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3.2 Usos e Costumes de todo o Mundo 3.2.1 O Africano: Ser Fabuloso ou Gente? O contacto com um novo espaço territorial implica naturalmente um contacto com os seus habitantes e a sua cultura. O encontro de terras com gentes até então ignoradas iria certamente originar múltiplas reacções na consciência cultural europeia. Os testemunhos divulgados de povos, afinal, adamitas e, por isso, não diferentes dos até então conhecidos, contradiziam a ideia prevalecente da existência de monstros antropóides em terras longínquas e remotas; trata-se de povos de usos, por vezes, estranhos, mas, sem dúvida, simultaneamente fantásticos e maravilhosos para atrairem a atenção de qualquer europeu. O exaustivo conhecimento das diferentes culturas e civilizações espalhadas por esse mundo fora constitui uma das áreas de maior impacto no diálogo com a novidade. Como seriam vistos e integrados estes homens agora descobertos nas esferas de pensar e estar europeias; esta uma das questões que nos propomos aflorar neste capítulo. Já na literatura de viagens se atesta uma certa dificuldade em descrever os povos recém-descobertos. A relação descritiva deixa transparecer uma indefinição face ao visto: fala-se de povos, que não se sabe se se devem considerar como gentes e, perante a diversidade humana, descrevem-se alguns como sendo bárbaros, outros como certamente selvagens; alguns comportam-se, na opinião dos viajantes-observadores, como canibais e, na maioria dos casos, os autores afirmam tratar-se de pagãos. A surpresa perante a descoberta de vida humana ao sul do Equador originaria grandes interrogações sobre os diferentes tipos humanos, visto que estes seres não detinham credibilidade face aos fundamentos existentes. A revelação da existência de gentes para além da linha equatorial, documentada pelos depoimentos dos navegadores ibéricos, causaria, pois, dúvidas e incertezas quanto ao aspecto e comportamento destes seres. E se, de facto, se encontravam gentes por essas paragens, então seriam criaturas criadas por Deus; com os quais se deveriam consequentemente estabelecer assíduos e contínuos contactos. As primeiras referências em obras alemãs às gentes do continente africano, seriam registadas, mais uma vez, nas cosmografias. Acompanhando o relato inicial, estas obras de geografia formulam as primeiras tentativas de traçar um olhar etnográfico sobre os povos

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3.2 Usos e Costumes de todo o Mundo

3.2.1 O Africano: Ser Fabuloso ou Gente? O contacto com um novo espaço territorial implica naturalmente um contacto com os seus habitantes e a sua cultura. O encontro de terras com gentes até então ignoradas iria certamente originar múltiplas reacções na consciência cultural europeia. Os testemunhos divulgados de povos, afinal, adamitas e, por isso, não diferentes dos até então conhecidos, contradiziam a ideia prevalecente da existência de monstros antropóides em terras longínquas e remotas; trata-se de povos de usos, por vezes, estranhos, mas, sem dúvida, simultaneamente fantásticos e maravilhosos para atrairem a atenção de qualquer europeu. O exaustivo conhecimento das diferentes culturas e civilizações espalhadas por esse mundo fora constitui uma das áreas de maior impacto no diálogo com a novidade. Como seriam vistos e integrados estes homens agora descobertos nas esferas de pensar e estar europeias; esta uma das questões que nos propomos aflorar neste capítulo. Já na literatura de viagens se atesta uma certa dificuldade em descrever os povos recém-descobertos. A relação descritiva deixa transparecer uma indefinição face ao visto: fala-se de povos, que não se sabe se se devem considerar como gentes e, perante a diversidade humana, descrevem-se alguns como sendo bárbaros, outros como certamente selvagens; alguns comportam-se, na opinião dos viajantes-observadores, como canibais e, na maioria dos casos, os autores afirmam tratar-se de pagãos. A surpresa perante a descoberta de vida humana ao sul do Equador originaria grandes interrogações sobre os diferentes tipos humanos, visto que estes seres não detinham credibilidade face aos fundamentos existentes. A revelação da existência de gentes para além da linha equatorial, documentada pelos depoimentos dos navegadores ibéricos, causaria, pois, dúvidas e incertezas quanto ao aspecto e comportamento destes seres. E se, de facto, se encontravam gentes por essas paragens, então seriam criaturas criadas por Deus; com os quais se deveriam consequentemente estabelecer assíduos e contínuos contactos. As primeiras referências em obras alemãs às gentes do continente africano, seriam registadas, mais uma vez, nas cosmografias. Acompanhando o relato inicial, estas obras de geografia formulam as primeiras tentativas de traçar um olhar etnográfico sobre os povos

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172 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES

africanos, dando voz à necessidade e à vontade de conhecer o mundo na sua verdadeira dimensão territorial e humana. Se, no início desta amostra representativa se encontram apenas referências aos reinos situados junto à costa ocidental africana, ficando-se assim pela enumeração de povos que habitam estas regiões, pouco a pouco criam-se exaustivas listagens de tópicos característicos e ilustrativos das maneiras de ser e estar destes povos. O humanista Laurentius Frisius afirma na sua Auslegung der mercarthen oder Carta Marina, como se pode testemunhar pelas suas próprias palavras, que este seu tratado intenta esclarecer a terra e costumes dos seus povos nomedamente dos sítios recentemente nomeados pelas navegações.1 Neste comentário à Carta marina, Laurentius Frisius visa informar sobre a terra, bem como sobre os povos que a habitam. Assim, ao descrever o Cabo Verde, esclarece que se trata de uma região com muitas árvores, onde vivem muitos "lavradores", cujas casas são de palha. Eles andam nus, pescam, roubam-se uns aos outros e usam setas envenenadas.2 No reino de Melli, também situado na "Terra dos Mouros" salienta que "os homens desta terra tem grande consideração por mulheres fortes com peitos grandes",3 enquanto no Senegal se encontra um reino com muita gente e que embora se encontrem algumas aldeias não tem cidades. Acrescenta ainda surpreendido que têm um rei, mas que este "não tem nem renda nem dinheiro, só apenas aquilo que o povo com boa vontade lhe oferece".4 Laurentius Frisius anota ainda que na Etiópia os padres tem "alguns costumes estranhos"5 e que o povo, também numeroso, tem um "aspecto cruel".6 No seu registo resumido e pontual Frisius faz comparações com a realidade conhecida. Assim, no capítulo dedicado ao Preste João referencia que este é tão poderoso como o pontífice em Roma, pois também tem ao seu dispor muitos reis e bispos.7 Trata-se, por enquanto, de um pequeno apontamento dos autóctones recentemente descobertos, em que Frisius aponta uma ou outra particularidade significativa e caracterizadora de cada um destes povos; 1. Laurentius Frisius, Auslegung der mercarthen oder Carta Marina, Estrasburgo, 1525, seguimos a edição de 1527, introdução ao cap 1. "Der an der Tractat erkleret zum theil die land vnd sitten & völcker/ so angemelten orten erfunden werden/ als vß nüwer vnd warhaffter erfarung hieher gezogen..." 2. Idem, cap. 22. 3. "[...] man in diesem land habend grose achtung vff feißte weiber mit grossen brüsten". Idem, cap. 62. 4. "[...] hat weder Rent noch gult dan was im dz volck mit guten willen schenket". Idem, cap. 105. 5. "[...] mancherley seltzamer sitten". Idem, cap. 27. 6. "[...] grausamer gestalt". Idem. 7. Idem, p. 90.

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USOS E COSTUMES DE TODO O MUNDO 173

como vimos, também aqui se estabelece, grande parte das vezes, uma comparação com a realidade conhecida. O registo informativo será conduzido pelo anotador que assim define a norma. De igual modo o teólogo e cronista Sebastian Franck expressa no título do seu Weltbuch o desejo de descrever o mundo e "os povos e habitantes aí residentes, o nome, aspecto, vida, carácter, religião, credo, cerimónias, lei, regimento, polícia, hábitos, usos, guerra, ofícios, frutos, animais, vestuário e alterações".8 Os primeiros passos para esboçar o Outro passam, por conseguinte, por uma descrição e enumeração da sua maneira de ser e estar, dos seus usos e costumes, premissa necessária para a definição do seu posicionamento no mundo. Vejamos em pormenor o capítulo dedicado ao continente africano. Já na apresentação geral dos quatro continentes, Sebastian Franck refere que em África "há muitas maravilhas e gentes selvagens",9 de tal forma que mui-tas vezes não se sabe se se devem considerar humanos. Nas paisagens africanas encontrar-se-iam, assim, Blémies,10 Nubios,11 Trogloditas, que vivem no deserto em buracos debaixo da terra, e Ciclopedes, só com um olho, sem cabeça e negros; os Garamantes, que habitam na Líbia interior,12 vivem com qualquer mulher e não tem cabeça, tendo assim os olhos e a boca no peito e, por fim, os Etíopes; Franck apresenta-nos assim "as gentes maravilhosas da natureza".13 Numa outra passagem anota que "Alguns só de aspecto se parecem gente, dado que noutras coisas, sem raciocínio, são como os animais selvagens".14 Os Rizopagi que comem raízes que destroiem com pedras, os Cineci que comem animais em cru e os Spermatopagi que vivem em árvores, preguiçosos. Estes estranhíssimos povos viveriam assim por toda a Etiópia e a Líbia. Com efeito, Sebastian

8. Sebastian Franck, Weltbuch, Estrasburgo, 1534. "und der darin gelegener Völcker und Einwoner/ namen/ gestalt leben/ wesen/ religion/ glauben/ ceremonien/ gstaz/ regiment/ pollicey/ sitten/ brauch/ krieg/ gewerb/ frücht/ thier/ kleydung vnd verenderung". 9. "[...] hat viele wunder unnd wilde menschen" Idem , p. V. 10. No parecer de Estrabão estes acéfalos com olhos no peito viveriam do lado direito do estuário do rio Nilo e seriam temidos como ladrões. 11. Um povo do vale do rio Nilo citado por Estrabão segundo as indicações de Erastones, Plínio e Ptolomeu. 12. As fontes que referem os Garamantes são Heródoto, Estrabão, Plínio e Ptolomeu. Ainda nos meados do séculos XVII os autores recorrem a estas fontes, continuando a descrevê-los entre os povos africanos. É o caso, por exemplo, Eberhard Schultes, Geographisches Hand-Büchlein, Tübingen, 1655. 13. "[...] die wunderbarlichen leüt der natur". Sebastian Franck, op. cit., p. V. 14. "Etlich seind allein von gestalt menschen/ sunst aller ding on vernunfft wie die wilden thier." Sebastian Franck, op. cit, p. Viiij.

