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3. O estatuto do empresário
3.1 Introdução
Nas sociedades modernas, o papel dos empresários é fundamental,
porquanto é da actividade comercial que resulta a maior parte das receitas dos
Estados. Compreende-se então que os legisladores consagrem particular atenção
aos empresários e às condições em que exercem as suas actividades, para o efeito
estabelecendo uma série de normas destinadas a assegurar a transparência e
eficiência das relações dos empresários com o mercado.
A existência de um particular regime jurídico para os empresários é ainda
justificada com o facto de em regra a dimensão das empresas determinar a
necessidade do recurso ao crédito, para o que é preciso assegurar aos seus
financiadores meios de controlo e de garantia dos seus créditos.
O termo estatuto na linguagem jurídica significa o conjunto de normas que
definem os direitos e obrigações de determinado sujeito. O estatuto jurídico do
empresário é pois o conjunto de normas que definem a sua posição jurídica, do
ponto de vista dos direitos e obrigações e vantagens e desvantagens correlativas,
perante o ordenamento jurídico.
Dentre as obrigações, que é o aspecto mais importante desse estatuto,
cobrem particular importância as indicadas no art.º 12.º:
a) Adoptar uma firma;
b) Ter escrituração mercantil;
c) Fazer inscrever no registo os actos a ele sujeitos;
d) Prestar contas
3.2. 1. Firma
A firma é um sinal nominativo destinado a identificar/distinguir o sujeito
na sua qualidade de empresário: é o nome que o empresário utiliza no exercício
da sua actividade mercantil. É também um sinal de uso obrigatório (aliás é o
único sinal distintivo [sinais destinados a identificar e contradistinguir o
empresário, a empresa e os seus produtos dos demais empresários, empresas e
produtos) de uso obrigatório], correspondente a uma das obrigações dos
comerciantes a que se refere o art.º 12.º. A firma, dissemos, é um sinal
nominativo, porquanto, como veremos, é um sinal composto obrigatória e
exclusivamente por vocábulos, não por figuras ou emblemas (art.º 22.º).
Nos termos do art.º 14.º, n.º 1: «O empresário comercial é designado, no
exercício da sua empresa, sob um nome comercial, que constitui a sua firma, e
com ele deve assinar os documentos àquela respectivos». A firma é assim
concebida como um sinal destinado a identificar o empresário, um sinal
subjectivo pois.
Sendo um sinal subjectivo, a firma deveria ser insusceptível de
transmissão, tal como acontece com o nome civil das pessoas. Contudo, a firma
não é apenas um sinal identificativo de um sujeito, é o sinal que identifica um
sujeito a actuar no mundo do comércio. Daqui decorre a consequência de, muitas
vezes, a firma acabar por vir a identificar a própria empresa, maxime quando não
existe nome de estabelecimento (empresa). Nestes casos, a firma objectiva-se,
deixa de identificar exclusivamente o sujeito para identificar o objecto: a
empresa. Assim, e porque isto acontece, admite-se que a firma possa ser
transmitida conjuntamente com a empresa, em relação à qual seja utilizada (art.º
31.º). Nessa circunstância, a firma não identificará necessariamente um certo e
determinado sujeito, mas o sujeito que em cada momento for titular daquela
empresa, porquanto a lei apenas admite a transmissão da firma conjuntamente
com a empresa, para cujo exercício foi criada (art.º 31.º, n.º 6).
3.2.1.1. Princípios da firma
A firma deve ser composta com observância do princípio da verdade, da
novidade e da unidade.
3.2.1.1.1. Princípio da verdade
O princípio da verdade, consagrado no art.º 15.º, n.º 1 diz-nos que a firma
não pode transmitir informações não coincidentes com a realidade que se destina
a identificar, deve pois transmitir uma imagem verdadeira, não distorcida, da
realidade1. Por conseguinte, não pode a firma conter elementos que falseiem ou
criem confusão com a identidade do empresário, ou dos sócios ou associados
(problema de homonímia), a natureza do respectivo titular (se pessoa singular ou
antes colectiva, e, dentro destas, se sociedade ou antes v.g. associação, etc.),
sugiram o exercício de actividades que não possam ser desenvolvidas pelo
empresário em questão (v.g. actividade bancária, por um empresário individual,
art.º 18.º, n.º 1 do D/L 32/93/M, de 5 de Julho), ou uma dimensão da empresa
(v.g., supermercado para uma pequena mercearia2, “Casa Internacional”, para um
pequeno empresário, singular ou colectivo, de âmbito local 3 ) diversa da
realidade. As alíneas do n.º 2 do referido preceito fazem aplicações do princípio
regra consagrado no n.º 1. Com efeito, o disposto na al. a) proíbe que da firma
façam parte elementos que sugiram o exercício de actividades diversas daquelas
a que o sujeito se dedica (v.g. farmácia para uma drogaria); a al. b) proscreve que
se sugira pela firma uma caracterização jurídica do sujeito diversa da real, assim,
não pode um empresário individual compor a sua firma com expressões que
sugiram tratar-se de uma sociedade (Companhia Manuel Silva), nem uma
sociedade utilizar o vocábulo associação (v.g. Associação Rio das Pérolas, S.A.)
ou vice versa (Sociedade dos Cidadãos de Apelido Ching), etc.4.
O princípio da verdade da firma não fica prejudicado pelo facto de a lei
admitir puras firmas de fantasia, porquanto o que este princípio proíbe é a
comunicação de informações não coincidentes com a realidade, já não que a
firma contenha, necessariamente, informações concernentes à identidade do
1 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 153. 2 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 154, nota 2. 3 Cfr. Julius von Gierke, Derecho comercial y de la navegación, I, tradução de Juan M.Semon, Tipográfica Editora Argentina S.A., Buenos Aires, p. 146, nota 93. 4 Cfr. Coutinho de Abreu, 1998, p. 137ss.
titular, da sua actividade ou dimensão do seu negócio. O princípio da verdade da
firma assume assim uma dimensão essencialmente negativa.
3.2.1.1.2. Princípio da novidade
O princípio da novidade significa que a firma deve ser nova, no sentido de
ser distinta e insusceptível de confusão ou erro com outra já existente (art.º 16.º,
n.º 1). A firma sendo um sinal cuja função é identificar um concreto empresário
tem de ter capacidade distintiva, mas não lhe basta ser apta a distinguir o
empresário em questão, é também necessário que não seja fonte de confusão ou
erro. Com efeito, a firma é um sinal distintivo, destina-se a contradistinguir o
empresário em questão dos demais empresários que com ele competem. Ora, se
fosse confundível com outra já registada, a firma nova em vez de cumprir aquela
sua função, representaria um meio de confusão. Por conseguinte, há-de ser
composta por forma tal que seja distinta, nova, de todas as demais firmas já
registadas.
Contudo, o facto de a firma nova ter de ser distinta, não confundível, com
as firmas já registadas, não significa que tenha de ser absolutamente nova, no
sentido de ter ser diferente em todo e cada um dos seus elementos componentes.
Pode a firma conter elementos comuns a outras firmas já registadas, sem que
com isso seja com elas confundível. Sendo certo, aliás, que a lei veda
expressamente a apropriação exclusiva de certos elementos considerados de uso
comum (art.º 16., n.º 3).
Saber se a firma nova é ou não confundível com outra já registada,
depende de um juízo a efectivar, tendo em conta a impressão de conjunto aferida
pelo destinatário médio (o consumidor). Não é assim o critério dos interessados
directos, o empresário cuja firma se regista e o empresário cuja firma já está
registada, que releva. Na verdade, estes tendem a ser particularmente sensíveis a
qualquer mínimo pormenor quer para diferenciar quer para desconsiderar a
relevância da capacidade distintiva5.
5 Cfr. J.Gierke, 1957, pp. 147ss.
Sendo certo que o juízo do consumidor médio, medianamente sagaz e
distraído, é ainda circunscrito pelas indicações dadas no n.º 2 do art.º 16.º. Assim
relevará para efeitos do juízo de confundibilidade ou não confundibilidade, o tipo
de empresário, i.e. se se trata de pessoa singular ou colectiva e dentro destas de
que espécie de pessoa colectiva, a maior ou menor afinidade das actividades
desenvolvidas (afinidade merceológica) 6 . Por conseguinte, o grau de
diferenciação entre as várias firmas será mais ou menos intenso consoante se
trate ou não de actividades similares (art.º 16.º, n.º 2). Assim, se, por exemplo,
um empresário individual usa uma firma confundível com outra já registada, mas
o objecto das respectivas empresas (actividade desenvolvida) é perfeitamente
distinto (um fabrica camisas e o outro vende computadores, por exemplo), a
possibilidade de confusão normalmente não se verificará.
Na aferição da novidade há-de ser dada particular atenção aos elementos
originais, porquanto os vocábulos de uso comum não são susceptíveis de
apropriação exclusiva e por conseguinte não podem ser tidos em conta para
aquela aferição (art.º 16.º, n.º 3): são elementos desprovidos de capacidade
distintiva, aquilo que se designa, na esteira da doutrina alemã, por sinais francos;
i.e. sinais de uso livre, que não podem como tal ser tidos em conta para a aferição
da originalidade do sinal e respectiva tutela.
Finalmente, a aferição da confundibilidade é efectuada não apenas
relativamente às firmas registadas, mas também relativamente aos demais sinais
distintivos (v.g. nome e insígnia de establecimento, marca), por força do art.º
16.º, n.º 6. Na verdade, a inclusão na firma de elementos que a tornassem
confundível com um dos demais sinais distintivos, daria azo a que se criasse a
ideia de que o titular da firma era o titular dos sinais distintivos em causa, ou,
pelo menos, de que alguma estreita ligação com o respectivo titular existiria. Não
é que não seja possível a composição da firma com sinais distintivos (v.g., nome,
6 A versão original do n.º 2 do art.º 16.º exigia ainda que, como elemento a considerar no juízo de confundibilidade, se incluísse a localização da respectiva sede (pessoa colectiva) ou domicílio (pessoa singular). A esse propósito dizíamos: “que em Macau, atenta a exiguidade do Território, é de parca ou nula consideração”; o legislador também assim considerou e dispensou a necessidade da consideração desse aspecto, deixando de o mencionar na nova redacção do n.º 2 do art.º 16.º ( resultante do art.º 1.º da Lei nº 16/2009, de 10 de Agosto).
insígnia, marca, etc.) pertencentes a outrem, pois que o é, desde que haja a
necessária autorização do respectivo titular (art.º 16.º, n.º 4). A recente lei n.º
16/2009, de 10 de Outubro, entendeu não ser suficiente o disposto no n.º 4, ou
não ser suficientemente claro???, e vai daí introduziu um novo n.º 5, no art.º 16.º,
passando o anterior n.º 5 a n.º 6. O novel n.º 5 tem a seguinte redacção: “Para
efeitos de registo de firmas pertencentes ao mesmo ramo de actividade é
permitida a incorporação de sinais distintivos já registados, desde que haja
autorização do titular do respectivo registo.” Ora, como se disse, o n.º 4 diz que a
incorporação da firma de sinais distintivos registados está sujeita à prova do seu
uso legítimo. Pois bem, por mais voltas que se dê ao texto, não se vê o que é que
o novo n.º 5 contenha que já não contivesse o n.º 4. A menção “ao mesmo ramo
de actividade” não basta para justificar o novo número, pois que a redacção do
n.º 4, obviamente, comporta-a: independentemente, de se no mesmo ou diverso
ramo de actividade, a incorporação de sinais distintivos registados na composição
da firma está dependente de o seu uso ser legítimo, e é-o se estiver autorizado
pelo titular.
3.2.1.1.3. Princípio da unidade
Apesar de não estar contido directamente na lei, um outro princípio, que
se costuma referir como informando a composição da firma, é o princípio da
unidade, segundo o qual a cada empresário apenas é permitido a utilização de
uma firma. A questão que a aplicação deste princípio coloca é a de saber se vale
para todas as situações ou não; ou seja, se se aplica a todos os empresários ou
apenas a alguns. Aqui as opiniões dividem-se: uns dizem que o princípio da
unidade é de preceito pelo que diz respeito às pessoas colectivas, maxime
sociedades7, mas já no que toca aos empresários individuais, seria objecto de
restricções. Assim, diz-se que, tratando-se de empresário individual, nada obsta a
que, se ele é titular de mais do que uma empresa (v.g., uma fábrica de vestuário e
uma agência de viagens), possa, relativamente a cada uma delas, exercer com
7 Cfr.Coutinho de Abreu, 1998, p. 146; Ferrer Correia, 1973, p. 283; Canaris, 2000, p. 263.
uma firma diferente (v.g. Fábrica de Vestuário João Leong; Agência de Viagens
João Leong). Já não seria admitido que o empresário usasse mais do que uma
firma para exercer os vários ramos ou sucursais da sua empresa. Por conseguinte,
a unidade da firma seria aqui entendida no sentido de que cada empresa,
independentemente de ter vários ramos ou sucursais, apenas pode ser exercida
sob uma única firma8, já não que a cada empresário individual corresponde só e
apenas uma única firma.
As razões, que explicam a diversidade de entendimento no que respeita
aos empresários individuais e às sociedades, prendem-se com o risco de indução
em erro que a utilização de mais do que uma firma para o exercício de empresas
autónomas pode representar. Assim, no que tange às sociedade, e contrariamente
às pessoas singulares, a firma é não só o respectivo nome comercial, mas também
o seu “nome civil”9. Na verdade, a sociedade apenas tem a sua firma para se
identificar, contrariamente às pessoas singulares que, para além da sua firma,
têm, em primeiro lugar, o seu nome civil.
Este argumento, quer pelo seu formalismo quer porque leva a um círculo
vicioso, não parece ser determinante10. Determinante afigura-se, antes, o facto de
que, a admissibilidade de uma sociedade poder exercer as suas várias empresas
autónomas sob várias firmas, seria susceptível de criar uma ideia falsa quanto às
relações de responsabilidade11. A pluralidade de firmas, ao sugerir a existência
não de uma mas de várias sociedades, não de um mas de vários patrimónios de
responsabilização, contribuiria para uma inconveniente falta de transparência
quanto a um aspecto cardinal do tráfico mercantil. Por conseguinte, não seria de
admitir a possibilidade de uma sociedade poder actuar sob mais do que uma
firma, mesmo que relativamente a empresas autónomas. Tanto mais que, sendo a
firma o “nome civil” da sociedade, admitir-se tal possibilidade significaria
aceitar-se que um sujeito de direito pudesse ter vários nomes. Ora, do mesmo
8Cfr. Ferrer Correia, idem, p. 283; Canaris, idem, p. 261. 9 Cfr. Ferrer Correia, idem, pp. 283, 284. 10 Cfr. Canaris, idem, p. 263. 11 Idem, ibidem.
modo que tal possibilidade não é admitida para as pessoas singulares, também
não deve ser permitida às sociedades.
Mas, perguntar-se-á, as preocupações expendidas quanto às sociedades,
relativas ao risco de falta de transparência quanto à responsabilização pelas
dívidas mercantis, não se verificam igualmente quanto às pessoas singulares?
Diz-se que não, porquanto as pessoas singulares para além das suas dívidas
mercantis têm (ou podem ter) dívidas civis, pelo que os credores estão sempre
obrigados a um exercício de investigação para determinarem o estado patrimonial
do seu devedor12. Assim, a possibilidade de o empresário individual, quando
titular de várias empresas autónomas, exercer cada uma delas sob uma firma
diferente, para além de responder a interesses dignos de tutela deste, que pretende
identificar-se nas suas várias actividades de forma clara, não representam, do
ponto de vista dos credores, um agravar da sua situação, porque, justamente,
estes não podem pretender que as dívidas do seu devedor, ao contrário do que
acontece nas sociedades, resultam apenas da sua actividade mercantil, pois
podem bem resultar de muitas outras circunstâncias. Daqui que o credor de um
empresário individual seja sempre convocado a um especial dever de diligência,
pelo que respeita a conhecer a verdadeira situação patrimonial do seu devedor,
que lhe permitirá conhecer a eventual exposição patrimonial do seu devedor
resultante do exercício de outras empresas sob outras firmas.
3.2.1.1.4. Obrigatoriedade de utilização das línguas oficiais
Para além de obedecer aos princípios da verdade e da novidade, a firma
há-de também ser composta numa das línguas oficiais da RAEM ou em ambas.
