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3 Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico Desde que Aristóteles, enquanto descrevia o funcionamento do diafragma humano em As partes dos animais, observou que “o homem é o único animal que ri” (ALBERTI, 2002:50), há quem diga que a capacidade de compreender e solucionar as estruturas lingüísticas, visuais, sociais e culturais que compõem o humor é uma das poucas e valiosas qualidades que nos diferenciam dos outros seres vivos. No entanto, como veremos, fazer ou achar graça de um enunciado é, antes de qualquer coisa, sentir prazer e comunicar. Se no papel de comunicador tomamos como objetivo a aprovação por meio do riso (ou, ao menos, a assimilação do humor presente no enunciado), como receptores da mensagem podemos aprová-la ou não, dependendo basicamente do seu sucesso em nos extrair do plano imediato para um mundo entre o sentido e o absurdo num processo de compreensão da língua, da imagem ou da identificação com valores sócio-culturais ali contidos. Nesse sentido, achar graça de alguma coisa é algo consideravelmente sensível a fatores sócio-culturais. Alison Ross em The language of humour afirma que “é difícil para o humor cruzar fronteiras temporais e de grupos sociais — o humor envelhece rápido como a moda, e freqüentemente depende de culturas e atitudes particulares.” (1999:02). Freud, em seu estudo sobre o chiste, caminha nesse mesmo sentido quando observa que “Grande quantidade dos chistes lançados à circulação percorre (...) um curso vital em que a uma época de florescimento sucede outra de decadência e, depois, o total esquecimento.” (1905:124). Esse é apenas um dos inúmeros níveis de complexidade que dificultam uma compreensão muito sistemática do humor. De forma geral, entende-se que o humor detém infindáveis facetas como o cômico, a ironia, o cinismo, o sarcasmo, o chiste, entre muitas outras; e cada uma dessas facetas possui, por sua vez, qualidades, características e complexidades próprias. Cabe aqui, entretanto, esclarecermos que não faz parte do escopo deste capítulo um

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Page 1: 3 Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste … · humor é uma das poucas e valiosas qualidades que nos diferenciam dos outros seres vivos. No entanto, como veremos,

3 Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico

Desde que Aristóteles, enquanto descrevia o funcionamento do diafragma

humano em As partes dos animais, observou que “o homem é o único animal que

ri” ( ALBERTI, 2002:50), há quem diga que a capacidade de compreender e

solucionar as estruturas lingüísticas, visuais, sociais e culturais que compõem o

humor é uma das poucas e valiosas qualidades que nos diferenciam dos outros

seres vivos. No entanto, como veremos, fazer ou achar graça de um enunciado é,

antes de qualquer coisa, sentir prazer e comunicar. Se no papel de comunicador

tomamos como objetivo a aprovação por meio do riso (ou, ao menos, a

assimilação do humor presente no enunciado), como receptores da mensagem

podemos aprová-la ou não, dependendo basicamente do seu sucesso em nos

extrair do plano imediato para um mundo entre o sentido e o absurdo num

processo de compreensão da língua, da imagem ou da identificação com valores

sócio-culturais ali contidos.

Nesse sentido, achar graça de alguma coisa é algo consideravelmente

sensível a fatores sócio-culturais. Alison Ross em The language of humour afirma

que “é difícil para o humor cruzar fronteiras temporais e de grupos sociais — o

humor envelhece rápido como a moda, e freqüentemente depende de culturas e

atitudes particulares.” (1999:02). Freud, em seu estudo sobre o chiste, caminha

nesse mesmo sentido quando observa que “Grande quantidade dos chistes

lançados à circulação percorre (...) um curso vital em que a uma época de

florescimento sucede outra de decadência e, depois, o total esquecimento.”

(1905:124). Esse é apenas um dos inúmeros níveis de complexidade que

dificultam uma compreensão muito sistemática do humor. De forma geral,

entende-se que o humor detém infindáveis facetas como o cômico, a ironia, o

cinismo, o sarcasmo, o chiste, entre muitas outras; e cada uma dessas facetas

possui, por sua vez, qualidades, características e complexidades próprias. Cabe

aqui, entretanto, esclarecermos que não faz parte do escopo deste capítulo um

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estudo detalhado do humor como um todo. Além disso, parece-me ser impossível

engaiolar o humor para estudá-lo como um roedor de laboratório, mas identificar

conjuntos de características sempre associadas a esse fenômeno sem dúvida se

configura uma tarefa mais palpável. Como bem articula a historiadora Verena

Alberti:

“Se hoje situa-se o riso do lado do impensável, daquilo que revela ao pensamento a necessidade e a impossibilidade de ultrapassar seus limites, parece-me que o próprio pensamento não pode mais defini-lo e que não é mais possível uma teoria do riso. Ou melhor: só será possível uma teoria do riso que tiver por objetivo definir o riso a partir das suas positividades finitas do pensamento, procurando sua ‘essência’, seu ‘fundamento’, seu ‘mecanismo’ etc.” (ALBERTI, 2002:24).

Sendo assim, como já foi colocado num outro momento deste trabalho, o

que aqui se propõe é a identificação de como o humor geralmente se mostra

presente quando embutido em produtos resultantes do design gráfico. Em outras

palavras, nosso objeto de estudo, neste capítulo, é menos o humor como

“entidade”, como categoria geral, e mais da ordem de como um humor específico

se caracteriza numa linguagem específica — a do design gráfico. Ainda assim,

convenhamos, é imprescindível para a saúde do presente texto que dissertemos,

mesmo que abreviadamente, sobre o humor como categoria geral. Sobre o humor

com h maiúsculo.

3.1 O humor com h maiúsculo, ou o humor como categoria geral

Antes de partirmos para o ponto central que concerne esse tópico, é

importante que façamos algumas considerações a respeito do significado e do uso

da palavra “humor” no presente texto a fim de esclarecer ao máximo as palavras-

chave aqui empregadas. Embora seja precisamente esse o sentido com o qual

trabalharemos nesse texto, ainda hoje a palavra “humor” não necessariamente

carrega um significado que remeta à idéia comicidade. Não é incomum ver tal

palavra sendo associada a uma espécie de grandeza que mede a disposição de

ânimo de uma pessoa — afinal, do mau ao bom humor há uma gama mais ou

menos imprecisa de diversos estados de espírito. Há ainda uma terceira e

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(obscura) definição de humor que remete a origem etimológica da palavra: é o

humor como sinônimo de fluido ou líquido num continente organizado. No

Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, encontra-

se “humor” como originário da palavra latina humore, ou, simplesmente,

“líquido” (1932:416). Dessa terceira definição fica fácil associar o humor a

palavras como umidade1 ou húmus, mas certamente é preciso um pouco mais de

criatividade para entender como o humor “líquido” chegou ao humor “veia

cômica”. Vejamos:

No Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, Antônio

Geraldo da Cunha observa que a palavra “humor” etimologicamente dizia respeito

a “cada um dos quatro principais fluidos do corpo que se julgavam determinantes

das condições físicas e mentais do indivíduo” (1992:417). Antenor Nascentes

esclarece ainda mais, descrevendo que

“No tempo em que predominava na medicina a doutrina do humorismo (Galeno), pensava-se que a disposição da pessoa dependia da natureza dos humores orgânicos (sangue, linfa, pituítas e bílis); assim, da secreção da bílis dependia o bom ou o mau humor.” (NASCENTES, 1932:416).

Dessa forma, observando que a palavra “humor” tem sua origem nesse

grupo de fluidos corporais que — de acordo com uma determinada corrente

médica da época — organizavam nossa disposição de ânimo, fica mais fácil

entender a relação entre os significados de humor apresentados. É interessante

notarmos, porém, que há vãos temporais entre os usos correntes desses

significados. Na língua portuguesa, “humor” como fluido corporal e como

“disposição do espírito” surgiu pela primeira vez no século XV , e só por volta do

fim do século XIX a palavra “humor” foi associada a uma necessariamente “boa

disposição do espírito, veia cômica e ironia” (CUNHA, 1992:417). Nessa mesma

época, a variante “humorismo” foi descrita como sinônimo de “comicidade,

espirituosidade, sagacidade” (CUNHA, 1992:417). Em outras palavras, a associação

entre humor e comicidade (exatamente o sentido do qual tratamos nesse trabalho)

nos parece bastante recente, mas apresenta uma clara lógica etimológica.

1 No português falado em Portugal a palavra “umidade” é grafada “humidade”, conservando o radical original.

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Muito já foi escrito sobre o humor. Vários dos maiores pensadores

dedicaram textos, ou ao menos alguns parágrafos, a esse tema demasiadamente

escorregadio. No livro O riso e o risível na história do pensamento (2002), a

historiadora e teórica da literatura Verena Alberti propõe-se a fazer um

mapeamento geral do que já foi dito sobre o humor desde a Antiguidade até o

final do século XX . E deste levantamento bibliográfico nos é interessante verificar

o entendimento do humor a partir do último século, tendo em vista que o recorte

temporal proposto nesse texto ali se localiza. No entanto, antes de entrarmos no

século XX , já que estávamos há pouco tentando (por prudência acadêmica)

apreender os significados do humor, é oportuno que tragamos à frente uma

máxima aristotélica que muito tem a ver com a idéia de humor como fluido

corporal regulador do estado de espírito.

Alberti observa que Aristóteles, ao fazer a famosa assertiva onde “o homem

é o único animal que ri” no livro As partes dos animais (frase que se tornou

recorrente em vários dos estudos do humor a partir dali), articulava um contexto

onde o que estava sendo estudado era mais da ordem da fisiologia: o diafragma

(2002:50). O diafragma, para Aristóteles, separa a parte alta (nobre) e baixa

(menos nobre) do corpo. Então, os humores, ou fluidos corporais das regiões

periféricas ao diafragma, agiam nessa membrana separadora provocando

perturbações no raciocínio e na sensibilidade. Nesse sentido,

“Nota-se que a posição mediana do diafragma confere-lhe um estatuto particularmente importante, pois ele encerra as especificidades do alto (do pensamento, da sensibilidade) e do baixo (uma vez que trai os humores exalados pela atividade digestiva).” (ALBERTI, 1999:50). Ainda para Aristóteles, o calor dos humores e a finura da pele humana

permitem que a partir do diafragma manifestem-se as cócegas, que, por sua vez,

provocam o riso. E é na construção dessa lógica do funcionamento do diafragma

que Aristóteles coloca o homem como o único animal que ri, ou que o riso é

próprio do homem (ALBERTI, 2002:50).