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Franck acolhe o legado da geografia mítica da antiguidade nas páginas da sua obra e o continente africano torna-se um acervo de maravilhas, monstros, prodígios na tradição da Historia Naturalis de Plínio ou da Collectanea de Solino. O restante texto apenas faz algumas alusões à Mauritania e Numídia, onde residem, tal como o indica a denominação regional, povos bárbaros, e ao Egipto, capítulo este repleto dos ancestrais costumes; em resumida introdução desfilam os deuses epípcios mais conhecidos, bem como algumas cerimónias rituais fúnebres, que a par do direito e das artes, constituem os aspectos mais importantes da cultura egípcia.15 A representação do continente africano, tanto no que se refere às dimensões e limites desta parte do mundo, como em relação aos povos aí residentes, permanece fiel à concepção tradicional. Vejamos quais as fontes seleccionadas por Sebastian Franck? Com efeito, na redacção deste capítulo, Franck recorre, na sua grande maioria, a textos de autores clássicos. Os seres fantásticos e extraordinários descritos em África seriam o mundo fantástico e espantoso descrito por Plínio, Estrabão, Solino, Heródoto e Isidoro de Sevilha. Além destes, o compilador de maravilhas referencia uma obra intitulada Omnium gentium mores, leges, & ritus ex multis clarissimis rerum scriptores.16 O seu autor, Johann Boemus, formado em hebraico reune neste escrito, publicado em 1520, os usos e costumes da Europa, Ásia e África, compilando mais uma vez a longa tradição livresca das maneiras de ser e estar destes três continentes. Baseando-se no rol maravilhoso e de prodígios da geografia tradicional, Johann Boemus realiza uma colecção de costumes dos povos da terra. Esta obra testemunhará uma grande ressonância17 que se poderá explicar precisamente pelo facto de estabelecer uma suma de dados da cultura livresca tradicional relativa-mente aos hábitos e instituições destes três continentes. Importa referenciar que, embora date de 1520, não existe qualquer alusão às novas descobertas. Johann Boemus permanece no sistema prevalecente, não fazendo qualquer referência no seu texto à circum-navegação de África e às viagens marítimas até à Índia. O seu opúsculo seria, no entanto, aceite como um importante fundamento para o conhecimento da realidade 15. Neste trecho cita Breydenbach que refere Cairo como a maior e mais povoada cidade do mundo" [der aller grosten vnd volckreichesten Stadt der Welt"], p. XV. Aqui menciona também Hans Tucher, veja-se cap. 2. 1. 16. Johann Boemus, Omnium gentium mores, leges, & ritus ex multis clarissimis rerum scriptores, s. L., 1520. 17. São conhecidas para o século XVI e inícios do século XVII, nove edições em latim, cinco em italiano, quatro em francês, três em inglês, e uma em espanhol.

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humana, conhecido como uma colecção dos costumes humanos,18 pelo que não será de admirar que também ele se encontre na lista de Sebastian Franck como uma fonte primária essencial. Ao dar acolhimento a um corpus documental originário da Antiguidade Clássica ou de enciclopédias da cultura cristã medieval como Isidoro, Sebastian Franck não fará também qualquer referência às informações dadas pelas viagens dos Descobrimentos, deixando que este capítulo seja tributário de Plínio, Isidoro, Diodoro Sículo e outros. E, como pudemos apreciar, são, na sua grande maioria, os seres fantásticos e estranhos por eles legados que povoam o continente africano. Descrito desde há muito como parte integrante da realidade humana, este mundo prodigioso não seria, de facto, desprezado nem provoca qualquer apreciação céptica nas publicações dos séculos XVI e XVII. É o caso da obra de Meister Elucidarius: Von allerhandt Geschöpffen Gottes.19 Com o propósito de apresentar iluminadamente todas as criaturas da terra, retoma-se a descrição das três partes do globo retirada principal-mente das obras de Plínio, Solino e de outros escritores do mundo. E embora se mencione que se intenta corrigir os depoimentos declarados, acaba-se por se expor, numa conversa entre mestre e aluno e sem qualquer crítica, os dados tradicionais. Vejamos por exemplo, quando se refere aos acéfalos existentes na Etiópia: "Alguns destes etíopes são mouros ou indianos/ outros habitam no deserto/ outros alimentam-se de toda a espécie de serpentes/ e simulam mais uma linguagem do que propriamente consigam falar/ alguns não têm cabeça/ mas antes os olhos e a boca no peito".20 E prossegue descrevendo cinocéfalos, gentes que vivem quatrocentos anos; na Etiópia existiriam pessoas com quatro olhos e "No sul da Etiópia haveria gentes que tem um só pé, muito largo, mas que são tão rápidos que assim podem perseguir os animais selvagens; e, com os pés grandes, podem-se proteger optimamente do calor do sol".21 Sem qual-quer dúvida, a galeria de seres fabulosos e extraordinários é o cenário humano e natural das regiões africanas.

18. Veja-se, Margaret T. Hodgen, Early Antropology in the Sixteenth and Seventeeth Centuries, Philadelphia, 1964, pp. 131-154. 19. Meister Elucidarius, Von allerhandt Geschöpffen Gottes..., Frankfurt, 1566. 20. "Es seynd mancherley Ethiopien/ Moren oder Indianer/ etliche wohnen in der Wüste/ etliche niessen allerley Schlangen/ vnnd deuten ihre Rede mehr dann Sie außsprechen/ etliche haben kein Haupt/ sondern Augen vnd Mund an der Brust". Idem, sem numeração de pági-nas. 21. "Gegen Nidergang in Ethiopia seynd Leut mit einem einigen breyten Fuß/ vnn so schnell/ daß Sie die wilden Thier erfolgen/ vnd beschatten sich optimals von der Sonne Hitz / mit der breyte irer Füsse". Idem.

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Nos meados do século XVI, Johann Herold traduziu do latim para o alemão a obra do gramático Conrad Lycosthenes (ou seja: Conrad Wolffhart) que, dedicada a Deus,22 visa conhecer a humanidade como obra do Criador. Dividida em quatro livros, em apego à concepção das quatro monarquias, esta crónica descreve, desde o início do mundo até aos meados do século XVI - altura da publicação -, os seres fantásticos e maravilhosos, ou seja, homens sem cabeça, com olhos no peito, só com um pé bem como fabulosos criaturas metade gente, metade animais. E, como tivemos oportunidade de constatar, não existem zonas privilegiadas na sua descrição, encontrando-se as maravilhas espalhadas por todas as zonas do globo.23 Com efeito, desde o início do mundo que encontramos referências a monstros maravilhosos e em todas as regiões do orbe terráqueo.24 No final do quarto livro coloca-se esta questão para as zonas recém-descobertas. E é interessante aferir que aqui até se relata sobre criaturas fabulosas, que os portugueses teriam encontrado nas suas viagens até Calecute. Com efeito, os navegadores teriam visto, numa ilha, criaturas com dois braços do lado direito, com orelhas de burro e pés de cavalo e ainda mulheres que teriam filhos duas vezes por ano.25 Mas os estranhos exemplos não ficam por aqui. Tanto na Terra dos Mouros, como na ilha da Samatra se poderiam ainda ver criaturas estranhas e maravilhosas - o texto é acompanhado por ilustrações. As descrições amplamente conhecidas, bem como as ilustrações - como as da crónica de Hartmann Schedel - seriam agora remetidas para as terras há pouco descobertas. A galeria de seres já conhecidos seria agora completada e confirmada como um dado das viagens dos Descobrimentos, por exemplo, no novo mundo "o rei de Portugal, através das suas navegações, descobriu gente rude com cabeça de cão e longas orelhas de burro; o corpo é de gente com braços e mãos,

22. Johann Herold, Wunderwerck oder Gottes vnergründliches Vorbild ..., Basileia, 1557. Herold traduziria outros autores como Petrarca, Beda Venerabilis, Erasmo e Diodoro Sículo. 23. Veja-se Eugen Holländer, Wunder, Wundergeburt, Wundergestalt, Estutgarda, 1922, que apresenta uma série de Flugschriften publicados em vários países da Europa. Alguns destes com exemplos de criaturas disformes e monstruosas aparecidas na Europa foram publicados na obra de Wolfgang Harms (Ed.), Deutsche Illustrierte Flugblätter des 16. und 17. Jahrhunderts, 2 vols., Munique, 1980, Tübingen, 1985. 24. Veja-se Conrad Gesner, Historia Animalum Liber III, Frankfurt/M., 1585 e Ambroise Paré, Des monstres et prodiges, Paris, 1573 (ed. Jean Cérard, Genéve, 1971). Paré cita (p. 3) Lycosthenes como fonte informativa sobre numerosos seres monstruosos. 25. Herold, op. cit, p. dlxiij.

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as ancas e as coxas como um cavalo; e ruminam como uma vaca".26 O fantástico e o real coexistiam numa dinâmica e surda subordinação; e levará o seu tempo até que a galeria de maravilhas seja determinantemente eliminada pela ciência empírica. Poder-nos-emos interrogar se será nas zonas mais remotas sobre a qual existe menos informação, que se impõe condicionalmente a cultura livresca? Será que a localização destas criaturas tem a ver com a maior ou menor quantidade de informações? Uma leitura atenta dos últimos textos analisados comprova que as indicações a criaturas estranhas e fantásticas se encontram distribuídas por todas as regiões do mundo e por todas as épocas. Assim, a hipótese de que apenas se encontrariam, por exemplo, em áreas desconhecidas, além da Europa não é de modo algum verificável. Podemos assim concluir que esta questão tem a ver com o próprio conceito de humanidade usado. Se a pouco e pouco estes seres monstruosos iriam desaparecendo da superfície terrestre, no século XVI eles ainda tinham aceitação na consciência cultural europeia. Estas criaturas, como podemos testemunhar, nos escritos publicados durante todo o século XVI, e ainda as primeiras décadas do século XVII, faziam parte do orbe terráqueo. Presente nos textos da Antiguidade ou na Sagrada Escritura, este mundo lendário e fantasiado não perde a credibilidade e o aval dos coevos. Não esqueçamos que o homem renascentista tem ainda muito a ver com o homem fervoroso e exagerado da Idade Média. Como vimos, esta última publicação comprova esta ideia, estabelecendo uma associação com a história da humanidade.27 Conrad Lycosthenes que, para além desta obra, edita um comentário de Plínio (1547) e participa na edição da Geografia de Ptolomeu em 1552, volta-se especialmente para o legado da antiguidade. Não será este, por conseguinte, um problema em torno das fontes que os autores utilizam? De facto, ao mesmo tempo que surgiam textos referentes às viagens marítimas, os homens de letras coevos dispunham igualmente pela primeira vez de inúmeros textos da Antiguidade, onde também se relatava sobre os povos do continente africano agora circum-navegável. Ambos os escritos seriam pois considerados uma fonte de conhecimento: enquanto as obras recentes rela-tavam sobre o presente, os autores da antiguidade informavam sobre o

26. "[...] hatt der künig vß Portugall durch sein Schiffung leüth funden/ die rauhe hund köpff mit langen Esels horn hattend/ der mittel leyb ist mensch/ mit armen vnn händen/ die hufft vnd schenckel wie ein pferd/ klauwmen wie ein Khü....". Johan Herold, op. cit., p. dlx. 27. Estes exemplos serão utilizados em muitas obras como na Cosmographia de Sebastian Münster. Veja-se, por exemplo, capítulo sobre Lituânia, onde refere seres fantásticos e disformes.