Pode também ser redigida em inglês, quando seja composta em ambas as línguas
oficiais: quer dizer, apenas é admitida uma versão em inglês da firma que tem
uma versão em ambas as línguas oficiais (art.º 17.º, n.º 1). Pode a firma ser
composta numa outra língua (que pode ser, obviamente, o inglês), ou conter
vocábulos em língua diversa das línguas oficiais, nas situações indicadas nas
12 Idem, ibidem.
várias alíneas do n.º 3 do art.º 17.º. A exigência feita neste preceito parece
deslocada em Macau, em que a língua franca dos negócios é o inglês, sendo certo
também que a globalização aconselha a maior liberdade na composição da firma.
Por outro lado, nas situações mais gravosas, já o princípio da verdade permite a
sua exclusão, pelo que não parecem subsistir razões para esta limitação. Sendo
certo que mesmo em Portugal esta exigência foi já afastada.
3.2.1.1.5. Outros requisitos
A lei veda ainda que a firma possa ser composta de tal forma que seja
ofensiva da moral pública ou dos bons costumes (art.º 18.º, n.º 1), desrespeite
símbolos da RAEM, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou
significado seja de salvaguardar por razões históricas, científicas, institucionais,
culturais ou outras atendíveis (art.º 18.º, n.º 2). Também não permite a lei que a
firma, para além de ser veículo de promoção de interesses próprios, possa ser
utilizada para menoscabo de terceiros (art.º 18.º, n.º 3).13
3.2.1.2. Elementos que podem entrar na composição da firma: os
aditamentos obrigatórios
Ao contrário do que sucedia no direito pretérito, em que a composição da
firma obedecia a regras diferentes consoante se tratasse de empresários
individuais ou de sociedades, actualmente a composição da firma obedece às
mesmas regras (art.º 22.º), salvo pelo que toca aos aditamentos obrigatórios.
No direito pretérito, a firma dos comerciantes em nome individual e das
sociedades em nome colectivo e em comandita era composta obrigatoriamente
com o nome de pessoas (firma-nome), o do próprio sujeito (art.º 20.º Código
Comercial de 1888) ou o dos seus (todos, alguns ou algum) sócios (art.º 21.º e
22.º Código Comercial de 1888), embora pudesse (e apenas pudesse) conter
13 A estes requisitos, engloba-os Coutinho de Abreu (1998, p. 147) sob o que denomina de princípio da licitude residual.
expressões alusivas à actividade comercial respectiva; já a firma das sociedades
anónimas originariamente não podia ser composta com nomes de pessoas, daí a
designação de anónimas, mas apenas com uma expressão que desse quanto
possível a conhecer o objecto (firma-denominação) (art.º 23.º Código Comercial
de 1888). As sociedades por quotas, introduzidas no direito português pela Lei de
11 de Abril de 1901 (LSQ), podiam utilizar na sua firma quer nomes de pessoas
(firma-nome) quer denominações particulares (firma-denominação) ou ambas
(firma-mista) (art.º 3.º LSQ). A partir de 1931 (Decreto n.º 19631 de 18 de
Abril), a firma das sociedades anónimas passou a poder ser composta com nomes
de pessoas, sócios ou não, deixando de justificar a sua designação.
Estas regras decorriam em linha recta do princípio da verdade: a firma
havia de transmitir informações verídicas sobre a situação do sujeito ou entidade
que identificava. Os aspectos publicitários e reclamísticos não eram
considerados, pelo menos directamente.
A obrigatoriedade da composição da firma com o nome do sujeito ou dos
sócios decorreria do facto de o crédito ser concedido com base numa relação de
confiança, donde que seria necessário que se soubesse quem é o comerciante ou
os sócios da sociedade que está a actuar, para que se pudesse conceder crédito.
Com efeito, sabido quem era o comerciante ou os sócios, conhecido estaria o
respectivo património e logo a garantia que era oferecida.
Esta ideia de o crédito se ligar à pessoa, supõe um tempo em que as
relações comerciais não são anónimas, mas pessoais. Quem actua no domínio da
actividade comercial conhece e é conhecido pelos seus pares. A actividade
comercial é uma espécie de clube privado em que toda a gente se conhece.
Entrados na fase da massificação das relações comerciais, o anonimato da
esmagadora maioria dos agentes passa a ser a regra, com o que deixa de fazer
grande sentido que se continue a exigir, como outrora, que a firma seja composta
obrigatoriamente com o nome civil do sujeito.
No mundo do anonimato, que é o nosso, o único caminho para se
assegurar aos interessados o conhecimento e identificação daqueles com quem
pretendem entrar em relações negociais é a exigência de registo obrigatório.
Como dissemos, a lei sempre admitiu a possibilidade da transmissão da
firma, em sede de trespasse (alienação definitiva) da empresa, caso em que, como
é óbvio, a firma já não identificava o sujeito inicial, mas sim o adquirente. Ora,
sendo possível que a firma seja utilizada por outra pessoa que não aquela com
cujo nome é composta, parece claro que a única coisa que a firma pode
verdadeiramente assegurar é a identificação da natureza do empresário, não a sua
identificação civil.
Por outro lado, assiste-se um pouco por todo o lado (v.g. França (1985),
Alemanha (1998), Áustria (2007)) a uma tendência no sentido de promover a
função reclamística da firma em detrimento da sua função original de
identificação de um concreto sujeito.
Por isso, ao contrário do direito pretérito, a lei, independentemente de se
tratar de empresários pessoas singulares ou pessoas colectivas, concedeu aos
interessados a maior liberdade para a composição da sua firma. Assim, a firma
pode ser composta com o nome, completo (v.g. Manuel da Silva Abrantes) ou
abreviado (v.g. M.Silva), ou por alcunha (v.g. o Sapo) do sujeito (empresário
individual), dos sócios (sociedades) ou associados (v.g. agrupamentos de
interesse económico), todos, alguns ou algum (firma-nome, v.g. Silva, Moledo &
Conceição, Lda.; Silva & Moledo, Lda.; Maria da Conceição, E.I.), por
expressões alusivas à actividade comercial desenvolvida (firma-denominação, v
.g. Fábrica de Vestuário da Penha, Lda.), por designações de fantasia (v.g.
Galaxy, SA) ou pela conjugação destes elementos, todos ou alguns (firma-mista,
v.g. José Malaquias, Restaurante O Cortiço, Lda.) (art.º 22.º, n.º 1).
A identificação do tipo e natureza jurídica do concreto empresário eram
assegurados pela imposição da adopção de um aditamento obrigatório,
relativamente a todos os empresários. Assim, os empresários individuais deviam
aditar a sua firma do aditamento «Empresário Individual» ou as iniciais «E.I.»
(v.g. Manuel Silva, E.I.; Manuel Silva, Empresário Individual), mas apenas
quando a firma fosse redigida em português, porque só então fazia sentido. O que
não quer dizer que o aditamento, quando a firma seja redigida em português,
tenha de ser obrigatoriamente reduzido às iniciais «E.I.». As sociedades em nome
colectivo por esta mesma designação, que se tornou aditamento obrigatório, ou
também pelas iniciais «S.N.C.», se redigida em língua portuguesa; as sociedades
em comandita simples pelo aditamento «Sociedades em Comandita», ou também
pelas iniciais «S.C.», se redigida a firma em língua portuguesa; as sociedades em
comandita por acções pelo aditamento «Sociedade em Comandita por Acções»,
ou também pelas iniciais «S.C.A.», se redigida a firma em língua portuguesa; as
sociedades por quotas pelo aditamento «Limitada» ou também pela abreviatura
«Lda.», se redigida em português; a firma das sociedades por quotas unipessoais
pelo aditamento «Sociedade Unipessoal Limitada» ou «Sociedade Unipessoal
Lda.»; a firma das sociedades anónimas pelo aditamento «Sociedade Anónima»
ou também pelas iniciais «S.A.», se redigida em português; a firma dos
agrupamentos de interesse económico, pelo aditamento «Agrupamento de
Interesse Económico» ou também pelas iniciais «A.I.E.», se redigida em
português. Finalmente, o art.º 30.º determina que a firma de qualquer outro
empresário pessoa colectiva contenha um aditamento que permita identificar
claramente o tipo de pessoa colectiva em causa. Excepto pelo que diz respeito ao
aditamento das sociedades por quotas, em que o aditamento não identifica
claramente o tipo de pessoa colectiva, nos demais casos fica-se a saber pelo
aditamento de que tipo de pessoa colectiva se trata.
Utilizou-se o pretérito, porque a situação que se acaba de descrever
corresponde ao regime gizado no Código Comercial, no entanto, a situação
alterou-se com as alterações introduzidas pela lei n.º 6/2000. Com efeito, a
referida lei veio permitir a todos os empresários a manutenção das firmas já
utilizadas, sem necessidade de adaptação das mesmas aos novos dados do
sistema (art.º 11.º do D/L n.º 40/99/M, de 3 de Agosto, na redacção resultante do
art.º 1.º da lei n.º 6/2000); mais, permitiu que os empresários que, entretanto, já
houvessem procedido às alterações da firma para se conformarem com o novo
regime, pudessem fazer marcha atrás e recuperar a firma pretérita (art.º 5.º da lei
n.º 6/2000).
Atendendo a que as novas regras de composição da firma não estão em
contradição com as regras anteriores, o objectivo das alterações introduzidas pela
lei n.º 6/2000 restringe-se à matéria dos aditamentos obrigatórios, única matéria
onde se verificaram inovações, sendo que a lei expressamente ressalvava a
manutenção das firmas de pretérito (art.º 11.º, n.º 1 D/L n.º 40/99/M, de 3/8).
Tendo em conta que não existem sociedades em comandita em Macau, que as
sociedades em nome colectivo são pouco menos do que inexistentes, que a
esmagadora maioria das sociedades são sociedades por quotas, cujo aditamento
obrigatório não determina qualquer adaptação às firmas já existentes, impõe-se a
conclusão de que a alteração se restringe às sociedades anónimas e aos
empresários individuais. Quanto aos últimos não se quis a introdução do
aditamento como compulsiva, quanto às sociedades anónimas, não se quis a
retirada dos vocábulos «responsabilidade limitada». O número de beneficiários
da alteração introduzida é pequeno, pois são apenas as sociedades anónimas, já
que apenas quanto a estas o aditamento é obrigatório, ora por isso não se percebe
qual a tão premente necessidade que justificasse a medida.
Na verdade, o novo aditamento obrigatório para as sociedades anónimas,
que se limita a reduzir a fórmula sacramental do aditamento resultante do art.º
23.º do Código Comercial de 1888 à designação pela qual estas sociedades são
conhecidas «Sociedade Anónima», é obrigatório para as sociedades a constituir,
o que demonstra que por si só é suficiente para cumprir o desiderato de
identificação do tipo de empresário em causa, o mesmo é dizer o tipo de
responsabilidade a que se sujeitam os seus sócios. Percebe-se que não se queira o
novo aditamento por menos expressivo, o que se não percebe é porque é que o
novo aditamento só não é adequado para as sociedades já existentes: uma de
duas, ou o aditamento cumpre a função que o justifica, e então deve valer para
todas as sociedades anónimas, ou não, e então não deve valer para nenhuma.
Aliás, a alteração introduzida pelo novo Código tem o precedente de idêntica
alteração introduzida em Portugal, onde o universo das sociedades anónimas é
incomparavelmente maior, com o Código das Sociedades Comerciais de 1986,
sem que a medida tenha suscitado quaisquer reparos ou dificuldades. Sendo certo
que neste caso, como aliás em tudo o que respeita à disciplina societária, o
sentido das alterações introduzidas pelo novo Código Comercial era público
desde 1989, pelo menos, e não se conhece quanto ao ponto a existência de
quaisquer reservas.
Dir-se-á que não apenas em relação às sociedades anónimas se dirigem as
alterações da lei n.º 6/2000, mas também aos empresários individuais. E à
primeira vista assim é, mas olhando mais de perto, logo nos damos conta de que
é mera ilusão.
Na verdade, a lei introduziu também para os empresários individuais um
aditamento obrigatório, que, por conseguinte, obrigava a que as firmas anteriores
dos comerciantes individuais devessem ser aditadas em conformidade;
aditamento que seria efectuado oficiosa e graciosamente (aliás, como em todos os
demais casos), caso o interessado o não promovesse atempadamente (art.º 11.º,
n.º 3 D/L n.º 40/99/M, de 3/8). A introdução do aditamento obrigatório para os
empresários individuais, para além de uma pedagogia de clareza e transparência,
era imposta pelo facto de a lei estender sem reservas aos empresários individuais
as amplas possibilidade abertas em matéria de composição da firma (regime
jurídico muito semelhante, consagrou o legislador alemão com a reforma do
HGB de 1998 (consultável em www. bundesrecht.juris.de/bundesrecht/hgb/).
Daqui decorre a possibilidade, como vimos, de o empresário individual compor a
sua firma exclusivamente com expressões alusivas à sua actividade ou até por
puras designações de fantasia. Ora, quando assim suceda, o único meio de se
poder identificar a expressão escolhida pelo interessado como firma, e
designadamente distingui-la de outros sinais distintivos do comércio, maxime
nome do estabelecimento, era o aditamento obrigatório. Sendo que a
identificação do concreto sujeito, que sob essa firma girava, era assegurada pela
obrigatoriedade do registo, que a lei tornou obrigatório para todos os empresários
plenos (não pequenos), pessoas físicas (art.º 3.º, na redacção original, do
Cód.Reg.Comercial).
Ora a lei n.º 6/2000 veio dispensar a obrigatoriedade do aditamento
«Empresário Individual» ou as iniciais «E.I.», se redigida a firma em português,
e a lei n.º 5/2000, a obrigatoriedade do registo dos empresários individuais, sem
que, contudo, tivesse o legislador estabelecido qualquer limitação quanto às
possibilidades de composição da firma, oferecidas pela lei ao empresário
individual.
No futuro coexistirão, sem quaisquer limitações temporais, firmas
compostas por obediência a diversos parâmetros relativas ao mesmo tipo de
empresário, o que não pode certamente ser considerado como contribuição para a
clarificação e transparência do sistema. O que só não torna a situação grave,
porque, como se viu, o universo dos sujeitos a quem a medida aproveita é
relativamente pequeno.
As amplas possibilidades concedidas pela lei em matéria de composição
de firma afastam a maior parte dos casos de homonímia, i.e. os casos de
coincidência entre a firma de dois sujeitos, resultante do facto de a mesma dever
ser composta com o respectivo nome civil. Agora a lei já não impõe que o sujeito
utilize obrigatoriamente o seu nome, completo ou abreviado, como firma, pelo
que nessa medida as possibilidades de homonímia certamente diminuirão.
Contudo, se a lei não impõe a composição da firma com o nome civil dos sujeitos
não deixa de admitir essa solução, daí que as possibilidades de homonímia
continuem a poder verificar-se. Nesse sentido, a lei estabeleceu no n.º 2 do art.º
22.º critérios para a solução dessa situação, que vão do acrescentar de novos
nomes, à retirada de nomes ou ao aditamento de expressões alusivas à actividade
comercial desenvolvida ou designações de fantasia.
3.2.1.3. Direito à firma
O registo da firma, que ocorre simultaneamente com o registo do próprio
empresário (art.ºs 3.º e 34.º do CRegCom), e, uma vez efectuado, confere ao seu
titular um direito de uso exclusivo sobre o sinal respectivo (art.º 20.º, n.º 1), que
tem carácter de direito absoluto. Este direito tem uma dimensão positiva: a de o
interessado poder usar a firma registada, no âmbito dos seus negócios; e uma
dimensão negativa: a de nenhum outro sujeito poder usar a firma registada sem
autorização do titular. Esta dimensão negativa tem uma extensão mais ampla do
que a dimensão positiva, porquanto não só é a firma, tal qual está registada, cuja
utilização não autorizada pelo titular está proibida, mas também aqueles sinais
que com ela sejam susceptíveis de confusão.
A violação do direito à firma atribui ao seu titular o direito a exigir o
imediato fim da utilização indevida, independentemente da ocorrência, ou
determinação de quaisquer danos, e, caso estes se verifiquem, à competente
indemnização; eventualmente, pode a violação da firma integrar um ilícito
criminal (art.º 21.º).