Embora, de forma geral, os textos sobre humor sejam bastante diversos e

heterogêneos em forma e conteúdo, Alberti parece concluir que, refletindo a

máxima de Aristóteles, “Durante muito tempo, saber o que é o riso foi desvendar

os mistérios de uma faculdade humana marcada pela superioridade em relação aos

animais e pela inferioridade em relação a Deus.” (2002:40). Alberti ainda chega a

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identificar que a freqüência com que se coloca o riso como pertencente a uma

pretensa “natureza” humana pode ser resultante de estudiosos embaraçados

“diante da vontade de situá-lo [o riso] entre as manifestações de libertação da ordem estabelecida — rimos todos juntos da norma — e a constatação de que não raro é a afirmação mesma da ordem que está em jogo — as piadas racistas, por exemplo, não nos unem contra norma. Para solucionar esse impasse muitas vezes caracteriza-se o riso como fenômeno sobretudo ‘humano’: ele encerraria concomitantemente os lados ‘bom’ e ‘ruim’ de nossa ‘natureza’.” (ALBERTI, 2002:29).

Em relação às constantes em torno das quais vem sendo pensado o riso,

Alberti ainda afirma, em outras palavras, que

“Pensar o riso sempre significou posicionar-se, ou posicionar o objeto das próprias reflexões, em um terreno intermediário entre a razão, porque o riso é ‘próprio do homem’ e não dos animais, e a não-razão — a ‘paixão’, a ‘loucura’, a ‘distração’, o ‘pecado’ etc. —, porque o riso não é próprio de Deus.” (ALBERTI, 1999:08).

É a partir dessa idéia que podemos entender o humor como algo que “não nasce

nem do sentido nem do disparate: ele nasce da passagem de um a outro” (COMTE-

SPONVILLE, 1999:236). Essa forma de pensar o humor é identificada como uma

constante também por Freud em O chiste e sua relação com o inconsciente

(1905), como veremos mais adiante nesse capítulo. Alberti ainda reforça que são

“inúmeros os textos que tratam do riso no contexto de uma oposição entre a

ordem e o desvio, com a conseqüente valorização do não-oficial e do não-sério,

que abarcariam uma realidade mais essencial do que a limitada pelo sério.”

(2002:12).

Em seu levantamento bibliográfico, Alberti trata do humor e da comicidade

a partir do riso e do risível (componentes duplos que a autora opta por utilizar no

decorrer do texto, ao invés de nomeá-los numa só unidade como “humor”, ou

como “cômico”). Dentre os autores do século XX que abordaram — mesmo que

secundariamente — o fenômeno do riso através de um ponto de vista filosófico,

Alberti seleciona Joachim Ritter, Georges Bataille, Friedrich Nietzsche, Michel

Foucault, Sigmund Freud, Claude Lévi-Strauss e Clément Rosset. Tratemos,

então, dessa leitura do riso a partir da filosofia proposta por Alberti.

Antes disso, acredito que valha a pena lembrar o leitor de que não faz parte

do escopo deste trabalho responder definitivamente a questões que há muito vêm

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sendo feitas e respondidas pelos mais diversos autores (cada um a seu modo) em

torno da real “natureza”, da real função ou mesmo daquilo que define o que é, de

fato, o humor. O breve mapeamento que colocamos a partir do completo e extenso

trabalho de Verena Alberti aqui se apresenta para suprir as necessidades

conceituais que serão enfrentadas mais à frente nesse trabalho. Uma vez

esclarecida tal situação, voltemos à Alberti:

Embora seja evidente que a abordagem de cada um desses autores do século

XX possua diferenças entre si, Alberti conclui que de forma geral podemos extrair

dessas leituras uma premissa recorrente entre as idéias dos autores, que é o fato do

humor estar sempre colocado em um não-lugar e o riso ser uma das vias usadas

para se atingir esse não-lugar. Com isso — com a possibilidade do riso — temos

acesso à existência em sua totalidade. Sendo assim, de forma geral, o riso sempre

foi visto como “uma redenção para o pensamento aprisionado nos limites da

razão.” (ALBERTI, 2002:12).

Joachim Ritter foi um dos autores que, para Alberti, mais expressivamente

buscou pensar o riso. Ritter identificava que o riso só poderia ser definido quando

associado ao cômico, e ainda: que este riso era “determinado pelo sentido de

existência (...) daquele que ri.” (ALBERTI, 2002:11). Nessa existência, que engloba

a positividade e o nada, o riso se encontrava precisamente no nada, sob a forma de

oposto; um oposto que se revela “visível e audível, para o sério, através do riso e

do cômico.” (ALBERTI, 2002:11). Dessa forma, o humor, “para Ritter, trata-se

claramente da participação daquilo que é excluído. O riso revelaria assim que o

não normativo, o desvio e indizível fazem parte da existência.” (ALBERTI,

2002:11).

Assim como Ritter, Georges Battaile também coloca o humor num não-

lugar fundamental que se revela através do riso. “A trajetória filosófica de Bataille

tem (...) como ponto de partida, como ponto central e como resultado a

experiência do riso.” (ALBERTI, 2002:13). Nesse sentido, Bataille coloca o riso ao

lado de experiências do não-saber “como as do sacrifício, do poético, do sagrado,

do erotismo, da angústia, do êxtase etc.” (ALBERTI, 2002:13).

Retoma-se em Bataille um humor que pertence a um espaço que transcende

a positividade. O filósofo observa simplesmente que “O riso é o salto do possível

no impossível — e do impossível no possível.” (BATAILLE , 1970-76 apud

ALBERTI, 2002:14). Nesse sentido, o riso “encerra uma situação extrema da

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atividade filosófica: permite pensar (experiência refletida) o que não pode ser

pensado.” (ALBERTI, 2002:15). Bataille considerava que o modo como ele

entendia o riso na filosofia do não-saber poderia ser encontrado também nas obras

de Nietzsche. Quanto a isso, Alberti observa que “Mesmo que Nietzche tenha sido

menos claro sobre sua ‘experiência do riso’ do que Bataille, não há dúvida de que,

para ele, o riso era uma atitude filosófica.” (2002:15).

Para Nietzche a experiência do riso é “necessária, imperativa, que constitui

talvez, (...) a salvação para o pensamento aprisionado dentro dos limites do sério.”

(ALBERTI, 2002:16). Assim, mais uma vez vê-se o riso como redenção do

pensamento. E, segundo Alberti, a idéia que Foucault faz do riso também não se

distancia desse princípio. Foucault coloca o riso no campo do impensável, ou da

“não-linguagem”. Nesse sentido, Foucault entende que o riso é ativado por um

não-lugar,

“um espaço aonde o pensamento não chega e onde a linguagem não pode manter juntas as palavras e as coisas. Por isso, ele abala as superfícies e os planos, põe em xeque as certezas de nosso pensamento, de nossa prática milenar do Mesmo e do Outro” (ALBERTI, 2002:16-17).

Alberti compara que enquanto o humor para Foucault se dá exatamente da

impossibilidade de se pensar essa não-linguagem nesse não-lugar, para Freud, em

O chiste e sua relação com o inconsciente, o humor (ou especificamente o chiste)

também se encontra num não-lugar, mas, por outro lado, esse não-lugar pode ser

pensado e apreendido a partir da psicanálise (2002:19).

Para Alberti, Freud, no seu tratado sobre o chiste, produz “uma interpretação

para o advento do riso que bem pode ser considerada uma teoria do riso.”

(2002:17). Alberti observa ainda que a idéia geral proposta por Freud de que o

riso funciona como economizador de energia psíquica é usada também por outros

autores, como é o caso de Lévi-Strauss — para quem “o riso resulta de uma

conexão rápida e inesperada de dois campos semânticos distanciados”, o que

Freud chama de curto-circuito (2002:18). Desse estudo de Freud a respeito do

chiste trataremos logo mais à frente.

Ainda, cabe-nos trazer o que Alberti entende que a obra do francês Clément

Rosset tem a contribuir para o estudo do riso. Em relação aos outros autores,

Rosset se diferencia por entender que o riso divide-se entre riso trágico e riso

clássico (ou cômico) — classificação esta que Alberti considera demasiado rígida

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(2002:23). Para Rosset o riso trágico é aquele que se motiva através de uma

cessação da existência, de uma “passagem gratuita do ser ao não-ser” (ALBERTI,

2002:21). Nesse sentido, o riso trágico não ri do não-sério, mas da morte. E,

“Para realçar a especificidade desse riso, Rosset lhe opõe o riso clássico, que situa no terreno do sentido, na medida em que seu efeito cômico vem do contraste entre o sentido e a incoerência. O riso clássico, comparado ao trágico, teria uma grande fraqueza: é incapaz de ascender ao pensamento do acaso, porque pressupõe a preexistência de uma positividade do sentido. Como ri do impensável, continua pressupondo o pensável. O riso trágico, ao contrário, faria o sentido desaparecer de uma só vez, como o Atlântico fez desaparecer o Titanic, sem compensar a destruição com uma razão.” (ALBERTI, 2002:21).

Alberti, então, observa que “ao tornar positivos o caos, o acaso, o nada,

Rosset nos conduz novamente ao mesmo esquema: situa o riso em um espaço para

além do pensamento e da ordem” (2002:21).

Em seus textos — embora de modo menos rígido — Bataille também

concebe a existência de um riso trágico, mas para ele esse riso “tem menos a ver

com o objeto do riso (o trágico de que se ri) do que com a atitude daquele que ri.”

Ou, exemplificando, não rimos da morte (como propunha Rosset), mas com a

morte. Daí Alberti conclui que “as diferenças entre os autores não são pequenas.

Mas não há dúvida de que, quando se fala de riso trágico, é da destruição, da

cessação de ser, que se está falando.” (2002:22).

Sendo assim, a partir desses autores que mencionamos, Alberti chega à

conclusão de que podemos identificar dois movimentos distintos — mas não-

excludentes — do modo como se entendeu o humor no século XX a partir da

filosofia. O primeiro movimento seria aquele onde se pensa o riso como um

contraponto ao sério, que, em sua posição de oposto, “excluía o riso,

considerando-o incapaz de dizer algo sobre o próprio pensamento.” (ALBERTI,

2002:24). O segundo movimento, por sua vez, entende o riso como algo

relacionado com um nada, mas onde esse nada “não é mais a ‘metade’ não-séria

ou inconsciente do ser, e sim a morte.” (ALBERTI, 2002:23). Ainda assim, ambos

os movimentos encontram-se num eixo central onde o humor é invariavelmente

apreendido como pertencente a um não-lugar.

