Safana! Estás bem?

Os olhos de Safana revelavam confusão, antes de o seu rosto se enrugar e de os

fechar, um débil gemido. O seu corpo rodopiou e caiu. Muna envolveu-a nos

braços e segurou-a com força.

- Preciso de ajuda!

A Dr.a Sabah precipitou-se para a ajudar, enquanto duas outras mulheres-sombra

conduziam Safana para a cama que lhe haviam preparado.

Samara mantinha-se de pé, examinando a companheira de cela, com as

sobrancelhas unidas pela preocupação.

- Vejam as costas dela - murmurou, meneando a cabe-

270

ça. - O sangue empapou-lhe o vestido e a abaaya. Deitem-na de barriga para

baixo.

As três mulheres ajudaram Safana a deitar-se. Assim que estava estendida no

chão, Samara baixou-lhe o vestido até à cintura.

Dominada por um sentimento de piedade, Mayada queria ajudar, mas quando

Samara a viu puxar a manta para baixo e tentar levantar-se, ordenou:

- Fica onde estás!

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Mayada obedeceu; mas apoiou-se nos cotovelos, olhando para as costas de

Safana, que, desde a nuca até às nádegas, eram uma massa de carne

ensanguentada.

Fora cruelmente chicoteada.

Samara começara já a examinar os ferimentos de Safana. Primeiro, pressionou

levemente um pano seco sobre as feridas, e depois lavou-as com um pano

húmido que depressa se tornou avermelhado. Samara voltou então a mergulhá-lo

num balde de água.

O rosto de Safana enrugou-se, pela dor, e gemeu:

- Aiiiiii... Aiiii...

Samara também estava muito pálida e cansada, e interrompeu o tratamento para

sussurrar palavras de consolo ao ouvido de Safana.

Do beliche em que estava deitada, Mayada assistia a tudo, percorrendo com os

olhos a minúscula cela. As outras prisioneiras haviam-se reunido em volta de

Safana. Todas tinham as faces molhadas pelas lágrimas.

Muna, a colega de Safana, chorava em silêncio, enquanto lhe agarrava com força

numa das mãos.

Agachada a um canto, com as pernas dobradas por baixo do corpo, Rasha

balouçava-se para a frente e para trás.

A Dr.a Sabah ficara a ver as outras mulheres-sombra a tratar de Safana. As rugas

profundas em volta dos olhos e dos lábios revelavam bem os seus cinquenta

anos.

Mayada fitou Sara de relance, que, sentindo-se observada, abriu os olhos. As

duas mulheres-sombra trocaram um longo e triste olhar. Aos olhos de Mayada,

Sara era uma criança no meio das mulheres-sombra, e se pudesse libertar uma

das suas

271

companheiras de cela escolheria Sara, que era pouco mais velha do que a sua

filha, Fay.

Sara derramara todas as lágrimas que o seu corpo martirizado pudera produzir,

mas isso não lhe aliviara o sofrimento. Ouvira as outras mulheres falarem do fumo

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que saía da sua boca e já pensara no seu significado. Explicou então, a voz

entrecortada pelas dores:

- Em vez de descargas eléctricas curtas, regularam a máquina numa voltagem

baixa, e aplicaram-me choques eléctricos lentamente e durante muito tempo.

Passado um tempo, já não conseguia baixar as pálpebras. Tinha os olhos tão

inchados que os sentia contra as órbitas. - Soluçou. - Pensava que os olhos iam

saltar. Eles estavam a fritar-me as entranhas. É por isso que o fumo saiu da minha

boca.

- Dêem mais água a Sara - pediu Samara. - Sara, tens de beber muita água. E a

única coisa que curará as tuas entranhas. Água fresca. E pára de pensar no fumo

que te saiu pela boca.

Iman ajeitou os óculos de lentes grossas, que lhe haviam escorregado do nariz.

Baixou-se para pegar num copo de água e, com passos arrastados, aproximou-se

de Sara. Com as sobrancelhas finas franzidas pela angústia, convenceu-a a beber

toda a água. Depois, deixou-se ficar ao lado da jovem, acariciando com todo o

afecto as costas de Sara, enquanto mantinha na outra mão o copo vazio.

Iman, casada, cinquenta e quatro anos, era uma das mulheres-sombra mais

velhas. Tinha corpo anafado e tez muito pálida. Estava em Baladiyat porque

tentara beneficiar a sua comunidade. Muito embora nunca se houvesse alistado

no Partido Baas, fora eleita como membro da Assembleia do Povo do seu distrito.

Aceitara o cargo com entusiasmo, ansiosa por trazer benefícios à sua

comunidade. Só que Iman não tinha instrução e era ingénua. Não se dera conta

de que no Iraque de Saddam o simples facto de se queixar acerca do lixo que não

era recolhido lhe podia provocar grandes problemas e Iman fora detida por

produzir críticas «fúteis» acerca do governo.

Wafae, a mulher-sombra com a alcunha de Tomates, por causa da sua cor de

cabelo - algures entre o vermelho-brilhante de um tomate maduro e o dourado de

uma seara de trigo -, como auxiliar de Samara, correu para a retrete, onde

esvaziou o pequeno balde de água agora rosada devido às feridas de Safana,

para voltar a enchê-lo. Wafae fora presa pela polícia secreta porque o seu irmão

havia fugido para a Síria. Anwar era uma mulher alta e muito bonita, com ombros

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fortes, cabelo louro, olhos cor de avelã, um nariz delicado e lábios finos, que

comprimia, espreitando por cima do ombro de Samara, a fim de dar a sua opinião

sobre a melhor forma de estancar hemorragias. Mayada não conhecia a história

de Anwar, porque era uma mulher calada, que raramente se queixava dos seus

problemas. No entanto, sabia que obtivera uma "licenciatura em Arte e dera aulas

de Ciências Sociais. Lembrava-se de ouvir dizer que a irmã de Anwar era inválida

e que ambas tomavam conta da respectiva família.

Anwar era a única mulher na cela 52 que havia cometido um crime. O seu

emprego levava-a a viajar até ao Iémen para ministrar alguns cursos numa escola

do país. Anwar explicara que, como não tinha dinheiro para comprar um

passaporte, resolvera servir-se do passaporte da irmã inválida, porque eram muito

parecidas. Fora quando um seu familiar, desejoso de cair nas graças da polícia

secreta local, denunciara a transgressão. A polícia secreta avisara Anwar de que

devia contar com uma longa pena de prisão. Agora, a sua única preocupação era

a de haver deixado a sua irmã inválida sozinha a tratar de toda a família.

Duas outras companheiras da cela 52 - Hayat e Ásia - mantinham-se lado a lado

de mãos dadas. Tinham sido presas ao mesmo tempo havia sete meses, após o

desaparecimento de duas caixas de ladrilhos. Haviam sido detidas quando se

encontravam a trabalhar na Fábrica de Materiais de Construção QaQae, uma

empresa contratada para construir a maioria dos muitos palácios de Saddam.

Quando desapareceram duas caixas de ladrilhos, Hayat e Ásia arcaram com as

consequências. Hayat, porque assinara o documento que confirmava que duas

caixas haviam sido levadas do inventário da empresa. A assinatura de Ásia

confirmava que aquelas mesmas duas caixas haviam sido carregadas num

camião de entregas.

272

273

Hayat tinha trinta e dois anos, era solteira e vivia com o irmão e os cinco filhos

dele. O seu rosto era estreito, anguloso e o seu corpo escanzelado. Hayat nunca

conseguia falar calmamente e passava os dias a andar de um lado para o outro e

a chorar. Com os seus olhos assustados, que vagueavam cons-tantemente de um

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canto da cela para o outro, fazia lembrar um coelho preso numa armadilha. Hayat

confessara certo dia que tinha medo de ser libertada. O irmão devia estar tão

zangado por a sua detenção trazer suspeitas sobre a família inteira que

certamente a espancaria.

Ásia tinha quarenta e dois anos, era casada e mãe de três rapazes. Vivia num

estado permanente de ansiedade e desespero pelo que podia ter acontecido aos

filhos. Chorava dia e noite, dizendo que os rostos dos meninos nunca lhe saíam

da mente. As lágrimas que derramava continuamente marcaram-lhe olheiras

permanentes debaixo dos olhos.

Dominada pelas saudades dos filhos, Mayada torceu as mãos, perguntando a si

própria se viveria o suficiente para voltar a ver Fay e Ali. Ou morreria durante uma

sessão de tortura, como a pobre Jamila? Apesar de não recear a morte por

velhice, a morte imediata aterrorizava-a. Não podia morrer enquanto os filhos não

fossem adultos. Eram muito novos e precisavam da mãe.

Desejosa de poder tocar-lhes, de inalar o odor dos seus cabelos frescos e de lhes

acariciar a pele suave dos rostos, Mayada enxugou uma lágrima solitária. Virou-se

de lado para fitar a parede, mas não conseguiu dormir, porque a luz fluorescente

era sempre intensa na cela 52 e os ruídos constantes.

Mayada estava em Baladiyat havia menos de uma semana, mas parecia-lhe uma

eternidade. Os dias longos e as noites intermináveis arrastavam-se

indefinidamente, fazendo-a recordar a sua vida, quando as vinte e quatro horas do

dia não lhe chegavam. Agora, na prisão, não havia vida suficiente para preencher

as horas. O tempo tornara-se inimigo de Mayada, à medida que os dias se

sucediam às noites.

Cada período de vinte e quatro horas era igual. De noite, as mulheres ou eram

submetidas à tortura ou forçadas a escutar os gritos de outros prisioneiros,

enquanto os guardas os

torturavam. Ao nascer do Sol, levantavam-se para a primeira oração do dia.

Depois, revezavam-se para utilizar a retrete e o pequeno chuveiro. Depois, era

servido o pequeno-almoço, constituído por lentilhas sem sabor e pão bolorento. Se

tinham sorte e nenhuma delas era levada até à sala de tortura, passavam a

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manhã a chorar, a rezar ou a recordar os seus entes queridos. Depois da oração

do meio-dia, os guardas serviam-lhes arroz sujo, cozido numa mistela aguada,

formando uma papa muito pouco apetitosa. Por vezes, recebiam pão quente, que

cheirava a mofo, por ser propositadamente fabricado com farinha rançosa. As

tardes eram idênticas às manhãs. Falavam, rezavam, aguardavam a sua vez de

ser chamadas ou tratavam das companheiras que haviam sido molestadas. Após

a oração do entardecer, recebiam a última refeição, novamente lentilhas e pão.

Chegava então a noite, sempre tão temida, a prisão ecoava com gritos.

De todas as mulheres-sombra, somente Samara se mantinha ocupada, cumprindo

um horário rigoroso de tarefas diárias. Salvo quando ficava incapacitada devido à

tortura, lavava-se, arrumava os seus pertences ou tratava das companheiras que

precisassem dos seus cuidados. Samara era tão exigente com a sua higiene

pessoal que estabelecera uma rotina diária: lavar uma das suas mudas de roupa e

a sua abaaya. Enquanto as outras mulheres-sombra ignoravam as manchas de

vomitado nas suas roupas ou os pedaços de comida que lhes ficavam presos nos

dentes, Samara não suportava tal falta de asseio. Todas as manhãs, antes de se

lavar, despia uma por uma as peças do seu traje, que lavava à mão. Assim que

saía de debaixo do chuveiro, vestia as roupas ainda molhadas e andava em

círculos pela pequena cela, com a sua abaaya a adejar, dizendo às companheiras,

que sorriam para ela, que os seus movimentos rápidos lhe secariam a roupa tão

depressa como o vento mais forte.

Mayada passava os dias abatida, sonhando acordada com os filhos, estudando os

rostos das outras mulheres ou fitando a porta, numa expectativa febril. Enquanto

as outras mulheres-sombra eram chamadas quase todos os dias para serem

«interrogadas», parecia que os carrascos de Baladiyat se haviam es-

274

275

quecido de Mayada Al-Askari. Não era levada para a sala de tortura nem tão-

pouco a chamavam para interrogá-la. Parecia que o seu caso fora votado ao

esquecimento.

Temendo que ninguém no exterior soubesse onde estava e que podia morrer ali, a

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força de vontade de Mayada começara a fraquejar. Sentia-se cair num poço de

depressão. Era forçada a considerar a morte como uma realidade nova e

inesperada. A situação era tão deprimente que, depois de duas semanas à espera

de saber o que se passava, começara a imitar Ásia e Hayat, cruzando os braços e

andando sem parar em círculos à volta da cela, enquanto chorava dia e noite.

Samara, dócil e bondosa por natureza, e sempre pronta a encontrar uma resposta

para qualquer problema, tentara dissipar a profunda tristeza de Mayada.

- Escuta. Quero que acredites em mim. Ninguém em Ba-ladiyat fica duas semanas

sem ser torturado. Os nossos carcereiros descobriram que és como veneno para

eles. Um dia destes serás libertada, assim, de um momento para o outro - disse

estalando os dedos.

Mayada olhou de soslaio para Samara e, vendo a expressão confiante que a fitava

com tanto afecto, sorriu envergonhada, antes de irromper de novo em lágrimas.

Samara abraçou-a.

- Não podes perder as tuas energias nesta luta pela sobrevivência. Tens de

aprender a controlar as tuas emoções.

No entanto, o desânimo de Mayada era tão grande que não conseguia reagir.

E de repente, numa quinta-feira de manhã, tudo mudou.

Mayada estava deitada na sua cama, com os olhos fixos no tecto. Foi quando o

seu olhar se desviou para a pequena janela gradeada, no topo da parede do

fundo. Esperou que o Sol se levantasse e projectasse alguns raios no interior da

cela 52.

Pareceu-lhe ouvir o chilrear de um qabaj, uma espécie de perdiz.

Segundo uma velha lenda iraquiana, aquele que ouvir um qabaj cantar mudar-se-á

em breve para um outro local.

Mayada sentiu o coração dar um salto. Sentou-se. Incapaz de discernir os sonhos

da realidade de Baladiyat, olhou em re-

dor para ver se alguém podia confirmar o chilrear do qabaj. Mayada estava

naquela cela hedionda havia quase um mês e era primeira vez que ouvia o canto

de um pássaro.

O qabaj continuou a chilrear. Uma leve brisa transportava o som através das

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grades e as notas melodiosas espalharam-se pela cela.

O canto da ave acordou as outras mulheres, que se levantaram das camas. Os

chilreios do qabaj pareciam entrar pela janela, como uma mensagem enviada por

Deus. O seu alegre canto percorria a cela e enchia de esperança os corações das

mulheres. Uma a uma, as prisioneiras da cela 52 sentaram-se e entreolharam-se,

com renovado optimismo. Cada uma pedia que o qabaj estivesse a cantar para si

própria.

Samara acompanhou o canto da ave, trauteando uma antiga canção iraquiana

cuja cadência se ajustava aos trinados do pássaro. Levantou-se de um salto.

- Ouçam o persistente qabaj. Está lá fora, mesmo do outro lado da janela. Alguém

vai sair de Baladiyat muito em breve! - Com os olhos verdes a brilhar, rodopiou,

até parar, com o braço direito estendido e um dedo apontado na direcção de

Mayada. - E esse alguém és tu!