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passado. Este facto explica a permanência deste mundo maravilhoso e monstruoso. Depoimento de autoridade, até se provar o contrário, ele faria parte do saber existente. Os autores do século XVI reflectem, de modo diferente, a recepção dos autores da antiguidade e os dados das viagens dos Descobrimentos. Recapitulemos. Enquanto Sebastian Franck escreve o seu continente africano em apego às fontes tradicionais, o capítulo dedicado a América transmite uma outra imagem dos povos da costa ocidental africana, conforme o testemunho de Luís de Cadamosto. Num mesmo escrito diferentes abordagens, duas realidades lado a lado sem integração.28 Johann Herold, por seu lado, confirma os dados prevalecentes com as viagens dos portugueses e na Cosmografia de Johann Rauw fazem-se referências tanto a trogloditas, os primeiros legados da geografia mítica, como aos nubios29 descritos por Francisco Álvares. Estes alguns dos muitos caminhos possíveis na interrelação do novo horizonte do saber. A integração não é, pois, de qualquer modo linear. Um outro campo onde se poderá deferir esta amoteose de leituras é no das ilustrações. Também aqui se operam diferentes exemplos; assim, poderá acontecer, por exemplo, que um texto antigo seja ilustrado com figuras actuais, como é o caso da edição em língua alemã de Johan Herold da obra de Diodoro Sículo. Considerando de suma importância conhecer o início da história da humanidade, Herold decide traduzir este texto relativo aos acontecimentos históricos até a guerra de Tróia. Mas as gravuras escolhidas para esta edição, são também publicadas na Cosmographia de Sebastian Münster. Assim, ao desfolhar o primeiro capítulo sobre o Egipto surgem imagens das inundações do Nilo, um mapa do Egipto, um crocodilo, as pirâmides, entre outras gravuras, que conhecemos do capítu-lo sobre África da Cosmographia de Münster. Quando se refere que, no princípio do mundo, os homens seriam selvagens e até canibais, surge a famosa imagem, em que em cima de uma mesa se esquartejam homens. Mas, para além disso, insere-se o mapa de África já com os novos con-tornos publicado pela primeira vez na obra de Sebastian Münster. Isto é: um traçado que não seria conhecido de Diodoro Sículo. Vimos igualmente um habitante da Terra dos Mouros, bem como o rinoceronte desenhado

28. Neste contexto, R. Gosche, Sebastian Franck als Geograph, in: Zeitschrift für allgemeine Erdkunde, I vol., Berlim, 1853, pp. 255-278 alude a um "emaranhado" de informações antigas e novas. 29. Johan Rauw, Cosmografia, Frankfurt, 1597, pp. 1016-1017. Em relação aos trogloditas, Rauw menciona Sebastian Münster.

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por Albrecht Dürer, um "animal estranho". Se por um lado se poderá argumentar que ambas as obras foram editadas na mesma tipografia em Basel, na oficina de Henri Petri, utilizando-se assim as mesmas xilografias, - como sabemos nem sempre se produziam novas xilografias nas diferentes edições, por razões económicas -, por outro lado, dever-se-á anotar que a utilização das mesmas imagens significa, por certo, um reajustar de imagens. Trata-se de um acto ocasional? Ou pelo contrário é um gesto premeditado? Os temas abordados não seriam de algum modo intemporais? O canibalismo referenciado por Diodoro Sículo, não seria agora, no século XVI, testemunhado como prática corrente noutras regiões do globo. Porque não completar o dado anterior com as informações actuais - como no caso do mapa. Embora um escrito se reporte aos tempos passados e o outro trate da imagem do mundo actual, não serão ambos vestígios de uma mesma realidade humana e, por isso, complementares? Neste trabalho iconográfico, tal como já tivemos oportunidade de verificar nos textos de geografia, os homens de letras, na sua maioria, humanistas não efectuam uma recepção acrítica e passiva dos textos de antiguidade, estes seriam reintepretados, pelo que se poderia completar a sua escrita e fazer achegas com dados posteriores. Logo o mesmo se faria com os textos recentemente produzidos, sendo também estes colocados à sua análise e interpretação. Este comentário complementar - que assume naturalmente diferentes vertentes e tónicas consoante o intérprete - cria as raízes de um novo horizonte, de um outro estádio de saber. Enquanto os autores portugueses se desligam rapidamente das autoridades, afirmando que se estes cá viessem a todos lhe "meteria confusam e vergonha", no dizer de João de Barros, pois estão confiantes na superioridade dos modernos - atentemos na declaração de Duarte Pacheco Pereira de que os antigos nada souberam -, os intelectuais germânicos manobram ardilosamente o seu discurso, evitando a ruptura. O vivo regozijo pelas novidades coevas não os leva a desautorizar os antigos e a desacreditar a sua versão. Com efeito, na sua perspectiva, o diálogo inicial com o Outro fundamenta-se tanto nas informações das relações de viagens como nas representações dos autores da Antiguidade Clássica. É a mesma atitude traditiva que os leva a aliar notícias recentes com as concepções registadas há muitos anos. Numa ânsia única de reunir o dito e o visto poder-se-iam encontrar alusões a seres fantásticos e estranhos ao lado de povos descritos pelas viagens de descobrimento;30 associados no intuito de alcançar o

30. Heydenwelt vnd irer Götter anfängcklicher vrsprung..., Basileia, 1559.

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verdadeiro conhecimento sobre a realidade humana africana, os dois estratos de informações coexistem, visto que ambas as fontes formam a suma que se visa alcançar. Vejamos como, por exemplo, Sebastian Münster descreve os famosos monstros antropóides na Líbia: "Escreve-se ainda sobre muitos e diversos monstros, que se encontrariam nesta terra; sobretudo algumas gentes que não têm lábios para falar e que, ao contrário, precisam de sinais como os mudos. Alguns só terão um olho na testa, outros não têm cabeça, mas antes têm os olhos no peito, alguns só têm um pé e com este correm mais depressa do que andam as gentes de dois pés."31 Estas informações são retiradas, como o próprio Sebastian Münster afirma, de fontes clássicas. Neste caso, aponta o nome de Plínio, e até fornece as razões explicativas para a existência destes monstros, nomeada-mente, a falta de água. Mas se se recorre aos textos dos autores clássicos para escrever sobre a Líbia, já se começam a aflorar algumas dúvidas expressas no comentário que se segue à descrição dos prodígios: "Para estas maravilhas não existem novas precisas".32 As afirmações dos autores clássicos devem ser perservadas, dada a veracidade e validade das suas informações. E como ainda prevalece a possibilidade de se encontrarem estes seres extraordinários algures em paragens não conhecidas, a autoridade destes escritos não será desacreditada. Enquanto não houver outras informações, eles continuam a formar o primeiro patamar do saber. Descrever a terra inteira, salientando os principais elementos coordenadores da sua configuração geral e a sua composição natural e humana, constituem os objectivos das cosmografias. Estas obras deveriam fornecer ao seu leitor os elementos geográficos da terra e delinear um olhar etnográfico sobre os diferentes povos espalhados pelos quatro continentes. Os conceitos de geografia e história aproximavam-se, significando, a elaboração de uma geografia da terra e simultaneamente a presença de uma geografia cultural compreendida como história da humanidade. Neste sentido, as cosmografias expressam o desejo de reunir o material disponível, a fim de poderem formular uma imagem verdadeira e global do mundo. Só com base em todo o manancial documental se pode erigir 31. "Man schreibt sunst auch von vilen und mancherleien monstris so in diesem land sollen gefunden werden/ besunder daß etlich menschen kein lefftzen haben zu reden sunder brauchen zeiche_~ wie die stummen. Etlich sollen nit mere dann ein aug in der Stirn haben/ etlich haben kein Kopf/ sunder ire augen ston in der brust/ etlich haben nit mere dann ein füß/ unn mit den lauffen sie schneller dann die zweifüsstige gen menschen" Sebastian Münster, Cosmographia, Basileia, 1544, folha dccix. 32. "Für diese Wunder hat man kein gewisse Kundschafft" Idem.

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uma verdadeira descrição do mundo; uma cosmografia deverá ser, antes de mais, uma colecção de informações sobre o mundo, uma enciclopédia do conhecimento. Reconhecendo o peso da herança greco-latina como primeiro alicerce do conhecimento, Sebastian Münster, por exemplo, dedica-se-lhe num movimento de recuperação da verdade. Ao traduzir as obras de Pompónio Mela, Solino e, principalmente, Ptolomeu, não se trata somente de um empenho em realizar um estudo linguístico, mas ainda de uma procura dos fundamentos subjacentes a estes textos. Daí que, ao realizar a sua cosmografia, apresente estes mesmos autores, em especial, Ptolomeu como o alicerce essencial para a compreensão e descrição do mundo. O estudo deste autor fornecer-lhe-á os dados vitais, em que se fundamentava o seu conhecimento e orientava a doutrina da sua cosmografia. A leitura e interpretação das obras da Antiguidade Clássica e Medieval correspondem ainda a uma contínua procura das linhas evolutivas da história da humanidade, apoiando-se, deste modo, nos apontamentos exis-tentes como prova de saber. Entre as páginas da sua cosmografia encontram-se depoimentos de Pompónio Mela, Estrabão, Solino, Plínio, Eusébio, Aristotéles, Heródoto, Plutarco, Santo Agostinho bem como passagens da Sagrada Escritura. Estes autores e escritos constituem os alicerces de fundamento teórico, de instrumento de trabalho e de análise capazes de fornecer uma interpretação acerca do mundo. Apresentar o mundo, bem como cada um dos seus continentes, significa reproduzir o já dito sobre cada uma destas partes do mundo. No caso do continente africano, a sua nomenclatura, os seus limites geográficos e os seus povos serão inicialmente definidos e descritos por Plínio, Ptolomeu, Pompónio Mela, Estrabão ou Diodoro Sículo, autores que assim determinam a natureza e a vida em África. Mas a pouco e pouco a sua autoridade centrar-se-á em grande parte apenas na região norte, nomeadamente os antigos limites deste continente, - onde o reino do Egipto dispõe de um lugar de destaque. Na verdade, as des-crições dos povos africanos, divulgadas pelos navegadores, iriam tornar-se realidade aceite, passando a ser integradas nas enciclopédias existentes. O reconhecimento do continente africano inaugura uma discussão sobre o aspecto dos habitantes, assinalando-se as diferenças consoante as regiões. Assim, na cosmografia editada por Sigmund Feyerabend refere-se que a cor negra teria a ver com a proximidade do sol, isto é, "[...] onde o sol está mais perto é onde habitam os mais negros e, ao contrário, os que ficam mais longe são os mais brancos, pelo que aqui em África mais ou menos na Guiné e na terra dos negros (que se situa entre o Equinócio e o