Dando por finalizado o breve mapeamento proposto em torno do humor

como objeto da filosofia, ainda cabe aqui tratarmos do modo como as ciências

humanas de forma geral têm tratado o riso. Para Alberti,

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“há no campo das ciências humanas, toda uma série de estudos ao mesmo tempo empíricos e teóricos, que investigam o riso e o risível em relação à vida social e à linguagem. Nesses casos, o lugar atribuído ao riso e ao risível depende, evidentemente, da forma pela qual a sociedade ou a linguagem são concebidas: quando pressupõem a idéia de um sistema, de uma ordem ou de uma norma, o lugar do riso é em geral o da desordem ou da transgressão.” (ALBERTI, 2002:30).

Ainda, o riso enquanto transgressão ou desordem lhe garante “um valor de

liberdade, de purgação quase, em relação às coerções sociais”, ao mesmo tempo

em que — embora transgressor — transforma-se em norma (ALBERTI, 2002:30-

31). De tal partido, pode-se entender o humor como uma transgressão comedida e

limitada pelas regras que, na verdade, a regulam. Em outras palavras, se o humor

é transgressor demais perde as características que o permitem ser entendido e

definido como humor. Há, entre o humor e os valores que constituem uma

determinada ordem social, um silencioso (e quase nunca mencionado) acordo de

paz.

Alberti identifica que há ainda alguns autores que não tratam do humor

necessariamente dentro dessa polaridade entre a ordem e a desordem. É o caso de

Erving Goffman — An essay on the organization of experience (1974) — quando

afirma que

“o risível poderia ser situado entre as experiências humanas ‘não-reais’, como o jogo, o sonho, o acidente, a performance teatral, o equívoco etc. As atividades que levam ao riso não seriam transgressões da norma, mas constituintes dos múltiplos frames da experiência humana.” (ALBERTI, 2002:32).

Há ainda Gregory Bateson — A theory of play and phantasy (1955) — que,

segundo Alberti, situa “o riso e o risível não em oposição a uma norma

preestabelecida, mas ao lado das ações que, segundo ele, não denotam aquilo que

denotam.” (2002:32). Nesse sentido, para esses autores, mais do que assumir o

papel de transgressor, o humor atua através de características de jogo. Salvando as

diferenças de conceituação, abordagem e posicionamento diante do humor, o jogo

faz parte da primeira fase da psicogênese do chiste apreendido por Freud — por

fim, do que trataremos no próximo tópico.

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3.2 Do humor ao chiste, à espirituosidade, à sagacidade , ao chiste

Como foi dito no início do capítulo, o que se pretende como objeto de

estudo aqui é um humor específico caracterizado numa linguagem específica. Esse

humor específico ao qual me refiro nessa assertiva é — embora mais amplo —

muito próximo do Witz de Freud, ou o chiste, como foi traduzido pelo Dr C.

Magalhães de Freitas em O chiste e sua relação com o inconsciente. Sendo assim,

o chiste aqui se caracteriza como uma especificidade do humor. E, antecipando o

ponto de vista de designers a respeito do chiste, temos que em A smile in the mind

(2005), Beryl McAlhone & David Stuart observam que apesar de nem sempre o

chiste estar explicitamente associado ao risível (àquilo que faz, de fato, rir), poder-

se-ia, ainda assim, fazer uma analogia onde “o humor é a pasta e o chiste é o

arquivo.” (2005:16).

Freud também entende o chiste como uma categoria do humor, ou, ao

menos, do campo da comicidade; Já no início de O chiste e sua relação com o

inconsciente, Freud apresenta esse posicionamento quando, tratando do que já foi

escrito sobre o chiste, afirma que os autores que o precederam “relegam a segundo

plano o tema do chiste e dirigem o seu principal interesse para a investigação do

problema do cômico, mais amplo e atrativo.” (1905:07). Mais adiante, Freud

observa que a diferença basilar entre o cômico e o chiste está na sua conduta

social, onde o cômico precisa apenas de dois agentes constituintes e o chiste de

três, e que “O chiste ‘faz-se’ e a comicidade ‘descobre-se’” (1905:184). Por outro

lado, o próprio Freud conclui que tanto a comicidade geral quanto o chiste

possuem uma tendência nuclear em comum: a de extração de prazer (1905:214).

Antes de nos aprofundarmos no chiste e darmos continuidade à rica

contribuição que Freud fornece ao nosso estudo, é essencial que coloquemos em

pauta a relevante questão da tradução da palavra alemã Witz, ou melhor, da sua

versão inglesa, wit. Wit não é um vocábulo de fácil tradução em línguas de origem

latina. Verena Alberti esclarece que “O Witz alemão e o wit inglês remetem a uma

especificidade ausente em outras línguas, nas quais se fala do cômico em geral, às

vezes dividido em cômico ‘de palavras’ e cômico ‘de ações’ e ‘de situações’.”

(2002:20).

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Embora “chiste” seja uma escolha segura e apropriada (por motivos que

veremos adiante), há alguns problemas nessa tradução do wit inglês. Dentre esses

problemas, destaquemos o fato de “chiste” ser uma palavra, sem dúvida nenhuma,

obscura em termos de reconhecimento do seu significado (“gracejo”, “graça”,

“facécia”). De origem possivelmente castelhana (MACHADO, 1967:612), a palavra

“chiste” parece não ter atingido a mesma popularidade no português. Alberti ainda

nota que a “recorrência do chiste como categoria capaz de encerrar uma

especificidade é comum apenas às tradições alemã e inglesa, que dispõem de

palavras para fundamentar essa diferença.” (2002:20).

O português José Pedro Machado, em seu Dicionário etimológico da língua

portuguesa, afirma que não se sabe ao certo o étimo da palavra “chiste” (tanto da

portuguesa quanto da castelhana), mas que há quem a associe à palavra latina

scĭscĭtum, ou “interrogar, informar-se a respeito de; consultar”; há quem diga que

origina-se do basco txistu, ou “assobiar”, “produzir som”; e há ainda quem afirme

que a origem é onomatopéica (1967:612). O fato é que nos parece claro que a

associação recorrente aos dicionários entre “chiste” e “gracejo” se deu em algum

momento obscuro não identificado entre os etimólogos.

A designer Lucy Niemeyer, em artigo que evoca o uso do chiste na

produção do design, “Por um design espirituoso” (1996), traz uma excelente

alternativa à obscuridade da palavra “chiste”, optando por usar em todo o texto a

expressão “enunciado espirituoso” para designar objetos do Witz de Freud. Sem

dúvida, falar em espirituosidade quando tratamos de chiste parece fazer bastante

sentido. Antes de qualquer coisa, a palavra “espirituosidade” nos soa interessante

por permitir o entendimento de um wit mais amplo e, ao mesmo tempo, não tão

amplo quanto uma comicidade geral; um wit menos preso às regras desenhadas

por Freud ao analisá-lo. “Espirituosidade” vem de “espírito” que, por sua vez, tem

sua origem no latim spirĭtu, ou “sopro (de ar, de vento); ar; ar aspirado; sopro;

respiração; alento; o acto da respiração” (MACHADO, 1967:945). A partir dessa

origem, “espírito” sempre esteve relacionado com a “parte imaterial do ser

humano” (CUNHA, 1992:324). E ao lembrarmos que humor pode ser entendido

como um estado de espírito (como já foi colocado), falarmos em espirituosidade

aproxima-nos ainda mais do nosso tema.

No entanto, acredito que haja ainda uma outra palavra que deva ser levada

em conta ao pensarmos numa tradução para wit: refiro-me à “sagacidade”. A idéia

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Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico 64

de “sagacidade”, ou qualidade daquilo que é sagaz, é bastante análoga à idéia de

espirituosidade quando verificamos que sagaz é aquele “que tem agudeza de

espírito” (CUNHA, 1992:698). Desse modo, talvez seja possível entendermos que a

sagacidade seria uma especificidade daquilo dotado de espirituosidade; seria uma

espirituosidade inteligente, perspicaz, esperta. Nesse sentido, a sagacidade

aproxima-se ainda mais da idéia do wit de Freud, que, como veremos, muito tem a

ver com brevidade e engenho (FREUD, 1905:12).

O problema no uso exclusivo de “espirituosidade” ou “sagacidade” para

traduzir o significado de wit é o fato da função gramatical dessas palavras estar

mais próxima de uma adjetivação (ou conferência de uma qualidade específica) do

que de uma substantivação da “coisa” propriamente dita, como é o caso da palavra

“chiste” — que, nesse sentido, assemelha-se bastante ao wit. Talvez isso explique

porque Lucy Niemeyer, ao usar exclusivamente “espirituosidade” para designar

wit, faz uso do substantivo “enunciado” antes da qualidade “espirituoso”

(referindo-se sempre a um “enunciado espirituoso”), visto que “espirituosidade”

engendra empecilhos práticos ao escrevermos um texto. A palavra “chiste” parece

funcionar melhor que qualquer outra por possuir características de substantivo

concreto, enquanto "sagacidade" ou "espirituosidade" possuem característica de

qualidades que geram adjetivos. Sagacidade é necessariamente a qualidade

daquele que é sagaz. Espirituosidade é necessariamente a qualidade daquele que é

espirituoso. O chiste não é a qualidade do que é chistoso. A palavra “chiste”,

nesse sentido, sustenta-se ao referenciar-se ao wit como “coisa” propriamente dita,

de forma que torna-se análoga em termos gramaticais ao wit inglês. Essa

característica permite uma interessante maleabilidade na escrita da qual fazemos

uso neste texto. É importante lembrar, porém, que as palavras “sagacidade” e

“espirituosidade” não serão abandonadas, sendo utilizadas no decorrer do texto

com uma certa liberdade sempre que for cabível — principalmente em momentos

quando a obscuridade da palavra “chiste” ameace esvaziar-lhe o sentido.

Tratemos agora da obra de Freud que tomou o chiste como objeto de estudo.

Antes de dar início à sua análise propriamente dita, Freud revela seu fascínio pelo

chiste quando, justificando a razão do seu estudo, afirma que devemos levar

“em conta o singular e quase fascinador encanto que o chiste possui em nossa sociedade. Um novo chiste é considerado quase como acontecimento de interesse

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geral e passa de boca em boca como notícia de recentíssima vitória.” (FREUD, 1905:15).

Veremos mais adiante que essa idéia de que o chiste desenvolve uma

espécie de relação de cumplicidade com o observador estará presente também no

discurso daqueles que estudam e defendem a presença do chiste no design.

Analisando o que já foi dito sobre o chiste antes da publicação da sua obra, Freud

retoma definições que considera válidas, mas incompletas, onde o chiste é tratado

como a habilidade de “achar analogia entre o díspar, isto é, analogias, ocultas.”

(1905:09); e ainda: onde o chiste lida com contraste de representações, com senso

no desatino e com desconcerto e esclarecimento (1905:10).