Nos últimos dias, Mayada sentira-se tão desanimada que agora resistia à alegria

de Samara, mas porque adorava aquela maravilhosa mulher xiita, não queria

magoá-la, e esboçou um sorriso ténue.

- Obrigada, Samara, por tentares animar-me e dares-me esperança. És muito

bondosa, mas fui esquecida. Morrerei neste lugar. É o destino. Percebi que

morreria aqui desde que me vi encarcerada numa cela com o número cinquenta e

dois. Esta cela será o meu túmulo.

Samara fitou-a.

- Pois há já muitos dias que tenho um pressentimento, e o qabaj veio confirmá-lo -

replicou. - Vais para casa, em breve. Mayada, tens de começar a decorar os

nossos números de telefone, os nossos endereços e os nomes dos nossos

parentes. Agora. Hoje. A nossa única esperança é que uma de nós seja libertada.

Serás tu, e do exterior poderás ajudar-nos a todas.

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277

Profundamente triste, Mayada protegeu os olhos da luz com o seu lenço. Estava

demasiado deprimida para acreditar na previsão de Samara. Sabia que nunca

sairia da cela 52.

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O qabaj continuava a cantar, e os seus chiilreios não vacilavam.

Após as orações matinais, Samara levou Mayada para um canto.

- Vou dizer isto mais uma vez. Sinto-o ao meu coração. Vais sair de Baladiyat em

breve- Agora, tens de ser como um papagaio. Tens muitos nomes e números para

memorizar. Repete este número: oito oito dois, seis quatro um zero.

Mayada escutou-a. O qabaj não parava de cantar e começava a incutir-lhe alguma

esperança. Pela primeira vez, admitiu a hipótese de Samara estar certa. Por isso,

repetiu:

- Oito oito dois, seis quatro um zero.

- Eis o que deves fazer - continuou Samara. - Deverás telefonar para esse número

e dizer: «Samara está a apodrecer em Amin Al-Amma, o edifício principal da

prisão. Precisa da vossa ajuda. Vendam tudo o que puderem e subornem um

guarda. É a única maneira.» - Os olhos dela brilhavam perante essa esperança. -

A minha família vai querer saber que foste realmente enviada por mim pelo que te

vou dar um código secreto. Terás de perguntar: «Como está o marido de Salma?»

- Oito oito dois, seis quatro um zero. Samara está em Amin Al-Amma. Precisa da

vossa ajuda. Vendam tudo o que puderem e subornem um guarda. E a única

maneira. O código é: «Como está o marido de Salma?» - repetiu Mayada.

- Samara, o pássaro continua a cantar! - exclamou Ásia. As duas mulheres

pararam para escutar a ave. O qabaj

cantava há mais de uma hora.

Nesse instante, a porta da cela abriu-se e um guarda entrou. Quando falou, o seu

tom de voz era anormalmente humano.

- Mayada, prepara-te. O juiz vai receber-te agora. Samara guinchou de alegria e

aproximou-se.

- Quem é o juiz? Mayada vai ser libertada?

- Mete-te na tua vida.

Mayada apressou-se a lavar o rosto.

Samara seguiu-a e murmurou-lhe:

- Se um juiz veio até cá para te ver, então é porque vais ser libertada.

Mayada começava a sentir que talvez estivesse prestes a produzir-se um milagre.

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Durante os poucos minutos que passou na retrete, as mulheres da cela,

esperançadas, formaram uma fila para lhe entregar números de telefone ou lhe

sussurrar endereços e nomes.

- Isto é para o caso de saíres imediatamente e de não voltares à cela - explicou a

Dr.a Sabah, enquanto lhe levantava a saia e escrevia com uma caneta meio

partida um número de telefone na combinação de Mayada.

- Vamos! - chamou o guarda.

Mayada avançou para a porta, com nomes, endereços e números de telefone a

ressoar-lhe nos ouvidos.

Quando saiu da cela, reparou que um agente a esperava, no corredor. Era um

homem feio, forte e muito alto. O seu tom de pele era amarelado e, quando abriu a

boca para falar, Mayada viu que tinha os dentes tão amarelos como a pele.

O agente fez sinal ao guarda para que se retirasse e virou-se para Mayada.

- Como está, Um Ali? <

- Eu conheço-o? - perguntou Mayada. O agente não respondeu à pergunta.

- O meu nome é Mamoun. Nutro um interesse especial pelo seu caso. Vi Ali e Fay

ontem. O pai deles, Saiam, regressará de Hilla amanhã para tomar conta dos

filhos. Você vai ser levada à presença de um juiz que conhece a sua família. Ele

tem ordens para fechar o seu processo. Deverá ser posta em liberdade daqui a

uns dois dias. Quando for libertada, não saia de casa enquanto eu não for visitar

Ali. - No mundo árabe, uma visita ao homem da casa é sinal de respeito. Apesar

de ser um adolescente, Ali era considerado o homem da casa de Mayada.

Mayada endireitou o lenço e sacudiu a parte da frente do seu vestido. O encontro

mais importante da sua vida aguardava-a, mas a sua roupa estava suja e ela

cheirava a suor. Por breves instantes, sentiu inveja da disciplina de higiene de Sa-

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mara. Como poderia impressionar um juiz com as roupas imundas e o corpo sujo?

Depois de percorrer uma curta distância no corredor da prisão, Mayada e o

homem que a escoltava viraram à esquerda deparando-se com uma porta de

mogno que não tinha qualquer letreiro ou chapa.

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Mamoun ordenou:

- Espere aqui. - Bateu à porta, entrou, e fechou-a atrás de si. Pouco depois, a

porta voltou a abrir-se.

- Entre - ordenou o homem.

Mayada obedeceu. Um homem elegante achava-se sentado atrás de uma

secretária de madeira. O seu rosto era vagamente familiar a Mayada.

- Sou o juiz Muayad Al-Jaddir.

Mayada reconheceu de imediato aquele homem como um sobrinho de Adib Al-

Jaddir, ministro da Informação do Iraque em meados dos anos noventa.

O juiz era educado.

- Como está a sua mãe, Salwa?

Um breve sorriso atravessou o rosto de Mayada.

- Antes de eu ser trazida para aqui, ela estava bem. Agora não sei. Mas obrigada

por ter perguntado.

- Mayada, o meu tio Al-Jaddir era um grande amigo da sua mãe e do seu pai.

Considerava-se filho espiritual do seu avô, Sati Al-Husri.

Mayada inclinou a cabeça, em sinal de anuência, tendo cada vez mais a certeza

de que aquele homem estava ali para ajudá-la.

Então, o juiz Al-Jaddir remexeu uns papéis, pegou numa caneta e começou a

assiná-los.

- Mayada, tudo isto foi um engano - declarou. - Quero que saia daqui e esqueça

esta experiência. Varra estes dias da sua memória.

As recordações da dor que suportara no último mês trespassaram-lhe o corpo,

mas mordeu a língua para não dizer àquele homem que nunca esqueceria

Baladiyat nem os milhares de iraquianos inocentes que sofriam dentro daquelas

paredes. Em vez disso, perguntou:

- Sabe por que razão fui detida?

- Sim, sei. Um dos seus empregados imprimiu uns folhetos contra o governo, o

que só demonstra que a justiça prevaleceu nesta grande terra.

- Vou ser libertada hoje?

- Tudo isso será tratado o mais rapidamente possível. Por ora, regresse à sua

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cela. Reconforte-se com a ideia de que vai ser posta em liberdade. - Pousou a

caneta e acrescentou, afavelmente: - Sabe, visitei a sua casa, em mil novecentos

e oitenta, com Abu Ali - referindo-se ao Dr. Fadil Al-Barrak,

cujo filho mais velho se chamava Ali.

Mayada lembrava-se vagamente daquela visita. Percebia que aquele homem se

referia ao Dr. Fadil como «Abu Ali» porque Saddam acreditava que o Dr. Fadil era

um espião. Ninguém no seu perfeito juízo se gabaria de haver conhecido

um homem que fora acusado de traição e condenado à morte.

- Pode retirar-se, Mayada - rematou o juiz. - Da próxima vez que falar com a sua

mãe, transmita-lhe os meus cumprimentos.

- Obrigada. Adeus - agradeceu Mayada.

Quando saiu da sala, Mamoun ainda se encontrava no corredor.

- Espere aqui - ordenou.

Entrou de novo na sala para regressar logo depois com a ficha de Mayada.

Aproximou-se mais dela; ainda que os seus modos fossem agora afáveis, a

expressão do rosto de Mamoun intimidava-a.

- A papelada do seu caso tem de ser devidamente arquivada. Um guarda vai levá-

la à cela cinquenta e dois. Eu irei buscá-la quando chegar a altura de regressar a

casa.

Ansiosa por saber quando voltaria a ver os filhos, Mayada encheu-se de coragem

e perguntou:

- Quando pensa que acontecerá?

Mamoun deixou transparecer uma nítida impaciência e empertigou-se, ao fitá-la.

Por baixo do seu peito inchado, bradou:

- Como já lhe disse, quando a papelada for devidamente arquivada. Hoje,

amanhã, ou, no máximo, depois de amanhã. Agora, regresse à sua cela.

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Estalou os dedos e um guarda surgiu para acompanhar Mayada.

Mayada não conseguia acreditar no que acabara de suceder. Primeiro, o qabaj, e

agora o juiz. Pela primeira vez desde que chegara a Baladiyat, manteve o mesmo

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passo do guarda, ansiosa por transmitir as novidades a Samara e às outras

mulheres-sombra.

Assim que entrou na cela, o qabaj parou de chilrear.

Todas as mulheres olharam para a pequena janela gradeada, intrigadas com o

canto da ave - e com o facto de se haver calado subitamente.

Roula, que fora presa por ler o Alcorão no trabalho e por rezar de mais, exclamou:

- Aquele qabaj foi enviado por Deus para nos relembrar o Seu poder.

As outras acenaram, em sinal de concordância. Samara avançou para Mayada,

com os braços estendidos e um sorriso.

- Não aguentamos mais a expectativa. Conta-nos tudo.

- Samara tinha razão - anunciou Mayada. - Aquele qabaj trouxe uma mensagem

de Deus. Vou ser libertada!

Samara começou a rodopiar, na ponta dos pés, como uma bailarina.

Um ruído intenso ergueu-se na pequena cela, quando as mulheres-sombra se

abraçaram e começaram a chorar. No meio daquela agitação, os óculos de Iman

caíram ao chão e, durante alguns instantes, procurou-os aflita, até os encontrar,

intactos.

- Sem eles, não veria um palmo a frente do nariz -, explicou, sorridente, voltando a

colocá-los.

Mesmo Safana e Sara, ainda muito debilitadas devido aos maus tratos mais

recentes, se sentaram nos seus beliches, felicitando Mayada.

- Vais telefonar à minha mãe? - murmurou Sara.

- Claro que sim.

Samara fora acometida de uma alegria tão genuína que não conseguia parar de

saltitar de um lado para o outro.

- Claro que ela vai telefonar às nossas mães! Conta-nos tudo. Eles disseram

quando te vão libertar?

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- O juiz não me disse. Assinou uns documentos na minha presença, mas um

agente informou-me de que todos os papéis do meu caso têm de ser devidamente

arquivados.

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- Que maravilha! - exclamou Samara, num tom de voz cantante. - Então, deverás

sair daqui a dez dias.

Mayada franziu as sobrancelhas ao ouvir a última frase.

- Dez dias? Pensava que ia sair hoje ou amanhã. Não aguento mais dez dias aqui.

Samara colocou as mãos em torno do rosto de Mayada.

- Mais dez dias? - repetiu, apontando as outras mulheres-sombra. - Todas

daríamos um braço - acrescentou, com um sorriso bondoso - ou os dois braços, só

para saber que ficaríamos aqui apenas mais dez dias.

- É como se tivessem acabado de te dar todas as riquezas do Iraque -

acrescentou Muna, sorrindo, feliz.

Nenhuma daquelas mulheres parecia sentir inveja da sorte de Mayada. Nenhuma

se mostrava enraivecida com a sua libertação, apesar de irem permanecer em

Baladiyat.

Mayada sentiu-se envergonhada pela sua insensibilidade para com aquelas

mulheres tão altruístas. Sentiu um aperto no coração ao olhá-las. Tal como queria

sair dali o mais depressa possível, e rever Ali e Fay, sentia-se igualmente muito

triste por deixar aquelas boas almas para trás.

E convenceu-se de que Samara tinha o dom da telepatia, quando esta afirmou:

- Mayada, não deves sentir-te culpada. Estamos felizes por te ires embora, e

ficarás para sempre nos nossos corações, porque podes ajudar-nos lá fora.

A excepção de Sara e de Safana, todas as mulheres-sombra se reuniram em volta

de Mayada.

Foi Muna quem deu voz ao pensamento de todas.

- Mayada, não te esqueças de nós quando saíres daqui. Tens de jurar por Alá que

um dia contarás ao mundo o que aconteceu nesta cela.

Mayada abraçou-a.

- Juro por Alá que um dia o mundo conhecerá as vossas histórias.

Samara, sempre sensata, olhou para as duas.

213

- É bom que o mundo saiba, mas por ora é mais importante que Mayada telefone

às nossas famílias. Agora que sabemos que vai ser libertada, temos de ajudá-la a

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decorar tudo, e já - insistiu, fitando Mayada com um sorriso que lhe iluminava o

rosto com renovada esperança. - És a nossa única salvação.

Uma vez que Mayada se agarrara ao desejo de ser libertada mais cedo do que

Samara previra, decidiu que tinha de começar a decorar todas as informações

quanto antes.

- Tens razão, Samara. Começaremos esta noite.

- O importante é telefonares às nossas famílias e dizer-lhes onde estamos detidas.

É o primeiro passo para a nossa libertação. Depois, deves dizer-lhes que a única

maneira de nos tirarem daqui é através do suborno. Que vendam terras e carros,

se for necessário, porque quase todos os guardas de Bala-diyat aceitam subornos.

Mas quando lhes telefonares, sê breve, Mayada. Como sabes, todos os telefones

do Iraque estão sob escuta. Diz o que tens a dizer e desliga. Não respondas a

quaisquer perguntas. Nunca, mas nunca, pronuncies o teu nome. Se te sentires

tentada a consolar os nossos entes queridos, lembra-te que isso pode levá-los à

prisão.

Samara analisava todas as hipóteses.

- Hoje, irás decorar tantos endereços e números de telefone quanto puderes. O

resto ficará para amanhã. Testaremos a tua memória todos os dias, até saíres.

Queremos que te lembres de todos os números de telefone - rematou Samara,

com grande determinação.

Foi uma noite invulgar. Conduziram Mayada até ao canto mais recôndito da cela,

para que nenhum guarda que pudesse estar no corredor ouvisse a estranha

ladainha na cela 52.

Aliya foi a primeira a colocar-se atrás de Samara, com o seu belo rosto iluminado

pela expectativa. A sua detenção separara-a da filha, Suzan, que não via há mais

de um ano. A libertação de Mayada fazia-a antever o feliz reencontro com a sua

adorada bebé.

Seguiu-se Rasha. Deu os seus dados a Mayada, num tom de voz baixo mas

agressivo, mantendo a sua habitual expressão sisuda, apesar das possibilidades

que aquele momento lhe oferecia.