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Trópico) toda a gente é negra e na terra do Preste João, mesmo por baixo do Equinócio, são mouros amarelos"33 e continua "[...] Mas o que é ainda mais de admirar é que as gentes junto do CABO DE BONA SPERANCHO são totalmente negros e as do STRECHO DE MAGELLANO são brancos e não muito longe do Equinócio sul, sim em toda a América não há algures um negro...".34 Para além desta surpresa o autor iria verificar que os europeus - refere espanhóis e italianos - não escureciam quando viviam nestas regiões, o que o leva interrogar-se sobre a razão para este facto; terá a ver com alguma estrela ou com alguma característica particular desta terra ou terá a ver com alguma qualidade da natureza ou das gentes, ou será de tudo um pouco.35 Sebastian Münster explica ainda que seria o calor do sol que faria que aí existissem "mouros", baseando-se na teoria que afirmava a zona do Equador demasiado quente, pelo que embora fosse possível haver vida humana, os seus habitantes teriam a pele escura.36 Ao longo das diferentes edições, Sebastian Münster vai alterando a sua imagem das gentes africanas. Se inicialmente fala única e exclusivamente de Rizopages, aqueles que comem raízes, ou Trogloditas, em edições posteriores, para além destes, já refere os Azenegues, os "Nigriten" do Senegal, bem como outros povos do reino Gâmbia, do Melli e do Cabo da Boa Esperança. Assim, menciona-se, por exemplo, que os Nigriten do Senegal "não [são] muito ricos; não tem cidades, nem casas bonitas e a razão [disso] é que aí não se encontra nem pedra nem cal",37 enquanto os povos do Gâmbia "seguem a lei momedana e comem no chão como os sarracenos e os turcos. Entre eles não cresce nem vinho nem trigo, cevada

33. "[...] daß wo die Sonne zu neckt aber inen ist/ die aller schwäeßesten wohnen und dargegen/ da Sie am weitesten darvon/ die weissesten seyn solten daß hie in Affrica ungeferlich Guinea/ unnd im Lande der Schwarzen (welche zwischen dem Equinoctial und dem Tropicus ligen) die Leute alle schwarz / und in Priester Johannis Land/ gerad unter dem Equinoctial/ gelbe Moren sind". Sigmund Feyerabend, Cosmografia, Frankfurt/M., 1576, pp. 3-5. 34. "Aber das noch mehr zu verwundern ist so sind die Leute bey CABO DE BONA SPERANCHO ganz schwarz bey der STRECHO DE MAGELLANO sind sie alle weiß ungefehr so weit vom Equinoctial gegen dem Meridien oder Mittag/ ja im ganz America sind niergends keine Schwarz [...]". Idem. 35. Idem, p. 5. Quase textualmente encontramos esta mesma questão na obra de Ortelius, o leva a supor que a cosmografia publicada por Feyerabend se trata de uma edição do Theatrum. 36. Sebastian Münster, Cosmografia, Basileia, 1628, p. 1660. 37. "[...] nicht sunderlich reich [sind]/ sie haben keine Stett/ noch keine hübsche Heuser/ ursach/ man findt da keine Stein noch Kalch...". Sebastian Münster, op. cit, 1588, p. Mccccxvj. Citação que recorda o texto de Laurentius Frisius.

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ou aveia: mas sim milho-miúdo, feijão e ervilhas...".38 Os habitantes do reino do Melli cultivam muito arroz, comem cão, andam nus, seguem a lei maomedana e alguns adoram ídolos".39 Entretanto junto ao cabo da Boa Esperança poder-se-iam encontrar "[...] muitos povos estranhos"40 ainda mal conhecidos. Embora a descrição seja de certo modo sumária e pontual, poder-se-á verificar que existem determinados tópicos que a coordenam. As primeiras referências feitas relacionam-se com o facto de estes povos andarem nus, ou seja, considerações quanto ao aspecto e vestuário depois quanto às casas, interrogando-se se têm cidades, ainda alusões ao trabalho, bem como ao aproveitamento da terra. Este formulário torna-se mais claro e evidente na última edição. Assim, em 1628, referem-se no que respeita à costa ocidental africana e, em concreto, para a Guiné os Jalofos, os Mandigas, os Bijagóis e os Cuamas. A descrição de cada um deste povos não fica, todavia, pelo mero registo das particularidades de cada uma das sociedades africanas, dado que se evidencia com propriedade as suas qualidades, ou seja, a descrição é o retrato do Outro segundo os critérios subjacentes ao Mesmo que o descreve. Os Bijagóis são, deste modo, apresentados como um povo ladrão,41 enquanto os habitantes do reino Melli são considerados inteligentes. "Melli é ainda um reino especial: é rico em trigo, arroz, algodão e marfim, com o que eles negociam. Eles fazem ainda um bom vinho de palmeira. A capital deste reino é Melli, uma vez que as gentes são mais inteligentes do que outros mouros". E continua: "Eles têm os seus templos, padres e professores e foram os primeiros que tomaram a lei maomedana".42 Aqui reside a justificação ao elogio prestado, isto é, precisamente porque conseguem demonstrar uma certa cultura expressa na construção de templos, na existência de padres e professores, bem como na capacidade de transformar a natureza (vinho da palmeira) e de a aproveitar (trigo, algodão), este povo encontra-se num estádio, certamente diferente do dos 38. "[...] halten Mahomets Gesatz/ essen auff der Erden gleich wie andere Sarecenne vnd Türcken. Es wechßt bey ihnne weder Wein/ Weytzen /Gersten noch Habern: aber Hirß/ Bonen vnd Erbsen". Idem, p. Mccccxvj. 39. "[...] zeucht viel Reyß/ essen Hund/ gehen nacket/ halten mahomets Gesattz/ vnnd etlich betten Abgötter an." Idem, p. Mccccxvij. 40. "[...] viel seltzamer Völcker". Idem. 41. Idem, Cosmographia, Basileia, 1628, p. 1662. 42. "Melli ist auch ein sonderbar Königreich: Ist reich an Korn/ Reiß/ Baumwollen unnd Helffenbein/ darmit sie ihren handel treiben. Sie haben ein trefflich guten Wein/ auß de Palmen gemacht. Die Hauptstadt dieses Königreich ist Melli/ da die Leut was kluger sein als andre Moren" Idem. "Sie haben ihre Tempel/ Priester und Professoren/ und sein sie ersten gewesen/ so das Mahometanische Gesetz angenommen". Idem

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povos europeus, mas de possível comparação - e de fácil compreensão. Tal como os europeus, também os africanos realizam um processo evolutivo baseado em várias experiências de apropriação da natureza, transformando-a em cultura. Compreende-se assim que a descrição seja um convoluto da apresentação e enumeração dos valores inerentes ao conceito de cultura. De facto, a cultura de um povo materializa-se, em primeiro lugar, em aspectos primários como vestuário, a construção de casas, ou plantação de cereais, a que se alinham posteriormente elementos como, por exemplo, as armas. Segundo estas características internas poder-se-ia formular, no processo de aculturação, momentos e etapas representativos. Daí, que a apresentação dos povos africanos na Cosmographia sublinhe intencionalmente os diferentes estádios de desenvolvimento, entendidos como imperiosos patamares, no trajecto para a civilização. Mas, no continente africano também se encontrariam sociedades que ainda viviam na animalidade, não podendo, por isso, ser reconhecidos como gentes. É o caso dos habitantes de Borno, sobre o qual se escreve: "O povo aí não tem qualquer religião nem são cristãos, nem judeus nem maomedanos, sobretudo vivem como os animais em comum com as suas mulheres e crianças".43 Um dos elementos oriundos da sua animalidade, seria a falta de religiosidade.44 Estes povos que viviam como animais, sem terem encontrado a espiritualidade chegariam, como se salienta, a ter feições animalescas.45 Um dos exemplos mais representativos oferece-nos Michael Herr que, no seu livro sobre a fauna, alude aos negros africanos que seriam vendidos em Lisboa e, neste contexto, afirma que como animais não se deveriam incluir entre os homens.46 Este formulário descritivo é, simultâneamente, uma definição do Outro. Se alguns dos exemplos referidos no que respeita ao comportamento dos 43. "Das Volck darinnen hat kein Religion/ sind weder Christen/ Juden/ noch Mahometaner/ sonder leben wie das Vieh/ mit ihren Weiberen und Kinderen in gemein." Idem. 44. Esta concepção encontra-se já presente nas obras portuguesas, como, por exemplo, na Crónica dos Feitos da Guiné de Gomes Eanes de Zurara. Veja-se o capítulo 2.2. 45. A comparação a animais é efectuada por diversos autores alemães nas suas relações de viagens, como Andreas Ultzheimer, Warhaffte Beschreibung ettlicher Raysen, Tübingen, 1616, ed. Sabine Werg, Tübingen, Basileia, 1971, p. 118, em que as gentes da costa ocidental africana são consideradas um povo horrível, que afia os dentes tão finos como cães. Michael Herr, Gründtlicher vnterricht/ warhaffte vnd eygentliche Beschreibung/ wunderbarliche seltsamer art/ natur/ Krafft vñ eygenschafft aller vierfüssigen thier..., Estrasburgo, 1546. 46. "[...] unvernüftigen thier und keine menschen gerechnet werden". Michael Herr, Gründtlicher vnterricht/ warhaffte vnd eygentliche Beschreibung/ wunderbarliche seltsamer art/ natur/ Krafft vñ eygenschafft aller vierfüssigen thier..., Estrasburgo, 1546.