Num primeiro momento de O chiste e sua relação com o inconsciente,

Freud trata dos processos de construção do chiste, para só depois tratar dos

processos de recepção deste. A fim de esclarecer exatamente como funciona, em

termos técnicos, o chiste, Freud se debruça sobre aquilo que chama de a técnica

do chiste. De início, Freud, citando um recorrente exemplo da época2, observa que

ou o chiste se dá no pensamento expresso na frase, ou o chiste se dá além deste.

Em outras palavras, ou o chiste está na idéia ou na forma do objeto que lhe é

portador. Para descobrir onde se esconde o chiste é só “desmontar” o objeto

chistoso e observar se mesmo desconstruído ele continua dotado das

características que o fazem risível. O exemplo que Freud usa trata de uma

condensação de palavras, de forma que quando as duas palavras em questão são

separadas uma da outra, o sentido (ou idéia) mantém-se, mas o caráter hilário da

frase se esvanece – sendo assim, tratava-se de um chiste expresso através da

forma (1905:15-16). Em outras palavras, o chiste se constrói ou mediante jogos de

palavras ou jogos de idéias, ou os dois ao mesmo tempo. Dessa dualidade origina-

se duas classes distintas, mas complementares, de chiste: o chiste verbal e o chiste

intelectual, respectivamente (FREUD, 1905:139).

Voltando ao exemplo citado, Freud afirma que, nesse caso, a técnica usada

para se obter o chiste foi a de condensação com formação de substitutivo. O

resultado, portanto, é a união de dois elementos em um só novo elemento (uma

2 Freud usa como exemplo, nesse caso, o trocadilho “familionarmente”, referente à união das palavras “familiar” e “milionário”, retirado de um texto de Heine. No texto, um dos personagens faz uso desse trocadilho sagazmente ao referir-se ao tipo de relação que mantinha com um conhecido barão.

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palavra mista), este dotado de chiste e brevidade (FREUD, 1905:17-19).

Observemos ainda que essa técnica que chamamos de condensação não

necessariamente se dá exclusivamente através da formação de palavras mistas,

mas pode ocorrer também através de uma ligeira modificação na palavra que

origina o chiste3 (FREUD, 1905:24-25). Essa ligeireza, ou brevidade, mesmo nos

trabalhos que precederam Freud, sempre foi considerada uma das características

fundamentais do chiste. Muitos identificam o chiste como aquele tipo de humor

rápido e aguçado como um curto-circuito. Freud, contudo, observa que “A

brevidade não é em si chistosa; do contrário, toda sentença lacônica constituiria

um chiste. A brevidade do chiste tem de ser de natureza especial.” (1905:27).

Disso, Freud esclarece: “a brevidade do chiste é com freqüência o resultado de

processo especial que na expressão verbal do mesmo deixou uma segunda marca:

a formação substitutiva.” (1905:28). Mais para frente entenderemos a

característica diferenciadora da brevidade chistosa.

Além da técnica de condensação, Freud identifica outras técnicas centrais (e

suas subdivisões) da formação daquilo que ele chama de chiste verbal (em

oposição ao chamado chiste intelectual). Entre estas, a técnica do múltiplo

emprego do mesmo material e a técnica do duplo sentido. A técnica do múltiplo

emprego — chamada de similicadência por autores anteriores à Freud — pode

ocorrer de diversas maneiras; mas, de forma geral, consiste em uma mesma

palavra ser usada de formas diferentes numa frase, alterando-lhe o sentido do

primeiro ao segundo uso. Nesse caso, o caráter chistoso da frase pode se dar

através de variações da forma (por fragmentação ou ligeira modificação) e da

ordem (FREUD, 1905:31-33). Ainda a partir da técnica do múltiplo emprego, há

chistes em que palavras

“podem ser empregadas em mais de um sentido, despojando-as de sua primitiva significação. De duas diferentes derivações da mesma raiz pode ter-se desenvolvido até formar uma palavra cheia de significação, e a outra não constitui senão um afixo, e conservarem ambas, não obstante, idêntico som. A identidade do som entre uma palavra plenamente significativa e uma sílaba vazia de sentido pode também ser casual. Em ambos os casos é dado à técnica do chiste aproveitar tais particularidades do material verbal.” (FREUD, 1905:33-34).

3 Para esse exemplo Freud faz uso da frase “Sim; viajei com ele tetê-à-bête.” Tal frase modifica ligeiramente a expressão tetê-à-tête a fim de gerar um resultado espirituoso. Desmontada, a frase, segundo Freud, seria “Viajei com ele tetê-à-tête com X e X é um animal”, o que tira-lhe o caráter risível (FREUD, 1905:24).

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Assim, para Freud, a técnica do múltiplo emprego dá origem a uma terceira

técnica, a do duplo sentido, ou do jogo de palavras — que, por sua vez,

fragmenta-se em outras subdivisões que “como sucede com todo o terceiro grupo

com respeito ao segundo, não se distinguem uma das outras por diferenças

essenciais.” (1905:35). Essas subdivisões da técnica do duplo sentido, embora se

mesclem uma às outras, ainda podem ser listadas da seguinte maneira: duplo

sentido entre nome próprio e seu significado literal; duplo sentido na significação

literal em oposição à significação metafórica de uma palavra; duplo sentido

propriamente dito (jogo de palavras), onde não ocorre alteração nenhuma à

palavra portadora do chiste, mas onde esta “deve, mercê de determinadas

circunstâncias, expressar dois diferentes sentidos” (FREUD, 1905:36); duplo

sentido por equívoco, geralmente produtor de uma significação ambígua de ordem

sexual; e, por fim, duplo sentido por alusão, onde um dos sentidos da palavra

chistosa possui acentuação evidente em relação ao outro.

Freud ainda identifica outras maneiras de se obter o chiste verbal; destas,

uma das mais conhecidas e banalizadas é a técnica do trocadilho (que, como

veremos mais à frente, tem papel de destaque no chiste visual). Para Freud, os

trocadilhos pertencem “à classe mais pobre do chiste verbal, por serem os que

com maior facilidade e menor gasto de engenho se produzem.” (1905:42). No

entanto, mais do que uma técnica propriamente dita, Freud entende o trocadilho

como sendo “apenas uma subdivisão no grupo que culmina no jogo de palavras

propriamente dito.” (1905:43-44).

A despeito da classificação que ele mesmo desenvolve, Freud entende que

essas três técnicas centrais do chiste verbal (condensação, múltiplo emprego e

duplo sentido) não possuem fronteiras identificáveis entre si, podendo até “ser

possível reunir todas estas técnicas num só feixe.” (1905:39). Esse feixe, para

Freud, é um princípio máximo que permite a formação do chiste: o princípio da

economia — que, como veremos adiante, trata-se de uma economia de ordem

psíquica. Freud afirma que uma “tendência compressora, ou melhor,

economizante, domina todas estas técnicas” (1905:39-40) de formação do chiste.

Sendo assim, a técnica da condensação — precisamente por suas evidentes

características de supressão — subordina as outras duas e é, por sua vez,

subordinada ao princípio geral da economia psíquica (FREUD, 1905:40).

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Freud analisa também a classe que ele denomina de chiste intelectual. Trata-

se de um tipo de chiste que — ao contrário do chiste verbal — se dá menos no

jogo, na edição, na contração, na modificação de palavras, e mais no domínio das

idéias e do processo mental que constituem o chiste. Diversas são as técnicas

desse chiste intelectual e Freud as organiza em grupos e subgrupos que se

entrelaçam entre si, dificultando (novamente) a extração de uma positividade

dessa classificação. O próprio Freud, em diversas passagens, admite o caráter

ensaístico de suas classificações (1905:59). Devemos observar, portanto, que é

perfeitamente possível encontrar exemplos de chistes que sejam ao mesmo tempo,

pela classificação de Freud, de ordem verbal e de ordem intelectual.

Uma notável, mas rara, técnica do chiste intelectual é o que Freud chama de

deslocamento, onde ocorre um “desvio do processo mental, o deslocamento do

acento psíquico sobre um tema distinto do iniciado.” (1905:49). Tratam-se de

chistes que geralmente se configuram tendo como suporte respostas sagazes a

perguntas ou colocações geralmente inocentes4. Freud observa que a técnica do

deslocamento em muitos sentidos pode confundir-se com a técnica do duplo

sentido, e, nesse sentido explica que

“No duplo sentido o chiste contém só uma palavra suscetível de múltipla interpretação que permite ao ouvinte encontrar a passagem de um pensamento a outro, passagem que — sempre um tanto forçosamente — pode fazer-se equivaler ao deslocamento. Mas, no deslocamento, o próprio chiste contém um processo mental em que o mesmo se leva a cabo. O deslocamento pertence aqui ao trabalho que formou o chiste, não àqueloutro necessário à sua compreensão.” (FREUD, 1905:51).

Essa técnica do deslocamento, para Freud, inclui-se num grupo maior de

técnicas do chiste intelectual. Freud entende que, assim como no caso dos chistes

verbais, são três as técnicas centrais dos chistes intelectuais: Erros intelectuais

(onde encontra-se a técnica do deslocamento), unificação e representação indireta

(1905:78). Entre as técnicas englobadas pelo que Freud chama de erros

intelectuais, temos também a técnica do contra-senso que “surge quando o chiste

4 Freud considera o seguinte diálogo um exemplo máximo da técnica do chiste intelectual por deslocamento: “Monte neste cavalo às quatro da manhã e, às seis e meia, estará em Presburgo.”, “E que vou fazer em Presburgo às seis e meia da manhã?” (FREUD, 1905:52).

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quer fazer subsistir uma conexão que parece destruída pelas condições especiais

de seu conteúdo.” 5 (1905:59).

Já a técnica de unificação pode ser identificada, de forma geral, como sendo

um processo “análogo à condensação por compreensão de dois elementos na

mesma palavra” (FREUD, 1905:65). A unificação é a técnica que permite a

existência dos chistes chamados de “engenho rápido”, que consistem “na imediata

sucessão de agressão e defesa, (...) isto é, na constituição de inesperada unidade

entre ataque e contra-ataque.” (FREUD, 1905:66). É aquele chiste que se dá através

de uma resposta ácida e dotada de sagacidade em defesa a um ataque prévio6. Há

ainda, a partir da técnica de unificação, um outro meio técnico que Freud

identifica como sendo agregação por meio da conjunção e. Nesse caso, a

agregação entre os termos da frase sagaz “tem necessariamente que significar uma

conexão” (FREUD, 1905:67) onde um dos elementos agregados seja o responsável

por um resultado inusitado e risível.