Mayada mostrava-se determinada a fixar cada número, cada palavra que as duas

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mulheres lhe diziam. Sabia que Aliya e Rasha estavam presas havia quase três

anos, e que o final da sua detenção ainda se não vislumbrava no horizonte.

A Dr.a Sabah, muito séria mas sempre afável, examinou a combinação de Mayada

para se certificar de que o seu número ainda era visível, e lembrou Mayada para

que não a lavasse até ter telefonado à sua família.

Iman tirou os óculos, que segurou nas mãos, enquanto transmitia, devagar e em

voz nítida, os seus contactos a Mayada.

Wafae fez girar as suas contas, que fizera para poder entoar as suas preces,

repetindo os contactos dos seus familiares tantas vezes que Samara teve de lhe

ordenar que se afastasse, para dar a vez a outra companheira, e que testasse a

memória de Mayada mais tarde.

Seguiu-se uma mulher chamada Eman. Tinha apenas vinte e oito anos e era

parecida com Elizabeth Taylor, com uma tez clara, cabelo negro e olhos grandes

da cor da safira. Eman era tão magra e baixa que parecia uma adolescente. Além

de fornecer os contactos da família, contou novamente a sua história.

- Nunca me passou pela cabeça infringir qualquer lei iraquiana, mas os carrascos

alegam que critiquei Saddam Hus-sein. - Mayada sabia que censurar Saddam era

um crime que podia levar Eman a ficar sem língua, e pediu a Deus para que

pudesse contactar a família da jovem a tempo de salvá-la.

Maya tinha vinte e cinco anos, pele morena, cabelo castanho curto, olhos tristes

mas bonitos e feições delicadas. O seu crime, segundo lhe haviam dito, fora o de

«auxiliar os comunistas», mas, tanto quanto sabia, nunca havia sequer visto um

comunista. Maya foi a que se demorou mais, preocupada com a hipótese de

Mayada se esquecer do seu número de telefone, 521-8429.

Passava da meia-noite quando Mayada sentiu que a sua concentração começava

a falhar.

- Poderão indicar todos os vossos contactos a Mayada amanhã - prometeu

Samara, dirigindo-se às mulheres-som-bra que esperavam pela sua vez.

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Quando Mayada se deitou, o seu estado de espírito, surpreendentemente, roçava

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a depressão, tendo em conta os felizes acontecimentos daquele dia. Sentia-se

atormentada com a consciência de que as prisões de Saddam não ofereciam

quaisquer garantias. E se a decisão de a libertarem fosse revogada? Decidiu que

manteria o cepticismo quanto à sua prometida liberdade até se ver fora de

Baladiyat.

Na manhã seguinte, ao acordar, apercebeu-se de que as suas faces estavam

húmidas. Acabara de ter um pesadelo em que um homem brandindo um punhal a

separava dos filhos.

Essa manhã traria uma outra surpresa. Haviam terminado a oração da alvorada,

quando a porta da cela 52 se abriu de rompante e um guarda vociferou:

- Mayada! Fora!

O choque foi tão grande que Mayada não conseguiu mexer-se.

- Mayada! Estás livre! - gritou o guarda.

Lembrando-se que ela ainda não decorara todos os números de telefone, Samara

pensou num pretexto para manter Mayada na cela durante mais alguns minutos.

- Ela acaba de nos dizer que precisa de servir-se da retrete. Dê-lhe mais alguns

minutos.

O guarda fitou-a, enojado, e fechou a porta com toda a força.

- Cinco minutos! - resmungou.

Tentando aproveitar ao máximo os últimos momentos, Samara empurrou Mayada

para o fundo da cela.

- Repete os números que decoraste, depressa! Eu vou reunir as mulheres que

ainda não puderam dar-te os seus números de telefone - Samara parecia haver

cedido ao pânico. - Não nos desiludas com esse teu cérebro Al-Askari!

Mayada conhecia tão bem as histórias da maioria das mulheres-sombra que não

precisava que lhe dissessem os nomes das suas cidades ou das suas regiões, e

pediu-lhes que se concentrassem unicamente nos nomes e nos números de

telefone mais importantes. Enquanto Samara ordenava às companheiras que

formassem uma fila, Mayada lembrou-se de Sara, que ainda não conseguia andar.

Correu para o beliche da jovem e tocou-lhe no ombro.

- Diz-me como posso contactar a tua mãe. Depressa! Sara ergueu a cabeça

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lentamente.

- Por favor, diz à minha mãe que eu estou aqui. Pede-lhe que me salve. Telefona

para o quatro dois dois, nove um oito dois. Conta-lhe que eu te disse que ela

esconde a chave de casa debaixo do vaso amarelo, ao pé do cacto. Assim saberá

que foste enviada por mim.

Sara estava tão fraca que a sua cabeça começou a pender para a frente.

- Tenho a certeza de que a tua mãe há-de subornar alguém - assegurou-lhe

Mayada. - Ela vai tirar-te daqui, Sara.

O rosto dócil de Sara abriu-se num sorriso.

- Eu sei que a minha mãe vai tratar de tudo. Venderá as nossas terras e pagará

para que eles me libertem, mas só poderá fazê-lo se souber onde estou. - Não

aguentando mais o esforço, Sara deixou cair a cabeça sobre a cama. - Diz-lhe que

ficarei à espera. Diz-lhe que esperarei por ela...

Samara, entretanto, já conseguira agrupar as outras mulheres.

- Mayada! Anda, despacha-te!

Roula foi a primeira e abraçou Mayada.

Roula era solteira, tinha vinte e cinco anos e uma aparência sincera, e fora

acusada de ser uma activista islâmica. Apressadamente, lembrou a Mayada que

os seus colegas a haviam denunciado à polícia secreta, acusando-a de ser uma

activista porque lia demasiado o Alcorão e fazia as suas orações no emprego.

Mayada prometeu-lhe que faria tudo ao seu alcance para ajudá-la.

Amani era casada, tinha trinta e dois anos, tez morena, faces coradas e cabelo

castanho-claro. Tal como Rasha, fora detida por haver perdido o seu passaporte.

Seguiu-se Anwar, que se desfez em repetidos agradecimentos.

Hayat e Ásia aproximaram-se de mãos dadas, com os olhos iluminados pela

esperança.

Mayada tentava decorar todos os números de telefone que lhe davam naqueles

escassos minutos, mas depressa se sentiu

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desanimada, quando se deu conta de que provavelmente nunca conseguiria

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lembrar-se de todos aqueles números.

- Pega na caneta de Aliya - pediu a Samara. - Vou escrever os números que

faltam na minha combinação.

Samara apressou-se a dar-lhe a caneta, que mal escrevia. A tinta chegara ao fim.

Foi então que a porta da cela voltou a abrir-se.

Na soleira da porta, um outro guarda, mas não o que escoltara Mayada, bradou:

- Samara! Precisamos de ti!

Samara ia ser levada para a sala de tortura. As outras mulheres da cela

sobressaltaram-se com aquela inesperada reviravolta e um abafado gemido

colectivo varreu a cela.

O guarda que viera escoltar Mayada espreitou por cima do ombro do colega.

- Anda, Mayada! Foste libertada!

Os últimos momentos que Mayada passou com as mulheres-sombra da cela 52

sucederam-se rapidamente. Samara deixou transparecer uma expressão grave,

quando os seus belos olhos verdes se fixaram na amiga. As duas mulheres

entreolharam-se, comovidas. Samara estendeu os braços e abraçou Mayada.

Estavam unidas por uma amizade genuína. Beijaram-se, primeiro numa das faces

depois na outra, e, ainda abraçadas uma à outra, Mayada sussurrou ao ouvido de

Samara:

- És a pessoa mais altruísta que jamais conheci. Obrigada por tudo. Nunca me

esquecerei de ti e prometo-te que te ajudarei.

Os olhos de Samara encheram-se de lágrimas.

- Vou ter saudades tuas e das tuas maravilhosas histórias.

- Samara! - berrou o guarda, irritado, avançando para o fundo da cela, arrancando

Samara dos braços de Mayada.

Os pés de Samara ergueram-se do chão, quando o homem a arrastou atrás de si.

Mayada seguiu-a, tocando em cada mulher-sombra ao passar por ela. Lágrimas

provocadas por uma dor intensa faziam-lhe arder os olhos. A sua libertação ia

afastá-la daquelas mulheres maravilhosas, que passariam a viver num mundo

muito diferente daquele que a esperava lá fora.

A última coisa que ouviu, antes de a porta da cela 52 se fechar com força, foi a

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voz de Muna:

- Mayada! Por favor, não te esqueças de nós! - gritou. Reprimindo os soluços,

Mayada sabia que, mesmo que vivesse para sempre, nunca esqueceria aquelas

mulheres.

O mesmo agente, o homem forte chamado Mamoun, que havia visto na véspera,

esperava-a no corredor.

- Sou eu, outra vez - disse ele. - Vamos buscar as suas coisas e depois levá-la-ei

daqui para fora.

Se bem que os seus ouvidos escutassem a voz de Mamoun, os olhos de Mayada

estavam fixos em Samara, que caminhava poucos passos à sua frente. Reparou

numa madeixa grisalha que espreitava por debaixo do lenço de Samara, e o seu

coração apertou-se ainda mais por pensar que as duas amigas se dirigiam para

destinos tão diferentes.

Sentindo os olhos de Mayada cravados nas suas costas, Samara voltou-se para

lhe lançar um último olhar. Toda a emoção que sentia estava concentrada nos

seus olhos, ao fitar a amiga. Disse algo, mas Mayada não conseguiu discernir as

palavras.

Ao fundo do corredor, Samara foi empurrada para a sala de tortura.

Mayada nada podia fazer para salvá-la.

O agente fitou-a.

- Saiam está à sua espera. Vamos ter com ele, e depois ele levá-la-á a casa.

Mamoun apressou-se a conduzir Mayada à mesma sala em que ela entrara no dia

em que chegara a Baladiyat, havia quase um mês. Nada mudara - o mesmo

homem de cabelo branco estava sentado atrás da mesma mesa circular. Abriu um

armário e entregou a Mayada a sua mala. Resmungou, apontando para uma folha

de papel.

- Assine aqui.

Depois de assinar, Mayada espreitou para o interior da mala e viu que estava lá

tudo: o anel, o relógio, o porta-moedas, a agenda telefónica, o cartão de

identidade, as chaves e até o bilhete que Fay lhe escrevera.

Enfiou no pulso o relógio e no dedo o anel, que lhe estava

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agora muito largo. Emagrecera muito e decidiu voltar a guardar o anel na mala.

- Siga-me - ordenou-lhe Mamoun, enquanto reconstituíam ao contrário o percurso

que havia feito no dia em que fora detida. Tudo lhe parecia irreal.

Mayada seguiu Mamoun até ao átrio de entrada da prisão, apinhado de centenas

de homens, todos acocorados no chão, com as mãos algemadas atrás das costas.

Embora estivessem apenas à espera e nenhum houvesse ainda sido torturado, o

sofrimento era patente em cada rosto. Os olhos esbugalhados daqueles homens

reflectiam o terror que lhes invadira o íntimo.

Quando passavam com cuidado por entre aquela multidão de homens detidos, o

olhar de Mayada observava-os.

- O que vem a ser isto? - murmurou, dirigindo-se a Mamoun.

O agente não se voltou, mas respondeu em voz baixa: : - Eu digo-lhe no carro.

Mayada sabia quando devia manter-se calada. Seguiu Mamoun, que transpôs a

porta da prisão de Baladiyat e, apressado, desceu a escada. Quando chegou ao

fundo, Mayada parou e, com os olhos brilhantes de alegria, contemplou o céu. O

sol encandeou-a, mas continuava belo. Então, o seu rosto alegrou-se e abriu-se

num sorriso de orelha a orelha. Estava realmente livre. Ergueu as mãos para o

alto, acolhendo o sol quente de Agosto que lhe batia no rosto. Ouviu um bando de

pássaros, que emitiam guinchos, e perscrutou o céu para os ver voar.

- Vamos! - exclamou Mamoun.

Mayada seguiu-o tão depressa quanto pôde. O melhor ainda estava para vir. Ia

voltar para casa. Ia voltar a ver Fay e Ali.

- Deixei o meu carro no parque de estacionamento. Despache-se.

Ciente de que alguém podia estar a observar a sua partida, e sabendo que se se

mostrasse demasiado à vontade com Mamoun podia ser presa novamente, baixou

a cabeça e caminhou com passos determinados.

290

- Aqui estamos - anunciou Mamoun, quando pararam junto de um Toyota Corolla

branco de 1990.

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- Entre para o banco de trás - ordenou-lhe.

O coração de Mayada bateu com mais força, quando o portão principal do recinto

se emoldurou no pára-brisas da viatura. Desta vez, fazia o percurso certo na

direcção certa, ao sair de Baladiyat. Viu então os retratos gigantescos de Saddam

que flanqueavam o portão. Quis cuspir na cara do maquiavéli-co ditador, mas não

o fez.

Mamoun abrandou a velocidade à saída, e mostrou uns papéis a um guarda,

antes de o carro transpor o portão preto de Baladiyat.

Assim que entraram na auto-estrada, Mayada começou a rir-se, numa reacção

tresloucada e incontrolável.

Mamoun voltou-se e fitou-a.

- Saiam disse-me que você era uma mulher muito alegre - comentou.

Não querendo irritar aquele homem, Mayada calou-se e lançou a cabeça para

trás, numa gargalhada muda. De súbito, a preocupação pelo destino incerto das

centenas de novos prisioneiros de Baladiyat fê-la endireitar-se.

- E aqueles homens? Houve alguma tentativa de golpe de Estado?

- Não. Alguém andou a distribuir panfletos contra o governo, em Kadumiya. Todos

os homens que se achavam na área foram presos esta manhã.

Kadumiya era um bairro xiita de Bagdá.

- Mas por que motivo a polícia secreta prendeu todos os homens? Tenho a

certeza de que só alguns andavam a distribuir panfletos. A maioria está inocente.

Não passam de simples transeuntes, que andavam a tratar das suas vidas.

Porque

é que o nosso governo age desta maneira?

- Não me pergunte a mim - respondeu Mamoun, muito sério. - Eu não passo de

um escravo do meu amo. Faço o que me mandam. Ouça o que lhe digo, irmã:

todos os iraquianos se encontram na iminência de serem detidos. Os membros da

polícia secreta fazem turnos para nos deter e nos Ilevar presos. Até eu já fui detido

e torturado, por duas vezes.

291

Mayada acenou afirmativamente. Nenhum iraquiano estava a salvo e, por isso,

Page 275: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

sairia do país assim que pudesse.

- Isto é importante - volveu Mamoun. - O seu marido está à sua espera, em Bagdá

Al-Jadida. - Al-Jadida significava «Nova Bagdá» e Mayada sabia que era um

bairro que ficava a cerca de trinta minutos de Baladiyat.

Apressou-se a esclarecer a sua situação.

- Estou divorciada. Saiam é o meu ex-marido, mas a minha casa fica perto da

casa do pai dele. Além do mais, temos dois filhos, e, por isso, ainda falamos um

com o outro.

- Pois não vai ser seu ex-marido por muito mais tempo... - replicou Mamoun, com

um sorriso malicioso.

Mayada ficou atónita com aquele reparo, mas Mamoun não lhe deu tempo para

pedir explicações.