A firma não registada apenas goza da tutela frágil que as regras sobre
concorrência desleal lhe poderão conceder (art.º 159.º).
3.2.1.4. Transmissão da firma
A firma pode ser transmitida, temporária ou definitivamente (art.º 31.º, n.º
1, 5), mas, em qualquer caso, apenas no âmbito de uma negociação da empresa
para cujo exercício foi criada (art.º 31.º, n.º 6). Para além de apenas poder ser
negociada no âmbito da negociação da empresa, é ainda necessário que o
transmitente da empresa, e titular da firma, consinta na sua transmissão (n.º 1 do
art.º 31.º. Por outras palavras, é necessário a autorização do titular, sendo que não
basta, para este efeito, o facto da transmissão, porquanto ao contrário do que
sucede, por exemplo, em matéria de marcas (art.º 227.º, n.º 1 do RJPI), a lei não
se contenta com o silêncio para que a transmissão se consume. Não quer isto
dizer que seja necessária uma autorização por escrito, mas é imprescindível que a
vontade de transmitir a firma seja expressa, directa ou implicitamente, de forma
inequívoca14.
Já não exige a lei, ao contrário do que sucedia com o art.º 24.º do Código
Comercial de 1888, o aditamento da declaração de sucessão na firma (v.g. Chao
Leong, comércio de automóveis, adquirente), para evitar as chamadas firmas-
comboio (v.g., Alberto Chao, Comércio de Acessórios de Automóveis, Lda.,
Sucessor Manuel Leong). Não desconhecia a lei os interesses que justificavam a
exigência da declaração de sucessão e que se prendiam, essencialmente, com os
14 Cfr. Claus-Wilhelm Canaris, Handelsrecht, 23 ed.ª, Munique, 2000, p. 229.
que estão ligados ao princípio da verdade15: assegurar que a firma não é veículo
de falseamento da realidade. Por conseguinte, a declaração de sucessão permitia
a terceiros conhecer que a firma em causa não era uma firma originária, mas
antes uma firma derivada. Assim os precavendo, para o facto de a pessoa
designada na firma já não ter nada que ver com a mesma, ou, tratando-se de
sociedades, podendo já nada ter que ver com a mesma, e permitindo-lhes, com
averiguações complementares, saberem quem se abrigava à sombra da mesma.
Estes interesses, a nova lei prosseguia-os através da obrigatoriedade do
registo de todos os negócios que envolvessem a empresa. Por uma simples
consulta ao registo, qualquer interessado estaria em condições de saber quem é
que actuava sob determinada firma. Acontece que a Lei n.º 6/2000 veio dispensar
de registo os negócios de alienação de empresa, embora tenha mantido essa
obrigatoriedade relativamente a todos os outros, i.e. àqueles que envolvam uma
transmissão meramente temporária da empresa, quer pela constituição de um
direito pessoal de gozo (v.g., uma locação) quer pela constituição de um direito
real de gozo (v.g., um usufruto), ou a constituição de um direito real de garantia
(art.º 103.º). Por outro lado, a Lei n.º 5/2000, que alterou o Cód.Reg.Com, como
se disse, transformou em facultativo o registo das pessoas singulares (art.º 3.º).
Sem prejuízo, o n.º 6 do art.º 31.º sujeita a registo a transmissão da firma, pelo
que, se a alienação da empresa coenvolveu a firma, este facto deve ser registado,
sob pena de não produzir efeitos contra terceiros.
O consentimento para a transmissão da firma há-de ser dado pelo
transmitente (art.º 31.º, n.º 2), na generalidade dos casos, mas nos casos de
transmissão da empresa do autor da sucessão já a solução necessita de
complementações. Assim, é necessário distinguir consoante o de cujus tenha ou
não disposto, por escrito, sobre o ponto, prevalecendo, em princípio, a sua
vontade (art.º 31.º, n.º 2). Dizemos em princípio, porque a protecção da lei
explica-se por poderem estar em causa direitos de personalidade do de cujus, o
que se verificará caso a firma seja composta, total ou parcialmente, com o seu
nome. Já se a firma não foi composta com o nome do de cujus, é, por hipótese,
15 Cfr. Ferrer Correia, 1973, p. 276; J.Gierke, 1957, p. 151.
uma firma de pura fantasia ou limita-se a indicar o objecto da empresa (firma-
denominação), as razões da tutela da lei não se verificam, pelo que não faria
sentido obrigar-se os herdeiros a respeitar a vontade do de cujus16. Caso o de
cujus não tenha deixado disposição sobre a questão, o consentimento para a
transmissão da firma compete à maioria dos herdeiros, quer se trate de
transmissão para terceiro quer se trate de adjudicação da empresa a um ou alguns
dos herdeiros (art.º 31.º, n.º 2).
No caso de se tratar de firma de sociedade comercial composta com o
nome de sócio, a transmissão da firma não está sujeita, em princípio, à
necessidade do consentimento do sócio, contrariamente ao que sucedia no direito
pretérito, em que tal consentimento era obrigatório. O consentimento do sócio só
será necessário, caso isso tenha sido acordado e exarado no pacto social (art.º
31.º, n.º 3). A solução da lei decorre do facto de que, contrariamente ao que
sucedia em face do regime legal da firma no Código Comercial de 1888, já não
existir em nenhum tipo social a obrigatoriedade de a firma ser composta com o
nome de sócios. Por outras palavras, a utilização do nome de sócios na firma é
meramente facultativa. Por conseguinte, se o sócio consentiu que o seu nome,
sem a tal estar obrigado, figure na firma, sabe que fica sujeito a que a firma seja
transmitida sem que tenha de ser ouvido sobre o caso. Se quer permitir a inclusão
do seu nome na firma e, simultaneamente, assegurar-se o direito de impedir a
transmissão da firma inalterada, isto é, com o seu nome, deve ter o cuidado de
fazer estipular nos estatutos essa sua prerrogativa.
Em qualquer circunstância, o sócio, cujo nome figure na firma, deixará de
responder pelas dívidas sociais, naquelas sociedades em que aos sócios é
cometida tal responsabilidade, a partir do registo e publicação do acto de
transmissão (art.º 31.º, n.º 4). Esta solução da lei, supunha o registo de todo e
qualquer acto de negociação da empresa, como inicialmente estava previsto no
art.º 103.º. Acontece que, como já se referiu, a regra foi alterada, não sendo agora
os actos de alienação definitiva da empresa (vulgo trespasse), sujeita a registo,
sendo que nenhum acto de negociação o é a publicação. Assim sendo, só resta ao
16 Cfr. Canaris, 2000, p. 226.
sócio provocar ele próprio esse registo, se quiser aproveitar da faculdade que a lei
lhe faculta no n.º 4 do art.º 31.º.
3.2.1.5. Invalidade da firma
A firma pode ser inválida, quer porque se verifica uma nulidade na sua
composição quer porque se verifica uma anulabilidade. A firma é nula quando
tenha sido composta em violação de regras legais imperativas. Assim, a violação
do princípio da verdade, consagrado no art.º 15.º, bem como a violação da
obrigatoriedade da composição numa das línguas oficiais (art.º 17.º), ou do art.º
18.º, tornam a firma nula (art.º 33.º, n.º 1).
A nulidade tem de ser decretada pelo tribunal, por força do n.º 2 do art.º
33.º; sentença, esta, que está sujeita a registo e publicação (n.º 3 do art.º 33.º).
A firma pode também ser anulada, a requerimento do interessado (n.º 2 do
art.º 34.º), em acção judicial intentada no prazo de três anos a contar do registo,
quando de boa fé (se o registo foi feito de má fé, a acção judicial não prescreve –
art.º 34.º, n.º 3) (art.º 34.º, n.º 2), quando na sua composição tenham sido violado
os direitos de terceiros, nomeadamente o princípio da novidade (art.º 34.º, n.º 1).
A sentença de anulação da firma está, tal-qualmente a de nulidade da firma,
sujeita registo e publicação (art.º 34.º, n.º 4). Trata-se em ambos os casos de
assegurar que o registo representa uma representação fidedigna da situação dos
empresários e das empresas a que respeita, em ordem à protecção do tráfico
mercantil.
3.2.1.6. Extinção do direito à firma
A firma pode ainda extinguir-se por caducidade, nos casos indicados no
art.º 35.º. Assim, o encerramento e liquidação da empresa, a dissolução e
liquidação da pessoa colectiva ou o seu simples não uso por um período superior
a três anos, determinam a caducidade da firma, porquanto a mesma foi criada
para distinguir um concreto sujeito, o empresário, no exercício daquela empresa.
Extinguida esta, a causa daquela desaparece, daí que a firma se deva considerar
extinta com aquela. Sendo a firma um bem acessório do exercício da empresa,
não existe em si e por si, mas tão só enquanto meio de contradistinção para o
exercício de uma empresa, enquanto estratégia da sua afirmação, acreditação no
mercado, percebe-se que o seu destino esteja inextrincavelmente ligado àquele
exercício: extinto este, extinta a firma, como lógica decorrência daquela sua
ligação umbilical.
O facto do simples não uso também determinar a extinção da firma por
caducidade também se explica por causa daquela inextricável ligação funcional
entre a firma e o exercício de uma empresa. A firma, disse-se, não constitui um
bem em si e por si, desde logo apenas pode ser negociado com a empresa a cujo
exercício anda ligada, como tal não pode subsistir à margem daquele exercício;
mais, à margem de um qualquer exercício empresarial. A firma é, assim,
funcionalmente dependente de um exercício empresarial; este é o sustento
energético daquela, desaparecido aquele, a firma extingue-se por inanidade. Isto,
apesar de a firma ser objecto de um direito absoluto17, e estes não se extinguirem
com o simples não uso, pois o não uso é ainda uma firma de uso.
A caducidade da firma necessita de ser declarada pela conservatória
competente, a pedido de qualquer interessado (art.º 36.º, n.º 1), não opera, pois,
oficiosamente. A conservatória dará um prazo de um mês, ao titular inscrito, para
responder, caso queira (art.º 36.º, n.º 2). Caso julgue verificados os factos
fundamento da caducidade, indicados no art.º 35.º, a conservatória declarará a
caducidade e averba-la-á oficiosamente (art.º 36.º, n.º 3 e 5). Desta declaração de
caducidade cabe recurso para o tribunal. Tornando-se definitiva a declaração de
caducidade, a firma respectiva fica livre, podendo ser objecto de novo pedido de
registo, a favor de novo titular, nos termos gerais.
Finalmente, o direito à firma, enquanto direito disponível, pode ser
objecto de renúncia do seu titular, mediante declaração por escrito à
conservatória competente (art.º 37.º, n.º 1 e 2).
17 Cfr. Ferrer Correia, 1973, p. 281.
3.3. Escrituração mercantil e prestação de contas
3.3.1. Enquadramento e fundamentos
Todo o empresário comercial está obrigado a ter escrita organizada,
adequada à sua empresa, que permita o conhecimento cronológico de todas as
suas operações, bem como à elaboração periódica de balanços e inventários (art.º
38.º), e, especialmente, a permitir conhecer com clareza a representação
fidedigna do seu património, da sua situação financeira e dos resultados da
exploração da sua empresa, em conformidade com as disposições legais (art.º
54.º, n.º 2)18.
A obrigação de o empresário ter escrita organizada é-lhe imposta no seu
próprio interesse, e, indirectamente, no interesse dos terceiros (credores) que com
ele têm relações comerciais, e no interesse da própria RAEM, interessada em
conhecer a verdadeira situação e os resultados da exploração da empresa19.
A contabilidade foi e continua a ser um elemento fundamental para
aperfeiçoar o funcionamento da empresa, porque através dela o empresário fica
não só em condições de conhecer a sua situação patrimonial e o estado dos seus
negócios, mas também, com base na informação que a contabilidade encerra,
programar a sua linha de conduta futura, de modo mais racional. Por outro lado,
se a contabilidade é verdadeira, está bem organizada e elaborada, e representa
uma representação fidedigna do seu património, da situação financeira e dos
resultados da exploração da empresa, isso é benéfico para o interesse geral. A
RAEM está interessada em conhecer a verdadeira situação patrimonial dos
empresários, não só por razões fiscais, dado que estes são os seus principais
contribuintes, mas também para a atribuição de benefícios fiscais, subvenções,
etc., bem como para efeitos da qualificação da falência, sabido que esta pode
constituir crime (art.ºs 223.º, 224.º e 225.º do Cód. Penal). Mas a contabilidade
devidamente ordenada protege também, indirectamente embora, os credores do 18 Cfr. Manuel Broseta Pont, Fernando Martínez Sanz, Manual de derecho mercantil, vol. I, 11.ª ed., TECNOS, 2002, p. 101; Canaris, 2000, p. 272. 19 Idem, ibidem; Peter Jung, Handelsrecht, 5.ª ed.ª, Verlag C.H.Beck, 2006, p. 180.
empresário, quer os actuais quer os futuros, pois a sua decisão, de concederem ou
não crédito ao empresário, dependerá da situação patrimonial que este apresente.
Situação patrimonial, esta, para cujo conhecimento se afigura de fundamental
importância a documentação e registo das operações mercantis do empresário,
isto é a sua contabilidade. Finalmente, a contabilidade é de primacial relevo para
os sócios das sociedades comerciais e membros dos demais empresários
comerciais, pessoas colectivas, pois dela dependerá a exacta determinação dos
lucros de exercício, com base nos quais será efectuada a repartição do dividendo
(art.º 198.º, n.º 2)20.
A última nota referida logo nos alerta para o facto de que a escrita
mercantil se imbrica inextrincavelmente com a obrigação de prestação de contas,
que a lei comete aos empresários, e que assume a sua relevância máxima em sede
de sociedades comerciais. Justamente por isso é que, p.e., Canaris21 considera a
escrita mercantil (Handelsbücher), como parte de uma mais geral obrigação de
prestação de contas (Rechnunglegung), e nesse contexto expõe o tema.
A disciplina legal baseia-se nas disposições do anterior Código Comercial,
que simplificou substancialmente (v.g., diminuiu os livros obrigatórios), mas
também nas disposições do Anteprojecto de Lei das Sociedades Comerciais
respeitantes às contas anuais, e, muito especialmente, na directiva comunitária n.º
78/600/CEE, de 25 de Julho de 1978 (4.ª directiva sobre sociedades), sobre as
contas anuais das sociedades de capitais. Embora a referida directiva se referisse,
como disse, apenas às sociedades de capitais, tendo em conta que a maioria dos
empresários comerciais são sociedades, e dentro destas sociedades de capitais
(anónimas ou por quotas), por um lado, que os demais tipos societários são
irrelevantes em Macau e que os empresários individuais são em regra pequenos
empresários, e por isso, lhes seriam inaplicáveis as disposição relativas à
obrigação de ter escrita organizada (art.º 13.º, n.º 1), entendeu-se generalizar a
20 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 104. 21 2002, p. 270.
aplicação das referidas exigências a todos os empresários, e, por conseguinte,
incluiu-se o essencial da disciplina em questão no Código Comercial22.
3.3.2. Livros obrigatórios
A escrita mercantil é efectuada com o apoio de um conjunto de livros,
impostos por lei, e, por isso, ditos obrigatórios. Os livros obrigatórios são os
indicados no n.º 1 do art.º 39.º (na redacção da Lei n.º 6/2000): o livro de
inventário e balanços e os demais que sejam fixados por ordem executiva. Não
era assim na redacção original do preceito, pois então prescrevia-se, para além do
livro de inventário e balanços, um livro do diário e não se fazia qualquer
referência a livros impostos por ordem executiva.
A exclusão do livro do diário do n.º 1 do art.º 39.º levantava uma dúvida
quanto ao exacto alcance da medida, porquanto a lei continuava a prever a função
e o modo de escrituração do mesmo, no art.º 43.º. Esta situação foi saneada pela
Lei n.º 16/2009, que revogou este preceito. Apesar de a função do livro do diário
ser a de registo quotidiano das operações praticadas, como base para a elaboração
dos futuros balanços, ter-se-á julgado que, porventura, esses registos podem ser
assegurados sem o recurso a este livro.