Por fim, temos a técnica da representação indireta. Inserida nesse grupo

maior, encontra-se uma técnica do chiste chamada representação antinômica. Um

dos meios técnicos da representação antinômica de Freud consiste na substituição

de uma resposta negativa, por outra positiva (ou vice-versa), de modo que resulte

numa frase dotada de sagacidade diante da situação em questão7 (1905:68). A

representação antinômica é uma técnica do chiste que pode dar-se de diversas

formas diferentes, mas essencialmente caracteriza-se pela inversão espirituosa de

valores entre o sim e o não, entre o bom e o ruim, entre o belo e feio8. Para Freud,

“A representação antinômica é (...) um meio muito freqüentemente empregado e

de poderoso efeito da técnica do chiste.” (1905:71). No entanto, é importante

observar que esta não se trata de uma técnica exclusiva da formação do chiste;

5 Exemplo aqui retirado de Lichtenberg: “uma faca sem folha a que faltava o cabo.” (FREUD, 1905:59).

6 Um dos exemplos usados por Freud trás um ácido diálogo entre um padeiro e um taberneiro com o dedo doente: “Que se passa contigo? Molhaste o dedo no teu vinho?”, “Não (...), é que meti um de seus pães debaixo da unha.” (FREUD, 1905:66).

7 Exemplo: “O senhor pode conjurar os espíritos?”, “Sim, Majestade, mas eles nunca acodem.” (FREUD, 1905:68).

8 Exemplo retirado de um texto de Heine: “Aquela mulher se parecia em muitas coisas à Venus de Milo. Como esta, era extraordinariamente velha, não tinha dentes e apresentava algumas manchas brancas na amarelenta superfície do seu corpo.” (FREUD, 1905:68)

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Freud lembra que é precisamente a representação antinômica a técnica formadora

da ironia (1905:72) — e, embora exista um chiste irônico, chiste e ironia são

coisas distintas.

Outra técnica que se encontra inserida no grupo da técnica por representação

indireta é a que Freud chama de alusão. O chiste intelectual por alusão se dá

através de uma “exteriorização de algo que não pode ser expresso diretamente.”

(FREUD, 1905:73); ou, em outras palavras, essa técnica funciona a partir de uma

referência (a alusão em si) a um elemento que complementa o chiste, tornando-o

risível. Essa alusão pode ocorrer através de diversas maneiras. Freud classifica os

modos de alusão em: alusão por similicadência, análoga ao trocadilho no chiste

verbal, mas ao invés de lidar com palavras, lida com frases inteiras9; alusão por

pequena modificação, análoga à condensação com modificações10; e alusão por

omissão, “comparável à condensação sem formação de substitutivo.” (1905:75).

Vale observar que, em relação à alusão por omissão, Freud admite que

“Realmente se omite algo em toda alusão, pois se omitem as rotas mentais que a

ela conduzem” (1905:76), mas, em seguida, esclarece que o diferencial dessa

técnica é que de forma geral a alusão omite um objeto através da substituição

deste por outro, mas no caso específico da alusão por omissão, tal substituição não

ocorre11. Para Freud,

“A alusão é quiçá o mais corrente e manejável de todos os meios do chiste e constitui o fundamento da maioria dos chistes de curta vida que costumamos introduzir em nossa conversação, os quais não podem subsistir por si mesmos nem suportam ser desenraizados do terreno em que nascem.” (FREUD, 1905:77).

Freud ainda trata de uma outra subdivisão da técnica do chiste por

representação indireta, é a representação pela minúcia, que, como bem observa,

trata-se da “técnica que resolve o problema de obter mediante pormenor

insignificante a total expressão de um caráter.” (1905:78). E, ainda observa:

9 Exemplo desse tipo de chiste por alusão: Quem ri por último é porque não entendeu a piada.

10 Exemplo desse tipo de chiste por alusão: Quem tem boca vaia Roma.

11 Freud usa o exemplo de um judeu que chega à casa de banho e diz “Ai! Como passou depressa o ano!” (FREUD, 1905:76) — omite-se, aqui, o “fato” de que judeus banham-se anualmente.

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“Não se pode negar que esta representação pela minúcia se acha ligada àquela tendência à economia que, através da investigação da técnica do chiste verbal, fixamos como o elemento comum a todas as técnicas.” (FREUD, 1905:79).

Por fim, Freud trata da última subdivisão da técnica por representação

indireta: a metáfora, ou comparação12. Freud inclui a comparação dentro da

técnica de representação indireta ao mesmo tempo em que problematiza a própria

noção de comparação como, de fato, técnica formadora de chiste:

“Escapa-nos (...) por completo o que determina o caráter chistoso da comparação, dado que este não reside, desde logo, na forma de expressão do pensamento nem na operação de comparação. Não podemos, portanto, fazer outra coisa senão incluir a comparação entre os gêneros de “exposição indireta’ dos quais se serve a técnica do chiste, e temos de abandonar, sem resolvê-lo, este problema que, ao tratarmos da comparação, se levantou diante de nós mais claramente que quando examinamos os restantes meios do chiste.” (FREUD, 1905:85).

Em outras palavras, nos exemplos trazidos por Freud em que faziam uso da

comparação como técnica de obtenção de um suposto chiste, o próprio Freud

admite não estar certo de até que ponto tratam-se de chistes “legítimos” e até que

ponto esvaem-se numa comicidade geral: “Como nenhum outro material aparece

mais acentuada e freqüente esta nossa insegurança como ao analisarmos os chistes

por comparação.” (1905:79-80).

Tendo em vista tudo o que foi posto quanto às técnicas do chiste, podemos,

aqui, propor uma esquematização dos grupos e subgrupos de técnicas

destrinchados por Freud, usando como ponto de partida um esquema parcial

incompleto apresentado pelo próprio (1905:38-39).

CHISTE VERBAL: I. Condensação:

a) Com formação de palavras mistas b) Com modificações

II. Emprego do mesmo material (duplo emprego): c) Total e fragmentariamente d) Variações de ordem e) Ligeira modificação f) As mesmas palavras, com ou sem o seu sentido

12 Exemplo usado por Freud, retirado de um texto de Lichtenberg: “Todo homem tem também o seu traseiro moral, que não expõe sem necessidade, e que cobre, enquanto pode, com calções da boa educação.” Freud duvida que o chiste aqui se forme pela comparação, observando que à comparação do “traseiro moral” junta-se “a continuação da metáfora com jogo de palavras (‘necessidade’) e uma segunda união ainda mais extraordinária (‘os calções da boa educação’), que é quiçá chistosa por si mesma.” (FREUD, 1905:82).

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Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico 72

III. Duplo sentido: g) Nome e significação objetiva h) Significação metafórica e objetiva i) Duplo sentido propriamente dito (jogo de palavras) j) Equívoco k) Duplo sentido com alusão

CHISTE INTELECTUAL: I. Erro intelectual:

a) Deslocamento b) Contra-senso

II. Unificação: c) Engenho rápido d) Agregação por meio da conjunção e

III. Representação indireta; e) Representação antinômica

1. Chistes de superação f) Alusão

1. Por similicadência 2. Por pequena modificação 3. Por omissão

g) Representação pela minúcia h) Metáfora ou comparação

Nunca é demais lembrarmos que essa proposta de classificação, ou de

estruturação, não deve nos iludir a pensar que existem fronteiras rígidas,

facilmente identificáveis entre as técnicas ali identificadas. Não é nem um pouco

incomum que técnicas alocadas na classe de chiste verbal misturem-se com uma

ou mais técnicas do chiste intelectual — e o avesso também é verdadeiro. Tais

classes estão assim estruturadas mais por didatismo que por necessidade de se

engessar um modelo.

É importante notarmos também que o “conteúdo de um chiste, por completo

independente do próprio chiste, é o conteúdo do pensamento que, nestes casos, é

expresso, mercê de disposição especial, de maneira chistosa.” (FREUD, 1905:89).

Assim, de forma geral, “de uma frase chistosa recebemos impressão de conjunto

na qual não somos capazes de separar a participação do conteúdo intelectual da

que corresponde à elaboração do chiste.” (FREUD, 1905:91). Esse tipo de

dificuldade deixa ainda mais embaçado os limites entre as técnicas de chiste, e

quanto a isso parece não haver uma solução.

Além disso, essas duas grandes classes — chiste verbal e chiste intelectual

— cuja compreensão se faz necessária a partir do momento em que buscamos

apreender as técnicas que originam o chiste, são completamente independentes de

outras duas basilares classes de chiste trazidas à luz por Freud: aquilo que chama

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Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico 73

de chistes inocentes, ou abstratos, e chistes tendenciosos; classificações estas das

quais trataremos agora. Para Freud, o chiste inocente é aquele que “contém o fim

em si mesmo” (1905:94). Disso, entendemos que trata-se do chiste que não

esconde uma intenção secreta, uma codificação do seu significado, mas é

transparente e evidente. No chiste inocente a hilaridade se dá basicamente através

das técnicas nele empregadas. Nesse sentido, o chiste inocente é mais facilmente

identificável e classificável como chiste em si. Os chistes tendenciosos, por sua

vez, são aqueles que “correm o perigo de tropeçar com pessoas para as quais seja

desagradável escutá-los.” (FREUD, 1905:87). São, portanto, chistes portadores de

um conteúdo comprometido, codificado e mascarado (pelo próprio chiste); um

conteúdo constituído de uma agressão que toma-se por hilaridade. O que o chiste

faz, nesse caso, é ornar ao seu modo como tal conteúdo será exposto. Nesse

sentido, “O pensamento procura a roupagem chistosa (...) porque tais vestes

subornam e confundem nossa crítica.” (FREUD, 1905:133).

Obeservemos ainda que

“O chiste tendencioso precisa, em geral, de três pessoas. Além da que profere, uma segunda à qual se toma por objeto da agressão hostil ou sexual, e uma terceira em que se cumpre a intenção criadora do prazer do chiste. (...) não é quem profere o chiste que goza e ri, portanto, de seu efeito agradável, mas o inativo e ouvinte.” (FREUD, 1905:97-98)

Freud ainda nota que “Para poder constituir a terceira pessoa do chiste tem o

indivíduo de achar-se de bom humor, ou pelo menos, indiferente.” (1905:146).

É prudente que antes de continuarmos, reforcemos aqui que as classes de

chiste verbal e intelectual, e as classes de chiste inocente e tendencioso não

possuem uma “relação de influência” (FREUD, 1905:87) entre si. Chistes

caracterizados como inocentes podem ocorrer através de técnicas verbais (como

por duplo sentido) e/ou técnicas intelectuais (como por alusão), ao passo que estas

mesmas técnicas podem tranquilamente estar presentes num chiste chamado

tendencioso. Voltemos, pois:

Dessa classificação dos chistes entre inocentes e tendenciosos, podemos dar

inicio a um entendimento quanto ao prazer extraído pelos chistes. Entendamos,

pois, que, antes de qualquer coisa, produzir chistes “é uma atividade tendente a

extrair prazer dos processos psíquicos, sejam estes intelectuais ou de qualquer

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outro gênero.” (FREUD, 1905:93). Quanto a isso, Freud ainda afirma que, ao

contrário daquilo que ocorre no chiste tendencioso,

“O efeito prazeroso do chiste inocente é quase sempre mediano; clara aprovação e ligeiro sorriso é o máximo que chega a se obter do auditório e, deste efeito, deve-se ainda atribuir parte ao conteúdo intelectual.” (FREUD, 1905:93-94).