- Atente nas minhas instruções. Não deve fugir do Iraque. Eu irei visitá-la, daqui a

um ou dois dias, para lhe dizer o que tem de fazer. Lembre-se, não deve fugir do

Iraque. Tudo isto não passa de uma libertação temporária. Se não quer voltar para

Baladiyat, terá de fazer o que eu disser.

Mayada percebeu imediatamente que Mamoun estava a ameaçá-la para poder

mais tarde chantageá-la. Ouvira muitas histórias da boca de Samara acerca da

rotineira extorsão de dinheiro a antigos prisioneiros. Muitos guardas haviam

enriquecido fazendo chantagem com prisioneiros libertados, a que ameaçava de

serem novamente detidos.

Afastou aquela nova preocupação da sua mente, dizendo a si mesma que trataria

do assunto mais tarde. Recusava-se a deixar a sua alegria por se ver em

liberdade ser manchada pela advertência daquele homem. E, independentemente

do que lhe fosse dito, pegaria nos filhos e sairia do Iraque tão depressa quanto

pudesse. A mãe ajudá-la-ia.

Mamoun calou-se, concentrado na condução. Mayada sentiu vontade de se

debruçar sobre os ombros dele e de gritar pela janela aberta que estava livre.

Não o fez. Recostou-se no banco de trás e observou a paisagem, cantarolando

baixinho, com os lábios fechados, para que Mamoun não pudesse ouvi-la. Deixou-

se deslizar pelo assento para contemplar o céu, pontilhado por algumas nuvens

Page 276: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

brancas.

Como desejava sair daquele carro e respirar o ar da rua! Mas ainda não podia

fazê-lo. Endireitou-se e observou as montras de uma loja e, depois, os

transeuntes. Olhava, encantada, para um lado e para o outro. Bagdá revelava-se

aos seus olhos uma cidade desconhecida. Era como se nunca a houvesse visto.

Em frente de um supermercado, algumas pessoas empurravam os seus carrinhos

de compras em direcção à porta de entrada. Mayada reparou numa avó de cabelo

grisalho. A mulher, cuja expressão era alegre, caminhava de mão dada com o

neto, que saltitava com a alegria típica de uma criança. Três ou quatro

adolescentes espreitavam a montra de uma loja de equipamento desportivo. Não

muito longe dali, dois homens seguiam o seu caminho, lado a lado, rindo e

conversando.

Quatro cruzamentos importantes, devidamente sinalizados com semáforos,

abrandavam o tráfego entre Baladiyat e Bagdá Al-Jadida. Na rua principal

encontrava-se um infindável número de lojas e de supermercados, e as ruas

transversais conduziam às casas sossegadas dos subúrbios. Demorariam mais

dez ou quinze minutos até chegar a Bagdá Al-Jadida.

Mayada viu uma família inteira de mulheres a descer a rua, em grupo. Sentiu um

aperto no coração. Todas as pessoas que acabara de ver - a passear, a falar

umas com as outras, a [viver as suas vidas - não faziam a menor ideia de que,

naquele preciso instante, a poucos quilómetros dali, uma belíssima mulher xiita

chamada Samara estava a ser brutalmente torturada.

Mayada recapitulou então os números de telefone e as palavras de código das

mulheres-sombra.

Passado poucos minutos, chegavam a Bagdá Al-Jadida. Mayada avistou Saiam.

Estava sentado atrás do volante do seu Oldsmobile branco, perto de uma florista

com o letreiro Al-Khadran, que significa «A Estufa». Usava óculos escuros e

encolhera-se. Mayada soltou uma gargalhada histérica. Saiam parecia um polícia

sob disfarce.

Saltou do carro, ao mesmo tempo que Saiam saía do seu.

- Onde estão as crianças? - perguntou.

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Não lhe respondendo, Saiam começou a gritar-lhe, furioso por ela haver sido

detida.

292

293

- Sua estúpida! Deixares-te prender! Entra para o banco de trás!

Depois de cumprimentar Saiam com um aceno de mão, Mamoun arrancou.

Mayada estava tão feliz por se encontrar livre e a um passo de voltar a ver os

filhos que até mesmo Saiam não ia conseguir perturbá-la.

Quando ligou o motor, Saiam disse-lhe:

- Temos de voltar a casar, quanto antes. Mayada fitou-o, com olhos esbugalhados.

- Que queres dizer com isso, Saiam?

- Mayada, isto é apenas uma libertação temporária. Serás novamente presa.

Tenho de tirar-vos, a ti, a Fay e a Ali, do Iraque, e levar-vos para a Jordânia. Não

podes partir sozinha.

Mayada depressa compreendeu o motivo do comentário de Mamoun acerca de

voltar a casar. Não tinha um mahram para acompanhá-la, quando saísse de

Bagdá. Se queria deixar o Iraque - e esse era o seu maior desejo - precisaria de

uma certidão de casamento; por isso, capitulou.

- Casamo-nos apenas para podermos levar as crianças para fora do Iraque. Assim

que eu chegar a Amã, divorciamo-nos.

Saiam nada disse.

- Saiam! Tens de prometer que nos divorciaremos assim que chegarmos a Amã.

Caso contrário, arranjo outro que aceite casar-se comigo, só para poder sair do

Iraque.

- Está bem. Eu divorcio-me de ti - acedeu Saiam. - O que importa é que temos de

nos apressar. A tua estupidez em deixares-te prender fará com que a polícia

secreta ande atrás de todos nós.

Mayada lançou um olhar fulminante às costas de Saiam. Estava contente por não

ser mais esposa daquele homem. E não seria sua mulher um minuto mais do que

o necessário para poder tirar os filhos do Iraque e levá-los para um país seguro.

- Saiam, não respondeste à minha pergunta. Como estão Fay e Ali?

Page 278: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

- Estão bem - respondeu ele, impacientemente. Quando se aproximaram da casa

de Mayada, na Praça

294

Wazihiya, ela endireitou-se e espreitou pela janela. Não via nenhum dos filhos à

sua espera, apesar de avistar um rapazinho, baixo e magro, que estava parado,

junto à garagem do antigo sogro de Mayada. Devia ser um dos muitos amigos de

Ali. Assim que o carro parou, Mayada não se deu sequer ao trabalho de se

despedir de Saiam. Apeou-se e correu para a entrada. Antes de arrancar, Saiam

anunciou:

- Casamos amanhã!

O rapaz escanzelado ergueu a cabeça e correu para Mayada. Seria possível que

aquela criança fosse Ali?

- Mamã! Mamã!

- Ali!

Os lábios de Mayada tremeram ao pronunciar o nome do filho.

Ali saltou-lhe para o colo e começou a chorar.

- Mamã! Mamã! Voltaste para casa! - balbuciou. Mayada sentiu-se sufocada pelas

lágrimas.

- Ali, deixa-me ver o teu rosto! Deixa-me ver o teu rosto!

O seu menino roliço, com rosto de bebé, desaparecera, para dar lugar a um

rapazinho, muito sério, com olheiras profundas.

- Mamã, pensava que nunca mais voltaríamos a ver-te!

Mayada fez rodopiar o filho no ar. O seu menino era frágil e muito leve. Soluçou ao

perceber quanto os filhos haviam sofrido com a sua ausência. Só então o pousou

no chão, mas Ali abraçou-se a uma das pernas da mãe.

- Mamã, fui buscar a tua camisa de dormir e enfiei-a debaixo da minha almofada.

Todas as noites pedia a Deus: «Devolve-me a minha mamã. É tudo o que quero,

para o resto da minha vida. A minha mamã. Mais nada.»

- A tua mamã voltou, Ali, e nunca mais te abandonará, mas onde está Fay? Onde

está a tua irmã?

- O nosso pai levou-a para casa do tio Mohammed.

Page 279: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

- Porquê? - Mayada sentiu uma certa revolta. Fay devia ter ficado com o avô

paterno, perto da sua casa.

- Vamos ter com o avô Mohy - Mohy Al-Haimos era o ex-sogro de Mayada. - Ele

trará Fay.

Mayada e Ali entraram em casa de Mohy sem sequer bater

295

à porta, e foram encontrá-lo, à entrada, com o seu dish dasha branco, o traje

masculino iraquiano. Quando viu Mayada, sorriu e exclamou:

- Hella, hella, hella !! ( 1 )

Ao ouvir aquele rebuliço, Jamila, a antiga sogra de Mayada, saiu da cozinha.

- Estarei a sonhar? És mesmo tu, Mayada? Sorriu, feliz, para Mayada.

Mohy disse a Jamila.

- Telefona a Mohammed e diz-lhe que traga Fay para casa, porque a mãe dela

regressou.

- Enquanto esperamos, senta-te e conta-nos tudo o que te aconteceu.

Com Ali agarrado ao braço, Mayada falou, por alto, de Baladiyat, omitindo as

partes mais sinistras para proteger o filho.

- E pretendes continuar no Iraque? - perguntou Mohy, quando ela terminou.

- Não. Corremos perigo, aqui, tio Mohy, os meus filhos não podem continuar a

viver num país onde existem casas de tortura.

Mohy acenou, em sinal de concordância. Havia sido preso uma vez devido a uma

falsa acusação e passara um ano sob prisão domiciliária. Odiava Saddam Hussein

e todos aqueles associados ao seu governo.

- Ajudar-te-ei a fazer o que é melhor para todos - prometeu.

Desde o dia em que se casara, Mayada sempre nutrira uma grande admiração e

carinho pelo seu sensato sogro. Mohy era um verdadeiro cavalheiro.

Quando Mayada ouviu o motor de um carro, correu para a porta. Era o irmão de

Saiam, Mohammed. Mayada viu Fay, que saltou do carro ainda em movimento.

- Fay!

- Mamã! Mamã!

Ao ver a mãe, Fay gritou tanto, tamanha era a sua alegria,

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( 1 ) - Hella: «bem-vinda».

296

que os vizinhos saíram de suas casas para ver o que estava a passar-se.

- Vou levar os meus filhos para casa - anunciou Mayada, dirigindo-se aos ex-

sogros. - Vemo-nos mais tarde.

Rodeando Fay e Ali com os braços, dirigiu-se para casa.

- Já para dentro! Já para dentro! - incitou. - Não devemos fazer mais barulho!

Mal transpuseram a porta, Fay sugeriu:

- Temos de rezar. Temos de agradecer a Deus por estares de volta, mamã.

Depois de Mayada pousar a mala e de os três lavarem os rostos e as mãos,

formaram uma fila, virados para Meca. Ajoelharam-se, curvaram-se, até as suas

testas tocarem no chão, e agradeceram a Deus por haver tirado Mayada de

Baladiyat.

O mundo de Mayada voltava a ser bom.

297

10

Querida Samara

DIA DA LIBERTAÇÃO DO IRAQUE 9 DE ABRIL DE 2003

Mayada Al-Askari

Amã, Jordânia

Querida Samara,

Um dia glorioso despontou.

Ontem, a minha filha de vinte anos, Fay, ficou acordada toda a noite a ver

televisão, à espera de ouvir que o Iraque fora libertado. Hoje de manhã, acordou-

me às seis menos um quarto e sussurrou-me:

- Mamã, levanta-te. Acho que acabou.

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Percebi imediatamente o que ela queria dizer. Após 35 anos de uma tirania cruel e

caprichosa - desde 17 de Julho de 1968 até hoje - o punho de aço com que

Saddam Hus-sein dominava o meu querido país foi finalmente esmagado.

Saltei da cama e corri para a sala a fim de ouvir eu própria a maravilhosa notícia.

Quando o jornalista anunciou que os membros do Partido Baas estavam a monte

e que muitos deles estavam desaparecidos, ri-me, com uma despreocupação que

não sentia havia anos. Exultando com este triunfo, Fay lançou a cabeça para trás

e entoou um cântico de Halloula, berrando a plenos pulmões para celebrar uma

tão grande vitória. Cantei com ela. Fizemos tanto barulho que Ali saltou da cama

para ver o que estava a passar-se. Quando soube que o Iraque fora

298

libertado, despiu a camisola e fê-la girar acima da cabeça, improvisando uma

dança de liberdade.

Os nossos corações pareciam rebentar de tanta felicidade. Exaustos, lavámo-nos

e preparámo-nos para as orações. Juntos, virámo-nos para Meca e agradecemos

a Deus por haver posto fim ao longo pesadelo que atormentava o nosso país.

Findas as orações, contei a Fay e a Ali em que momento exacto me dera conta de

que o pesadelo havia começado. Tinha então treze anos. A revolução de 1968,

levada a cabo pelo Partido Baas, dera-se uma semana antes. O meu pai ainda era

vivo e vivíamos em Bagdá. Um dos melhores amigos dele, Haqi Al-Berezenchi, um

curdo iraquiano na altura embaixador na índia, era nosso convidado naquela

quente noite de Julho. Encontrávamo-nos todos sentados à mesa no nosso jardim,

com uma magnífica vista sobre o rio Tigre. Nessa noite, o único assunto de

conversa foi a política, em virtude da recente revolução. O meu pai mostrava-se

preocupado com o Iraque e os Iraquianos, mas Haqi assegurou-lhe:

- Não se atormente, Nizar. Isto é como um casamento de lobos. E como qualquer

acasalamento de animais, esta revolução acabará em breve.

Com todo o respeito que me merece Haqi, esse acasalamento de lobos levou a

uma longa e tempestuosa união de trinta e cinco anos, em que uma besta

perversa cravou as suas presas na garganta do povo iraquiano.

A minha felicidade é tanta que sinto vergonha, Samara, porque sei que muitos

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iraquianos sofreram perdas terríveis durante esta luta pela liberdade. Lembraram-

nos, da maneira mais cruel, que a liberdade não se alcança facilmente.

Samara, não se passa um só dia em que não tenha uma visão do teu belo rosto,

bem como os das outras mulheres-sombra da cela 52 de Baladiyat. Agora que

vivo em Amã, quando, todas as manhãs, saio do meu apartamento a caminho do

trabalho, abrando o passo, perscrutando o rosto de todas as mulheres sentadas

na calçada, entre os vendedores de rua, e pergunto a mim própria se fugiste e

conseguiste chegar a Amã e retomar o teu negócio, outrora lucrativo, de venda de

cigarros. Por vezes, o meu coração aperta-se de esperança, e já

299

corri para abraçar uma mulher de cabelo negro com madeixas grisalhas, como o

teu. Por breves momentos, acredito que saíste com vida de Baladiyat. Mas até

hoje só deparei com desilusões.

Onde estás? A celebrar a libertação do Iraque com a tua família? Ou terás pago

com a vida esta liberdade que tanto celebrei? Terás sido assassinada pelos

carrascos de Saddam em Baladiyat, muito antes de começar esta guerra? Não te

deste conta de que a liberdade ia chegar em breve ao Iraque? E onde estarão as

outras mulheres-sombra? Quem terá sobrevivido? Quem terá morrido? São

perguntas que me perseguem diariamente.