Quanto aos livros que sejam impostos por ordem executiva, o que se pode
dizer é que se tratou de repetir aquilo que já se dizia, e continuou a dizer aliás, no
n.º 5 do art.º 39.º, na medida em que as ordens executivas se enquadram dentro
das disposições especiais (como os regulamentos administrativos e as leis da
AL), a que a lei se refere no n.º 5. Fez bem, por isso, a lei (Lei n.º 16?2009) ao
dar nova redacção ao n.º 1 do art.º 39.º, em que se já não faz menção à ordem
executiva. A mesma lei deu também nova e mais elegante redacção ao n.º 2.
22 Acompanhou o legislador a opção do legislador espanhol que, pelos mesmos motivos, incluiu no Código Comercial as normas resultantes da transposição da directiva comunitária em questão (cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 102. Idêntico procedimento se adoptou na Alemanha, tendo a transposição da 4.ª directiva, bem como das 7.ª e 8.ª directivas sobre sociedades, respeitantes, respectivamente, a balanço dos grupos de sociedades e a auditoria, levado à reforma de 1986 do HGB, com a introdução de um novo Livro III, dedicado à escrituração mercantil (cfr. Canaris, 2000, p. 269; K.Schmidt, 1997, pp. 439, 440).
Aos indicados no n.º 1 do art.º 39.º, acrescem, para os empresários pessoas
colectivas, livros de actas (art.º 39.º, n.º 2) (da assembleia geral, do conselho de
administração, do conselho fiscal – art.º 252.º, n.º 1, als. a), b) e c)), o livro de
registo de ónus, encargos e garantias (art.º 252.º, n.º 1, al. d)), o livro de registo
de acções (art.º 252.º, n.º 1, al. e)), o livro de registo de emissão de obrigações
(art.º 252.º, n.º 1, al. f)). Estes três últimos tipos de livros obrigatórios
representam exemplos de livros impostos por disposições especiais, a que faz
referência o n.º 5 do art.º 39.º. A par destes, prevê a lei a possibilidade de os
empresários utilizarem outros livros (v.g. livro do razão, onde os elementos, que
são de incluir no livro do diário, aparecem em contas de Deve e Haver, por forma
a facilmente se conhecer a situação económica do empresário), consoante assim o
entendam conveniente (art.º 39.º, n.º 5).
O livro de inventários e balanços abre com um balanço inicial e detalhado
da empresa (do que é que a constitui) e nele são lançados os balanços a que
empresário está obrigado por lei (art.º 42.º).
3.3.3. Formalidades e requisitos externos da escrituração
A diferença entre livros obrigatórios e não obrigatórios reside na
circunstância de, relativamente àqueles que considera obrigatórios, a lei
estabelecer particulares cautelas destinadas a assegurar a fidedignidade da
informação neles contida. Assim, impunha a sua legalização (art.º 40.º, n.º 1) por
intermédio de notário23 ou do conservador do registo comercial (art.º 41.º). A lei
n.º 6/2000 veio permitir que a legalização dos livros obrigatórios possa ser
efectuada por qualquer membro da gerência24 ou administração, devidamente
23 O que representa uma novidade relativamente ao direito pretérito em que apenas o conservador do registo comercial podia efectuar a legalização dos livros obrigatórios, tal qual ainda sucede hoje em Portugal. Pretendeu a lei aproveitar do facto de em Macau existir o regime de notariado privado, por um lado, e de a maioria dos advogados serem notários privados, por outro, para, sem cedências às exigências de rigor, agilizar a legalização dos livros de escrituração mercantil obrigatórios. 24 A lei quer referir a gerência órgão das sociedades, não o gerente, a que se referem os art.ºs 64.º ss. Na verdade, a lei introduziu, no art.º 383.º, um novo n.º 2 (dizemos que introduziu um novo n.º 2, porquanto, embora o art.º 383.º já tivesse um n.º 2, o conteúdo do novo n.º 2 nada tem que ver com o anterior, não representando uma mera alteração de redacção, mas sim um verdadeira revogação do anterior e
autorizado (Por quem? Pelos restantes membros do órgão, todos apenas a
maioria? E se o órgão for singular? Pela Assembleia Geral?), ou pelo secretário
(da sociedade). Por conseguinte, a lei n.º 6/2000 veio estender para os livros, em
sentido estrito, a faculdade que admitia para os livros compostos por folhas soltas
(infra). A partir de agora, a legalização apenas será efectuada por notário ou pela
conservatória quando se trate de empresários individuais, pois não é crível que,
podendo-o fazer directamente sem custos e sem demoras, os interessados vão
requerer a terceiros (notário ou conservador) a legalização dos seus livros.
A lei, atendendo à crescente divulgação e utilização dos meios
informáticos, para permitir a impressão da informação arquivada em computador,
já tinha admitido que os livros pudessem ser constituídos por folhas soltas (art.º
39.º, n.º 3). As quais, em conjuntos de 60, devem ser numeradas sequencialmente
e rubricadas pela gerência ou administração ou secretário, que também lavram os
termos de abertura e de encerramento (art.º 39.º, n.º 4). Contudo, continuava a
exigir a legalização das folhas soltas, agrupadas em conjuntos de 60 e, depois de
devidamente numeradas, rubricadas e com os respectivos termos de abertura e de
encerramento lavrados (art.º 39.º, n.º 4, in fine). A legalização consistiria nesse
caso na assinatura, pelo notário ou conservador, ou quem este representasse, dos
termos de abertura e de encerramento (art.º 40.º, n.º 2). A partir da lei n.º 6/2000,
já não existe esta última exigência legal.
No fundo, tratou-se de alargar a todos os livros, independentemente da sua
composição, da faculdade conferida aos interessados relativamente aos livros
constituídos por folhas soltas e de afastar a necessidade da intervenção do notário
ou do conservador. Ora, a comissão da legalização a um terceiro, oficial público
ou dotado de fé pública, visava assegurar a integridade e incolumidade dos livros
obrigatórios, o que não é seguro que esteja assegurado no novo sistema. O que é
que impede os interessados de terem vários livros, para poderem manipular a sua
contabilidade a seu bel prazer, se são eles mesmos que os legalizam?
introdução de um novo n.º 2), que permite que os estatutos das sociedades por quotas (e as outras não podem?) possam prever outras designações para os administradores, como, p.e., directores, gerentes.
A legalização consiste na assinatura dos termos de abertura e de
encerramento, na indicação, na última folha25, do número de folhas que o livro
contem e na numeração e rubrica de cada uma das folhas que compõem o
respectivo livro (art.º 41.º, n.º 2).
Permite ainda a lei que a escrita mercantil possa ser levada
exclusivamente em termos informáticos, ou seja, sem necessidade da reprodução
da informação respectiva em folhas soltas. Antes da Lei n.º 16/2009, isso
resultava inequivocamente do art.º 46.º, n.º 3 que expressamente referia tal forma
de manutenção da escrituração mercantil, contanto que se conformasse com os
princípios de uma contabilidade ordenada (art.º 46.º, n.º 3). Para tal era
necessário assegurar que a informação, arquivada em suporte informático, ficasse
acessível durante o período de conservação obrigatória, que era de 10 anos (art.ºs
46.º, n.º 4, 49.º, n.º 1), e agora passou a 5. Os n.º 3 e 4 do ar.º 46.º foram,
contudo, revogados pela Lei n.º 16/2009, mas não o seu conteúdo que passou a
constituir o n.º 3 do art.º 49.º. O que, aliás, é confirmado pelo n.º 6 do art.º 46.º,
que se refere à legalização dos livros em suporte informático, dizendo-se aí que a
mesma está sujeita à adopção de procedimentos que garantam a inalterabilidade
da informação neles contida. Por outro lado, foi dada nova redacção ao art.º 47.º,
passando aí a prever-se não só, como até agora a microfilmagem dos documentos
de suporte da escrituração, mas também à sua passagem para suporte electrónico.
Contudo, a deslocalização do conteúdo dos n.ºs 3 e 4 do art.º 46.º, , para o art.º
49.º, que trata do prazo da conservação, não parece acertada, porquanto a
manutenção da escrituração em suporte electrónico é questão que se prende com
a forma da conservação (v.g., em papel, em suporte electrónico?), tratada no
referido art.º 46.º, não com o problema do prazo pelo qual deve ser conservada,
que constitui o objecto do art.º 49.º, pelo que era ali que correctamente estava
ubiquada.
Quanto aos requisitos externos da escrituração, determina a lei que os
livros devem de ser lavrados com clareza, por ordem cronológica, sem espaços
em branco, interpolações, emendas ou rasuras, não podendo ser utilizados
25 Na redacção original, dizia-se que esta indicação era efectuada na primeira folha de cada livro.
códigos, siglas ou abreviaturas cujo significado não seja claro relativamente à lei
(art.º 46.º, n.º 1, 1ª parte e in fine). Os erros ou omissões devem ser corrigidos,
imediatamente após a sua descoberta, sendo que, se for necessário efectuar o
cancelamento de algum registo, este deve ser realizado de forma a que o registo
cancelado se mantenha legível (art.º 46.º, n.º 1).
A escrituração mercantil, para além de poder ser conservada em suporte
informático, pode ainda ser microfilmada, substituindo os microfilmes os
originais para todos os efeitos (art.º 47.º). As fotocópias e as ampliações obtidas a
partir do microfilme têm a força probatória do original, contanto que contenham
a assinatura do responsável pela microfilmagem, devidamente autenticada (art.º
48.º).
O empresário estava ainda obrigado a conservar a sua escrituração
mercantil (livros, correspondência, documentos e demais justificativos relativos à
sua empresa), devidamente ordenados, pelo prazo de 10 anos, a partir do último
assento lavrado nos livros, sem prejuízo do disposto em disposições especiais
(art.º 49.º, n.º 1). O prazo de 10 anos, que, recorde-se, reduziu a metade o anterior
prazo de 20 anos fixado no art.º 40.º do Código Comercial de 1888, era fixado
por coordenação com o prazo de prescrição do procedimento penal, fixado na al.
c) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 110.º do Cód.Penal, atento a que, nos termos do art.º
223.º, n.º 1, a falência intencional é punida com pena de prisão até cinco anos.
Esta obrigação do empresário mantinha-se, mesmo após a cessação do
exercício da empresa, até ao decurso do prazo de 10 anos, e mesmo que o
empresário tivesse falecido, devendo neste caso a conservação da escrita
mercantil ser assegurada pelos herdeiros, e, tratando-se de empresário comercial,
pessoa colectiva (v.g. sociedade, agrupamento de interesse económico) pelos
liquidatários (art.º 49.º, n.º 2), embora o prazo de conservação, neste caso e só
neste caso, fosse apenas de 5 anos, por força do art.º 322.º, n.º 2. “Tendo em
conta que é este prazo de 5 anos o fixado pela pela lei fiscal para a conservação
dos livros de escrituração, talvez fosse conveniente uniformizar estas
disposições”, escrevíamos nós ao tempo. Esta uniformização foi efectuada
recentemente pela Lei n.º 6/2009, de 10 de Agosto, pelo que o prazo de
conservação dos livros de escriuração mercantil é agora de apenas 5 anos.
3.3.4. Contas anuais ou de exercício
O empresário está ainda obrigado, no seguimento da obrigação de levar
escrituração mercantil ordenada, e agora numa perspectiva de prestação de
contas, a elaborar as contas anuais ou de exercício, no prazo de 3 meses a contar
do encerramento do exercício, que compreenderão o balanço, a conta de ganhos e
perdas e o anexo (art.º 54.º, n.º 1). O balanço compreende, com a devida
separação, os bens e direitos que constituem o activo da empresa e as obrigações
que formam o passivo da mesma, especificando os fundos próprios (art.º 55.º, n.º
1, 1.ª parte). Nos termos da parte final do n.º 1 do art.º 55.º, o balanço de abertura
de um exercício deve corresponder ao balanço de encerramento do exercício
anterior (princípio da identidade).
O balanço de exercício permite conhecer a situação patrimonial resultante
da exploração da empresa, num dado momento (dimensão estática)26.
A conta de ganhos e perdas constitui um complemento do balanço e
compreende, com a devida separação, os proveitos e os custos do exercício e, por
diferenças, o resultado, positivo ou negativo, do mesmo, ou seja, a existência de
ganhos (lucros) ou perdas, distinguindo os resultados ordinários, aqueles que
resultam da exploração da empresa, dos resultados extraordinários, aqueles que
não resultam daquela exploração (v.g. a venda de um imóvel, no caso de um
empresário têxtil) (art.º 55.º, n.º 2).
A conta de ganhos e perdas, contrariamente ao balanço, não permite
conhecer apenas a situação patrimonial num dado momento, mas sim o
desenvolvimento da situação patrimonial ao longo do exercício, permitindo
determinar a utilização dada aos recursos e a causa dos lucros ou perdas
verificadas (dimensão dinâmica)27.
26 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 106. 27 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, idem, p. 106.
Ao balanço e à conta de ganhos e perdas acresce ainda o anexo que
completa, amplia e explica a informação contida naqueles (art.º 55.º, n.º 3, 1.ª
parte). Assume basicamente uma função explicativa da informação contida quer
no balanço, quer na conta de ganhos e perdas.
As contas anuais são elaboradas pelo empresário, como aliás toda a
demais escrituração mercantil, ou por alguém por sua indicação, e devem ser
redigidas com clareza, de modo a mostrar a representação fidedigna 28 do
património (true and fair view)29, da situação financeira e dos resultados da
empresa (art.º 54.º, n.º 2). A necessidade de as contas revelarem a representação
fidedigna do património é o princípio cardinal nesta matéria, de tal sorte que, se a
aplicação das normas legais não for suficiente para assegurar a imagem fiel do
património, devem as mesmas ser complementadas com as informações
necessárias a atingir aquele desiderato (art.º 54.º, n.º 3), podendo até determinar a
inaplicação de normas jurídicas, em princípio, aplicáveis, quando da aplicação
destas possa resultar uma distorção daquela imagem (art.º 54.º, n.º 4, 1.ª parte).
Quanto aos critérios valorimétricos a utilizar na redacção das contas
anuais, os mesmos são determinados por lei, em ordem a permitir que as contas
de todos os empresário sejam normalizadas para poderem ser comparadas30, e
correspondem aos princípios de contabilidade geralmente aceites (art.º 58.º, n.º
1). A lei indica, nas várias alíneas neste n.º 1, algumas das regras que devem ser
observadas para a redacção das contas anuais: a presunção de que a empresa
continua em funcionamento (princípio da continuidade formal), que os critérios
valorimétricos não se alteram de ano para ano (princípio da consistência), que é
observada a adequada prudência valorativa (princípio da prudência), que os
custos e os lucros são imputados ao exercício em que se verificaram,
independentemente do momento da data do pagamento ou da cobrança (princípio
da especialização ou acréscimo), que os vários elementos integrantes das diversas
rubricas do activo e do passivo, são valorizados autonomamente (princípio da
28 Esta expressão foi introduzida pela Lei n.º 16/2009, em substituição da expressão “imagem fiel”. Nada a dizer, porquanto a nova expressão parece mais rigorosa e técnica, o que se aplaude. 29 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, idem, p. 106; K.Schmidt, 1997, p. 461. 30 Idem.
avaliação individual), que os elementos do activo imobilizado e do activo
circulante são contabilizados pelo custo de aquisição ou custo de produção
(princípio do custo histórico). Em caso de conflito, prevalece a regra da
prudência valorativa, que obriga a indicar no balanço apenas os lucros já
realizados na data do seu encerramento (princípio da realização), a ter em conta
os riscos previsíveis e as perdas eventuais com origem no exercício ou em
exercício anterior, distinguindo-se as realizadas ou irreversíveis das potenciais ou
reversíveis e a ter em conta as depreciações (princípio da materialidade) (art.º
58.º, n.º 2). Em situações excepcionais, estes princípios podem não ser aplicados,
devendo a sua inaplicação ser fundamentada no anexo, e explicada a sua
influência sobre o património, a situação financeira e os resultados da empresa
(art.º 58.º, n.º 3).
As contas anuais devem ser assinadas pelo empresário, ou, tratando-se de
empresário comercial, pessoa colectiva, por todos os seus administradores (art.º
57.º, n.º 1, als. a) e b)). Ao assinarem as contas anuais, as pessoas a quem a lei o
impõe, assumem o seu conteúdo e eventuais inexactidões, independentemente de
terem sido ou não eles que as elaboraram31.