O chiste tendencioso, por outro lado, detém, “mercê sua tendência, de fontes

de prazer inacessíveis ao chiste inocente.” (FREUD, 1905:94). O chiste tendencioso

“torna possível a satisfação de um instinto (libidinoso e hostil) contra um

obstáculo que se lhe opõe e, deste modo, tira prazer de uma fonte à qual o tal

obstáculo impede o acesso.” (FREUD, 1905:99).

Freud observa que o chiste tendencioso “é usado com especialíssima

preferência para tornar viável a agressão ou a crítica contra superiores.”

(1905:103). Nesse sentido, assim como acontece com a caricatura — da qual

também se ri —, o chiste tendencioso funciona como uma máscara, como uma

codificação do significado que concede a permissão para que certos

posicionamentos ou atitudes ofensivas em princípio se legitimem, resultando no

menor efeito colateral possível: no máximo, o riso.

Nesse mesmo sentido, o chiste caracteriza-se pela tomada de um atalho que

desvia aquele que seria o percurso total necessário para chegar-se a um mesmo

fim. Esse atalho percorre um caminho onde não se tem como paisagem obstáculos

de ordem social, um caminho onde economiza-se ao máximo o combustível

intelectual necessário para cruzar a linha de chegada; e, ao cruzar tal linha, ainda

obtém-se como resultado a extração de um prazer proibido através da hilaridade.

Esse atalho que acabamos de, ao nosso melhor, ilustrar, Freud chama de curto-

circuito (1905:120). Este curto-circuito é o resultado da economia dos gastos

psíquicos que seriam demandados no caso da execução de um enunciado

desprovido de chiste. Dotado de chiste, por outro lado, gastos psíquicos são

economizados e, disso, obtém-se prazer (FREUD, 1905:119).

Assim, retoma-se a idéia de brevidade e economia como características

fundamentais na formação do chiste. A sensação de brevidade que um chiste

transmite é resultante da prazerosa economia psíquica a qual nos sujeitamos ao

sermos abordados por um chiste. No caso dos chistes tendenciosos os gastos

psíquicos economizados são da ordem da coerção e coibição (FREUD, 1905:119)

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— pois, como vimos, os chistes tendenciosos nos permitem desviar muito

espirituosamente de bloqueios e sanções sociais. Já os chistes inocentes, em geral

mais simples em conteúdo, mas potenciais detentores de complexas técnicas

usadas para a sua obtenção, são econômicos no sentido de que

“este processo origina considerável diminuição no trabalho psíquico e, que, inversamente, a abstenção deste cômodo processo, no apropriado e rigoroso emprego das palavras, é coisa que não levamos a cabo sem certo esforço.” (FREUD, 1905:120).

Em outras palavras, o chiste inocente economiza gastos psíquicos — em

meio a suas técnicas de condensação, alusão, etc. — ao transportar-nos de um

significado aparente a outro bastante diverso num piscar de olhos. Freud, nesse

sentido, afirma que

“O prazer que proporciona tal ‘curto-circuito’ parece do mesmo modo ser tanto maior quanto mais estranhos são entre si os dois círculos de representações unidos pela palavra igual; isto é, quanto mais distantes se acham um do outro e, portanto, quanto maior é a economia de caminho mental procurado pelo meio técnico do chiste.” (FREUD, 1905:120).

Há, ainda, para Freud, dois outros fatores irmãos (mas distintos) e

fundamentais para obtenção do prazer através do chiste: atualidade e

reconhecimento. Da atualidade mencionamos a importância ainda no início desse

capítulo, antes mesmo de darmos inicio ao estudo do humor como categoria geral.

Freud identifica chistes que — devido às características que os constituem —

possuem um percurso vital que mantém em pé apenas enquanto existir atualidade

no conteúdo do chiste. O reconhecimento — que, para Freud, “é prazenteiro em

si, isto é, pela minoração dos gastos psíquicos” (1905:122) — trata-se da

característica do chiste que nos leva a reencontrar o conhecido. Observemos

também que “a rima, a aliteração, o estribilho e outras formas da repetição de sons

verbais análogos, na poesia, utilizam a mesma fonte de prazer, ou seja, o

reencontro do conhecido.” (FREUD, 1905:122). Freud estabelece que atualidade e

reconhecimento são características complementares do chiste, mas não

equivalentes uma a outra. Nesse sentido, a atualidade encontra-se inserida no

reconhecimento, pois trata-se “de uma série de qualidades especiais do conhecido,

isto é, as de ser recente e preciso e não se achar ainda empanado pelo

esquecimento.” (FREUD, 1905:124).

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Terminemos, por fim, esse tópico do presente capítulo trazendo algumas

diferenças e relações entre aquilo que Freud chama de chiste e de cômico no geral.

Antes, porém, problematizemos o tema através de uma frase do próprio Freud

que, em si, demonstra e resume a impossibilidade de uma positivação de tal

questão: “O que para mim é chiste pode, para outra pessoa, ser apenas uma

historieta cômica.” (1905:104). Além disso, Freud ainda observa que, strictu

sensu, o chiste é análogo à comicidade ao observarmo-los partir da coincidência

de haver uma tendência nuclear em ambos: a de “retirar prazer das fontes

intelectuais.” (1905:214).

Para Freud a diferença fundamental entre o chiste e o cômico está no fato do

cômico se constituir de uma relação entre duas pessoas (uma primeira e uma

segunda pessoa), e o chiste dar-se numa relação de trindade, com três pessoas, ou

dupla, com duas pessoas (mas, nesse caso, a pessoa ausente seria uma

intermediária e não uma receptora). Sem dúvida, é pertinente que sejamos mais

claros quanto tais elementos do cômico e o do chiste: Freud afirma que as pessoas

envolvidas no processo cômico são, “além de nosso próprio Eu, a outra em que

achamos comicidade.” Essa outra pessoa — portadora de comicidade — pode,

muito bem, ser um objeto. Assim “o Eu e essa pessoa-objeto, são suficientes para

o processo cômico. Pode juntar-se a elas uma terceira, mas não obrigatória, nem

necessariamente.” (FREUD, 1905:145). O chiste, por outro lado, “precisa

obrigatoriamente de dita terceira pessoa para a perfeição do processo contribuidor

de prazer, podendo, porém, prescindir da segunda quando não é agressivo ou

tendencioso.” Como já foi dito, “O chiste ‘faz-se’ e a comicidade ‘descobre-se’”

(FREUD, 1905:184).

O chiste, portanto, precisa necessariamente de uma terceira pessoa para

quem se vê obrigado a comunicar um resultado onde o chiste “conseguiu proteger

o jogo e o desatino da censura da razão.” (FREUD, 1905:145). E para entendermos

um pouco melhor essa função do chiste — de driblar a censura — é importante

que retomemos um momento onde Freud observa que, apesar da sua classificação

entre chistes inocentes e tendenciosos, na verdade todo chiste, por definição,

possui uma tendência em comum: “a de melhorar o pensamento, fortificando-o, e

assegurá-lo assim contra a crítica.” (1905:133-134). Nesse sentido,

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“ninguém se contenta em fazer um chiste só para si. À elaboração do chiste acha-se indissoluvelmente ligado o impulso a comunicá-lo e este impulso é tão poderoso, que se impõe com freqüência a despeito de importantes considerações. A comunicação do cômico também nos proporciona prazer, mas o impulso que a ela nos leva já não é tão imperativo; o cômico pode ser gozado isoladamente ali onde surge diante de nós. Ao contrário, vemo-nos obrigados a transmitir o chiste.” (FREUD, 1905:144).

Ainda, o chiste e a comicidade, para Freud, possuem localizações psíquicas

distintas. A comicidade situa-se no preconsciente enquanto o chiste, localizando-

se no inconsciente, trata-se, portanto, da “contribuição que o inconsciente

proporciona à comicidade.” (FREUD, 1905:214).

Por fim, dos tipos de comicidade que Freud analisa e compara com o chiste,

temos: comicidade por ingenuidade, geralmente obtida a partir de crianças,

diferenciando-se do chiste por não ser dotada de intencionalidade (1905:185-187);

por situação, onde se ri dos gastos desmedidos executados por uma pessoa-objeto

numa determinada tarefa, onde ou os gastos são exageradamente grandes ou são

exageradamente pequenos (1905:201-200) — é o tipo de humor comum aos

palhaços; por imitação; por caricatura e por paródia. Enquanto a caricatura “leva

a cabo a degradação extraindo do conjunto do objeto eminente um traço isolado

que se torna cômico,” (FREUD, 1905:206) a paródia substitui a pessoa-objeto alvo

desta por uma outra “mais baixa” (FREUD, 1905:207).

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3.3 Um design gráfico chistoso, espirituoso, sagaz

Recordo ao leitor que o objeto de estudo aqui em questão é a caracterização

de um humor específico (que apreendemos a partir do trabalho de Freud) numa

linguagem específica, no caso, a do design gráfico. É, então, disso que trataremos

agora. Observemos, antes, que embora Freud seja o nosso guia na construção do

entendimento daquilo que chamamos de chiste até agora, a partir daqui muitas das

classificações já investigadas serão abordadas por meio de interpretações livres.

Assim nos posicionamos a fim de não fazermos do estudo em questão uma

tradução direta dos chistes verbais e intelectuais para chistes visuais — o que, de

certo, nunca fez parte do seu escopo. Além disso, como já foi posto anteriormente,

também não pretendemos fazer deste trabalho um manual de como o designer

deve atuar no processo de criação de um enunciado chistoso. Quanto a isso, Freud

nos ajuda a entender que a facilidade (ou dificuldade) que as pessoas possuem na

confecção de um chiste depende de condições subjetivas próprias a cada um de

nós. Sendo assim,

“mostra-se-nos o chiste como especial capacidade pertencente à categoria das antigas ‘potências da alma’, mas quase completamente independente das restantes: inteligência, fantasia, memória, etc. Deveremos, pois, supor nos indivíduos chistosos especiais disposições ou condições psíquicas que permitem ou favorecem a elaboração do chiste.” (FREUD, 1905:141).