Como já deves ter adivinhado, vivo agora na Jordânia, com Fay e Ali. Escrevo-te

esta carta sentada na varanda espaçosa do meu apartamento em Amã. É uma

varanda que me alegra, porque daqui posso olhar para leste, em direcção ao

Iraque. Vivemos em Jabbal Amman, para lá do Quinto Círculo, se isso te diz

alguma coisa. À esquerda, posso ver o traçado ténue da estrada que conduz ao

Iraque. À direita, fica a estrada para Jerusalém. A minha casa está rodeada por

muitas vivendas - bonitas casas brancas, de pedra, com telhados vermelhos

inclinados, um mundo abençoado pelo sol e pelas árvores. Depois de anoitecer, o

céu enche-se de milhões de estrelas brilhantes e de luzes difusas que reflectem o

esplendor de Amã.

Sei que irias gostar de te sentar nesta varanda comigo, Sa-mara. E um autêntico

paraíso, depois de Baladiyat.

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A minha varanda tem quatro cadeiras brancas, uma mesa redonda e um banco.

Plantas em flor - de pétalas vermelhas, brancas, rosas e amarelas - circundam a

varanda e exalam o seu perfume. Estas plantas de muitas cores tombam também

pela varanda abaixo, atraindo borboletas com asas de tons vivos e laboriosas

abelhas. Fay, Ali e eu costumamos tomar aqui as nossas refeições.

Contemplamos a parte do céu que encima o Iraque e falamos do passado, quando

viver no nosso país era sinónimo de dias solarengos, em que nos sentávamos na

margem do rio Tigre, passeávamos por entre jardins verdejantes e levávamos uma

vida despreocupada.

300

De tempos a tempos, trazemos a televisão para a varanda e vemos um filme no

vídeo. Quando o tempo aquece, Ali, que já tem dezassete anos, por vezes dorme

aqui.

Portanto, já sabes que a minha maior preocupação não se concretizou. Os meus

filhos não foram detidos nem sujeitos a maus tratos. E agradeço a Deus por isso,

sempre que rezo.

Como era seu costume, a minha mãe salvou-me. Foi ela que me tirou de

Baladiyat.

Como sabes, a minha mãe conhecia praticamente todas as pessoas importantes

do Iraque. Felizmente, ainda tinha os números de telefone privados do homem

que chefiava o gabinete presidencial de Saddam: o general Dr. Abid Mahmud Al-

Tikriti, o homem que filtra todas as chamadas para Saddam (conhecido como Dr.

Abid Hmoud para aqueles que o conhecem bem).

A minha mãe conheceu-o há vários anos, quando ele a convidou para a cerimónia

em que defendeu a sua tese de doutoramento. Depois de ser doutorado,

encorajou a minha mãe a telefonar-lhe sempre que precisasse de alguma coisa.

Qualquer coisa. Assim, a minha mãe telefonou ao Dr. Abid e ele ajudou-a, como

prometera.

Após algumas investigações, o Dr. Abid comunicou à minha mãe que eu estava

presa. Parece que alguém em Bagdá imprimira folhetos contra o governo, mas a

polícia secreta não fazia ideia de onde provinham. Por isso prenderam os

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proprietários de dez tipografias da área. Pouco importava se a pessoa detida era

culpada ou inocente. Receio ter sido a única dos dez a ser libertada, embora tenha

a certeza de que os outros nove proprietários de tipografias eram tão inocentes

como eu.

O Dr. Abid informou a minha mãe de que falara com Saddam e que este não

levantara obstáculos, consentindo que ele assinasse os documentos da minha

libertação temporária, mas que em troca exigira que a minha mãe lhe desse a sua

palavra de honra, por intermédio do Dr. Abid, de que eu não tentaria fugir do

Iraque. Se eventualmente viesse a descobrir-se que os folhetos haviam sido

elaborados num dos meus computadores, eu teria de ser submetida a novos

interrogatórios - a fim de que pudesse ser descoberto o verdadeiro culpado.

301

Saddam fez questão de que a minha mãe fosse informada de que o caso envolvia

a segurança nacional do país, muito embora ele acreditasse que eu nada tinha a

ver com o assunto.

Julgo que a minha mãe nunca mentiu uma única vez na vida, mas confrontada

com aquela escolha terrível, não se importou de o fazer naquela altura, como veio

a confessar-me mais tarde. Assim, deu a sua palavra de honra a Saddam, por

intermédio do Dr. Abid. Disse que o sangue do meu pai me corria nas veias, e que

eu nunca cometeria um crime. E garantiu ao Dr. Abid que, se eu tentasse fugir do

Iraque antes de terminar a investigação, ela lavaria daí as mãos e não me

protegeria mais.

Infelizmente, em Baladiyat só vieram a saber que Saddam, por intermédio do

chefe do seu palácio, havia ordenado a minha libertação um dia depois de eu ser

torturada; se a notícia chegasse vinte e quatro horas mais cedo, ter-me-ia

poupado uma experiência tão horrível e dolorosa. Assim que a ordem foi recebida,

limitaram-se a ignorar-me até a papelada receber todas as assinaturas

necessárias. Portanto, tiveste sempre razão, Samara. Eu teria sido torturada

diariamente se os oficiais de Baladiyat não soubessem que ia ser libertada em

breve.

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Assim que correu a notícia da minha libertação iminente em Baladiyat, a

chantagem começou. Quando aquele pulha do Mamoun teve acesso aos

documentos que ordenavam a minha libertação, dirigiu-se imediatamente a minha

casa. Disse aos meus filhos que poderia arranjar maneira de me tirar de Baladiyat

se eles lhe dessem quinhentos dólares. As crianças pediram ajuda ao avô, o pai

de Saiam, que lhes deu o dinheiro. Esse dinheiro foi entregue a Mamoun.

Felizmente, os meus filhos receberam muitas ajudas financeiras dos nossos

vizinhos, que haviam ficado a par do nosso infortúnio. De noite, segundo Fay me

contou, eram várias as pessoas que iam até perto de nossa casa para

discretamente enfiar sobrescritos anónimos com dinheiro por baixo da porta

exterior de vidro.

Quando me acompanhou, no dia em que saí de Baladiyat, Mamoun informou-me

de que eu não devia sair de casa até ele passar por lá para resolvermos certos

assuntos. Não podia

302

imaginar que ele estava a preparar os alicerces para semanas de ameaças e de

extorsão. Ia todos os dias a minha casa exigindo-me dinheiro para isto ou para

aquilo. Disse-me que eu seria presa em breve se não mantivesse o «maquinismo

bem oleado». Quando ele soube, através do pai dos meus filhos, que eu planeava

sair do país, avisou que o meu nome iria figurar numa «lista negra» de antigos

prisioneiros que estavam proibidos de sair do Iraque. Esses nomes eram

comunicados a todas as agências governamentais e enviados à polícia da

fronteira.

Para satisfazer as suas exigências e evitar que ele apresentasse queixa contra

mim às autoridades, tive de vender os quadros que decoravam as paredes da

minha casa e pedir dinheiro emprestado a todas as pessoas que conhecia. No

último momento, engendrou ainda outro pretexto, e pediu 50 000 dólares pelo

resgate de Fay! Mas falar-te-ei desse triste episódio mais à frente.

Sinto-me feliz por poder dizer-te que havia pelo menos uma alma caridosa entre

os funcionários que trabalhavam em Baladiyat. Aquele jovem médico, o Dr. Hadi

Hameed, telefonou mesmo para o número que desenhei na poeira que cobria o

Page 286: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

plástico preto da maca do seu consultório.

Além da salvaguarda dos meus filhos, apenas duas outras importantes tarefas me

mantinham em Bagdá, enquanto ia elaborando o meu plano de fuga. Tinha de

contactar as famílias das mulheres-sombra e ver uma última vez a sepultura do

meu pai.

Passei o primeiro dia de liberdade a acalmar os meus pobres filhos.

Passei o segundo dia a tentar contactar os parentes das mulheres-sombra.

E no terceiro dia despedi-me do meu pai.

Acreditei em ti, Samara, quando me preveniste de que os telefones das casas de

todos os prisioneiros estavam sob escuta. Assim, ciente de que o meu próprio

telefone estava provavelmente sob escuta, dirigi-me ao único local em Bagdá que

tem um telefone público: o velho Alwiya Club, localizado perto dos hotéis Sheraton

e Meridien, na Praça Al-Firdous, fundado pelos Ingleses em 1924. Naquela época,

eram poucos os

303

iraquianos que tinham permissão de entrar ali. Como é evidente, Jafar, Nouri e

Sati constituíam algumas dessas raras excepções, e uma vez que os membros da

minha família se achavam entre os nomes mais proeminentes dos fundadores,

isso permitia-me ter acesso ao clube.

O telefone do Alwiya Club já não funcionava com moedas. Passara a fornecer

linha constante. Um operador, contratado pelo governo, escutava todos os

telefonemas, mas eu e os meus filhos elaborámos um plano (depois de

conhecerem as histórias das mulheres-sombra, que continuavam presas na cela

52, tanto Fay como Ali insistiram em ajudar-me e eu consenti, apesar do perigo

que isso implicava. Se aprendera uma lição em Baladiyat fora que todos os

iraquianos deviam combater a tirania de Saddam por todos os meios ao seu

alcance).

Poucos dias antes de ser detida, eu havia organizado a festa de décimo sexto

aniversário de Fay no Alwiya Club. Fay e Ali, por essa ocasião, estabeleceram

laços de amizade com alguns dos funcionários, incluindo o porteiro e o nadador

salva-vidas que zelava pela piscina. Eu sabia que precisava de uma manobra de

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distracção para efectuar os telefonemas. Fiz um bolo e pedi a Fay e a Ali que

oferecessem uma fatia ao operador que escutava as conversas telefónicas. Os

meus filhos reuniram todos os funcionários no salão, e assim que ouvi todos

conversar animadamente e rir, esgueirei-me do salão para me servir do telefone.

Telefonei primeiro para a mãe de Sara e fiquei aliviada por ela atender

rapidamente.

- Sara está em Amin Al-Amma. Venda as terras. Suborne um guarda. Tire a sua

filha de lá. Agora. Ela precisa de si.

Apanhada de surpresa, a mãe de Sara gritou e só depois perguntou:

- A minha filha está bem?

- Tem de tirá-la de lá. Sara tem de sair de Amin Al-Amma quanto antes. - Só

depois me lembrei de que me preveniras para efectuar telefonemas rápidos, e

disse à mãe de Sara uma última coisa, antes de desligar: - A Sara diz que a chave

está debaixo do vaso amarelo, ao lado do cacto.

304

Embora desejasse manter um diálogo mais longo ou visitar a mãe de Sara para

lhe fazer compreender como era importante que ela agisse rapidamente, forcei-me

a desligar.

Depois, telefonei para cada um dos números que decorara. Como te deves

lembrar, a minha libertação foi tão súbita que não pude obter os números de

telefone de Ásia, de Hayat e de Anwar. Alguns dos meus telefonemas foram

atendidos por crianças que não me percebiam e se recusavam a chamar um

adulto. Outros foram atendidos por adultos assustados, que desligavam assim que

percebiam que um antigo prisioneiro estava a tentar contactar com eles. É com

grande tristeza que te informo que apenas pude estabelecer ligação eficaz com

cinco famílias.

E mais devastada me sinto por ter de te comunicar que o teu número de telefone

já não existe. Não consegui falar com ninguém da tua família; esse é um dos

motivos por que me preocupo tanto com a tua segurança.

No terceiro dia depois de sair de Baladiyat, fui visitar a sepultura do meu pai. Está

enterrado no cemitério Bab Al-Muaadam, não muito longe da casa onde passei a

Page 288: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

minha infância. Ao longo dos anos, raramente visitei o local onde o meu pai está

enterrado, porque, para mim, muitas tristezas se associam à sua sepultura.

Mesmo passado tanto tempo, ainda me custa a acreditar que o meu pai é um

cadáver que jaz numa sepultura de terra.

Apesar da minha dor, sentia uma grande necessidade de me despedir dele,

porque sabia que nunca regressaria ao Iraque enquanto Saddam governasse, o

que podia prolongar-se por toda a minha vida.

O meu pai foi enterrado junto ao túmulo da mãe, Fakh-riya Al-Said. A sua

sepultura acha-se num local sossegado, à sombra de uma palmeira. A lápide é

simples, como ele pedira. Na pedra tumular branca de mármore lê-se:

Aqui jaz Nizar Jafar Al-Askari, ¦'•'<.

Nascido em 1922, morreu a 2 de Março de 1974. Que Alá dê descanso à sua

alma, no Paraíso. ;.

(Al-Fatiha à sua alma) ft

Porque se passara muito tempo desde a última vez em que visitara a sepultura do

meu pai, fiquei perplexa ao deparar com algo de verdadeiramente extraordinário.

Em 1955, ano em que nasci, a minha mãe encomendou um jasmineiro africano

para o jardim da nossa casa. Era um arbusto magnífico, com flores brancas e

corola violeta. As folhas eram espessas e de um verde-escuro.

Esse jasmineiro africano era uma planta muito forte, e cresceu, cresceu, cresceu.

Em poucos anos, ficou enorme. Mesmo antes de Saddam confiscar as nossas

casas, na margem do rio Tigre, aquele arbusto tornara-se gigantesco. Era tão

grande que muitas pessoas julgavam ser uma árvore.

Quando eu era criança, o nosso jardineiro queixava-se, dizendo que nunca vira

um arbusto crescer tão depressa. O velho homem afirmava que o jasmineiro

africano era uma planta mágica e iria ocupar todo o pátio e cobrir a casa. Soube

há poucos anos que a nossa pequena planta se espalhara por toda a área,

tornando-se um arbusto lendário que passava de um jardim para o outro.

Queres crer que esse arbusto alcançara o túmulo do meu pai? Como por magia, o

mesmo jasmineiro africano que eu tantas vezes vira o meu pai admirar e acariciar

- o arbusto do qual ele colhia uma flor para a oferecer a uma das suas «meninas»

Page 289: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

- entrelaçava-se agora pacificamente em redor do seu túmulo.

A mensagem enviada através do chilrear do qabaj, o reconhecido jasmineiro

africano... Samara, começo a acreditar em milagres.

Depois de me despedir do meu pai e de rezar pela sua alma, regressei a casa e

comecei a planear seriamente a minha fuga.

Nem imaginas quanto azedume provocou a minha fuga. Fui forçada a casar-me

novamente com Saiam, uma vez que não podia sair do Iraque sem aquela

certidão de casamento. Foi tão traumatizante voltar a casar-me com ele que me

recuso a pensar mais nisso. Fiz o que tinha a fazer para salvar os meus filhos.

Depois de me casar com Saiam, tive de comprar a minha

306

fuga. Mamoun extorquiu-me dinheiro para as coisas mais triviais. Quando exigiu

aquela quantia astronómica para Fay, julgando que eu conseguiria arranjar 50 000

dólares para pagar a fuga da minha filha, senti-me à beira do desespero. Tinha

medo de me ver forçada a permanecer no Iraque com Fay, correndo o risco de ser

novamente detida e regressar a Baladiyat. Mas Fay estava tão aterrorizada só de

pensar que podiam separar-me dela novamente que insistiu em ficar para trás

com a família do pai. Encorajou-me a partir, explicando-me que eu poderia tratar

da fuga dela assim que estivesse a salvo em Amã.