3.3.5. Valor probatório da escrituração mercantil
A escrituração mercantil devidamente organizada pode ser utilizada pelo
empresário como meio de prova contra outros empresários, nas condições
indicadas no art.º 51.º. A lei supõe que se a escrituração está devidamente
elaborada e organizada, então os factos que reporta são verdadeiros. Com isto a
lei permite ao empresário fazer prova com factos que ele própria cria. Trata-se de
faculdade que a lei em nenhum outro local atribui, o valor de prova dos vários
factos é determinado pela própria lei, mas não pode ser determinado directamente
pelos próprios interessados. Quer dizer, em regra, os interessados não podem
atribuir valor probatório aos seus próprios factos, não podem criar a sua própria
prova. Pois bem, no âmbito da actividade mercantil, supõe a lei que os
31 Idem.
empresários, sendo pessoas diligentes e zelosos dos seus interesses, ao registarem
os factos do seu comércio fazem-no porque os mesmos são verdadeiros. E como
verdadeiros os considera a lei para efeitos de prova contra outros empresários,
que, de duas uma, ou apresentam assentos contabilísticos devidamente ordenados
de sinal contrário aos que resultam dos assentos do primeiro ou então verão ser
contra eles prevalecente o sentido que dos registos deste resultam contra si (art.º
51.º, n.º 1, al. b) e c)), se não apresentarem prova em contrário. Quer dizer,
mesmo que, de acordo com as regras gerais de distribuição do ónus da prova,
incumbisse ao empresário fazer a prova dos factos que invoca, se ele apresenta a
sua escrituração mercantil devidamente organizada, basta-lhe invocar os assentos
constantes dos seus livros de escrituração, para que passe a ser a contraparte a ter
de demonstrar que a materialidade invocada não corresponde à realidade. Se este
tem, também ele, a sua escrituração mercantil regularmente arrumada, e da
mesma constam assentos que contrariam os assentos do outro, volta-se à primeira
fase: é o empresário que pretende invocar certo direito que terá de fazer prova
dos factos constitutivos, e a correr consequentemente o risco da não prova. Se o
empresário, contra o qual se invocam certos assentos contabilísticos, tem
escrituração mercantil organizada, mas não apresenta assentos opostos aos do
outro (al.b do n.º 1 do art.º 51.º), ou se não tem a sua escrituração devidamente
ordenada, ainda que dela constem assentos opostos aos da outra parte (al.c) do n.º
1 do art.º 51.º), então só através dos meios gerais pode infirmar a materialidade
que daqueles flui. Não o conseguindo, verá prevalecer contra si aqueles assentos,
com as inerentes consequências.
Os assentos constantes dos livros de escrituração mercantil, devidamente
arrumados, farão prova também contra o empresário que, em vez de apresentar
escrita desorganizada, pura e simplesmente não tem os livros de escrituração, que
está obrigado a ter, ou se recusa a apresentá-los, salvo se a falta dos livros se
dever a caso de força maior (v.g. furto, incêndio), e sem prejuízo do recurso aos
meios gerais de prova (art.º 51.º, n.º 2).
Os assentos contabilísticos do empresário que lhe sejam desfavoráveis,
mesmo quando este não tenha a sua escrituração mercantil devidamente
arrumada, fazem prova contra ele (al.a) do n.º 1 do art.º 51.º), pois presume a lei
que, tendo a escrita desorganizada, se mesmo assim nela registou certo facto que
lhe é adverso é porque o mesmo é verdadeiro. Contudo, aquele que de tais factos
se pretenda prevalecer tem também de suportar os factos registados que lhe sejam
desfavoráveis, a despeito da desorganização da escrita mercantil da contraparte
(art.º 51.º, n.º 1, al. a), in fine). Não pode pois escolher os que lhe são favoráveis
e desconsiderar os adversos: ou tudo ou nada.
3.3.6. Carácter secreto da escrituração mercantil
A escrituração mercantil é secreta, não podendo ser objecto de devassa
sem prévio consentimento do empresário, sendo certo que sobre aqueles que, em
virtude das suas funções, tomam conhecimento da mesma impende um dever de
segredo. A lei, em certas circunstâncias, as indicadas no n.º 2 do art.º 52.º,
permite que, mesmo contra a vontade do empresário, a escrituração possa ser
consultada e examinada (exame geral), a requerimento de quem nisso tenha
interesse [v.g. os herdeiros, os credores do falido, os sócios em nome colectivo
(art.º 336.º, n.º 1)] ou oficiosamente. Fora desses casos, o exame da escrita é
sempre particular, ou seja, limitado aos aspectos relacionados directamente com
o assunto em discussão, e apenas possível desde que o empresário respectivo
tenha interesse ou responsabilidade no assunto. O que logo nos diz que a
exibição só pode verificar-se compulsivamente em sede da competente acção
judicial (art.º 52., n.º 3).
O exame da escrituração mercantil será efectuado de forma a limitar o
mais possível os riscos de devassa, devendo o mesmo ocorrer na empresa e na
presença do empresário ou de quem o represente (art.º 53.º, n.º 1). Aquele a quem
a lei confere o direito de exame, quer geral quer particular, poderá fazer-se
acompanhar por técnicos auxiliares, na forma e número que o tribunal entender
conveniente (n.º 2 do art.º 53.º). Pretende a lei assegurar o exercício material do
direito de exame e não apenas o exercício formal, porquanto, implicando a
compreensão da escrituração mercantil especiais qualificações, sempre que o
interessado as não possuísse, ver-se-ia impedido, de facto, de exercer o seu
direito.
3.3.7. Auditoria das contas anuais
Para além de em certas circunstâncias, limitadas embora, a lei permitir o
exame, quer geral quer particular, da escrituração mercantil do empresário,
também admite, e por vezes determina, a possibilidade de as contas anuais
(balanço, conta de ganhos e perdas e anexo) serem auditadas. Umas vezes, a lei
impõe que as contas anuais sejam sempre auditadas [v.g. contas anuais das
Seguradoras (art.º 88.º, n.º 1 do D/L n.º 27/97/M, de 30 de Junho), dos Bancos
(art.º 53.º, n.º1, do D/L n.º 32/93/M, de 5 de Julho) etc.], outras vezes, permite
que a requerimento de quem nisso demonstre interesse sério (v.g., quando um
sócio tiver fundadas suspeitas de graves irregularidades, pode requerer ao
tribunal exame judicial à sociedade, nomeando o tribunal um auditor de contas
para o efeito – art.º 211.º, n.ºs 1 e 2) o tribunal ordene que as contas anuais sejam
sujeitas a auditoria (art.º 60.º, n.º 1). Neste último caso, o tribunal exigirá que o
requerente preste caução adequada a cobrir as custas processuais e despesas da
auditoria, as quais ficarão a cargo do requerente, quando não se encontrem vícios
ou irregularidades (art.º 60.º, n.º 2).
4. Obrigação de registar certos factos
A lei determina a necessidade de o empresário registar certos actos (art.º
12.º, al. c)), para tal institui o registo comercial destinado a dar publicidade à
situação jurídica dos empresários e das empresas comerciais, tendo em vista a
segurança do comércio jurídico (art.º 61.º).
Na verdade, o exercício da empresa traduz-se na prática de actos em
massa, o que origina a estipulação de inúmeras relações com terceiros; além
disso, os empresários recorrem intensamente ao crédito, potenciam a sua
intervenção jurídica no mundo económico através de gerentes, utilizam firmas,
por vezes de mera fantasia (art.º 22.º, n.º 1, al. c)), firmas, essas, que podem ter
pertencido a outrem (art.º 31.º); por outro lado, as empresas são objecto de um
direito de propriedade (art.º 95.º), e podem ser objecto de vários negócios, tudo
circunstâncias que aconselhem um adequado sistema de publicidade que permita
aos terceiros facilmente conhecerem a situação jurídica dos empresários e
respectivas empresas.
Esse sistema de publicidade jurídica é, justamente, assegurado pelo registo
comercial, cujo regime jurídico, para lá das duas disposições (art.ºs 61.º e 62.º)
que o Código Comercial lhe dedica, consta do D/L n.º 56/99/M, de 11 de
Outubro32, com as alterações resultantes da Lei n.º 5/2000, de 26 de Abril.
A função essencial do registo é dar publicidade a certos factos em ordem à
protecção da segurança do comércio jurídico, por isso, em regra, um acto sujeito
a registo, enquanto não registado, se produz efeitos entre as partes e seus
herdeiros, já não produz efeitos contra terceiros, a menos que estes os
conhecessem ou não devessem ignorar, atentas as circunstâncias (art.º 9.º, n.º 1,
CRC).
Em regra o registo tem um efeito meramente declarativo (art.º 8.º CRC),
em certos casos, porém, assume uma feição constitutiva (art.º 9.º, n.º 2). Assim,
v.g., as sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica com a sua
inscrição no registo (art.º 176.º), o penhor de empresa só se considera constituído
com registo (art.º 145.º), o mesmo sucede com a garantia flutuante (art.º 931.º, n.º
2).
3. Os auxiliares do empresário
3.1. Auxiliares subordinados e auxiliares autónomos
Para desenvolver a sua empresa, o empresário comercial, para o
desempenho das várias tarefas em que se desdobra o exercício da empresa, tem
normalmente necessidade de recorrer aos serviços de terceiros que se tornam
32 De ora em diante CRC.
seus colaboradores ou auxiliares, e que se distinguem em duas grandes
categorias: auxiliares subordinados e auxiliares autónomos.
Os auxiliares subordinados são aqueles que se obrigam mediante
retribuição a colaborar na empresa, prestando a sua actividade intelectual ou
manual sobre a direcção e dependência do empresário. Os auxiliares
subordinados distinguem-se em dirigentes (administrativos ou técnicos),
empregados e operários. O vínculo que liga os auxiliares subordinados ao
empresário é normalmente um vínculo laboral.
Os auxiliares autónomos são aqueles que se obrigam perante o empresário
a realizar por sua conta, sem vínculo de subordinação, uma obra ou serviço.
Muitas vezes, estes são, por sua vez, empresários, e com a sua empresa fornecem
um determinado serviço aos empresários de que são auxiliares: é o caso do
agente, cuja actividade consiste em promover negócios para o principal (art.º
622.º), ou celebrando em nome próprio negócios, no interesse e por conta do
empresário comitente (art.º 593.º).
Entre as actividades que fazem surgir os auxiliares autónomos, o Código
regula o contrato de agência (art.ºs 622.º ss); o contrato de mediação (art.ºs 708.º
ss); o contrato de comissão (art.ºs 593.º ss); o contrato de expedição (art.º s 616.º
ss), que representam outros tantos exemplos das actividades auxiliares a que se
refere a al.e) do n.º1 do art.º 2.º.
3.2. Auxiliares subordinados com poderes de representação
Entre os auxiliares subordinados, assumem particular importância aqueles
que têm poderes de representação, i.e. poderes para praticarem em nome e por
conta do empresário determinados actos jurídicos cujos efeitos se repercutem
sobre o património do empresário. Este poder de representação é regulado por
normas especiais – que fazem parte do estatuto do empresário – dirigidas a
consentirem aos terceiros, que entram em relações com os representantes do
empresário, conhecerem com rapidez e segurança os exactos poderes destes
representantes.
A regra nesta matéria é a de que os colaboradores têm todos os poderes de
representação necessários ao exercício das funções de que estão encarregados
dentro da empresa, com exclusão daqueles que lhes tenham sido retirados por
modo que seja cognoscível pelos terceiros interessados, ou de que estes tenham
tido conhecimento33.
Os representantes comerciais distinguem-se em representantes gerais
(gerentes e procuradores) e representantes particulares (auxiliares strictu sensu):
os primeiros têm poderes para praticar todos os actos respeitantes ao exercício da
empresa, salvo aqueles que forem expressamente excluídos pela lei ou pela
proposição de gerência; os segundos têm apenas poderes para praticar
determinados actos.
3.2.1. Auxiliares com poderes de representação gerais
3.2.1.1. O gerente
O gerente (no direito pretérito designado gerente de comércio – art.º 248.º
Código Comercial de 1888) é o representante geral do empresário no exercício da
empresa ou de uma sucursal da empresa, na sede principal ou numa sede
secundária (v.g. director geral da filial de um Banco). Ao gerente é assim
confiada toda a actividade da empresa ou de uma parte desta que constitua uma
unidade orgânica (sucursal).
A proposição de gerência é o negócio jurídico pelo qual o empresário
nomeia o gerente, atribuindo-lhe os poderes de representação previstos na lei. A
proposição de gerência pode resultar de um comportamento, colocando uma
pessoa à frente da empresa ou de uma parte da empresa (art.º 64.º). Os poderes de
representação do gerente estendem-se por força da lei (art.º 65.º, n.º 1) a todos os
actos respeitantes ao exercício da empresa para que se acha proposto, salvas as
limitações resultantes da proposição. O gerente tem pois, em princípio, os
poderes para praticar não só os actos materiais inerentes ao exercício de uma
33 Cfr. G.Auletta, N.Salanitro, 1998, p. 100.
empresa (v.g., decidir o que produzir, em que quantidade, de que qualidade, etc.),
mas também os actos jurídicos que esse exercício reclamar, v.g., contratar
pessoal, comprar maquinismos (máquinas, ferramentas, computadores, etc.),
adquirir matéria prima, vender os produtos acabados, etc..
Estes poderes podem, como dissemos, ser limitados pela proposição, v.g.,
a proposição pode excluir os poderes de constituir garantias sobre bens móveis;
mas não existindo nenhuma limitação, o gerente terá os poderes de representação
indicados no n.º 1 do art.º 65.º. Em todo o caso, o gerente não tem poderes para
alienar (v.g., vender) ou onerar (v.g., hipotecar) os bens imóveis afectados ao
exercício da empresa, se esses poderes não lhe tiverem sido expressamente
conferidos na proposição (art.º 65.º, n.º 1 in fine). A lei menciona os bens
imóveis afectados ao exercício da empresa, querendo com isso significar aqueles
que são utilizados para o desenvolvimento do processo produtivo (v.g. o imóvel
onde se encontra instalada a fábrica, ou a sede da empresa), por conseguinte, o
gerente tem poderes para alienar os imóveis que constituem o produto acabado da
actividade desenvolvida na empresa, v.g., as fracções autónomas dos prédios
construídos por um empresário de construção civil34.
Por outro lado, sendo os poderes do gerente relativos ao exercício da
empresa é claro que ele não pode decidir a cessação do exercício, nem tão-pouco
celebrar negócios que tenham por objecto a própria empresa, v.g., venda da
empresa, locação da empresa, constituição de penhor sobre a empresa35.
O gerente tem também poderes de representação processual, activa e
passiva, do proponente em tudo o que diga respeito aos actos praticados no
exercício da empresa, podendo actuar em juízo em nome deste (art.º 65.º, n.º 2).
Assim, p.e., pode exigir judicialmente o cumprimento dos contratos que tenha
celebrado no âmbito do exercício da empresa, bem como pode ser accionado
judicialmente por qualquer incumprimento36. O proponente pode naturalmente
estipular limites aos poderes de representação processual do gerente, mas parece
34 Cfr. G.Auletta, N.Salanitro, idem, p. 101. 35 Ibidem. 36 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 363.
que apenas relativamente àqueles que respeitam à legitimação processual activa,
já não à passiva37.
O gerente está obrigado, conjuntamente com o empresário, a inscrever no
registo os actos a este sujeitos, bem como à observância das disposições legais
relativas à organização da escrituração mercantil (art.º 66.º).
O gerente está obrigado a indicar, aos terceiros com quem contrata no
exercício da empresa, a qualidade em que intervém no acto, devendo utilizar a
firma do empresário e assinar indicando a sua qualidade de gerente, nos
documentos relativos aos actos relativos ao exercício da empresa (art.º 69.º).