Em outras palavras, “enquanto o humor pode ser explicado, não pode ser

ensinado” (HELLER, 2002:xxvi). E ainda:

“Talvez apenas através de exemplos os designers possam ser expostos ao que funciona e ao que não funciona. E, ainda assim, o que funciona para um determinado problema de design pode não funcionar para outro.” (HELLER, 2002:37).

Aceitemos, por um lado, alguns dos princípios que Freud trata como

diferenciadores entre chiste e comicidade, como aquele onde a fonte do prazer

cômico se dá através de um contraste quantitativo nos enunciados, enquanto no

chiste o prazer se dá por um contraste qualitativo (1905:204). Por outro lado, não

deixemos de levar em conta ou de trazer para exemplificação — quando

necessário para o enriquecimento do trabalho — enunciados visuais dotados de

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humor não através do chiste strictu sensu de Freud, mas a partir dessa comicidade

que se dá por contraste quantitativo.

No campo do design gráfico também encontramos autores que localizam, ao

seu modo, diferenças entre o chiste e um humor geral. De fato, tratam-se de

diferenças menos rígidas — e, sejamos sinceros, consideravelmente menos

polidas — que aquelas propostas por Freud; e, talvez por isso mesmo, apropriadas

para o nosso estudo. Para nos ajudar a delinear tais diferenças e, principalmente,

entender a “função” do chiste na prática do design gráfico, faremos uso, em

especial, dos trabalhos de Beryl McAlhone & David Stuart (2005), Steven Heller

(2002) e Lucy Niemeyer (1996); e, claro, sempre que possível estaremos

construindo pontes entre estes e o trabalho já visitado de Freud.

Como já foi dito num outro momento, Beryl McAlhone & David Stuart, em

A smile in the mind, consideram o chiste como um arquivo dentro da pasta que é o

humor. Além dessa questão hierárquica, os autores entendem que outra das

diferenças fundamentais entre o chiste e o humor visual é o local onde se situa o

riso resultante desses processos. Para os autores, apesar de o chiste tranquilamente

poder levar um observador a exteriorizar um riso, de forma geral o riso resultante

da recepção de um enunciado visual dotado de chiste se dá dentro da mente, como

prenuncia o título do livro. Além disso, ao contrário de um humor geral, uma idéia

chistosa deve, necessariamente, ter características de jogo e ser “explicitamente

esperta13” (MCALHONE; STUART, 2005:16).

O prolífico escritor do campo do design, Steven Heller, em Design humor:

The art of graphic wit (2002), propondo distinções entre um humor geral e chiste,

afirma simplesmente que o humor é um atributo do cômico intelectualmente

menos refinado que o chiste. Este, por sua vez, corresponde à habilidade de

controlar estímulos de incongruência com muita ligeireza. Em outras palavras,

enquanto o humor pode ser zombeteiro ou simplesmente bobo, o chiste possui,

necessariamente, um maior grau de sagacidade, esperteza, sarcasmo e rapidez

(HELLER, 2002:xxvi). Podemos, aqui, observar novamente a sempre recorrente

ligação do chiste com a idéia de brevidade — que já foi elucidada por Freud ao

associar tal noção à de economia de gastos psíquicos.

13 No original: clever.

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A partir disso, é, sem dúvida, interessante lembrarmos que toda uma

contundente preocupação com a efetividade, o desempenho e a economia de

meios de comunicar uma mensagem também constitui um dos pilares do discurso

do design modernista. No entanto, é evidente que enquanto Freud elabora essa

questão tendo em vista uma desejável economia de gastos psíquicos de ordem

subjetiva, os teóricos do design modernista debruçavam-se numa busca pela

economia de gastos ligados à percepção objetiva, racional. Portanto, há aí uma

preocupação de ordem supostamente fisiológica: mais percepção, menos

interpretação; mais olho, menos olhar. De qualquer modo, fica claro que a questão

da pressa, do atalho, da brevidade em prol de uma economia de recursos (seja qual

for sua ordem) se revela presente e fundamental no pensar dos autores do início

do século XX que trouxemos até aqui.

Oportunamente, lembremos que assim como o humor de forma geral, o

chiste é sensível ao contexto em que se insere. As variações culturais e temporais

podem vir a enfraquecer (ou fortalecer) um produto originalmente produzido com

o intuito de ser espirituoso. McAlhone & Stuart simplificam a situação afirmando

que “Um trabalho que foi impressionante quando surgiu, pode não ser

impressionante se fosse feito hoje.” (2005:17). Trata-se daquilo que, como vimos,

Freud chamou de princípio da atualidade do chiste — princípio irmão do

reconhecimento, que, por sua vez, pode ser dito análogo ao que McAlhone &

Stuart chamam de o familiar.

Nesse sentido, em A smile in the mind, entende-se que o chiste de uma peça

gráfica pode ser identificado localizando-se primeiramente os dois elementos

basilares que o constitui: o familiar e o jogo. O familiar é, para usarmos palavras

de Freud, o tal “reencontro do conhecido” (1905:122), o que gera prazer por si só;

já o jogo é, pelo que se pode deduzir, nada mais que o emprego de uma das já

averiguadas técnicas do chiste. Para McAlhone & Stuart, esses dois elementos são

os responsáveis pela sensação de reconhecimento e de surpresa ao entrarmos em

contato com produtos do chiste visual. E é precisamente no equilíbrio entre esse

reconhecimento e essa surpresa que se obtém “sucesso” quanto à qualidade sagaz

de uma peça (MCALHONE; STUART, 2005:15-16). Ainda remetendo-nos à

importância do fator reconhecimento no design, evocamos as observações de

Gruszynski:

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“Na contemporaneidade, leva-se em conta que diversos pontos contribuem para a legibilidade; o grau de familiaridade do sujeito, entretanto, parece ser primordial. A opção por enfatizar o caráter simbólico, indicial ou icônico de uma composição tipográfica exigirá do profissional uma avaliação ou suposição sobre o quanto o leitor conhece (ou não) os elementos com que está trabalhando” (GRUSZYNSKI, 2007:129).

Já Lucy Niemeyer, em "Por um design espirituoso”, traz a questão

observando que “É pelos elementos de reconhecimento e de identificação que o

enunciado efetiva a comunicação entre o receptor e o emissor, e eleva seu

potencial de sensibilização.” (1996:VII -44). Quanto à relevância do emprego do

chiste nos produtos originários da ação dos designers, Niemeyer posiciona-se

afirmando que

“Devido ao papel desempenhado pelo designer na construção dos elementos que compõem a comunicação visual, e, portanto a realidade material, cabe a esse profissional atuar para que o design gráfico promova uma comunicação social mais estimulante.” (NIEMEYER, 1996:VII -44).

A partir disso, é interessante notarmos que o uso do humor no design

geralmente é justificado pelos autores do campo como uma estratégia usada para

ganhar a atenção de um cliente em potencial. Nesse sentido, Niemeyer afirma que

“a presença de um componente lúdico no processo de comunicação visual

constitui uma das estratégias possíveis a serem adotadas para se agregar mais

prazer ao processo de recepção.” (1996:VII -44). Heller, por sua vez, entende que o

objetivo principal do humor no design é conquistar “espaço de mercado” na

memória do observador, e completa:

“O humor é uma ferramenta mnemônica — algo que nos ajuda (ou nos força) a lembrar. Tal efeito pode se manifestar em jogo de palavras, como num slogan ou num jingle, ou em jogo de imagens, como num logotipo ou numa marca registrada.” (HELLER, 2002:xxiv).

McAlhone & Stuart posicionam-se de acordo com tal assertiva observando

que o design passou da pergunta “o público consegue ler?” (que remete a questão

da legibilidade estrita; preocupação essencial no design tipográfico moderno) para

a pergunta “o público consegue lembrar?” — questão que nos aproxima da pós-

modernidade e de um design tomado por um mundo corporativizado (2005:23).

McAlhone & Stuart resumem a situação da presença do design chistoso no

mercado de forma bastante crua: “Se você perguntar a designers porque eles

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gostam de fazer uso do chiste, freqüentemente responderão em termos de deleite e

prazer. Mas por trás do entusiasmo do chiste está, na verdade, o benefício

comercial.” (2005:18). Os autores, nesse sentido, vão além e identificam

pontualmente aquilo que consideram que o chiste tem para oferecer ao design

gráfico.

Entre essas habilidades do chiste gráfico, está a capacidade de ganhar tempo

do observador para a mensagem. Ou seja, “ganhar tempo” no sentido do

observador disponibilizar mais do seu tempo e dedicação mental na compreensão

e assimilação daquele determinado enunciado sagaz. Os autores afirmam que “a

melhor forma de ganhar tempo para a mensagem é oferecendo algo intrigante.” E

continuam: “Alguém que está intrigado manter-se-á com o objeto até que a sua

curiosidade seja satisfeita.” (MCALHONE; STUART, 2005:18). Sendo assim, segundo

esses autores, um dos benefícios desse tipo de design é que o observador, tomado

pelo carisma do enunciado sagaz, torna-se mais suscetível a receber a mensagem

trabalhada pelo designer. Desta forma, seguindo a velha lógica de que a primeira

impressão é aquela que verdadeiramente nos marca, “a comunicação tem o melhor

começo possível.” (MCALHONE; STUART, 2005:18). McAlhone & Stuart ainda

O melhor da espiritualidade brasileira “A capa deste livro, que reúne ensaios sobre a espiritualidade escritos por pensadores da teologia contemporânea, precisava fugir do aspecto acadêmico (...). Além disso, os nomes de todos os autores deveriam constar na capa. A caixa que organiza os lápis funciona como metáfora do livro que agrupa os ensaios.” (ADG BRASIL, 2000:162). Designer: Douglas Lucas. Fonte: ADG BRASIL, 2000:162

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afirmam que “o chiste pode ser a diferença entre uma comunicação que é espiada

por dez segundos e uma que é observada por dez minutos.” (2005:18).

É interessante observar que, aparentemente, toda essa idéia de dedicação de

tempo soa contraditória ao levarmos em conta que o princípio básico do chiste é,

precisamente, a brevidade e a economia psíquica que nos proporciona. No

entanto, a fim de desatar esse nó, entendamos que a brevidade do chiste se

mantém, que o gasto psíquico é ainda economizado, e que o prazer extraído dessa

economia é exatamente o fator que nos causa apego ao produto dotado de chiste.

Relembremos as palavras de Freud ao reconher o caráter magnético do chiste,

afirmando que “Um novo chiste é considerado quase como acontecimento de

interesse geral e passa de boca em boca como notícia de recentíssima vitória.”

(1905:15).