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povos ultramarinos seriam julgados de modo compreensivo, outros seriam intepretados como autênticas barbariedades, completamente intolerados. Para se traçar um adequado retrato existem, pois, determinadas regras, determinadas normas por onde se filtra a diferença cultural; como numa balança de um lado apresentam-se as virtudes, no outro prato os vícios. No debuxo deixa-se, consequentemente, transparecer uma certa apreciação e valorização subjacente aos critérios da descrição e caracterização destes povos. O culto dos mortos dos habitantes do reino Bena é, deste modo, compreensível aos olhos do autor: "Quando morre um homem distinto, oferece-se ao morto muito ouro; uma parte recebe o rei, a outra será enterrada com o corpo do morto [...] porque eles acham que o morto precisa desse ouro".47 Enquanto o culto dos mortos dos Buramis se revela uma barbaridade: "Quando o rei morre serão ass assinadas todas as suas mulheres, servos e amigos queridos bem como o seu cavalo preferido e serão enterrados com ele para o servirem na outra vida. Isto também é uso em muitos outros reinos da Guiné. A forma, no entanto, como eles cometem esta barbaridade é ainda mais horrível, pois eles cortam os dedos dos pés e das mãos e picam os ossos durante três horas como num moedor e depois enterram um pau afiado na nuca e isto na presença dos que têm de sofrer a mesma tortura".48 Quanto mais estranha e diferente se apresenta a maneira de ser e viver dos não-europeus, quanto mais difícil se torna compreender o Outro nas suas qualidades humanas. Convém assinalar uma excepção, nomeadamente, na descrição de povos considerados canibais, onde, apesar da clara diferença se deslumbra uma certa familiaridade que resultará talvez do facto de o canibalismo ser um fénomeno desde há muito debatido e conhecido do legado cultural.49 À imagem da costa ocidental juntar-se-á a descrição de uma costa oriental bem diferente, dado que se trata de uma zona civilizada. Na verdade, é

47. "Wann ein fürnemer Mann stirbt/ so wirdt dem todten viel Gold geofferet/ der einen theil nimbt der König/ der andre theil wirdt mit dem todten Leib begraben [...] weil sie meinen der Todte bedörffe dieses Gold." Sebastian Münster, Cosmographia, Basileia, 1628, p. 1665. 48. "Wann diser König stirbt/ so werden alle seine Weiber/ Knechte und liebsten Freund/sampt seinem Leibpferd erschlagen/ und mit ihm begraben/ ihme in dem andern Leben zu dienen. Dieses ist auch in vielen andern Königreich/ in Guinea im brauch. Die weiß aber/ mit denen sie diese grawsamkeit verüben ist noch schrecklicher: dann sie hawen ihnen ehen und Finger ab/ und stossen ihre Gebein gleich als in einem Wirssel/ drey stund lang/ als dann stechen sie ihen hinden zum Nacken ein scharffen stecken hineyn/ und das thun sie in beysein deren/ die gleiche marter auszustechen haben" Idem, p. 1664. Veja-se, p. 1664. 49. Veja-se, p. 1665.

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aqui que se encontram vários reinos todos eles poderosos, como é o caso do rei do Monomotapa, denominado "Imperador do Ouro"50 e também as maravilhosas Terras do Preste João, contribuindo ambos para uma descrição entusiasta e pormenorizada. Tinham-se obtido, finalmente, informações sobre este lendário reino que desde há muito atraía a atenção e a curiosidade dos europeus, não só pela riqueza e poder que se dizia haver nessa terra,51 mas também pela ansiedade e expectativa em relação ao seu povo que se julgava cristão. Um dos aspectos mais centrais e constantes na descrição dos povos africanos está, sem dúvida, relacionado com a sua religiosidade. É o paganismo destes povos, os seus ídolos, a adoração da natureza, as suas cerimónias e usos estranhos que coordenam grande parte da descrição, documentando-se, nos variados relatos, um notório interesse pelas diferentes facetas do sentimento religioso local.52 O encontro entre pagãos e cristãos, entendido como um processo dinâmico,53 oferecia aos gentios africanos a possibilidade de iniciarem uma aprendizagem cultural que adquiria a sua expressão e forma mais claras através da missão apostólica europeia. Na cosmografia munsteriana intenta-se ter em conta cada uma das áreas regionais de África no que respeita ao impacto dos variados diálogos religiosos. Na zona norte do continente já anteriormente conhecida, cristãos e mouros encontram-se irreconciliavelmente frente a frente, sem perspectivas de diálogo, dado que constituem dois assumidos e fortes grupos religiosos. E, se na zona ocidental habitam vários povos que do ponto de vista europeu e cristão aguardam necessitadamente uma ajuda civilizacional, na costa oriental, pelo contrário, os seus habitantes já são considerados representantes de um estádio de civilização mais avançado e, no caso da Etiópia, fazem até já parte da comunidade cristã. É a imagem de uma costa oriental rica, civilizada, frente à de uma costa ocidental quase bárbara,54 que ressalta do esboço regional retido nas 50. "Kayser des Goldes". Idem, p. 1667. 51. Embora se critique que no reino do Preste João não se aproveite totalmente a riqueza dada pela natureza:"und were noch viel reicher/ wann diß Volck nicht so grob/ faul und unver-ständig were zu dem Feldbau und andrer nutzlicher Arbeit", Idem, p. 1671. 52. Veja-se Urs Faes, Heidentum und Aberglauben der Schwarzafrikaner in der Beurteilung durch deutsche Reisende des 17.Jahrhunderts, Zurique, 1981. 53. Sobre a relação pagão - cristão, veja-se Reinhart Koselleck, Zur historisch-politischen Semantik asymmetrischer Gegenbegriff, in: Reinhart Koselleck, Vergangene Zukunft, 2ª ed., Frankfurt, 1984, pp. 211-259. 54. Esta imagem de uma África composta por duas realidades humanas, a costa ocidental e a costa oriental, já se encontra esquissada nas fontes portuguesas, como, por exemplo, em João de Barros, Ásia, Lisboa, 1552, 1 década.

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cosmografias alemãs. Esta certamente uma primeira tentativa de, com base nos dados presentes, transmitir um panorama das várias realidades civilizacionais existentes em África. Na apresentação das diferenças antropológicas dos povos africanos e dos seus estádios de diálogo e de cultura, construiu-se a imagem de um continente que, a partir de então, faria parte da herança cultural mundial. A partir de agora, os habitantes da "New Africa" ordenar-se-iam, segundo a sua identidade, na história da humanidade que até há pouco os não conhecia. Já na edição de 1588 podemos ler: "[...] Ele [Deus] revelou aos homens a grande e larga estrada marítima: Ele distribuiu os homens por toda a superfície da terra e adaptou cada um à maneira de cada terra; pelo que o mouro terá de suportar o calor do céu onde habita e o esquimó ou norueguês terão de sofrer o frio da sua terra, isto é, cada um terá de viver segundo o alimento da sua terra; para alguns não só sem qualquer sabor como ainda prejudicial ao seu corpo. Alguns aqui na nossa terra gostam de beber sangue de cavalo, como fazem os tártaros, ou muitos comem carne de cão, como fazem em África. Quantos não são os povos que não sabem o que é vinho, ou que não tem água doce para beber e ajudam-se com as águas que recolhem do céu. Item quantos não são os povos ao cimo da terra que nada sabem dizer sobre qualquer espécie de cereal e que, pelo contrário, fazem pão de raízes de diferentes ervas ou de peixes da região"55 e continua: "E porque eles estão habituados a viver segundo a maneira da sua terra, vivem assim bem como nós segundo a maneira da nossa terra".56 Sebastian Münster não esconde uma enorme admiração face à diferença cultural agora vinda à luz através das navegações ibéricas. O facto de a humanidade se encontrar dispersa por todo o globo e de cada povo viver de acordo com as qualidades climáticas da sua terra natal surpreenderia,

55. "Er [Gott] hat den Menschen geoffenbart die Straß des grossen vnnd weiten Meers: Er hat die Menschen zertheilt auff dem Boden des ganzten Erdtrichs / vnd einen jeglichen geartet nach der art des Lands darinn erwohnet/ also daß der Mor in seinem Landt tragen mag die Hitz seine Himmels/ vnd der Eyßländer oder Nordwegier erleiden mag die Kelte seines Lands: also mag jeder geleben von der Speiß seines Erdtrichs/ die einem andern nicht allein vngeschmackt/ sonder auch schedlich am leib were. Welcher möcht hie zu Landt Rosszblutt trincken wie die Tartarn thun/ oder Hundsfleisch essen wie etlich in Africa thun? Wie viel sind Völcker die nicht wissen was Wein ist/ ja die nicht süß Wasser haben zu trincken/ die behelffen sich mit den Wassern so sie auffheben von den Thaw des Himmels? Item wie viel sind Völcker auff der Erden die von keinen Korn wissen zu sagen/ sonder Brot machen auß Wurtzlen etlicher Kreuter/ oder auß gedörten Fischen". Sebastian Münster, 1545, folha Mcccxx. 56. "Und die weil sie also gewohnt haben zu leben nach ires lands/ leben sie eben als wol als wir nach art unsern landts." Idem.

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sobremaneira, os cosmógrafos e os seus leitores que, assim, interrogam a magnificência da obra divina e a ordem do mundo.

3.2.2 "Gabinetes de Curiosidades" em Livro Feita a recolha informativa, indispensável para a descrição do mundo nas suas novas dimensões, tornava-se imperioso realizar uma exposição ordenada e adequada do material de acordo com as diferentes áreas do saber. À recolha presidira única e exclusivamente a intenção de compilar tudo o que era novidade, mas durante a aglomeração de informações tinham-se reunido dados de múltiplas origens e diversos conteúdos, pelo que urgia separar, redistribuir e agrupar obrigatoriamente, segundo novos critérios. Isto é: após uma primeira tomada de conhecimento impunha-se sistematizar metodicamente todas as informações segundo a sua natureza e respectiva qualidade informativa; e entre este material escondiam-se importantes e decisivos fundamentos para novas abordagens. A descodificação do verdadeiro significado informativo de cada um dos dados recolhidos contribuiria, na opinião dos homens de letras, indubi-tavelmente para um novo horizonte, uma nova ordem do saber. O contacto com o Outro, com outras naturezas, com outras facetas da humanidade associado a diferentes concepções culturais, exigia, por um lado, uma profunda classificação das observações registadas e, por outro lado alimentava uma discussão e revisão em torno de alguns conceitos fundamentais para o conhecimento e compreensão da humanidade. A descoberta estonteante de novas realidades ofuscara inicialmente a sua dimensão cultural. As fronteiras até agora válidas, perdiam o seu significado, uma vez que só correspondiam ao território de uma pequena parte da humanidade. Os sistemas prevalecentes mostravam-se, deste modo, incapazes de integrar irreflectida e desembaraçadamente a novidade recém-descoberta. O encontro com os africanos, bem como a descoberta e o contacto com povos de outros continentes, põem em causa as concepções antropológicas reinantes. A descoberta da alteridade cultural estimula, deste modo, uma reflexão sobre a origem e a composição humana. O processo civilizacional traçado pelos europeus, segundo critérios por eles institucionalizados, ver-se-ia objecto de uma análise comparativa com o resto do mundo. Tomando conhecimento de muitas outras realidades humanas através das viagens dos Descobrimentos, a cultura europeia começaria um processo de auto-reconhecimento, em que se iria descobrir a si própria, processo este