Vi-me confrontada com um terrível dilema, tal como o bondoso médico de

Baladiyat. A minha cabeça aconselhava-me a fugir, enquanto o coração me dizia

que ficasse. Foi um conflito horrível e eu não sabia o que fazer. Então, produziu-se

um pequeno milagre. Tu apareceste-me num sonho e encorajaste-me. «Foge,

Mayada. Leva o teu filho Ali contigo, e negocia o resgate de Fay de um local que

será mais vantajoso para ti e para os teus anseios. Nada podes fazer por eles em

Baladiyat.» Mesmo quando a tua imagem se dissipou lentamente, ainda ouvi a tua

voz: «Foge, Mayada, foge!»

Por muito angustiante que fosse a ideia de deixar Fay para trás, aquele sonho

constituiu para mim um verdadeiro presságio. Compreendi que estavas a avisar-

me dos riscos de voltar para Baladiyat e a prevenir-me que podia não sobreviver a

uma segunda detenção. Sabendo que és a mulher mais sensata que jamais

Page 290: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

conheci, decidi seguir os teus conselhos, mesmo que mos tivesses dado em

sonhos. Sabia que podia mover montanhas se, pelo menos, conseguisse sair do

Iraque.

O dia mais triste da minha vida foi aquele em que me dirigi à estação rodoviária,

em Al-Nahda, para entrar num autocarro com destino a Amã. A estação estava

apinhada de viajantes e vendedores e as paredes cobertas com hediondos

retratos de Saddam. Vi uma dúzia de cartazes que lembravam aos Iraquianos que

deviam lavar a cara de manhã e os dentes à noite. Fiquei tão irritada com aqueles

slogans infantis que senti ganas de esbofetear alguém, de preferência o membro

do Partido Baas que os colara ali. Famílias inteiras com as suas baga-

307

gens muito velhas enchiam o recinto. A avaliar pelo número de caixotes e de

sacos, era óbvio que aquela gente ia fugir do Iraque - quem podia censurá-los?

Imagina o nosso horror quando a porta da estação se abriu e Uday Saddam

Hussein entrou com os seus guarda-costas. Coxeando apoiado a uma bengala,

trazia pela trela um grande tigre da Ásia. As pessoas afastavam-se daquela

perigosa criatura, que rosnava e mostrava as presas. Receei que Uday soltasse o

tigre. Tinha ouvido a história de diversos iraquianos num restaurante de Bagdá

que se viram forçados a lutar contra os tigres de Uday. Um homem afirmou que a

única coisa que o salvara fora o seu dispendioso assado de borrego, que atirara

em desespero ao tigre.

Samara, mantive-me ao lado da minha bagagem, com o queixo caído. Não podia

acreditar que, depois de tudo por que passara, seria devorada por um tigre, na

estação de autocarros de Al-Nahda. Surpreendentemente, Uday manteve o tigre

preso, apesar de dois adultos serem atingidos pelas garras do felino ao tentarem

proteger as suas famílias.

Uday, coxeando, percorria a estação, cuspindo à cara das pessoas e gritando-

lhes, acusando-as de traidoras por abandonarem o Iraque. Felizmente, Ali e eu

estávamos ao fundo de uma fila muito comprida e o louco não chegou a ver-nos.

Sentia-me aterrorizada com a hipótese de Fay ser atacada pelo tigre, porque ela e

o pai se haviam separado de nós, no meio daquela multidão frenética. Mas nada

Page 291: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

aconteceu.

Uday continuou com os insultos até se fartar e deixar a estação. Então, todos

começaram a entrar nos autocarros, dando graças a Deus por haverem

sobrevivido a mais um dia no jardim zoológico em que se transformara o Iraque.

Por fim, Ali e eu subimos para o autocarro, e as lágrimas cegaram-me quando

olhei pela janela para me despedir da minha filha. Pobre Ali, tinha apenas doze

anos, na altura, e estava lavado em lágrimas por não poder despedir-se de

nenhum dos seus amigos. Infelizmente, Saiam tinha de viajar connosco, tornando

a nossa fuga para Amã ainda mais penosa.

Tanto eu como Ali estávamos tão abalados pelo desgosto e perturbação que mal

pronunciámos uma palavra, entre nós ou

308

com Salam. Olhei pela janela durante horas, .contemplando o deserto que

passava pelos meus olhos, enfeitiçada pelas areias brilhantes que reluziam ao luar

como pérolas. Dei comigo a pensar que a terra seria sempre a mesma,

independentemente do que acontecesse aos homens que nela viviam.

Qunado nos aproximamos da fronteira, senti no peito as mesmas dores que me

haviam afligido durante a minha primeira noite em Baladiyat. Sabia que Mamoun

era muito capaz de me denunciar. E se ele tivesse avisado as autoridades de que

uma certa Mayada Al-Askari ia sair ilegalmente do país ?? Se tal acontecesse,

Samara, sabia que Ali e eu seríamos detidos na mesma prisão em Al-Ramadi

onde ficaste até seres transferida para Baladiyat. Não consigo descrever o medo

que se alojou na minha garganta quando o guarda da fronteira perguntou :

- Porque deixam o Iraque ??

- Porque a minha mãe está doente, em Amã, e eu vou tratar dela - menti.

Salam fitou-me, com um sorriso de desdém. Nem sequer se ofereceu para

corroborar a minha história. O guarda lançou-me um olhar fulminante, como se eu

fosse uma assassina, mas carimbou-me o passaporte e seguimos viagem.

Depois de termos os nossos passaportes carimbados, e entrarmos na Jordânia,

senti que um grande peso me saía dos ombros. Agora, concentraria todas as

minhas energias em angariar dinheiro para pagar a fuga de Fay.

Page 292: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Lamento dizer-te que Salam regressou a Bagdá sem me conceder o divórcio, ao

contrário do que prometera.

Vim a descobrir que novas arrelias me esperavam em Amã.

Depois da minha detenção e da ansiedade que sentira enquanto planeara a fuga,

foi maravilhoso rever a minha mãe. É a mulher mais determinada que jamais

existiu. No entanto, deparei-me com muitos problemas sérios. Destituída do

privilégio de que sempre gozara como neta de Sati Al-Husri e Jafar Al-Askari, as

minhas fracas economias limitavam-me as opções. A minha mãe gastara muito

dinheiro comigo e com os meus filhos durante anos, e sabia que ela tinha de

pensar na

309

sua velhice e na forma como ia vivê-la. Não me atrevi a pedir-lhe mais dinheiro. Vi-

me numa situação muito complicada, tentando pagar a educação do meu filho e

ao mesmo tempo procurando arranjar dinheiro para pagar o resgate de Fay.

Soube que Mamoun continuava a fazer chantagem com ela, alegando que Fay se

veria em sérios apuros se as autoridades descobrissem que a mãe fugira do país.

A minha vida sempre foi pontuada tanto pela tragédia como por milagres. Quando

pensava desistir de tudo, produziu-se novo milagre. Um ano após haver deixado o

Iraque, um amigo muito querido ficou a par do meu dilema e deu-me 25 000

dólares para ajudar a pagar o resgate de Fay. Ganancioso como era, Mamoun

aceitou a quantia, e a minha filha juntou-se finalmente a mim.

Fay, Ali e eu estávamos novamente juntos.

Mas outra tragédia ocorreu. Pouco depois de Fay chegar a Amã, a minha mãe

descobriu que tinha cancro da mama. Aos 77 anos, parecia ter 40 e mantinha-se

ocupada como uma mulher jovem. A doença foi um choque para ela e para mim.

Infelizmente, o cancro espalhou-se rapidamente, e tratei da minha mãe durante

um ano medonho. Ela sofreu muito, mas eu estava a seu lado quando morreu. Só

por isso, dou graças a Deus.

Com todas as mortes de muitos dos seus membros e com a minha irmã a viver na

Turquia, a nossa pequena família estava reduzida a três pessoas.

Apesar das nossas lutas e do nosso sofrimento, sentíamo-nos felizes por

Page 293: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

estarmos juntos e livres na Jordânia. Poucas coisas conseguiriam minimizar tão

grande conquista.

Então, algo de invulgar no mundo político começou a fervilhar e voltou a falar-se

da libertação do Iraque. Quando o presidente americano George Bush e o

primeiro-ministro inglês Tony Blair começaram a anunciar o seu propósito de

libertar o Iraque das garras de Saddam Hussein, pensámos que isso não passava

do discurso do costume, que tantas vezes havíamos ouvido.

Mas agora, ao fim de poucas semanas de guerra, os meus compatriotas foram

libertados.

310

Afloram-me lágrimas aos olhos quando me lembro da cela 52. Mas continuo à

espera de outro milagre: que tu e as outras mulheres-sombra tenham sobrevivido.

Prometo-te que, assim que for seguro deixar os meus filhos e viajar até ao Iraque,

irei procurar-te, bem como às outras mulheres. Se estiveres viva, um dia unir-nos-

emos na nossa felicidade, com todas as mulheres-sombra que conheci e que

passei a estimar.

Espero ansiosamente por esse dia.

Tua amiga para sempre,

Mayada »

Depois de assinar a carta a Samara, Mayada levantou-se e avançou para o

parapeito da varanda. Fincou os calcanhares no parapeito e, pensativa, olhou para

leste. Os seus olhos estavam fixos no Iraque. Agora, podia voltar a casa, pela

primeira vez em quatro anos. Após a mais negra das noites, o sol voltara a erguer-

se triunfalmente no seu país. Saborear a total liberdade fazia-a sentir-se tão perto

quanto possível da felicidade.

Por trás do tumulto da guerra e da recente vitória, Mayada podia sentir a presença

de Sati Al-Husri e de Jafar Al-Asícari. Os dois grandes homens haviam servido o

Iraque, há muitos anos, durante uma outra época crucial da história do país.

Mayada esperava que se erguessem homens tão nobres como os seus avôs -

homens que amavam realmente o Iraque, homens que se ergueriam num

Page 294: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

momento histórico de grande carência, homens que trabalhariam para o bem do

Iraque e para o futuro do seu povo.

Era apenas a segunda vez, na história do Iraque moderno, que se abria uma

página em branco no livro do país - uma página onde a História esperava para ser

escrita, uma página que descreveria o futuro do Iraque.

Mayada olhou para oriente, enquanto formulava uma prece:

- Que Alá guie a mão que escreverá nessa página.

311

APÊNDICE I

EXCERTO DO DISCURSO PROFERIDO NA CÂMARA DOS COMUNS PELO

DEPUTADO WINSTON CHURCHILL, EM 14 DE JUNHO DE 1921

O exército árabe está já parcialmente formado sob a administração de Jafar

Pasha, actual secretário de Estado da Guerra da Mesopotâmia. Não sei se a

comissão tem presente a fantástica carreira desse homem. Não tenho dúvidas de

que o meu ilustre colega e amigo, membro da Divisão Wrekin (Sir C. Townshend),

a conhece bem. No início da guerra, combateu contra nós nos Dardanelos e foi

distinguido com a Cruz de Ferro alemã. Depois, foi colocado no Deserto Ocidental,

onde comandou o exército dos Sanussis, que também combatia contra nós.

Segundo creio, participou em três batalhas e saiu vitorioso de duas delas, mas, na

terceira, conduzida de forma errada, segundo o seu ponto de vista, ficou ferido, foi

perseguido pelo Regimento de Cavalaria do Dorsetshire e, por fim, apanhado em

campo aberto e conduzido como prisioneiro de guerra para o Cairo, onde o

encerraram nas masmorras da cidadela. Tentou fugir, mas como era bastante

corpulento, a corda por que descia junto às muralhas partiu-se e ele caiu num

fosso, tendo partido uma perna. Enquanto estava no hospital em convalescença

leu nos jornais que o rei Hussein, xerife ( 1 ) de Meca, declarara guerra aos Turcos

e percebeu imediatamente que até então prestara serviço no lado oposto àquele

que entendia ser o seu. Assim, entrou em contacto com

Page 295: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

( 1 ) - Magistrado principal em Meca. (N. da T.)

313

os chefes árabes de Meca e estes, depois de algumas hesitações, confiaram-lhe

um posto de comando nas suas tropas. Muito rapidamente ascendeu a uma

posição de confiança e teve papel preponderante nos combates travados nos dois

anos seguintes. Por fim, foi-lhe conferido o grau de Companheiro de São Miguel e

São Jorge por Lorde Allenby numa cerimónia em que os soldados em parada

pertenciam quase exclusivamente ao Regimento de Cavalaria do Dorsetshire, que

o perseguira e fizera prisioneiro anos antes. É esta a história do ministro da

Guerra da Mesopotâmia, que é, naturalmente, um devoto partidário do xerife de

Meca.

OBITUÁRIO DE JAFAR PASHA, MILITAR E DIPLOMATA IRAQUIANO

O general Jafar Pasha el Askari, ministro da Defesa do Iraque, assassinado na

sequência do golpe de Estado da passada quinta-feira, teve uma carreira

impressionante durante a guerra, primeiro contra e depois ao lado dos Ingleses.

Foi embaixador em Londres por duas vezes e ministro da Defesa do governo

iraquiano por cinco vezes. Militar arguto, afável e competente, revelou-se um bom

organizador, um diplomata prudente e um companheiro extremamente alegre e

divertido que granjeou muitas amizades neste país.

Pasha nasceu em Bagdá, em 1880, e recebeu instrução no Colégio Militar Turco,

em Constantinopla. Durante a guerra, em que recebeu a Cruz de Ferro alemã, foi

escolhido por Damad Enver Pasha para levar a cabo a difícil tarefa de organizar

os Sanussis da Líbia (na altura, ainda não dominada pelos Italianos, que haviam

tomado aquela província aos Turcos durante a guerra de 1912), por forma a que

constituíssem uma ameaça para o Egipto a partir do Deserto Ocidental. Foi

largado por um submarino alemão algures na costa líbia e conseguiu persuadir os

Sanussis a aceitar a sua autoridade e a obedecer às suas ordens. Desse modo,

levou a cabo no deserto durante algum tempo uma acção militar vitoriosa contra

Page 296: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

os

314

Ingleses até se ver perseguido e capturado pelo Regimento de Cavalaria do

Dorsetshire, após uma batalha travada em Agagia, em 26 de Fevereiro de 1916.

Como prisioneiro de guerra, foi encarcerado na cidadela do Cairo. Uma noite, fez

uma corda com lençóis atados uns aos outros e estava prestes a escapar-se da

prisão quando um dos lençóis se rompeu devido ao grande peso de Pasha; a

queda provocou-lhe ferimentos de tal maneira graves num dos tornozelos que

ficou incapaz de dar um passo. Estabelecera excelentes relações com os seus

captores e insistiu em pagar o lençol que se rompera. Recomposto da queda, foi

posto em liberdade condicional e ao saber da revolta árabe contra os Turcos,

alistou-se no exército do rei Hussain em Hejaz e, com o emir Faiçal e Lawrence da

Arábia, comandou as tropas regulares de Hejaz na campanha que conduziu à

tomada de Damasco.

Antes de terminar essa campanha, Pasha foi condecorado pelo general Allenby no

seu quartel-general em Bir Salem, na Palestina, no meio de uma formação em

quadrado constituída pelos seus antigos captores, os soldados do Regimento de

Cavalaria do Dorsetshire, cuja escolha como guarda de honra para a cerimónia foi

muito apreciada por Jafar, que era dotado de um apurado sentido de humor e

insistiu em ostentar a sua Cruz de Ferro durante a cerimónia.