McAlhone & Stuart, nesse sentido, explicitam que outra característica

positiva dos enunciados espirituosos é a de que fazendo-se uso destes, os

designers produzem sistemas abertos de comunicação, sistemas que permitem que

o observador — de certa forma — interaja com o enunciado. Assim, ao invés de

se fechar num significado definido e completo (como uma convencional

sinalização indicando um toalete masculino), o design sagaz “convida o

observador a participar da comunicação da idéia.” (MCALHONE; STUART, 2005:19).

No produto de design gráfico chistoso, o observador se disponibiliza a decodificar

a mensagem intencionalmente mascarada pelo designer. Enquanto o explícito cala

o receptor, o sagaz sempre deixa espaço para uma contribuição do mesmo

(MCALHONE; STUART, 2005:20).

Nesse mesmo sentido, Niemeyer, também evocando Freud, afirma que “o

receptor experimenta prazer ao realizar com êxito as atividades mentais, vencendo

desafios cognitivos que o enunciado coloca.” (1996:VII -46). Assim, McAlhone &

Stuart afirmam que quando “encontramos humor em peças gráficas, o deleite é

tanto que mesmo com apenas 1% do trabalho sendo chistoso, o chiste o faz 100%

melhor.” (2005:20-21). O chiste, desse modo, nos pega desprevenidos. Os autores

chegam a trazer uma comparação de Jean-Louis Barsoux na qual o humor é visto

como um tipo de Cavalo de Tróia que invade-nos a fim de que internalizemos o

produto ali vendido (2005:20). O uso do humor no design é associado ainda mais

explicitamente ao sucesso mercadológico daquilo que está sendo vendido quando

McAlhone & Stuart observam que tradicionalmente o humor sempre esteve

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associado à idéia de venda (seja a venda de uma idéia ou de um produto), e, nesse

sentido, o “humor é parte essencial do ato de persuasão.” (2005:21). Essa posição

do chiste no design como vendedor de idéias e produtos parece justificar-se para

McAlhone & Stuart pela argumentação de que “os designers precisam de toda

ajuda possível. Ao considerarem as ferramentas à sua disposição, o que é mais

sedutor e marcante que o chiste?” (2005:23).

Todo esse discurso voltado para o mercado sobre o humor — e,

especificamente, do chiste — como ferramenta de persuasão e conquistador do

carisma de clientes em potencial parece não estar longe de fazer sentido quando

trazemos Freud à discussão para nos lembrar que dos três personagens envolvidos

no processo do chiste — o autor (a primeira pessoa ou, no caso, o designer), a

pessoa-objeto e o ouvinte/receptor (a terceira pessoa) — “o prazer produzido pelo

chiste se revela com muito maior clareza na terceira pessoa que no próprio autor.”

(1905:146).

Nesse mesmo sentido, vale ainda observarmos que essa terceira pessoa, esse

“usuário do design”, é mais responsável pelo sucesso do chiste que o próprio

criador deste. Em outras palavras, o chiste está mais no olho sedento do

observador do que na mão habilidosa do designer. Assim sendo, “Para poder

constituir a terceira pessoa do chiste tem o indivíduo de achar-se de bom humor,

Não Dirija! “O projeto procura prevenir o ato de dirigir alcoolizado intervindo em banheiros de bares e danceterias — pontos onde são servidas grandes quantidades de bebidas alcoólicas. A localização e o comportamento inusitados chamam a atenção e ilustram o prejuízo à visão causado pelo álcool.” (ADG BRASIL, 2006:325). Designers: Rico Mendonça e Jairo Gruenberg. Fonte: ADG BRASIL, 2006:325

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ou pelo menos, indiferente.” (FREUD, 1905:146). Ou seja, aquele que recebe o

chiste precisa estar, no momento em que é abordado por este, suscetível ao seu

recebimento. E ainda: “cada chiste exige público especial e o rir dos mesmos

chistes prova ampla coincidência psíquica.” (FREUD, 1905:153). Nesse sentido,

McAlhone & Stuart pontuam que o público-alvo do designer determina a natureza

da pista a ser usada no chiste (MCALHONE; STUART, 2005:29). E por “pista”

entendamos o modo pelo qual o público é conduzido a “desvendar” o chiste —

essa pista se dá, portanto, por meio dos níveis de complexidade das técnicas do

chiste empregadas.

Heller entende que o jogo — identificado por Freud como a primeira fase

numa psicogênese do chiste de ordem verbal (1905:126) —

“é necessário no processo de design porque, a não ser que o designer esteja trabalhando sob um rígido sistema que proíba quaisquer variantes, a exploração é parte integrante de todo início de solução de problemas.” (HELLER, 2002:34).

Portanto, enquanto a partir do jogo produzido pela mente da criança resulta-

se um produto dotado de inocência e de uma certa casualidade, como propunha

Freud, o jogo adulto, observa Heller, “resulta em conceito. Imaginário aleatório é

um fim em si mesmo, enquanto conceito é a base para uma solução, o que se

traduz em comunicação visual.” (2002:35). E, consoante à psicogênese formulada

por Freud, Heller entende que “Embora nem todo jogo seja bem humorado, o jogo

é definitivamente o primeiro estágio na execução do chiste gráfico e do humor no

design.” (2002:36).

McAlhone & Stuart também levantam possíveis problemas que poderiam

vir a atrapalhar a “eficácia” de produtos chistosos do design gráfico. Para os

autores, durante o processo de criação, o designer deve resistir à tentação de

adicionar muitas camadas de codificação à peça chistosa, intelectualizando-a e

tornando-a ineficaz e inacessível como peça de comunicação (2005:27). É

interessante notar que, sob esse aspecto, McAlhone & Stuart parecem posicionar o

bom chiste visual numa espécie de meio termo entre a assepsia visual do design

modernista e o caos ilimitado do design pós-moderno. Freud, quanto a isso,

apenas entende que o sentido primeiro e original é “facilmente adivinhável em

todo bom chiste.” (1905:22). E ainda:

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Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico 86

“As alusões do chiste devem ser evidentes e o vácuo deixado pelas omissões deve preencher-se com facilidade. O efeito do chiste é regularmente destruído com o aparecimento do interesse intelectual, circunstância que constitui importante diferença entre o chiste e as adivinhações.” (FREUD, 1905:151-152).

Heller observa ainda que o chiste visual mal feito possui uma evidente

desvantagem em relação ao chiste de ordem verbal também mal executado:

“Enquanto um mal trocadilho verbal se dissipa ao vento, sua contrapartida visual é

mais permanente.” (2002:57).

McAlhone & Stuart afirmam que, no design, a “eficácia” do chiste é

garantida em três situações: quando o chiste conduz com facilidade o público ao

seu entendimento através de pistas bem posicionadas; quando faz uso de clichês

facilmente assimiláveis pelo público-alvo; quando, resumidamente, o chiste não

obstrui a comunicação de forma alguma, devendo ser utilizando mais como bônus

do que como elemento central do produto de design (2005:29). E, a essa idéia do

chiste como bônus, Heller contribui afirmando que “o trocadilho é apenas um

Alfinete “Young Creative, um concurso que seleciona jovens publicitários para participarem do Festival de Canes. Já que o concurso é destinado aos jovens, foi adotado um alfinete de fralda; como o símbolo do festival é um leão, foi aplicado um leãozinho na cabeça do alfinete. Simples e direto.” (ADG BRASIL, Vol. mostra seletiva, 2000:20). Designers: Márcio Ribas e Drausio Gragnani. Fonte: ADG BRASIL, Vol. mostra seletiva, 2000:20

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componente do humor no design, não a finalidade do processo de design.”

(2002:xx).

Para o mercado, segundo McAlhone & Stuart, o uso do chiste em

identidades corporativas denota confiança por parte das empresas que as adotam,

pois “as fazem parecer acima de preocupações mundanas, tranqüilas a respeito do

seu lugar no mundo.” (2005:31). Nesse sentido, Heller coloca que “O humor faz

o design interessante para todas as partes, transmissor e receptor, designer e

público, cliente e designer, etc.” (2002:xxi). E, nas palavras de Freud:

“O riso pertence às manifestações mais contagiosas dos estados psíquicos. Ao fazer outras pessoas rirem ao relatar meu chiste, sirvo-me realmente delas para despertar meu próprio riso” (FREUD, 1905:158).

E, ainda, por mais que o chiste possa vir a ser meticulosamente projetado

pelo designer, Freud observa que “é muito duvidoso que aquele que lança um

chiste perceba exatamente toda a intenção do mesmo.” (FREUD, 1905:102).

Portanto, parece-nos irreal falar de um humor absolutamente domável e

projetável. E, a partir do que vimos até aqui, fica cada vez mais evidente que o uso

do chiste no design funciona a partir da sua camada retórica — como um dos

discursos a ser tratado pelo designer-maestro de Souza Leite em seu processo de

construção de sentido (1997); como uma das possíveis camadas de complexidade

levantadas por Bomfim (1997); como um dos inúmeros elementos

incomensuráveis que cercam a atividade do design.

Ainda, é interessante lembrar que o profundo senso de jogo e humor vem a

ser uma das características mais significantes do design gráfico no ambiente pós-

moderno (HELLER, 2002:22). Nesse sentido, como visto anteriormente,

Gruszynski entende o pastiche (e/ou a paródia) como o principal componente do

humor na pós-modernidade (2007). Assim, no design especificamente gráfico e

tipográfico,

“O pastiche é uma presença recorrente, seja no uso de tipos e de modelos, citados para serem desconstruídos e decompostos, de tal forma a gerar o estranhamento ou a provocar um distanciamento humorístico do ‘original’. Às vezes, pode ser, inclusive, uma pequena demonstração de erudição para agradar o leitor capaz de perceber a referência feita. A relação intertextual, a imitação desviante, são traços constantes das peças que desafiam o leitor a estabelecer o nexo entre duas obras.” (GRUSZYNSKI, 2007:169).

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Um humor específico numa linguagem específica, ou o chiste no design gráfico 88

Essa presença do chiste a partir da imitação desviada e desse distanciamento

do “original” é, sem dúvida, recorrente no trabalho de muitos designers do século

XX ; muitos deles famosos precisamente por serem portadores dessa veia

espirituosa, outros famosos por diferentes motivos, mas igualmente capazes de

produzir humor a partir do design.

É, pois, nessa direção que caminharemos no capítulo seguinte: aprofundar-

nos-emos no design gráfico e, especificamente, na tipografia dotada de chiste a

partir de escritórios que se tornaram famosos pela espirituosidade dos seus

trabalhos em oposição ao Estilo Internacional, como o Pentagram e o Push Pin

Studios. Em seguida, traremos a discussão à produção nacional do mesmo

período, recorrendo a mestres do humor gráfico brasileiro como Ziraldo e

Fortuna; e, por fim, apresentaremos resquícios daquilo que viemos levantando por

meio dos catálogos da ADG Brasil.

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