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que arrancando nos finais do século XVII atingiria o seu esplendor por todo o século XVIII.57 Neste clima de ponderação e de criação de novos quadros culturais reservar-se-ia um lugar privilegiado aos repórteres da novidade. Enquanto o navegador lê os fénomenos directamente no mundo,58 muitos outros terão de recorrer aos textos coetâneos visto que estes lhe proporcionam a possibilidade de observarem o mundo como que através de um binóculo ou de um espelho. "Assim, cavalga [o leitor] valente para o papel, para os escritos de outras pessoas e observa, desta forma, o mundo através de olhos alheios".59 Neste ambiente de curiositas em relação ao orbe terráqueo, a observação e o conhecimento do ser humano constituiem um dos sectores de maior impacte na consciência cultural europeia. As informações sobre outras realidades humanas, sobre diferentes formas de viver, diferentes instituições e diferentes comportamentos, despoletariam um intensivo e largo diálogo civilizacional; a tomada de conhecimento com outras formas de governar, outros credos, outros usos e costumes, outras polícias oferecia não só a possibilidade de conhecer algo de novo e diferente, mas mais ainda: de completar o já conhecido. O confronto com o Outro gerava incondicionalmente um olhar, ou melhor, uma comparação entre a realidade do observador e a outra que se lhe apresenta de novo. E para maior confusão, esta outra não era, por sua vez, uma única; pelo contrário, no orbe terráqueo descobrir-se-iam diversas outras realidades com diferentes facetas e nuances. A comprovação da multiplicidade alertava para um conhecimento de todos povos segundo as suas formas de ser e de estar, numa tentativa de saber, afinal, o que se deveria entender por humanidade. A partir de 1670, os escritos então publicados expressam esta vontade de conhecer comparativamente os diferentes povos do mundo, descrevendo e

57. Veja-se Paul Hazard, Crise da Consciência Europeia (1680-1715), Lisboa, 1971. 58. Por exemplo, Leonhart Rauwolfen, Aigentliche beschreibung der Raiß/ so er vor dieser zeit gegen Auffgang inn die Morgenländer/ fürnemlich Syria, Judiaram, Arabiam, Mesopotaniam, Babyloniam, Assyriam, Armeniam nicht ohne geringe Mühe und grosse Ge-fahr..., Langingen 1581, esclarece que nunca escreveu aquilo que outros já tinham escrito, pelo contrário o seu livro é o resultado daquilo que ele viu, experimentou e observou, pois o mundo é um livro enorme, onde muito se poderá aprender. 59. "So reitet er [der Leser] gleichsam zu Papier/ in den Schriften andrer Personne/ tapfer herum/ und schauet also der Welt/ durch fremde Augen". Comentário dos impressores Johann Andreas e Wolfgang Endter na dedicatória da obra de Erasmus Francisci, Ost- und West- Indianischer wie auch sinesischer lust-und statsgarten, Nuremberga, 1668.

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analisando-os segundo determinados núcleos temáticos. Nestas obras já não é atribuído qualquer significado aos limites geográficos, pois agora são as características culturais de cada povo e região que devem aparecer em primeiro plano. Quer se trate da Abissínia ou da Pérsia, do Congo ou da China, o que importa são as "coisas dignas de relevo",60 ou seja as curiosidades típicas destes reinos de além-mar. Um dos exemplos mais significativos do que poderemos chamar de um estudo histórico-cultural é a obra de Erasmus Francisci Neu-polirter Geschicht-Kunst und Sitten-Spiegel ausländischer Völker.61 Neste seu livro, publicado precisamente no ano de 1670, o autor aborda seis rubricas que classificou como representativas da identidade cultural. A primeira parte é uma mera ilustração de histórias desconhecidas ou de casos notáveis. Surgem, deste modo, descrições de batalhas, cercos, lutas navais ocorridos em diferentes espaços territoriais ou em diferentes épocas históricas. Ao abordar os temas, Erasmus Francisci selecciona aspectos mais representativos e carismáticos da temática em questão - aspectos estes que recolhe na leitura de obras, entre estas portuguesas -,62 método que irá prevalecer por toda a obra. Ao abordar "As ordens da polícia e da guerra, usos e hábitos, virtudes e vícios",63 temática a que dedica a segunda parte do seu livro, Erasmus Francisci apresenta diversas modalidades de hábitos culturais como as formas de cumprimento, os nomes, a hospitalidade, a honra, leis, as penas jurídicas, as diferentes utilizações de moedas ou de organizar o comércio espalhadas pelo mundo. Todos estes núcleos temáticos serão apresentados, ao leitor, segundo exemplos dos diferentes países. A par e par, casos chineses, congolenses, etíopes ou guineenses ilustram as manifestações culturais em questão, isto é, o exemplo vale por si e por aquilo que representa.

60. O conceito curiosidade adquire diferentes significados, segundo os múltiplos contextos em que é utilizado. Tem a ver com observação dos viajantes, a curiosidade dos humanistas e cientistas ou ainda a paixão dos coleccionadores. Veja-se Jean Céard (Ed.), La Curiosité à la Renaissance, Paris, 1986. 61. Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht-Kunst-und Sitten-Spiegel ausländischer Völcker, Nuremberga, 1670. (Um espelho novo e polido da história, arte e usos dos povos estrangeiros) Sobre Erasmus Francisci, veja-se Gerhard Dünnhaupt, Das Oeuvre des Erasmus Francisci (1627-1694) und sein Einfluß auf die deutsche Literatur, in: Daphnis, Zeitschrift für mittlere deutsche Literatur 6 (1977), Livro 1-2, pp. 359-364. 62. O autor cita, por exemplo, para a descrição de uma batalha um exemplo extraído da obra de Francisco Álvares (veja-se, idem, p. 161) e para um cerco refere um caso passado no Congo inserido no texto de Duarte Lopes (veja-se idem, p. 191). 63. "Der Policey= und Kriegs=Ordnungen/ Gebräuchen/ Sitten und Gewohnheiten/ Tugenden und Laster". Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht-Kunst-und Sitten-Spiegel ausländischer Völcker, Nuremberga, 1670, p. 283.

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No terceiro bloco temático, Erasmus Francisci escreve sobre os diferentes credos, exemplificando cerimónias, sacramentos, serviços religiosos não cristãos, até à descrição de edíficios religiosos ou imagens; tudo isto tendo em mente um equacionamento das diferentes vivências religiosas. O facto de as artes e a ciência se cultivarem igualmente em outros países é o assunto de um outro capítulo de Erasmus Francisci, onde enumera os contributos da ciência pagã na medicina, na matemática, na caligrafia, na oratória, na poesia, na música, na pintura, como ainda entre muitos outros ofícios. Os motivos para esta sua análise revela-os o próprio autor no seu prólogo, expondo na primeira frase desde já a questão básica da sua obra: "Conhecer a Deus e a si próprio será em todos tempos a maior ciência".64 E, desde logo, o autor adianta que este propósito só se alcançará quando se toma contacto com outros povos, pois para que se obtenha um verdadeiro e perfeito conhecimento de si próprio é necessário conhecer Outros. Só uma comparação pode detectar as faltas. Fomentando uma simultânea suplantação através do exemplo dado pelo Outro, ou comprovando a rectidão de alguns comportamentos, certifica-se a forma de viver de quem observa. Mas, convém inquirir quem poderiam ser este(s) Outro(s). Quando Francisci fala de Outros, a quem se refere? Com efeito, Francisci coloca, de um lado os europeus-cristãos, que designa por "nós" e, do outro lado os estrangeiros ou, mais concretamente, os povos bárbaros. Estes encontram-se, na sua opinião, na China, no Japão, em África, na Turquia e na Índia. E, mais uma vez, sublinha que conhecer os Outros é mais útil do que a descrição do próprio ou do já conhecido, pois "O que é conhecido ou o que está perto necessita de pouca pesquisa"65 ou "Não saber nada da barbárie é parte da barbárie".66 A observação de povos bárbaros fornecerá, por conseguinte, a seu ver, como que um espelho de advertência, em que as falhas dos povos europeus poderão ser rapidamente reconhecidas, isto é: "aos ingleses a gula, aos franceses a dança, aos italianos a avidez desordenada e abominável, a outros outra coisa".67

64. "GOTT/ und die sich selbsten kennen/ bleibt allezeit die höchste Wissenschaft". Idem, prólogo. 65. "[...] was bekandt/ oder vor der Hand ist, braucht wenig Nachforschens". Idem. 66. "Nichts barbarisches [...] wissen/ist kein geringes Stück/ von der Barbarey". Idem. 67. "[...] den Engelländern das Fressen/ den Franzosen das Tanzen/ den Italiänern manche unordentliche und abscheuliche Begierden, andren anders was". Idem.

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192 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES

O autor questiona ainda qual o critério inerente à distinsão entre europeus e bárbaros e também bárbaros entre si. Algumas reflexões levam-no a afirmar, que o factor de apreciação estaria no que ele denomina de artes, entendidas como faculdades humanas capazes de transformar a natureza e de a tornar útil. Os europeus seriam aqueles que naturalmente "triunfaram sobre todos os outros nas ciências e artes",68 e entre os povos cristãos seriam os alemães que ocupariam um lugar particular, nomeadamente, na pintura. Francisci prossegue afirmando, que o domínio das artes destruiria a selvajaria, de forma que seria impossível encontrar alguém que fosse, ao mesmo tempo, selvagem e conhecesse as artes. Entre estes dois estádios, selvajaria e domínio das artes, existiriam, contudo, estações intermédias resultantes do processo histórico, a que cada povo estaria submetido. As artes seriam, deste modo, o produto da realização de experiências contínuas, determinando, por isso, o tipo de estádio atingido. Encontrar-se-iam, por conseguinte, povos que quase "poderiam competir o [seu] mérito com os europeus".69 Aqui seriam de referenciar os povos orientais, especialmente, a China e o Japão, uma vez que "encontraram-se também nos seus reinos muitas coisas, sobre as quais nós ouvimos com admiração".70 Mas, em contraposição, saber-se-ia de muitos outros povos, cuja relação com a natureza seria pouco diferente da dos animais, visto que só tinham uma "uma certa ordem de polícia"71 e "algumas artes, bem poucas e rudes",72 que lhes permitiam minimamente alimentarem-se e protegerem-se. Além disso, viveriam com falsos serviços religiosos e sacríficios ao diabo sem conhecerem a palavra de Deus. Após a recolha de exemplos e da respectiva comparação, Francisci chega à conclusão, de que os europeus tanto no seu contacto e aproveitamento da natureza, como no diálogo com Deus, se encontram numa posição superior à dos bárbaros. Vista como o caminho da humanidade num diálogo frutificante com a natureza, a cultura seria um processo de aprendizagem e de aperfeiçoamento cultural que cada povo trilharia consoante as suas capacidades e interesses; e, a seu ver, os europeus tinham alcançado nesta marcha cultural uma posição incomparável.