Caso omita a qualidade de gerente, ao terceiro de boa fé, responderá para com
este como se o negócio fosse seu; sendo que, se o terceiro vier a conhecer
ulteriormente a verdadeira situação, poderá actuar também contra o proponente,
mas sem perder o direito de responsabilizar o gerente (art.º 70.º). A lei
responsabiliza o gerente, porque, embora este actue para o proponente, ao não
clarificar perante o terceiro a qualidade em que intervém no acto, criou a
aparência de celebrar o negócio para si mesmo. O terceiro deve poder confiar
nessa aparência, pois só essa o determinou à celebração do negócio. Isto é, o
terceiro, desconhecendo a real situação, apenas podia confiar na pessoa do
gerente, e esta sua expectativa não deve ser defraudada. Por outro lado, o
negócio, se celebrado no exercício da empresa, vai aproveitar ao proponente,
pelo que a lei também a ele o responsabiliza, já que é ele que vai beneficiar do
negócio. Segue-se daqui que, se o negócio celebrado pelo gerente não se integrar
no âmbito da empresa para que se encontra proposto, já o terceiro não poderá
pretender responsabilizar o proponente, pois que a responsabilidade deste, pela
actuação do seu gerente, pára onde termina a empresa. O exercício da empresa
constitui o círculo delimitativo quer da competência do gerente, quer da
responsabilidade do proponente. Mas se assim é, e suposto que o proponente é
responsável, o que quer dizer que o negócio se integrou no exercício da empresa,
porque é que a lei não liberta o gerente da responsabilidade pelo acto? Porque foi
37 Ibidem.
nele que o terceiro confiou, por um lado, e porque pretende pressionar o gerente a
uma actuação transparente, por outro.
O gerente está obrigado a não fazer concorrência ao proponente, por si ou
por intermédio ou de conta de outrem, salvo se este o autorizar (art.º 71.º, n.º 1).
Presume-se o consentimento, quando à data da proposição de gerência, o gerente
já estivesse na situação de concorrente (n.º 2 do art.º 71.º). Compreende-se a
limitação legal, o gerente pela sua especial posição dentro da empresa do
proponente tem condições de efectuar uma concorrência particularmente nociva.
A violação da obrigação de não concorrência pelo gerente sujeita-o a ter de
indemnizar o proponente pelos danos causados (art.º 71.º, n.º 3), sem prejuízo de
este poder fazer seus os negócios celebrados pelo gerente em contravenção desta
obrigação (art.º 71.º, n.º 4).
O gerente, tendo em conta o carácter pessoal da proposição de gerência,
não pode fazer-se substituir no exercício das suas funções por terceiro, salvo
expresso consentimento do proponente (art.º 74.º).
A proposição de gerência dada a intensidade da confiança pessoal que
envolve, pode ser denunciada a todo o tempo, por qualquer das partes, mas, caso
não exista justa causa, o contraente, que denunciar o contrato, fica obrigado a
indemnizar a contraparte pelos prejuízos causados (art.º 73.º).
A proposição de gerência não caduca com a morte ou sobrevinda
incapacidade legal (v.g. interdição) do proponente, pois em princípio a empresa
subsistirá (art.º 75.º). Contudo, quer os herdeiros, quer o gerente poderão
denunciar a proposição de gerência, nos termos do art.º 73.º.
A proposição de gerência, a exemplo do que sucedia no Código Comercial
de 1888 [art.º 249.º e art.º 3.º, al. c) do D/L n.º 42644, de 14/11/1959 (CRCom.)],
nos termos do art.º 67.º, n.º 1 e do art.º 2.º, al. d) do CRC, estava sujeita a registo.
O não registo da proposição de gerência não determinava a ineficácia do acto
perante terceiros, mas tão-só reputar-se a mesma geral e compreensiva de todos
os actos necessários ou convenientes ao exercício da empresa; i.e., a falta de
registo não significava que o gerente não o era, mas apenas que as limitações,
que a proposição de gerência eventualmente contivesse, não seriam oponíveis aos
terceiros, que as desconhecessem (art.º 67.º, n.º 2). Estando registada a
proposição de gerência, as limitações aos poderes de representação do gerente
eram oponíveis aos terceiros, mesmo que estes as desconhecessem sem culpa
(eficácia positiva do registo); não estando registada, as limitações aos poderes de
representação do gerente não eram oponíveis a terceiros, salvo se o empresário
provasse que estes as conheciam ou que, atentas as circunstâncias, as não podiam
desconhecer, no momento da celebração do contrato.
Na medida em que os poderes de representação dos gerentes resultam da
lei, e o seu âmbito está pensado em ordem a facilitar a celebração dos negócios,
porquanto assegura a segurança e certeza do tráfico jurídico-mercantil, salvas as
limitações que a própria lei estabelece (art.º 65.º, n.º 1 in fine), os terceiros sabem
que o gerente pode praticar todos os actos inerentes ao exercício da empresa para
a qual se acha proposto. Se assim não for, e só não o será se os poderes, tal qual
resultam da lei, tiverem sido objecto de compressão na proposição, é necessário
dar-se disso público testemunho, por forma a que os interessados tomem desse
facto conhecimento, daí a necessidade do registo. Na verdade, só com o registo
estão os terceiros em condições de poderem conhecer os exactos contornos dos
poderes dos gerentes da empresa de outrem com os quais contratam.
Do mesmo modo, se os poderes tal qual resultam da lei ou, concretamente,
da proposição de gerência forem modificados ou revogados, essa modificação ou
revogação deveria ser registada, sob pena de não ser oponível perante terceiros.
Se os poderes são modificados, isso pode suceder quer porque se comprimiram
os poderes, quer porque se alargaram; a primeira situação, compressão dos
poderes, pode suceder quer porque inicialmente os poderes do gerente não
estavam sujeitos a nenhuma limitação, quer porque foram alargadas as limitações
já existentes. Em todo o caso, torna-se necessário, em ordem à protecção do
tráfico, informar publicamente os potenciais interessados das sobrevindas
alterações aos poderes do gerente. Do mesmo modo, no caso de serem os poderes
alargados, quer porque se atribuem ao gerente poderes para alienar ou onerar os
imóveis afectados ao exercício da empresa, quer porque se revogam as
limitações, todas ou algumas, contidas na proposição, disso se deve dar público
conhecimento.
No caso da revogação dos poderes de gerência, e por conseguinte em sede
de extinção da relação jurídica de gerência, é de prima evidência a necessidade
de disso se dar conhecimento aos interessados, porquanto até então, e mesmo que
a proposição não houvesse sido registada, havia alguém – o gerente – que, por
força da lei, tinha poderes de representação.
Quer a modificação, quer a revogação dos poderes de gerência estavam
sujeitas a registo, por força do art.º 68.º, n.º 1 e da al. o) do art.º 2.º do CRC; as
consequências da falta de registo, traduziam-se na não oponibilidade aos
terceiros, que as desconhecessem, das referidas modificações e revogação (n.º 2
do art.º 68.º). Se, p.e., os poderes de gerência fossem revogados, mas o facto não
fosse registado, o contrato que, após a cessação desses poderes, fosse celebrado
pelo ex-gerente com um terceiro desconhecedor da situação obrigava o
empresário, tal qual como se ele continuasse a ter os referidos poderes; sem
prejuízo da responsabilidade no plano interno das relações entre o empresário e o
gerente ou ex-gerente.
Os artigos 67.º e 68.º foram, contudo, revogados. As limitações,
alterações, revogações da proposição de gerência, diz a lei, podem ser levadas ao
conhecimento público se nisso os interessados convierem (art.º 2.º, n.º 1, als. g),
h) do CRC38). O que é que pretendeu a lei com este curioso regime? Quando a lei
diz que os interessados podem registar, também permite que não possam registar,
e, quer num caso quer noutro, sem quaisquer consequências, nomeadamente em
sede de oponibilidade a terceiros? Se não se ligam quaisquer consequências à não
efectivação do registo, o que é que ganham ou perdem os interessados com isso?
Foi isto que se quis? Seria, pelo menos, estranho que tivesse sido esta a intenção.
E desde que o interessado pode ou não registar estes actos, nos casos em que o
não faça, significa isso que as limitações, modificações e revogação da
proposição de gerência são, apesar de tudo, oponíveis aos terceiros que as
38 Código do Registo Comercial, aprovado pelo D/L n.º 56/99/M, de 11 de Outubro, com a redacção dada pela Lei n.º 5/2000, de 26 de Abril.
desconhecessem? A mera enunciação de tal possibilidade, por de tal modo
repugnar ao sentido jurídico, logo nos diz que não foi isso que se pretendeu.
Tendo em conta que os poderes do gerente decorrem da lei, e que é com
esses que qualquer pessoa pode e deve contar, pois ninguém pode invocar a
ignorância da lei para se eximir ao seu cumprimento e consequências, terá o
legislador querido que as limitações, modificações e revogação da proposição de
gerência, apenas relevassem nas relações internas, mas não fossem oponíveis a
terceiros, num sistema idêntico ao da Prokura germânica 39 , aproximando-se
assim do regime dos Códigos Comerciais da Coreia do Sul, do Japão e Taiwan?
Não cremos que tenha sido essa a intenção.
Por conseguinte terá querido o legislador dizer algo diverso. Pensamos
que terá impressionado o facto de a lei, no art.º 67.º, n.º 1, depois de dizer que a
proposição de gerência está sujeita a registo, vir dizer no n.º 2 que, enquanto não
registada, a proposição de gerência se considera compreensiva de todos os
poderes que, para o gerente, resultam do art.º 65.º. Afinal o registo é meramente
facultativo, e, por conseguinte, o acto não está sujeito a registo, pode ser
registado, se os interessados assim o entenderem.
O facto de certo acto estar sujeito a registo (traduzido na fórmula
sacramental “está sujeito a registo”), não significa que o registo do acto seja
obrigatório, no sentido de que, se o não for, o obrigado lhe verá ser aplicada uma
qualquer sanção40. O que sucede é que, se o registo for omitido, o obrigado não
pode opor o acto em causa aos terceiros, que dele não tenham conhecimento41.
39 Na Alemanha, o gerente de comércio tem uma Prokura, que se traduz na atribuição ao beneficiário de todos os poderes necessários, úteis ou convenientes para o exercício da empresa de que é encarregado, sendo que tais poderes, para além das limitações legais, que grosso modo correspondem às indicadas na parte final do art.º 65.º, n.º 1, são insusceptíveis de quaisquer compressões ou limitações com efeitos para terceiros. Ou seja, tais limitações podem ser acordadas pelos interessados, mas não são oponíveis a terceiros (Cfr. K.Schmidt, 1997, p. 488; Canaris, 2000, pp. 287 ss). 40 Na verdade, quando o registo é obrigatório, a sua efectividade é acompanhada de sanções, era o que sucedia na vigência do anterior Cód.Reg.Com. (D/L n.º 42644, de 14 de Novembro de 1959), no que toca às sociedades. Dizia-se, no art.º 6.º, que a matrícula dos comerciantes em nome individual era facultativa e a das sociedades e navios obrigatória. O não registo da sociedade, no prazo determinado (90 dias), dava lugar à aplicação de uma multa (14.º, n.º 1), e podia dar azo a procedimento criminal (14.º, n.º 2). 41 Falam os autores em obrigatoriedade indirecta, para significar justamente esta dimensão, por contraposição à obrigatoriedade directa, relativa àquelas situações em que a falta de registo é acompanhada de sanções (multa) (cfr. Menezes Cordeiro, 2001, p. 324).
Tão-só. Por isso é que os art.ºs 67.º, n.º 2 e 68.º, n.º 2 se limitavam a dizer que,
enquanto não registados, tais actos (as limitações, modificações e revogação da
proposição de gerência) não seriam oponíveis a terceiros. Não fazia mais a lei do
que aplicação da regra da não oponibilidade a terceiros, que, aliás, é enunciada,
em termos gerais, no art.º 9.º, n.º 1, do C.R.C. E, desse ponto de vista há que
concordar, as disposições dos art.ºs 67.º e 68.º eram desnecessárias, por já
estarem previstas, ou também estarem previstas no art.º 2.º do CRC, diploma
específico sobre a matéria.
Ora, o legislador terá cuidado que, dizendo que os interessados podem
registar se quiserem, estaria, no fundo, a dizer a mesma coisa, de forma mais
clara. Acontece é que, a par disso, continua a falar em actos sujeitos a registo,
desde logo os indicados no n.º 2 do mesmo preceito, a que se aplicam,
indubitavelmente, as consequências indicadas no citado n.º 1 do art.º 9.º do CRC
Contudo, este preceito limita-se a consagrar a regra da inoponibilidade dos actos
não registados, relativamente àqueles actos que estão sujeitos a registo: “Os
factos sujeitos a registo (...) só produzem efeitos contra terceiros depois da data
do respectivo registo”. De maneira que temos esta dificuldade: os factos que
podem ser registados não estão abrangidos pela letra do preceito, nem na lei
encontramos qualquer outra norma que estabeleça o mesmo efeito para os factos
que podem ser registados.
Não sofre dúvidas que a lei claramente diferencia factos sujeitos a registo
e factos que podem ser registados, mas será que com isso pretendeu estabelecer
um regime diverso, pelo menos no que respeita à oponibilidade a terceiros, para
ambas as categorias? Poder-se-ia ser tentado a concluir afirmativamente,
considerando que a lei, depois de ter transmudado em “podem ser sujeitos a
registo” todos os actos indicados no n.º 1 do art.º 2.º do CRC, manteve, quanto
aos indicados no n.º 2, a indicação de que estão sujeitos a registo. Tanto mais
quanto é certo que na redacção original do art.º 2.º do CRC não existia qualquer
numeração. A lei introduziu a numeração, porque quis claramente separar os
efeitos jurídicos ligados à prática dos actos indicados no n.º 1 e no n.º 2, só pode.
Mais, entre os actos indicados no n.º 1 do art.º 2.º CRC que podem ser
registados, encontra-se a proposição de gerentes e a constituição de procuradores
(al. d) do referido preceito), ora a lei introduziu uma nova alínea o) no art.º 5.º do
CRCom., com a mesma redacção daquela al.d) do art.º 2.º deste mesmo diploma
legal. Esta alínea o) não existia na versão original do CRC. Pela razão simples de
que se encontrava no art.º 2.º, pois que se trata de acto relativo à empresa. É de
gerentes e procuradores da empresa que se cuida na referida alínea d), não de
gerentes membros do órgão de administração, como facilmente se conclui do
facto de a lei continuar a fazer menção a estes na al. m). Pois bem, a introdução
de uma nova alínea no art.º 5.º do CRC, que trata dos actos sujeitos a registo
relativos aos empresários comerciais pessoas colectivas (v.g., sociedades),
mantendo-se a redacção da al. d) do art.º 2.º, embora num novo n.º 1, só poderia
entender-se como sendo consequência da alteração introduzida no corpo desta
norma. Tendo a lei determinado que os actos indicados no n.º 1 do art. 2.º podem
ser registados, terá pensado que, no âmbito societário (pois que é basicamente
disso que se trata no art.º 5.º do CRC), isso não bastava, sendo necessário que,
neste âmbito, esse registo tivesse um carácter mais intenso do que o que, a partir
da nova redacção do n.º 1 do art.º 2.º CRC, estaria reservado aos actos aqui
previstos, entre eles a proposição de gerentes e a constituição de procuradores,
daí a necessidade da nova al. o) do art.º 5.º do CRC, preceito este onde a lei
manteve a fórmula sacramental do “estão sujeitos a registo”.
Por outras palavras, a lei teria introduzido, no art.º 5.º do CRC, uma al. o)
com praticamente a mesma redacção da al. d) do n.º 1 do art.º 2.º, por entender
que, no caso das pessoas colectivas, era necessário assegurar que tais actos
seriam registados: “estão sujeitos a registo”, coisa que o “podem ser registados”
não garantiria, com o que julgaria que os efeitos ligados à utilização da fórmula
“podem ser registados” não são os mesmos dos ligados à fórmula “estão sujeitos
a registo”.
É certo que a introdução de uma nova alínea o) no art.º 5.º ainda se
poderia explicar: Como a lei deixou de sujeitar a registo a empresa, tornando este
facto num daqueles que podem ser registados, e como, nos termos do art.º 2.º, o
registo da proposição de gerentes e a constituição de procuradores supõe aquele
registo (da empresa), não poderiam estes factos nas pessoas colectivas ser
registados. Assim, o que se teria querido seria sujeitar a proposição de gerentes e
a constituição de procuradores a registo, mesmo que a empresa não fosse
registada.