Depois da tomada de Alepo, foi nomeado governador, e quando o emir Faiçal se

tornou rei do Iraque ocupou o cargo de ministro da Defesa em dois governos

chefiados pelo Naqib ( 1) de Bagdá, de Agosto de 1921 a Novembro de 1922. Foi

então nomeado embaixador do Iraque junto da Corte britânica e, nessa qualidade

participou na Conferência de Paz em Lausana, onde a sua figura corpulenta e

jovial impressionou fortemente os outros diplomatas e quantos intervieram no

evento.

Em Novembro de 1923, o rei Faiçal chamou-o de novo para Bagdá, onde exerceu

o cargo de primeiro-ministro até

( 1 ) - Literalmente, «chefe», «líder». Designa um cargo de cariz político.

(N. do E.)

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315

Agosto de 1924, mês em que regressou à embaixada iraquiana em Londres.

Voltou a ser primeiro-ministro e também ministro dos Negócios Estrangeiros, entre

Novembro de 1926 e Janeiro de 1928, e quando regressava a Londres, em Março

deste último ano, para retomar a sua carreira diplomática, esteve prestes a ser

capturado por um comando Wahabi, durante a escala em Ramada do avião onde

seguia. Depois do seu regresso à capital britânica, proferiu palestras no English

Bar e no Gray's Inn, esta última em 15 de Janeiro de 1930. No mês seguinte,

juntamente com Lorde Allenby, foi convidado de honra num jantar promovido pelo

Regimento de Cavalaria do Dorsetshire, ao qual devotava particular estima. Em

Março de 1930, voltou a ser chamado a Bagdá a fim de ocupar o cargo de ministro

da Defesa, cargo esse que manteve até Outubro de 1932 em dois ministérios

chefiados pelo general Nuri Pasha es Said, com cuja irmã Jafar estava casado.

Voltou a ser embaixador do Iraque em Londres, cidade que muito lhe agradava,

desde Novembro de 1932 até Dezembro de 1934, altura em que foi nomeado

senador e regressou a Bagdá. Em Março de 1935, pela quinta vez, foi escolhido

para o cargo de ministro da Defesa no governo agora deposto.

APÊNDICE II

CHEFES DE ESTADO DO IRAQUE DESDE A SUA FUNDAÇÃO EM 1921

Rei Faiçal I (1921-1933)

Morreu em consequência de problemas cardíacos

Rei Ghazi I (1933-1939)

Morreu num acidente de viação

Rei Faiçal II (1939-1958)

Foi assassinado

Abdul-Karim Qasim (1958-1963)

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Foi assassinado

Abdul-Salam Arif (1963-1966)

Morreu num acidente de helicóptero

Abdul-Rahman Arif (1966-1968)

Ainda vivo em 2003

Ahmed Hassan al-Bakir (1968-1979)

Morreu de causas naturais em 1982

Saddam Hussein (1979-2003)

Capturado por tropas norte-americanas a 13 de Dezembro de 2003

Cortesia de Dale Hajots.

CRONOLOGIA DO IRAQUE

Abril de 1920:

A Conferência da Paz das Potências Aliadas, reunida em San Remo, ratifica o

mandato da Inglaterra e da França sobre o Médio Oriente.

23 de Agosto de 1921:

O rei Faiçal I é coroado rei do Iraque. O avô paterno de Mayada, Jafar Pasha Al-

Askari é designado ministro da Defesa. O seu avô materno, Sati Al-Husri, é

nomeado conselheiro do rei Faiçal para a educação, e o tio do pai de Mayada,

Nou-ri Pasha Al-Said, assume o cargo de chefe do Estado-Maior.

1927:

Os Ingleses descobrem petróleo em Kirkuk, no Iraque.

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16 de Novembro de 1930:

E ratificado o Tratado Anglo-Iraquiano, obtido graças à intervenção de Nouri

Pasha Al-Said.

Outubro de 1932:

A Inglaterra reconhece formalmente a independência do Iraque.

8 de Setembro de 1933:

Morre o rei Faiçal I. O seu filho, Ghazi, é coroado rei.

Outubro de 1936:

O avô de Mayada, Jafar Pasha Al-Askari, é assassinado durante o primeiro golpe

militar do Iraque.

11 de Agosto de 1937:

O general Bakr Sidqi é assassinado em Mossul.

Dezembro de 1938:

Nouri Pasha Al-Said torna-se primeiro-ministro do Iraque.

Abril de 1939:

O rei Ghazi I morre num acidente de automóvel. Sucede-lhe o seu filho de quatro

anos, Faiçal II, e o príncipe Abd al-Illah é nomeado regente.

318

1 de Abril de 1941:

Nouri Al-Said e o rei, com seis anos de idade, são obrigados a fugir, depois de um

golpe militar.

Junho de 1941:

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Instala-se o caos em Bagdá, e num pogrom contra os judeus do Iraque regista-se

um grande número feridos.

14 de Julho de 1958:

Novo golpe militar, agora chefiado por Abdul-Karim Qasim. São assassinados o rei

Faiçal II, membros da família real e o primeiro-ministro, Nouri Al-Said.

7 de Outubro de 1959:

Insucesso do primeiro golpe do Partido Baas. Saddam Hussein foge para o

Egipto.

19 de Junho de 1961:

O Koweit proclama a sua independência da Grã-Bretanha.

8 de Fevereiro de 1963:

Novo golpe do Partido Baas.

18 de Novembro de 1963:

Um contragolpe derruba o Partido Baas.

17 de Julho de 1968:

Depois de repetidos golpes de Estado, Ahmed Hassan al -Bakir faz regressar o

Partido Baas ao poder. Como substituto de .Bakir, Saddam é o segundo homem

na hierarquia do governo, embora seja ele quem na realidade detém o Poder.

16 de Julho de 1979:

Saddam Hussein substitui Ahmed Hassan al-Bakir como presidente do Iraque.

Uma purga no Partido Baas leva à execução de muitos dos seus membros. Bakir

morre em 1982 )

1 de Abril de 1980 :

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O Partido al-Dawa, pró-iraniano, tenta assassinar Tariq Aziz, vice-primeiro-ministro

Aziz, vice-primeiro-ministro do Iraque. O Iraque responsabiliza o Irão pelo atentado

e Saddam Hussein expulsa de solo iraquiano os xiitas de ascendência iraniana.

319

Setembro de 1980:

Iraque e Irão entram em guerra.

7 de Junho de 1981:

Israel bombardeia a central nuclear iraquiana de Osirak, próximo de Bagdá.

21 de Maio de 1987:

O navio de guerra norte-americano Stark é atacado no golfo Pérsico, provocando

a morte de 37 membros da tripulação. Os Estados Unidos atribuem a

responsabilidade ao Irão, embora o Stark tivesse sido atingido por dois mísseis

iraquianos.

1987:

Saddam Hussein utiliza armas químicas contra aldeias curdas, matando milhares

de pessoas.

Fevereiro de 1988:

Irão e Iraque retomam a «guerra das cidades», atacando ambos as populações

civis do inimigo.

16 de Março de 1988:

O Iraque ataca novamente os Curdos com armas químicas, provocando milhares

de mortes.

3 de Julho de 1988:

Um Airbus é abatido pelo navio de guerra americano Vincennes. Morrem 290 civis.

Page 302: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

20 de Agosto de 1988:

Cessar-fogo oficial na Guerra Irão-Iraque.

Setembro de 1989:

Farzad Bazoft, jornalista britânico, é acusado de espionagem e enforcado em

Bagdá.

2 de Agosto de 1990:

O Iraque invade o Koweit. A Resolução 660 da ONU exige que Saddam Hussein

retire as suas tropas daquele país.

8 de Agosto de 1990:

O Iraque anexa o Koweit, proclamando-o a sua 19.ª província.

320

17 de Janeiro de 1991:

Começa a Operação Tempestade no Deserto.

28 de Fevereiro de 1991.

Cessar-fogo.

3 de Abril de 1991:

A Resolução 687 do Conselho de Segurança da ONU estabelece os termos da

paz. As tropas iraquianas têm de abandonar o Koweit. Começam as sanções

económicas contra o Iraque, bem como as medidas com vista ao desarmamento

do país.

12 de Dezembro de 1996:

Uday, filho mais velho de Saddam Hussein, fica gravemente ferido numa tentativa

de assassínio.

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1 de Novembro de 1998:

Todos os inspectores de armas da ONU abandonam o Iraque.

30 de Janeiro de 2002:

O presidente George Bush, durante o seu discurso sobre o estado da União,

afirma que o Iraque faz parte de um «eixo do Mal».

12 de Setembro de 2002:

Bush apela a uma acção militar contra o Iraque, que responde, afirmando que

permitirá o «regresso incondicional» dos inspectores internacionais de

desarmamento.

10 de Outubro de 2002:

O Congresso norte-americano aprova uma resolução conjunta autorizando o uso

da força contra o Iraque.

16 de Outubro de 2002:

O Iraque renova a proposta para o regresso dos inspectores da ONU. Saddam

Hussein é reeleito presidente para novo mandato de sete anos, recebendo 100%

dos votos.

28 de Janeiro de 2003:

O presidente Bush declara que Saddam Hussein não está a proceder ao

desarmamento que lhe fora imposto.

321

5 de Fevereiro de 2003:

O secretário de Estado Colin Powell serve-se de fotografias tiradas por satélite

para tentar granjear apoio internacional, durante uma reunião do Conselho de

Segurança da ONU.

Page 304: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

5 de Março de 2003:

A França, a Alemanha e a Rússia divulgam uma declaração conjunta,

manifestando o seu propósito de não permitir a adopção de uma resolução da

ONU que autorize a intervenção militar das Nações Unidas no Iraque.

7 de Março de 2003:

Encontro nos Açores entre os Estados Unidos, a Grã-Bre-tanha, a Espanha e

Portugal. É estabelecido o prazo de um dia para a última tentativa por via

diplomática. Os governantes presentes advertem que a guerra pode começar a

qualquer momento.

17 de Março de 2003:

Os Estados Unidos e a Inglaterra retiram o seu pedido de uma resolução do

Conselho de Segurança da ONU. Os inspectores que se encontram no Iraque são

aconselhados a partir. O presidente Bush lança um ultimato a Saddam Hussein,

dando-lhe quarenta e oito horas para abandonar o Iraque.

20 de Março de 2003:

As forças da coligação desencadeiam um «ataque cirúrgico» contra alvos

específicos no Iraque.

21 de Março de 2003:

As forças terrestres da coligação invadem o Iraque.

25 de Março de 2003:

Forças da coligação, na sua maioria britânicas, iniciam o combate contra as

milícias iraquianas em Baçorá, a segunda maior cidade do Iraque.

2 de Abril de 2003:

Tropas dos Estados Unidos chegam aos arredores de Bagdá.

Page 305: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

3 de Abril de 2003:

Tropas dos Estados Unidos apoderam-se do Aeroporto Internacional Saddam, na

zona sul de Bagdá. :

322

9 de Abril de 2003:

Bagdá cai nas mãos das forças dos Estados Unidos. As estátuas de Saddam

Hussein começam a ser derrubadas.

13 de Abril de 2003:

Tikrit, cidade natal de Saddam Hussein, é ocupada por tropas dos Estados

Unidos.

15 de Abril de 2003:

Os parceiros da coligação declaram que a guerra terminou.

DADOS ACERCA DO IRAQUE

Governo: - No momento da publicação deste livro, o Iraque

prepara-se para a democracia.

População: - 24 000 000

Capital: - Bagdá

População da capital: - 5 000 000

Superfície: - 437 088 km2

Línguas: - Árabe, arménio, assírio, curdo

Religião: - Muçulmana 95 % (Xiitas 60 %, Sunitas 35 %)

Cristã 5 %

Esperança média de vida: - 58 anos

Alfabetização: - 60%

Economia: - Petróleo, trigo, arroz, vegetais, tâmaras, algodão,

Page 306: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

gado bovino e lanígero.

DADOS ACERCA DOS PAÍSES VIZINHOS

REPÚBLICA ISLÂMICA DO IRÃO

Governo: - República islâmica

População: - 65 000 000

Capital: - Teerão

População da capital: - 7 000 000

Superfície: - 1648 017 km2

Línguas: - Persa, turco, curdo, árabe e outras

Religião: - Muçulmana 99 % (Xiitas 90 %, Sunitas 9 %)

Cristã 1%

Esperança média de vida: - 69 anos

323

Alfabetização: - 72 %

Economia: - Petróleo, têxteis, cimento, trigo, arroz, cereais,

açúcar de beterraba, fruta, nozes, lacticínios,

lã, caviar, algodão

REINO HAXEMITA DA JORDÂNIA

Governo: - Monarquia constitucional

População: - 5 300 000

Capital: - Amã

População da capital: - 1 182 000

Superfície: - 92 302 km2

Page 307: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Línguas: - Árabe, inglês

Religião: - Muçulmana 96 % (na maioria, Sunitas)

Cristã 4 %

Esperança média de vida: - 70 anos

Alfabetização: - 86,5 %

Economia: - Minas de fosfato, refinação de petróleo, ci-

mento, manufacturas ligeiras, turismo, trigo,

cevada, tomate, melões, azeitonas, gado

lanígero e caprino, aves de capoeira.

ESTADO DO KOWEIT

Governo: - Emirato constitucional

População: - 2 300 000

Capital: - Cidade do Koweit

População da capital: - 850 000

Superfície: - 17 810 km2

Línguas: - Árabe, inglês

Religião: - Muçulmana 85 % (Sunitas 60 %; Xiitas

25 %) ; Outras 15 % (cristã e hindu)

Esperança média de vida; . - 77 anos

Alfabetização: - 78,5%

Economia: - Petróleo, indústria de conservação de ali-

mentos, peixe

REINO ©A ARÁBIA SAUDITA

Governo: - Monarquia

População: - 24 000 000

Page 308: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Capital - Riade

324

População da capital: - 4 700 000

Superfície: - 1 960 593 km2

Língua: - Árabe

Religião: - Muçulmana 100 % (Sunitas 94 %; Xiitas 6%)

Esperança média de vida: - 72 anos

Alfabetização: - 78%

Economia: - Petróleo, produção de petróleo bruto , cimento,

construção, fertilizantes, plásticos, trigo, cevada,

tâmaras, carneiros, galináceos, ovos, leite.

REPUBLICA ÁRABE SÍRIA

Governo: - Ditadura

População: - 17 500 000

Capital: - Damasco

População da capital: - 2 200 000

Superfície: - 185 180 km2

Línguas: - Árabe, arménio, aramaico, francês, curdo

Religião: - Muçulmana 89 % (na maioria, Sunitas, Drusos),

Alauitas 12 %, Cristã 10%

Esperança média de vida: - 70 anos

Alfabetização: - 71 %

Economia: - Petróleo, têxteis, refrigerantes, indústria mineira,

algodão, lentilhas, grão-de-bico, azeitonas,

carneiros, aves de capoeira

Page 309: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

REPÚBLICA DA TURQUIA

Governo: - Democracia

População: - 67 500 000

Capital: - Ancara

População da capital: - 3 200 000

Superfície: - 780 582 km2

Línguas: - Turco, curdo, árabe, grego, arménio

Religião: - Muçulmana 97 % (na maioria, Sunitas),

Cristã 1%

Esperança média de vida: - 69 anos

Alfabetização: - 85%

Economia: - Têxteis, indústria mineira, aço, petróleo,

madeira de construção, papel, tabaco,

azeitonas, gado

325

GLOSSÁRIO

Aiatola Ruhollah Khomeini (1900-1989): Chefe religioso da seita dos muçulmanos

xiitas que teve acção preponderante na destituição do xá do Irão em 1979.