68. "[...] mit Wissenschafften und Künsten über alle andre/ triumphiren" 69. "[...]mit den Europaeischen/ um den Vorzug streiten können" Idem. 70. "[...] hat man gleichwol auch/ in ihrem Reiche/ viel Sachen gefunden/ davon wir gleichfalls/ nicht ohne Erstaunung hören" Idem. 71. "[...] gewisse Policey-Ordnung". Idem. 72. "[...] einige/ wiewol wenige und grobe Künste". Idem.

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USOS E COSTUMES DE TODO O MUNDO 193

Na obra de Erasmus Francisci já não se expõe em primeiro plano a novidade/ a diferença, mas antes as repercussões na consciência cultural europeia advindas do contacto com a alteridade civilizacional. Para Fran-cisci, ao encontrarem e dialogarem com o resto do mundo, os europeus obtiveram a comprovação das suas experiências históricas; tal facto assegura-lhes a certeza de pertencerem a uma cultura de destaque. Este seu intento de formular uma história da humanidade fundamenta-se num vasto número de relações, que o autor cita, quer no seu texto, quer nas suas notas de rodapé. Na apresentação exemplificativa dos povos africanos e asiáticos afluem entre os textos mencionados, nomes portugueses, dado que também aqui estas obras se apresentam como uma das fontes vitais. Verificamos, assim, que também neste estudo se manifesta, a importância do texto de Francisco Álvares para a aquisição e selecção dos dados relativos à Etiópia, ou ainda o texto de Duarte Lopes para o reino do Congo. As obras portuguesas estão, assim, também presentes na fase de classificação do material; a sua riqueza informativa significa um saber indispensável para o banco conceptual a erigir. O empreendimento de novas abordagens só seria possível em face da recolha anteriormente realizada em obras, como as relações de viagens, onde entre informações de diversa natureza, desde dados referentes a usos e costumes, a instituições até então desconhecidas, ou a actividades comerciais inovativas, se poderiam encontrar exemplos ilustrativos, respostas elucidativas consoante as temáticas ou as interrogações estabelecidas. Nestas obras estavam armazenados os acontecimentos e/ou conhecimentos necessários para a presente organização temática. Já anteriormente, nomedamente em 1663, Erasmus Francisci iniciara este seu método de recolha selectiva de informações. Na obra Die lustige Schau= Bühne von allerhand Curiositäten73 aponta ao longo de três volu-mes "descobertas estranhas, histórias extraordinárias e discursos informativos e educativos"74 sobre assuntos históricos políticos e institucionais. Na terceira parte, em que relata sobre os monumentos religiosos e espirituais, peregrinações, entre outros, acontecimentos, informa sobre o poder e o vestuário de povos não-europeus, em especial, dos potentados africanos.

73. Erasmus Francisci, Die lustige Schau= Bühne von allerhand Curiositäten, 3 vols, Hamburgo, 1663-1671-1673. 74. "[...] sonderbare Erfindungen/ merckwürdige Geschichte/ Sinn= und Lehr= reiche Discursen". Idem, prólogo.

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194 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES

Mas não é unica exclusivamente nas obras de Francisci que encontramos este propósito de reunir apaixonadamente dados sobre a realidade humana. Também o escritor e historiador Eberhard Werner Happel pretende elaborar uma colecção de "coisas estranhas" e extraordinárias. Na verdade, e uma vez que o mundo está cheio de matéria curiosa, Happel considera fundamental debruçar-se sobre as origens. Daí o lema: "Feliz é aquele que é capaz de reconhecer as origens das coisas" que coloca sob as Gröste Denckwürdigkeiten der Welt oder sogenannte Relationes Curiosae.75 Ao longo de vários volumes, Happel reune histórias, exemplos, verdadeiros testemunhos das curiosidades e particularidades da vida humana num único intento: recolher exemplos da realidade humana. Daí que, ao longo da sua obra, fale do sistema jurídico na Guiné e na Etiópia; da linguagem dos hotentotes; da escravatura em África; das plantações de açúcar na ilha de S. Tomé; da monarquia do Preste João, das diferentes cores de pele dos povos africanos ou da alimentação em Angola, para citar alguns exemplos respeitantes ao continente africano. De exemplo em exemplo, Happel constrói a sua galeria de curiosidades. Apostando no benefício que a sua obra poderá dar aos seus leitores, o autor chega mesmo a afirmar que estes exemplos e histórias ajudariam a que homens, que vivessem como animais irracionais, se tornassem verdadeiros seres humanos. Em 1688, Happel publica o seu Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten ung Geschichten wohlversehene Schaß-Kammer,76 que, como se menciona no título, intenta apresentar um manancial documental da realidade extra-europeia ou exótica pelo que destaca "[...] as nações asiáticas, africanas e americanas dos persas, indios, chineses, tartaros, egípcios, abissínios, canadianos, da virginia, da florida, mexicanos, peruanos, chilenos, magalânicos e brasileiros etc. Segundo os seus reinos, polícias, vestuários, costumes e serviços religiosos".77 Happel sublinha decididamente, neste seu escrito, o carácter inovador das nave-gações marítimas europeias; graças a estas ter-se-iam explorado novas zonas do mundo que, como Francisci, considera de vital importância para

75. E. G. Happel, Gröste Denckwürdigkeiten der Welt oder sogenannte Relationes Curiosae, 5 vols, Hamburgo, 1683-1691. "Glückselig ist der Mensch von jedermann zu nennen/ Der auch den Ursprung kan der Dinge recht erkennen". 76. Happel, Thesaurus Exoticorum oder eine mit Außländischen Raritäten ung Geschichten wohlversehene Schaß-Kammer, Hamburgo, 1688 77. "[...] die asiatische, africanische und americanische Nationes der Perser/ Indianer/ Sinesen/ Tartarn/ Egypter/ Abysiner/ Canadenser/ Virgenier/ Floridaner/ Mexicaner/ Peruaner/ Chilenser/ Magellanier und Brasilianer, etc. Nach ihren Königreichen, Policeyen, Kleydungen/ Sitten und Gottes= Dienst."

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o conhecimento humano. Assim, defende a necessidade de conhecer de-talhada e pormenorizadamente estes povos estrangeiros que a empresa marítima deu a conhecer em terras nunca vistas. Assim, também ele é da opinião que se deveriam analisar exaustivamente os usos e costumes destes outros povos. E isto mesmo quando forem bárbaros, pois como nos diz, muitas vezes, "debaixo da muita erva selvagem dos usos e costumes horríveis e cruéis poder-se-á encontrar uma planta virtuosa e saudável; entre rudes espinhos poderia-se encontrar rosas graciosas e bem cheirosas, que nos fazem a nós europeus zelosos de tão elogiosas qualidades".78 Happel exprime uma profunda admiração pelas viagens de Descobrimentos, considerando a chegada dos europeus ao Oriente como um dos mais importantes eventos da humanidade. Eis as suas palavras: "Meu Deus! Mas que coisa estranha e maravilhosa avistaram os europeus na sua primeira entrada na China e no Japão".79 E, neste sentido, considera que, para além da descrição e apresentação do mundo, não se deverá desprezar o comunicado dos famosos descobridores. Com este prestimoso depoimento poder-se-ia constatar que, mesmo entre os povos mais selvagens, se testemunharia uma certa inteligência ou civilização, e que mesmo, sob uma maneira de viver e estar simplória, se escondia alguma polícia.80 Happel pretende assim, com esta sua obra, esquissar um "Schaß= Kammer Außländischer Raritäten und Geschichten", um tesouro de curiosidades, raridades e histórias estrangeiras. Com a ajuda da literatura de viagens, como refere no seu prólogo, Happel anota os usos e costumes do Oriente, da África e da América. Aos coleccionadores de informações, que se deram ao trabalho de descrever todos estes dados nas suas relações de via-gens, o entusiasmado e deleitado escritor não pode deixar de expressar um profundo agradecimento.

78. "[...] unter dem häuftigen Unkraut solcher bissen und grausahmen Gebräuchen und Sitten auch manche gesunde Tugend=pflanze; unter den rauhen Disteln/ etliche lieblich riechende Rosen antreffen/ welche uns Europeer eyferig machen zu einigen lobwürdigen Eigenschafften/ die man an den Unglaübigen rühmet". 79. "Mein Gott! Was für setzahme wunder=Dinge erblicketen die Europeer bey ihm ersten Eintritt in Sina und Japan?" 80. "Nicht weniger zu schätzen/ daß neben Beschreibung und Vorstellung der Welt/ die berühmte Erkündiger derselben zufordert den Gottes=dienst/ und Regierung aller Volcker auß sonderbahrer Erfahrung uns mitgetheilet/ und wie auch bey den wildesten eine gewisse Arth der Klugheit und Civilität zu finden sey/ so daß/ obgleich ihr leben und Wandel uns umgereimbt und wiedersinnig vorkommet/ sie gleichwohl in ihren Handlungen und vornehmen/ sonderlich aber in ihrer Policey und Staats=Verrichtungen nicht gemeine An-zeigungen ihrer Vernunft=Un=wissenheit an sich vermecken lassen".

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196 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES

Com um interrogatório previamente elaborado, Happel percorre o mapa-mundi de região em região; após algumas notas introdutórias sobre a situação geográfica, prossegue abordando o aspecto fisionómico dos habitantes, a alimentação, o vestuário - por vezes refere-se às armas utilizadas-, o casamento, as relações entre o homem e a mulher, tecendo ainda algumas informações sobre a educação dada às crianças, a morte, onde alude às cerimónias fúnebres, o luto dos familiares, a religião e, por fim, o governo do país em questão, referindo a sucessão dinástica e a justiça como últimas alíneas deste interrogatório. Seguindo este esquema, Happel anota os usos e costumes de cada região, quer dizer, a polícia de cada povo. Com efeito, este questionário tem por mira aplicar uma norma que ajudará no conhecimento de cada povo e, mais, na apreciação do seu estádio civilizacional. E ao instaurar um esquema interrogador, o autor estabelece o seu próprio modelo cultural como padrão. Nesta caminhada para a civilização, Happel encontra várias plataformas: ao apresentar um mouro da Guiné, escreve "[...] andam completamente nus, sem que usem nem calças nem meias81 e acrescenta "Outros que tem um pouco mais de vergonha ou que são mais civilizados usam um pequeno pedaço de um lenço enrolado que lhe tapa metade do corpo.82 Gostaríamos de salientar dois aspectos, neste seu depoimento, por um lado, a apreciação de que os íncolas da Guiné andam nus é sublinhada pelo comentário, de que nem vestem calças nem meias, por outro lado destaca-se que outros teriam mais maneiras - mais civilizado - pois usam pelo menos um lenço que em parte os tapa. É interessante realçar que a descrição feita inclui desde já uma reflexão resultante da comparação com a norma que é conhecida. No questionário sobre o vestuário existem determinadas concepções sobre o que é adequado, pelo que não se encontrando um sinónimo responde-se pela negativa: nem calças ou meias. Mas a diferença - andar nu - é tão díspare ao padrão, que se faz a observação apreciativa - outros usam o lenço. Com base neste exemplo, podemos verificar que o autor procura detectar a existência de vários estádios de polícia reflectidos segundo a norma conhecida, a norma europeia ou, neste caso, a alemã. Exemplos como este encontram-se ao longo de todo o texto, fazendo parte da apresentação da outra realidade, que subentende simultâneamente a sua apropriação e integração no horizonte conhecido.