Ainda assim, não parece poder encontrar-se qualquer explicação plausível
para o facto da introdução do n.º 2 do art.º 2.º do CRC, caso a nova fórmula do
n.º 1 e a inalterada da versão original e transposta para o novo n.º 2 valessem
afinal o mesmo, na ideia do legislador. Não se perceberia, efectivamente, se o
“podem ser registados” tivesse o mesmo valor do “estão sujeitos a registo”,
porque é que se teria alterado a fórmula do n.º 1 e mantido a original neste novo
n.º 2. A alteração, cremos bem, foi determinada pelo convencimento do
legislador de que os efeitos ligados a uma e a outra fórmula são diferentes: o que
não quer dizer, bem entendido, que seja correcto o convencimento, bem pelo
contrário.
Só que, como se disse, se esse convencimento foi o de que os actos que
podem ser registados não são susceptíveis de ser oponíveis a terceiros, então
deixaria de haver qualquer razão plausível para os interessados se darem à
maçada (e despesas!) de os registarem. Se, por outro lado, se quisesse pretender
que os mesmos produziriam sempre efeitos contra terceiros, estando ou não
registados, estariam criadas as condições para os maiores abusos, com
repercussões gravíssimas na segurança do tráfico mercantil. Por conseguinte, e
sob pena de ficar sem qualquer sentido útil a fórmula da lei, e mais grave a
diligência dos interessados, os actos que podem ser registados, se o forem, hão-
de ser oponíveis a terceiros. Terão, pois, o mesmo sentido útil dos actos que estão
sujeitos a registo: a lei não pode promover a prática de actos inúteis.
Assim, impõe-se uma interpretação hábil do n.º 1 do art.º 9.º do CRC, no
sentido de que, quando a lei menciona os factos sujeitos a registo, não quer
significar apenas aqueles factos que a lei expressamente diz estarem sujeitos a
registo, mas quaisquer factos que sejam susceptíveis de registo, também, pois, os
que podem ser registados. O resultado final vem assim a ser aquele que valia
antes da intervenção legislativa, para quê, então, esquartejar, trucidar a lei?
Mas não é tudo: com efeito, o legislador depois de ter revogado os art.ºs
67.º e 68.º (art.º 4.º da lei n.º 6/2000), manteve a sujeição a registo da proposição
de gerentes para os empresários comerciais, pessoas colectivas, maxime
sociedades comerciais (dando nova redacção à al. o) do art.º 5.º do
Cód.Reg.Com.), mas já não a revogação da proposição de gerência!!! e muito
menos as limitações ou alterações aos respectivos poderes. É que, ao contrário do
art.º 2.º, redacção original, do CRC, o art.º 5.º não tem nenhuma alínea com o
conteúdo da al. o) daquele preceito. Na verdade, o legislador transpôs para a
novel al. o) do art.º 5.º do CRC o conteúdo da al. d) do art.º 2.º, na redacção
original do CRC, onde efectivamente menção alguma se fazia à necessidade de
registo quer das alterações, quer da revogação aos poderes do gerente, mas isso
por desnecessidade, dado que tais factos se encontravam previstos por força da
al. o), que sujeitava a registo toda e «Qualquer alteração dos elementos indicados nas
alíneas a), b) e d)», logo as alterações, bem como a revogação dos poderes de
gerente estavam sujeitas a registo; o que aliás já resultava (ou resultava
essencialmente) do art.º 68.º.
Ora, não se vê porque é que a proposição de gerência deva estar apenas
sujeita a registo tratando-se de empresários comerciais, pessoas colectivas,
porque, como vimos, os respectivos poderes decorrem directamente da lei; por
conseguinte, o que é necessário é sujeitar-se a registo as limitações, bem como as
eventuais alterações, aos poderes que da lei decorrem directamente para o
gerente.
3.2.1.2. Os procuradores do empresário
Os procuradores são uma espécie de representantes do empresário que têm
em comum com o gerente o carácter continuativo da sua representação (art.º
76.º), mas que carecem dos poderes (materiais) para exercer (gerir) a empresa ou
uma sua sucursal42.
A expressão procurador no seu significado comum abarca qualquer pessoa
que esteja investida de poderes de representação, com uma procuração, geral ou
especial para actos particulares, substancial ou processual. Mas no sentido
específico com que aparece no art.º 76.º, a expressão abrange apenas os
representantes do empresário investidos, com carácter de estabilidade, dos
poderes para celebrar, em nome do empresário, negócios relativos ao exercício
da empresa deste, apesar de não se encontrarem propostos (como gerentes) para o
exercício da mesma (v.g., director de pessoal, director de compras).
Tal como sucede com os gerentes, a procuração escora-se num negócio
causal duradouro, regra geral um contrato de trabalho, mas pode também ser um
outro contrato duradouro, v.g. mandato43.
3.2.2. Os auxiliares com poderes de representação particular (auxiliares strictu
sensu)
Os auxiliares strictu sensu são também representantes estáveis do
empresário, mas investidos de poderes mais limitados do que os do gerente e do
procurador, apesar de continuados, resultantes de um contrato de trabalho
subordinado.
Não confundir com os representantes do comerciante que, na vigência do
anterior Código Comercial, eram designados por auxiliares (art.ºs 256.º e 257.º),
porquanto estes eram as pessoas que, não sendo gerentes, os comerciantes
encarregavam do desempenho constante, i.e. estável, continuado, de algum ou
alguns ramos do tráfico a que se dedicassem, e os empregados enviados pelo
comerciante a localidade diversa daquela em que tivesse o seu domicílio com
poderes para efectuar operações do comércio daquele. A diferença entre os
auxiliares e os gerentes de comércio residia na extensão dos respectivos poderes:
42 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 367. 43 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 368; F.Galgano, “Diritto civile e commerciale”, passim.
os destes eram gerais, os daqueles parciais44. Ora, para o Código Comercial as
pessoas que estejam propostas para o exercício de um ramo particular da empresa
(ramo do tráfico) de outrem são gerentes e os que, não sendo gerentes, podem
celebrar, de modo continuado, negócios relativos ao exercício da empresa de
outrem são procuradores; pelo que aqueles que a lei anterior designava por
auxiliares estão hoje englobados na figura do gerente e do procurador. Assim
sendo, a figura dos auxiliares no Código Comercial abrange as pessoas que no
direito pretérito eram designadas por caixeiros (art.ºs 259.º e seguintes).
Quanto aos poderes de representação de que gozam os auxiliares, a regra é
a de que, salvas as limitações decorrentes dos usos ou da lei, estes podem praticar
todos os actos que, de acordo com o tipo de empresa 45 , normalmente se
enquadram na espécie de operações de que estão encarregados (art.º 77.º, n.º 1).
Limites legais aos poderes dos auxiliares são a proibição de exigir o preço das
mercadorias que não tenham vendido, e por conseguinte das quais não façam a
entrega, ou de conceder dilações (prazo) de pagamento ou descontos que não
sejam conforme com os usos, se para tal não estiverem expressamente
autorizados (art.º 77.º, n.º 2). Mesmo que tenham sido eles a efectuar a venda, se
porventura existe uma caixa própria para o efeito (v.g. pré-pagamento; as várias
caixas de pagamento que existem no Yaohan) não podem receber o pagamento
do preço (art.º 80.º, n.º 1). Se a venda é efectuada fora das instalações da empresa
(caixeiros-viajantes), o auxiliar não tem poderes apesar disso para receber o
preço se não entregar o recibo assinado pelo empresário (ou por quem tenha
poderes para o obrigar, v.g., gerente), salvo se para o efeito tiverem sido
autorizados pelo empresário ou por quem o represente (art.º 78.º, n.º 2).
Se o empresário tiver pré-elaborado um clausulado contratual, para a
celebração dos negócios da sua empresa, os auxiliares mesmo que estejam
autorizados a celebrar negócios em nome do empresário, não podem derrogar as
cláusulas gerais da empresa sem autorização escrita para o efeito (art.º 78.º). Pelo
44 Cfr. António Menezes Cordeiro, “Manual de direito comercial”, I vol., Almedina, 2001, p. 487. 45 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 371.
que o respectivo negócio só obrigará o empresário caso este o ratifique, nos
termos gerais.
Os auxiliares, relativamente aos negócios que hajam efectivamente
celebrado em nome do empresário (não pois relativamente àqueles que, muito
embora estejam compreendidos dentro dos seus poderes representativos, não
tenham sido por eles celebrados), têm legitimação passiva substancial para
receber em nome deste as declarações respeitantes à execução do contrato e as
reclamações relativas aos eventuais incumprimentos contratuais (art.º 79.º, n.º 1).
Têm também legitimidade activa para requererem providências cautelares no
interesse do empresário; legitimação que se deve considerar extensiva a outros
actos, como, por exemplo, denúncia de vícios ou defeitos das coisas compradas,
e outros actos extrajudiciais destinados a salvaguardar os interesses do
empresário 46 . Estes poderes, pelo que diz respeito à legitimação activa, na
medida em que são conferidos para tutela dos interesses do empresário, podem
por este ser excluídos ou limitados; já os de legitimação passiva, porque
instituídos para protecção dos interesses dos terceiros que com o empresário
contratem, não podem por este ser limitados, muito menos excluídos47.
Quanto à oponibilidade a terceiros dos poderes dos auxiliares, bem como
das respectivas limitações ou revogação, como o acto do qual decorre a qualidade
de auxiliar (contrato de trabalho) não está sujeito a registo, aplicam-se as regras
gerais sobre representação do Código Civil (art.ºs 251.º ss), especialmente o art.º
259.º48.
4. Da responsabilização pelo exercício da empresa
4.1. Dos bens que respondem por dívidas contraídas no exercício da empresa
46 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 372; António Pinto Monteiro, “Contrato de agência – anotação ao Decreto-Lei n.º 178/86”, 2.ª ed. actualizada, Almedina, 1993, pp. 47, 48. 47 Cfr. A.De Martini, ibidem. 48 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 371.
Em matéria de responsabilidade por dívidas, a regra é a de que o devedor
responde com todo o seu património, indiferenciadamente, quer se trate de
pessoa singular quer se trate de pessoa colectiva, maxime sociedade49. É isso que
se pretende dizer, quando se afirma que o património do devedor constitui a
garantia geral do credor (art.º 596.º Ccivil).
Dissémos que responde indiferenciadamente com o todo o seu património,
porque a lei não prevê em geral a possibilidade de o devedor, que pretende
exercer uma actividade económica, limitar a sua exposição a uma parte do seu
património, a não ser através da via indirecta da constituição de uma sociedade
comercial, por quotas ou anónima. Tão-pouco prevê em geral, a lei, uma
qualquer regra de precedência na responsabilização dos bens do devedor que
tenha em conta a fonte da dívida. Independentemente de se tratar de uma dívida
comercial ou de uma dívida particular, o credor tem sempre à sua disposição a
totalidade do património do seu devedor para obter a satisfação do seu crédito.
No mundo mercantil, a principal razão para a concessão de crédito a um
empresário reside na existência, e, sobretudo, no funcionamento da empresa, pois
é o exercício desta que, regra geral, permitirá ao devedor a obtenção dos
rendimentos necessários à satisfação dos seus débitos, quer os mercantis quer os
outros. Entendeu, por isso, a lei, sem ter ido ao ponto de criar um património
separado, criar uma regra de precedência no acesso aos bens do devedor para
efeitos da satisfação das suas dívidas, consoante se trate de dívidas resultantes do
49 É assim errónea a ideia da contraposição entre sociedades de responsabilidade ilimitada (v.g sociedades em nome colectivo) e sociedades de responsabilidade limitada (v.g. sociedades por quotas). A responsabilidade das sociedades, enquanto pessoas jurídicas diversas dos seus sócios, pelas dívidas sociais é sempre ilimitada, como a de qualquer pessoa singular. O que pode suceder é que, ademais da responsabilização do património da sociedade (todo), respondam ainda, em via subsidiária, os sócios. É quando isto acontece que se fala em sociedade de responsabilidade ilimitada, por contraposição às de responsabilidade limitada, em que os sócios não são nunca chamados a responder pelas dívidas sociais. Mas já se vê que a responsabilidade que assim se tem em vista não é a da sociedade, esta responde sempre nos termos do art. 559.º Ccivil, mas sim dos seus sócios, estes é que podem responder pelas dívidas sociais, assumindo responsabilidade ilimitada por aquelas dívidas. Uma última nota: a designação de sociedades de responsabilidade limitada, é ainda errónea sob outro ponto de vista. Na verdade, com essa expressão quer-se significar que os sócios não respondem pelas dívidas sociais, mas ainda assim sugere-se que têm alguma responsabilidade, embora limitada. Ora, os sócios das sociedades, ditas de responsabilidade limitada, não têm nem pouca nem muita responsabilidade pelas dívidas sociais: pura e simplesmente não são responsáveis. Têm é a responsabilidade de pagar à sociedade a contrapartida da participação social que subscreveram, quer no momento da constituição quer no momento de um ulterior aumento de capital. Liquidada esta contribuição, nenhuma outra responsabilidade social lhes é assacada.
exercício da empresa ou antes de dívidas provenientes de outros factos. Assim,
quando se trate de dívidas provenientes do exercício da empresa, respondem em
primeiro lugar os bens que constituem a empresa, pois foi nestes que o credor
fundou, em regra, a expectativa de satisfação do seu crédito, e apenas quando
estes não bastem, poderá agredir os demais bens do devedor (reserva civil) (art.º
82.º, n.º 1). Do mesmo passo, os credores particulares do empresário não poderão
satisfazer os seus créditos sobre bens da empresa, enquanto não demonstrarem a
insuficiência dos bens particulares para o efeito (art.º 82.º, n.º 2).
A norma tem a sua fonte nos velhos costumes mercantis, que concediam o
privilégio de os bens do negócio do comerciante individual responderem
preferencialmente pelos créditos resultantes do seu exercício50.
A norma, obviamente, não preclude o funcionamento das regras
particulares relativas às várias garantias.
4.2 Responsabilidade dos bens do casal por dívidas comerciais dos cônjuges
4.2.1. Dívidas comerciais da responsabilidade de ambos os cônjuges contraídas
pelo cônjuge comerciante
4.2.1.1. O regime do art.º 1558.º, n.º 1, al. d) do Ccivil e seu fundamento
Nos regimes de comunhão, geral ou de adquiridos, de bens, as dívidas
contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio são da
responsabilidade de ambos (al. d do n.º 1 do art.º 1558.º do CCivil), respondendo
por elas os bens comuns do casal e, subsidiariamente, os bens próprios de cada
um dos cônjuges (art.º 1562.º, al. c) do CCivil).
Responsabilizando os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência
destes, os bens próprios de cada um dos cônjuges, reforçou o legislador a
garantia dos credores do comerciante.
50 Cfr. Paulo Merea Sendim, Lições de direito comercial e da economia, vol. I, p. 93.
Como se disse, um dos interesses que cumpre ao direito comercial
defender é o da tutela do crédito por forma a facilitar ao máximo a sua
obtenção51. A tutela do crédito faz-se em dois momentos: a montante, na altura
da concessão/obtenção do crédito; a jusante, na altura da efectivação do crédito.
Quanto ao primeiro destes momentos, a facilidade na obtenção de crédito
está directamente ligada à garantia dos credores: quanto mais forte for essa
garantia, mais predispostos estarão os credores a concedê-lo ao comerciante.
O art.º 1558.º, n.º 1, al. d) ao considerar como da responsabilidade de
ambos os cônjuges as dívidas resultantes do comércio do cônjuge devedor, tem
como imediata consequência a directa responsabilização dos bens comuns e dos
bens próprios dos cônjuges, assim aumentando a base patrimonial adstrita à
satisfação dos respectivos credores52.
Trata-se de uma disposição nitidamente dirigida à protecção do tráfico
mercantil, daí que apenas quanto às dívidas contraídas no âmbito da actividade
mercantil profissional do cônjuge devedor tenha lugar a sua aplicação.
Com efeito, comercial é toda a dívida que promane de um acto de
comércio, mas nem todos os actos de comércio praticados pelo cônjuge
comerciante são praticadas no exercício do seu comércio, no exercício da sua
actividade mercantil profissional. Ora, apenas estas, as contraídas no exercício da
actividade mercantil profissional do cônjuge devedor, ou seja, aquelas que põem
em jogo interesses de tutela do crédito mercantil, reclamam a responsabilidade de
ambos os cônjuges e logo a afectação do património familiar e particular dos
cônjuges à sua satisfação53.