Khomeini governou o Irão até à sua morte em 1989.

Al-Askari, Jafar Pasha (1885-1936): Avô paterno de Mayada Al-Askari. Jafar Al-

Askari pertencia a uma família de elevada estirpe de Bagdá. Durante a Primeira

Guerra Mundial, juntamente com o príncipe Faiçal e com Lawrence da Arábia,

comandou as tropas regulares de Hejaz. Depois da guerra, ao serviço dos reis

Faiçal I e Ghazi I, do Iraque, ocupou inúmeros cargos, como o de embaixador na

Grã-Bretanha e os de ministro da Defesa e primeiro-ministro do Iraque. Foi

Page 310: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

assassinado ao proteger o rei Ghazi I, em 1936.

Alcorão: O livro sagrado do Islão. Autoridade suprema da comunidade

muçulmana, o Alcorão é a fonte de toda a religião islâmica. É composto pelas

revelações divinas recebidas pelo profeta Maomé nos seus últimos vinte anos de

vida.

Al-Faw: Península iraquiana na costa do golfo Pérsico. Ocorreram combates nos

seus terminais de petróleo, no litoral, durante a Guerra Irão-Iraque e a segunda

Guerra do Golfo.

Al-Husri, Sati (1879-1969): Avô materno de Mayada Al-Askari. Sati Al-Husri foi um

dos primeiros nacionalistas

327

árabes. Acreditava que o nacionalismo era a única forma de proteger os Árabes

contra o colonialismo e o imperialismo. Foi educador, escritor e ministro. Sati era

amigo pessoal do rei Faiçal I, a quem prestou serviço no desempenho de diversos

cargos. Há mais de cem livros e artigos escritos acerca de Sati. Em todos os

países árabes existem actualmente, ruas, escolas e auditórios com o nome deste

grande homem.

Al-Sa'ud: A dinastia reinante na Arábia Saudita.

Amã: Capital da Jordânia, com 1182 000 habitantes.

Árabe: Grupo linguístico de aproximadamente 260 milhões de pessoas que os

peritos julgam provir da região de Hejaz, na Arábia Saudita. Com excepção dos

Curdos, todos os demais iraquianos são árabes.

Arménios: Os Arménios são um povo indo-europeu originário do Leste da Turquia.

No Médio Oriente da actualidade, os Arménios encontram-se instalados sobretudo

Page 311: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

no Irão e no Líbano.

Assírios: Invasores que fundaram um império na Mesopotâmia de 1200 a 612 a.

C.

Aziz, Tariq: Político católico iraquiano, nascido em Mossul. Membro do Partido

Baas, Saddam Hussein nomeou-o vice-primeiro-ministro. Foi preso pelas forças

da coligação em 2003

Baas: O Partido da Ressurreição Socialista Árabe Baas foi fundado em 7 de Abril

de 1947 por Michel Aflaq e Salah ad-Din al-Bitar, dois estudantes universitários

sírios. O programa do Partido Baas incluía a adesão ao socialismo, liberdade

política e unidade pan-árabe. O Partido Baas chegou ao governo na Síria. No

Iraque, foi destituído do poder em 2003, quando as forças da coligação

derrubaram o regime de Saddam Hussein.

328

Babilónia: Uma das mais antigas cidades do mundo e centro de uma notável

civilização da Antiguidade. Ficava situada nas margens do rio Eufrates, que

entretanto mudou de curso.

Baçorá. Segunda cidade do Iraque, localizada junto de Shatt-al-Arab, no Sul do

Iraque, em pleno coração do território xiita.

Bagdá: Capital do Iraque, com 5 milhões de habitantes. A cidade, situada junto do

rio Tigre, foi considerada em tempos o coração do Império Árabe, só cedendo a

primazia a Constantinopla, em termos de amplitude e de esplendor, durante o

período áureo da cidade (entre os anos 638 e 1100 da era cristã), quando Bagdá

se converteu num grande centro do saber, da filosofia e do comércio.

Bakir, Hassan (1914-1982): Chefe do Partido Baas e presidente do Iraque de 1968

Page 312: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

a 1979, era primo de Saddam Hussein.

Beirute: Capital do Líbano e principal porto do país. A sua história remonta à

época dos Fenícios.

Código de Hamurabi: Conjunto de leis organizado na antiga Mesopotâmia (actual

Iraque) que definia o papel do Estado como agente da justiça mais em relação às

acções condenáveis do que aos indivíduos.

Curdos: Os Curdos não são árabes, iraquianos, turcos ou persas, mas membros

de um grupo étnico de 25 milhões, que vive em certas áreas da Turquia, do Irão,

do Iraque e da Síria. Saddam Hussein empreendeu intensas campanhas militares

contra os Curdos do Iraque, incluindo ataques com gás em 1988.

Eufrates: Um dos dois maiores rios que atravessam o Iraque, a parte oriental da

Turquia e o Norte da Síria.

329

Guarda Republicana: Tropas de elite iraquianas, fiéis a Sad-dam Hussein, cujos

membros eram recrutados na seita sunita, que governava o Iraque.

Haxemitas: Os reis haxemitas pertencem a uma família de elevada estirpe da

Arábia Saudita, que descende do profeta Maomé. Governaram em tempos o país.

Depois de serem derrotados por Abdul Aziz Al-Sa'ud, pai dos actuais governantes

da Arábia Saudita, membros dessa família foram designados pelos Ingleses como

monarcas do Iraque, da Transjordânia e da Síria. Foi assim que o rei Faiçal I se

tornou rei do Iraque. O actual soberano da Jordânia, o rei Abdullah, é haxemita.

Hejaz: Região ocidental da Arábia Saudita, berço do Islão. Hejaz era uma

província do Império Otomano desde 1517, mas depois da Primeira Guerra

Mundial tornou-se um reino independente, subindo ao trono o rei Al al-Hussein. O

Page 313: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

rei Hussein foi o pai do rei Faiçal I, que, por sua vez, ocupou o trono do Iraque.

Abdul Aziz bin Rah-man bin Sa'ud, pai do actual soberano da Arábia Saudita,

conquistou Hejaz em 1926 e proclamou-se rei, reunindo o Hejaz ao Nejd para criar

o reino da Arábia Saudita.

Hussein, Saddam (1937-): Filho de um camponês sem propriedades, que morreu

antes de Saddam nascer. Foi criado pelo tio, subiu ao poder graças ao Partido

Baas, e tornou -se presidente do Iraque em 1979. Saddam não só submeteu

todos os iraquianos a um regime de terror como atacou os vizinhos Irão e Koweit,

instalando a guerra naquela zona do globo. O governo de Saddam Hussein foi

derrubado em 2003 pelas forças da coligação.

Iraque, República do: Em 1923, uma convenção internacional, por iniciativa dos

governos britânico e francês, criou o Iraque moderno. O país foi constituído pela

união das províncias otomanas de Bagdá, Baçorá e Mossul.

Islão: Religião fundada pelo profeta Maomé. No Islão, é dada particular ênfase à

submissão à vontade de um único deus.

330

Koweit: Pequeno reino fundado em 19 de Junho de 1961, que se encontra situado

na fronteira sul do Iraque. Em 1990, o Iraque invadiu o Koweit e ocupou o país, até

que as forças da coligação expulsaram as tropas iraquianas daquele país, durante

a Guerra do Golfo de 1991. Desde então, foram sempre tensas as relações entre

o Iraque e o Koweit.

Lawrence da Arábia (1888-1935): Thomas Edward Lawren-ce fez-se homem em

Oxford, Inglaterra, e estudou no Jesus College, especializando-se em arquitectura

militar da Idade Média. Entre 1911 e 1913, trabalhou como arqueólogo na

Mesopotâmia, ao serviço da Universidade de Oxford. Quando deflagrou a Primeira

Guerra Mundial, foi incorporado nos serviços secretos militares, no Cairo.

Page 314: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Estabeleceu fortes laços de amizade com o príncipe Faiçal (mais tarde, rei Faiçal I

da Síria e do Iraque). Durante a guerra, Lawrence organizou as tropas árabes e, à

frente delas, combateu contra o exército otomano; por essa altura, tornou-se

grande amigo de Jafar e de Nouri, respectivamente avô e tio do pai de Mayada.

Por ironia, depois de ter escapado a muitas situações de perigo durante os

combates, veio a morrer num acidente de moto, em Inglaterra. Lawrence foi autor

de vários livros de grande êxito em que relatou as suas campanhas militares.

Liga Árabe: O Iraque, o Egipto, a Jordânia, a Arábia Saudita, o Líbano, a Síria e o

Iémen constituíram a Liga Árabe como baluarte contra a expansão soviética no

Médio Oriente.

Língua árabe: O árabe pertence à família das línguas semíticas, juntamente com o

hebreu e o aramaico. O árabe é uma língua com forma escrita desde o princípio

do século iv e tem a particularidade de ser escrito da direita para a esquerda.

Mãe de Todas as Guerras: Nome dado por Saddam Hussein aos combates

terrestres durante a Operação Tempestade do Deserto. Depois de perder a

guerra, Saddam apresentou esses combates como uma vitória iraquiana.

331

Mesopotâmia: A palavra é de origem grega e significa «a terra entre os rios». A

Mesopotâmia compreendia toda a região entre os rios Eufrates e Tigre. Nela

floresceram grandes civilizações. Actualmente, faz parte do Iraque.

Mesquita: Local islâmico dedicado ao culto público.

Mossul: Terceira maior cidade do Iraque, com cerca de 1 400 000 habitantes.

Mossul tem uma longa história e, em tempos, foi a cidade mais importante.

Muçulmano: Todo aquele que adopta a religião conhecida por Islão.

Page 315: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Mukhabarat: Termo popular por que é designada a polícia secreta (e quaisquer

serviços secretos) nos países árabes. Durante o regime de Saddam Hussein, o

Iraque dispunha de cinco agências deste tipo, todas elas conhecidas

genericamente por Mukhabarat.

Nacionalismo árabe: Definiu-se como opositor da ingerência estrangeira, primeiro

contra os Otomanos e depois contra a Grã-Bretanha e a França. Sati Al-Husri, avô

paterno de Mayada Al-Askari, foi considerado um dos mais notáveis nacionalistas

árabes.

Nasser, Gamai Abdel (1918-1970): Primeiro líder árabe do Egipto, após a

independência. Foi presidente do país, de 1956 a 1970, ano em que morreu de

ataque cardíaco. Durante os anos cinquenta, Nasser entrou em confronto com os

dirigentes iraquianos, quando procurou assumir a liderança de todo o mundo

árabe. Nasser foi um grande admirador de Sati Al-Husri, avô materno de Mayada.

Operação Escudo do Deserto: Preparação das tropas da coligação ocidentais e

árabes, na Arábia Saudita, em 1990 e 1991, com o objectivo de expulsar o

exército de Saddam Hussein do Koweit.

332

Operação Tempestade do Deserto: As tropas da coligação árabes e ocidentais

começaram uma campanha de bombardeamentos ao Iraque em 16 de Janeiro de

1991. Seguiu-se a invasão terrestre, em 23 de Fevereiro de 1991. As operações

terrestres duraram apenas 100 horas e redundaram na vitória militar da coligação

sobre o Iraque.

Otomanos: Império estabelecido pelo povo turco e que teve início na Anatólia, em

1301. Os Otomanos tomaram Constantinopla (hoje, Istambul) em 1453 e os

territórios árabes (incluindo o Iraque) em 1516 e 1517. O Império Otomano durou

Page 316: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

mais de 400 anos. Tendo-se aliado aos Impérios Centrais, durante a Primeira

Guerra Mundial, deixou formalmente de existir em 1918. A Turquia moderna foi

construída sobre as ruínas do Império Otomano.

Pahlevi, xá Mohammed Reza (1919-1980): Nascido em Teerão, sucedeu ao pai,

que abdicou em seu favor em Setembro de 1941. Intransigente inimigo do líder

religioso muçulmano Khomeini, que regressou ao Irão e tomou as rédeas do poder

depois de o xá haver abandonado o país, em 16 de Janeiro de 1979.

Pan-arabismo: Movimento internacional árabe que promove os interesses árabes

e se dedica à criação de um único Estado árabe.

Partido Socialista Baas do Iraque: O partido iniciou secretamente a sua actividade

em 1950. Depois de conseguir muitos adeptos, derrubou o governo iraquiano em

1963. Afastados do poder sete meses mais tarde, os seus partidários regressaram

em 1968 e mantiveram-se à frente do governo do Iraque até 2003.

Rei Faiçal I (1885-1933): Terceiro filho do primeiro rei de Hejaz (hoje, Arábia

Saudita), o rei Hussein bin Ali. Faiçal nasceu em Taif, educado em Constantinopla

e juntou-se ao inglês T. E. Lawrence (Lawrence da Arábia) para com-

333

bater o Império Otomano. Tornou-se rei da Síria e rei do Iraque. Era amigo íntimo

da família de Mayada Al-Askari.

Rei Faiçal II (1935-1958): Único filho do rei Ghazi I. Tinha apenas quatro anos

quando o pai morreu num desastre de automóvel. O jovem rei foi assassinado

durante a revolução desencadeada na manhã de 14 de Julho de 1958.

Rei Ghazi I (1912-1939): Filho único do rei Faiçal I, Ghazi nasceu em Hejaz e foi

confiado ao avô, o rei Hussein, quando o pai combateu os Turcos, durante a

Page 317: 3828574 Mayada Filha Do Iraque Jean Sasson

Primeira Guerra Mundial. O rei Ghazi morreu em circunstâncias misteriosas,

quando, ao volante do seu automóvel, embateu contra um candeeiro, em 3 de

Abril de 1939. Era um grande amigo da mãe de Mayada, Salwa Al-Askari.

Sunitas: A seita islâmica com maior número de adeptos.

Ttatado de Portsmouth: Tratado assinado em 1948 a fim de definir as relações

entre a Grã-Bretanha e o Iraque. O tratado favorecia a Grã-Bretanha e

comprometia a soberania do Iraque, pelo que não foi bem aceite neste.

União Árabe: O Iraque e a Jordânia fundaram a União, em 1958, como resposta à

República Árabe Unida, dominada por Nasser e que, nesse mesmo ano, uniu o

Egipto à Síria.

Universidade Americana de Beirute: Universidade fundada em Beirute pelo Dr.

Daniel Bliss, da Missão Protestante Americana. Frequentada por estudantes

vindos de todo o Médio Oriente, a universidade contribuiu para a criação de uma

classe de intelectuais árabes.

Universidade de Axhar: Universidade islâmica instalada no ano 977 da era cristã

na Mesquita de Azhar, no Cairo. Sendo a mais antiga instituição do género em

todo o mun-

334

do, constitui o principal centro do saber e da cultura islâmicos. Alguns dos

antepassados de Mayada frequentaram a Universidade de Azhar.

Xiitas: Seita islâmica que se opõe à seita sunita quanto ao papel de sucessora do

profeta Maomé, entre outras divergências.