81. "[...] gehen nackt und bloß [...] tragen weder Hosen noch Strümpffe" Idem, p. 62 82. "Andere/ die ein wenig schamhafft= und Sittiger sind/ haben nur ein kleines Stück von groben Tuch umb dem Leib geschlagen/ daß derselbe nur halb bedeckt ist". Idem, p. 62.

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A obra de Happel é produto de uma época amante das colecções como ainda podemos comprovar em outros escritos coevos.83 Assim, a sede de coleccionar84 leva a que se possam recolher histórias,85 os principais acontecimentos do mundo,86 material ou diversas mercadorias,87 fenómenos da natureza,88 dinastias ou estados89 provérbios e porque não exemplos da maneira de ser e estar de povos não-europeus.90 O encontro com outras culturas constitui um poderoso estímulo de reflexão e rectificação de ideias feitas no decurso dos séculos anteriores. A cultura não era então um simples produto histórico, como se tinha pensado, mas sim um produto histórico de conteúdo variável no espaço e

83. Happel publicou mais tarde uma obra geográfica, intitulada E.G. Happel, Mundi mirabilis Tripartiti, Oder wunderbaren Welt, in einer kurzen Cosmographia fürgestellt, Ulm, 1708. 84. Sobre as colecções e os gabinetes de curiosidade, veja-se os estudos de Renate von Busch, Studien zu deutschen Antikensammlungen des 16. Jahrhunderts, Tübingen, 1973; Jill Bepler (Ed.), Barocke Sammellust, Die Bibliothek und Kunstkammer des Herzogs Ferdinand Albrecht zu Braunschweig Lüneburg (1636-1687), Wolfenbüttel, 1988; Hermann Kellenbenz, Augsburger Sammlungen, in: Welt im Umbruch, Augsburg zwischen Renaissance und Barock, vol. I., Augsburgo, 1980, pp. 76-87; Monika Kopplin, "Was frembd und seltsam ist", Exotica in Kunst- und Wunderkammern und "Amoenitates exoticae", Exotische Köstlich-keiten im Zeitalter des Barocks, in: Exotische Welten, Europäische Phantasien, Estutgarda, 1992, pp. 296-345. 85. Como por exemplo, Georg Philipp Harsdörffer, Der Grosse Schau-Platz jämmerlicher Mord-Geschichte, Hamburgo, 1656 e Georg Philipp Harsdörffer, Der Grosse Schaupaltz Lust- und Lehrreicher Geschichte, Hamburgo, 1664. 86. [Hiob Ludolf], Allgemeine Schaü= Bühne der Welt/ oder: Beschreibung der vornehmsten Welt= Geschichte..., Frankfurt/ M., 5 vols., 1689-1731. 87. Veja-se, Georg Niclaus Schuß, Neu=eingerichtete Material= Kammer: Das ist Gründliche Beschreibung aller fürnehmsten materialen und Specererey so wohl auch andrer guter ung gemeiner Waaren..., Nuremberga, 1672. Como, por exemplo, Habitvs Praecipvorvm popvlorvm... Trachtenbuch: Darin fast allerley vnd der fürnembsten Nationen/ die heutigs tags bekandt sein/ Kleidungen/ beyde wie es bey Manns vnd Weibspersonen gebreuchlich/ mit allem vleiß abgerissen sein/ sehr lustig vnd kurßweilig zusehen, Nürnberg 1576 ou Abraham de Bruyn, Omnium poem gentivm imagines, s.L. [Colónia], 1577. 88. Adam Olearius, Gottorssische Kunst=Kammer / worinnen allerhand ungemeine Sachen/ so theils die Natur/ theils künstkiche Hände hervor gebracht und bereit, s.L., 1674. 89. Friedrich Leutholf von Frankenberg, Der Jztregirenden Welt große Schubühne/ auf welcher die izziger Zei in blühle stehenden Keiserthümer/ Königreiche/ Frei Fürstenthümer/ und Frei=Staaten/ nach deren allerflits Uhrsprunge..., Nuremberga, 1675; Francisco Nigrino, Schauplatz der gantze Welt/ oder Summarische Vorstellung aller Königreiche/ Länder/ Inseln/ Städt und Vestungen..., Nuremberga, 1678. 90. Aegidium Albertinum, Der Welt Tummel..., Munique, 1612, e [Tomaso Garzoni de Bargnacavallo], Piazza Vniversale, das ist: Allgemeiner Schauwplatz/ oder Marckt/ vnd Zusammenkunst aller Professionen/ Künsten/ Geschäfften/ Händlen vnd handtwercken/ so in der ganßen Welt geübt werden..., Frankfurt, 1619 e 1659; esta última edição com ilustrações do conceituado artista e gravador Jobst Amann.

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no tempo. Daí que se procurem as condicionantes explicativas e intervenientes no progresso da realidade histórica. O encontro e conhecimento de diversos tipos de sociedades e culturas exigem razões explicativas filosóficas convincentes. Como vimos, Erasmus Francisci responde a esta questão afirmando serem as artes que condicionam o desenvolvimento de um povo e que põem em marcha a motricidade histórica. De degrau em degrau - formula-se frequentemente a imagem de uma cadeia ou escada - o homem será cada vez mais capaz de tirar partido da natureza e de a transformar para seu próprio benefício. É, por conseguinte, um processo de aprendizagem, de acumulação de conhecimentos que coordena o desenvolvimento cultural de um povo. Este facto explicaria a coexistência de diferentes sociedades em diferentes momentos da sua caminhada da barbárie para a polícia. Já, na obra de Sebastian Münster, tinhamos aferido que a apresentação de outros povos se subordinava a determinados critérios explicativos e orientadores na procura e definição de cultura. Sebastian Münster chega a afirmar que cada país viveria segundo a região climática que habita. Esta seria igualmente uma ideia muito defendida, em especial, por autores franceses, já desde meados do século XVI. Com efeito, os letrados demarcavam uma influência climática nas diferenças culturais.91 Este relativismo cultural, em que o desenvolvimento de uma sociedade dependeria da situação geográfica teria muitos adeptos, entre eles, o conceituado filósofo Jean Bodin. Na sua opinião, o clima mais quente ou mais frio influenciaria indubitavelmente o temperamento de um povo, pois determinaria uma maior ou menor actividade do intelecto.92 Esta sua opinião seria criticada, por exemplo, por Johan Gottfried Meister93 que, tal como Francisci ou Happel, defende ser a educação, o contacto com a família, as conversas o elemento decisivo para a formação de "un bon esprit". Enquanto uma tese considera que o homem é o construtor da sua própria existência, pois tem as capacidades necessárias para através de um processo educativo alcançar a cultura, a teoria do clima vê o homem deter-

91. Ver Christophoro Besoldo, De natura Popvlorum, eisvsqve pro loci positu, temporisq decursu variatione, Tübingen, 1619. 92. Jean Bodin (1530-1596) formula a sua tese política e antropológica em Les Six Livres de la République, Paris, 1576. Cf. Margaret T. Hodgen, Early Antropology in the Sixteenth and Seventeeth Centuries, Philadelphia, 1964, pp. 275-329. 93. Veja-se, em crítica a Jean Bodin, a obra de Johan Gottfried Meister, Unvorgreiffliche Bendancken von Teutschen Epigrammatibus, in deutlichen Regelen und annehmlichen Exemplen/ nebst einen Vorbericht von dem Esprit der Deutschen, Leipzig, 1698, p. 2.

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minado, desde o início, por condições e factores exteriores que coordenam o seu futuro.94 Em ambas as teses constatamos, todavia, a tentativa de encontrar uma base explicativa para as diferenças culturais existentes entre os povos da terra. Da diferença parte-se à procura das características similares na expectativa de compreender os horizontes do saber e de tecer uma linha evolutiva da humanidade. De facto, autores como Erasmus Francisci e Eberhard Werner Happel intentam discernir e valorizar as manisfestações de cada paisagem cultural, apresentando lado a lado exemplos de como um povo come, se veste, guerreia, constrói, crê, adora, administra, castiga e educa no intuito de detectar, na diferença, vectores de similitude cultural. Encontrados os diferentes estágios do processo evolutivo para a civilização, seria possível reconstruir a cadeia cultural e integrar os povos não-europeus na história mundial. Um dos processos mais utilizados para a traçar será estabelecer paralelos com a antiguidade e com os primórdios da história europeia. Com efeito, no início do mundo também os povos andariam nus, muitos, entre eles, os germanos teriam sido canibais e incineravam os seus mortos, pelo que não seria de admirar encontrar este uso entre os índios.95 Assim antigamente havia os antropófagos agora os cafres; e os hotentotes passariam a ser os trogloditas do século XVII, pois simbolizavam um povo ainda nos inícios da passagem da selvajaria para a cultura, tal como os trogloditas na Idade Clássica.96 Ao recolher e coleccionar os usos e costumes dos povos da terra, os eruditos reflectem sobre a condição humana, bem como sobre as etapas a percorrer para atingir a civilização; e a norma para se alcançar o cume deste caminho é, na opinião dos autores do século XVII, a europeia.

94. Esta tese viria ainda a ser defendida por Montesquieu. Sobre este tema, veja-se "Die Herrschaft des Klimas und die Beherrschung der Welt. Montesquieus Antropogeographie. In: Karl- Heinz Kohl, Entzauberter Blick. Das Bild vom Guten Wilden, Frankfurt/ M., 1986, pp. 109-120. 95. Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht= Kunst- und Sitten= Spiegel ausländischer Völcker, Nuremberga, 1670, p. 1520 defende esta opinião. 96. Veja-se, por exemplo, Des Alt- und Neuen bekandten Welt=Kräyses Abbild= und Beschreibung nach Anleitung der von Hn. Johann Strubio verfertigter und von Hr. Joahnn Bunone erleiterter, Frankfurt, 1694, pp. 135-137.