Terá sido uma ideia de justiça relativa que terá informado a solução da al.
d) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil. O legislador terá entendido que, sendo o
comércio exercido, na generalidade dos casos, para benefício da família (sendo o
comércio a profissão do cônjuge devedor, será normalmente exercido, como
qualquer outra profissão, em ordem a obter meios que lhe permitam satisfazer as
suas necessidades e as da sua família, quando seja este o caso), por isso, se 51 Cfr. Lobo Xavier, 1977/78, p. 93. 52 Idem, p. 91. 53 Idem, pp. 97, 98.
afigura razoável que por essas dívidas sejam responsabilizados, numa primeira
linha, aqueles bens que estão especialmente afectados à satisfação das
necessidades da família: os bens comuns; e, numa segunda linha, os bens
próprios de qualquer dos cônjuges, pois que ambos aproveitam do comércio
exercido apenas por um deles.
Esta ideia transparece cristalinamente do facto de a lei permitir que o
cônjuge do devedor afaste quer a responsabilização dos bens comuns quer a dos
seus bens próprios, provando que a dívida, apesar de contraída no exercício do
comércio do cônjuge devedor, não foi contraída em proveito comum. Se a dívida
foi contraída pelo cônjuge devedor animado por uma intenção de satisfação de
necessidades puramente pessoais, então não há razão nem para se responsabilizar
aqueles bens que estão vocacionados para satisfazer necessidades comuns, nem
para se responsabilizar os bens próprios do outro cônjuge54.
O mesmo acontece, desresponsabilização dos bens comuns e dos próprios
do outro cônjuge, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do CCivil, se este
provar que a dívida, muito embora comercial, não foi contraída no exercício do
comércio do seu cônjuge. Não quer isto dizer, note-se, que a dívida em questão
passe, sem mais, a ser da responsabilidade exclusiva do cônjuge devedor. Na
verdade, a prova de que a dívida, sendo comercial, não foi, no entanto, contraída
no desenvolvimento da actividade mercantil profissional do cônjuge devedor,
apenas afasta a responsabilização dos bens comuns e dos próprios do outro ao
abrigo da al. d) do art.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil. Isto, porque falta o
pressuposto básico em que assenta a norma: a de que o exercício profissional do
comércio é efectuado a benefício de ambos os cônjuges. Mas pode bem suceder
que a referida dívida venha a afectar na mesma ambos os cônjuges, e logo os
bens comuns e os próprios do outro, por força de uma das demais alíneas do n.º 1
do referido art.º 1558.º.
As dívidas comerciais do cônjuge comerciante contraídas no exercício da
sua actividade mercantil profissional, só não responsabilizarão os bens comuns
do casal e os próprios do outro, caso não tenham sido contraídas em proveito
54 Idem, p. 91 e nota 3.
comum do casal. Será o caso de os cônjuges se encontrarem separados de facto e
não contribuir o cônjuge comerciante para o sustento do outro55.
É claro que, por força da al. c) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil, as dívidas
contraídas por qualquer dos cônjuges em proveito comum do casal, e nos limites
dos seus poderes de administração, já seriam comuns. Só que, nestes casos, o
proveito comum não se presume; pelo que o credor, para responsabilizar ambos
os cônjuges pela dívida, teria que provar o proveito comum. Ora é a prova do
proveito comum que a al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil, quanto às dívidas
nela mencionadas, dispensa ao credor, para o efeito de poder responsabilizar os
bens comuns e os próprios dos cônjuges56.
4.2.1.2 O art.º 81.º do Ccom. e a responsabilização dos bens do casal por dívidas
comerciais
Mas o legislador ainda previu uma outra disposição destinada a proteger o
crédito dos credores dos comerciantes: o art.º 81.º do Ccom.. Com efeito, pelo
funcionamento da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil, o credor está
dispensado de provar o proveito comum do casal para responsabilizar os bens
comuns e os bens próprios dos cônjuges, mas já não está dispensado de provar
que a dívida é comercial e, mais importante, que foi contraída no exercício do
comércio do cônjuge devedor57.
Contudo, o art.º 81.º veio estabelecer que as dívidas comerciais do
empresário comercial se presumem contraídas no exercício da sua empresa. Ora
dívidas comerciais são as resultantes de actos de comércio, pelo que basta ao
credor fazer prova disto (de que a dívida promana de um acto de comércio), para
que a mesma se presuma contraída no exercício da empresa do devedor, o mesmo
é dizer no exercício do comércio do devedor, para, sendo este casado num dos
regimes de comunhão de bens, responsabilizar os bens comuns do casal e, na sua
falta ou insuficiência, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. 55 Idem, ibidem. 56 Idem, p. 94. 57 Idem, p. 98.
Por força deste art.º 81.º, o credor do empresário poderá mais facilmente
aproveitar do disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º, reforçando deste modo a
tutela do crédito mercantil..
Resumindo, a consideração isolada da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do
Ccivil, não dispensa o credor de provar a pertinência da dívida comercial ao
exercício do comércio, rectius da empresa comercial, do cônjuge devedor. Mas
essa pertinência é dispensada pelo art.º 81.º.
O credor do comerciante, para efeitos da responsabilização dos bens
comuns do casal e dos bens próprios do outro cônjuge, apenas terá que fazer
prova de que a dívida é comercial, porque imediatamente funcionará a presunção
ínsita no art.º 81.º.
O que assume particular significado em sede de dívidas cambiárias. Com
efeito, a subscrição de uma letra de câmbio58 representa sempre, na medida em
que prevista na lei comercial, um acto de comércio objectivo e, nessa medida, a
dívida aí titulada uma dívida comercial. Ora, se subscrita por um comerciante,
essa dívida, por força da presunção resultante do art.º 81.º, considera-se contraída
no exercício do sua empresa e logo, por força da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do
Ccivil, será da responsabilidade de ambos os cônjuges. O que quer dizer que o
credor cambiário terá particularmente facilitada a tarefa de responsabilizar os
bens comuns do casal e os próprios dos cônjuges.
Nem se diga, como alguns, que a subscrição de um título de crédito,
nomeadamente de uma letra de câmbio, ou de uma livrança como é mais comum
em Macau, está longe de se ligar ao exercício do comércio. Temos sérias reservas
quanto ao bem fundado desta ideia que não se demonstra, ao que saibamos, em
qualquer estudo estatístico. Ora sem uma base estatística segura que demonstre
inequivocamente que a utilização dos títulos de crédito, deixou de ser obra dos
comerciantes e passou a ser obra essencialmente dos particulares, é puramente
gratuita a afirmação de que hoje em dia a subscrição de, por exemplo, uma letra
de câmbio ou de uma livrança não está relacionada com o exercício mercantil
profissional.
58 O mesmo se diga relativamente a qualquer outro título de crédito.
Esta ideia, se bem julgamos perceber, radica numa confusão: a de que a
utilização comum dos títulos de crédito significa que essa utilização deixou de
ser obra preferencial dos comerciantes. Ora a possibilidade da utilização comum
dos títulos de crédito representa apenas uma consequência lógica e necessária da
consideração de que os mecanismos mercantis, sendo invenções determinadas
pelas específicas necessidades do mundo do comércio, não deixam de ser aptas
para tutelar necessidades mais simples, como as ligadas ao mundo civil.
O direito comercial, como nos ensina Orlando de Carvalho, é sempre um
direito pioneiro, pois, tal como a expansão mercantil postula uma busca constante
de novos produtos, de novos serviços, de novas formas de associação, também
postula uma constante procura de novos instrumentos jurídicos. Não é por acaso
que a invenção de novos mecanismos jurídicos, nomeadamente no domínio da
técnica contratual, se verifica no espaço das economias mais desenvolvidas. E
assim é que o franchising, o factoring, o engineering, o merchandising, as joint
ventures, etc., surgiram nos EUA, que é como sabemos a mais forte economia a
nível mundial.
O direito comercial surgiu historicamente porque os quadros do direito
civil se revelaram inadequados às novas necessidades postas pelo
desenvolvimento do comércio. E esse circunstancialismo mantém-se como uma
característica do direito comercial moderno; é tão-só natural que as novas formas
de exercício mercantil se não encaixem nos quadros tradicionais e por isso
tenham os interessados de inventar novos produtos jurídicos para satisfação das
novas necessidades. Do mesmo modo que é natural que essas novas soluções
sejam depois importadas pelo mundo civil, o que não quer dizer que deixem de
ser soluções fundadas na lógica mercantil.
Mas também fora do domínio cambiário a importância do art.º 81.º é
manifesta. Quanto às dívidas resultantes de qualquer acto de comércio objectivo,
porque presumindo-as como contraídas no exercício mercantil do cônjuge
empresário, dispensa assim o credor de provar essa pertinência, passando a ser o
outro cônjuge quem tem que provar que a dívida, sendo comercial, não foi
contraída no exercício mercantil profissional do seu cônjuge, ou que não foi
contraída em proveito comum do casal.
Por outro lado, dada a existência de uma presunção genérica de
comercialidade para os actos de carácter patrimonial praticados pelos
comerciantes, basta que estejamos perante um destes actos, do qual não resulte
que não foi praticado no exercício do comércio do cônjuge devedor, para que
funcione o art.º 81.º.
Quer isto dizer que o art.º 81.º do Ccom. se traduz numa disposição
especialmente vocacionada à tutela do comércio, na medida em que cria as
condições para que a responsabilização de ambos os cônjuges por dívidas
comerciais, e logo o benefício do alargamento da base patrimonial adstrita à
satisfação das mesmas, se torne mais fácil e expedito.
4.2.2. A coordenação entre o art.º 1558.º, n.º 1 do CCivil, al. d) e o art.º 84.
Atento o art.º 82.º e o regime de responsabilidade dos bens do casal,
resultante do art.º 1558.º, n.º 1, al. d) e do art.º 1562.º, a lei estabeleceu a
coordenação que entre esses preceitos se deve verificar, dispondo que primeiro,
tal qual resulta do art.º 82.º, n.º 1, respondem os bens da empresa e, só na falta ou
insuficiência destes, é que, então respondem os bens comuns do casal e
subsidiariamente os bens próprios de qualquer dos cônjuges. Assim, se a empresa
não é um bem comum do casal, por outras palavras é um bem próprio de um dos
cônjuges, respondem, por força do art.º 82.º, os bens da empresa, que são
próprios de um dos cônjuges, e, na falta ou insuficiência, os bens comuns, não
chegando estes, respondem então, solidariamente, os bens próprios do cônjuge
não empresário e os restantes bens próprios do cônjuge empresário. Neste caso,
começaram por responder, por dívidas que são da responsabilidade de ambos os
cônjuges, bens próprios de um deles, o cônjuge empresário, pelo que se torna
necessário proceder à sua compensação, sob pena de locupletamento dos bens do
casal e do outro cônjuge às custas daquele. Por conseguinte, é necessário
distinguir consoante existem ou não bens comuns suficientes: se existem, depois
de satisfeitos os credores mercantis, pela diferença, entre o montante suportado
pelos bens comuns e o total da dívida, deve o cônjuge empresário ser
compensado pelos bens comuns. Como consequência teremos um correlativa
diminuição do património comum do casal, o que se aceita, atento a que, em
primeiro lugar, era a este património que cabia responder por aquelas dívidas,
enquanto comuns. Não chegando os bens comuns para integral satisfação dos
credores, procederão, estes, contra os patrimónios particulares dos cônjuges, em
regime de solidariedade (art.º 1562.º, al. c)). Podem então suceder várias
situações: a) os credores atacam exclusivamente os bens particulares do cônjuge
empresário; b) atacam exclusivamente os bens particulares do outro cônjuge; c)
atacam indiferenciadamente uns e outros. Na primeira hipótese, o cônjuge
empresário terá respondido exclusivamente com bens próprios por dívidas que
são comuns, pelo que deverá ser compensado pelo outro cônjuge, nos termos do
art.º 1565.º, n.º 1. Na segunda hipótese, far-se-á o acerto de contas entre o que
cada um deles suportou das dívidas comuns, em ordem a determinar a quem
pertence o saldo credor, ficando o cônjuge respectivo credor do outro, nos termos
do art. 1565.º, .º 1. Na terceira hipótese, proceder-se-á como na hipótese anterior:
deslindar-se-á o que é cada um pagou, apurar-se-á o saldo respectivo e aplicar-se-
á o n.º 1 do art.º 1562.º.
Sendo a empresa um bem comum, como sucederá na generalidade dos
casos, respondem os bens que a compõem e, na falta ou insuficiência, os demais
bens comuns, caso existam, e subsidiariamente os bens próprios de qualquer dos
cônjuges. Os acertos de contas entre os cônjuges, relativamente ao que qualquer
deles tenha suportado a mais do que lhe competia, será efectuado nos termos do
art.º 1562.º, n.º 1.
4.3. O art.º 83.º e a tutela dos credores de Macau
O art.º 83.º, n.º 1 determina que, no caso de empresários não residentes
que aqui tenham uma representação da sua empresa, os bens afectados à
representação apenas respondem por dívidas não relacionadas com a exploração
da representação, depois de satisfeitos todos os créditos originados em Macau.
Trata-se de uma norma que, complementada pelo n.º 2, que estabelece limites
quanto à inclusão na massa falida, de falência decretada fora de Macau, dos bens
da representação, pretende tutelar os credores de Macau, que fizeram fé no
património que o seu devedor demonstrava em Macau, a não verem as suas
expectativas defraudadas. Norma semelhante, que constituiu fonte deste preceito,
encontra-se no art.º 25.º do D/L n. 33/93/M, de 5 de Julho (RJSFM), mas que se
entendeu corresponder a preocupações dignas de tutela não apenas no âmbito da
actividade bancária.
4.4. Da responsabilidade civil do (empresário) produtor
O empresário pode ser responsável, como qualquer outra pessoa, para com
terceiros quer contratualmente, quer extracontratualmente. Neste último caso,
para que o empresário responda para com o terceiro é necessário que este
demonstre que se verificam no caso os pressupostos da responsabilidade civil
extracontratual (art.º 477.º, n.º 1 do Código Civil).
Actualmente tende-se a entender que o empresário deve responder
objectivamente, independentemente de culpa pois, para com aqueles com quem
se relaciona e mesmo para com qualquer terceiro, já que o exercício de uma
actividade económica de per si cria uma situação de risco acrescido, por cujos
danos deve o empresário responder, pois que daquela situação, que criou o risco,
se aproveita. É nesta linha que se enquadra a responsabilidade por produtos
defeituosos, consagrada no Título VIII, art.ºs 85.º a 94.º, que, no essencial,
recolhe, a disciplina da directiva comunitária (Directiva CEE 85/374, de 25 de
Julho de 1985) sobre a questão.
A aplicação das regras gerais relativas à venda de coisas defeituosas (art.ºs
905.º e seguintes), revela-se insuficiente. Em primeiro lugar, porque não confere
protecção a todo o círculo de potenciais lesados pelo defeito do produto, pois
que, por força do princípio da relatividade dos contratos, apenas protege os
compradores, deixando de fora todos os demais lesados59 (v.g. A adquire uma
bebida gaseificada a B, que serve a C, seu convidado, e a garrafa explode
provocando danos a C); depois, porque, mesmo relativamente ao comprador, a
lei apenas admite a reparação ou substituição da coisa, se o vendedor conhecia o
vício ou falta de qualidade do bem (art.ºs 906.º e 907.º, n.º 2). Ora, atento que,
relativamente à maioria dos produtos, o vendedor não é o produtor, mas um
simples intermediário que nenhuma intervenção tem sobre o bem que vende,
limitando-se a adquiri-lo ao produtor, e armazená-lo até proceder à sua venda, na
esmagadora maioria dos casos não só não será a fonte do defeito 60 , como
desconhecerá sem culpa o vício ou falta de qualidade do bem e, por conseguinte,
não poderá ser responsabilizado, nem sequer neste limite mínimo da reparação ou
substituição da coisa61. E se não pode responsabilizar o vendedor, também não
pode responsabilizar o produtor, porque com este não celebrou nenhum contrato.
O dano contudo verificou-se quer na medida em que o bem padece de vício ou
falta de qualidade, quer porque esses vício e falta de qualidades foram causa da
produção de outros danos, quer para o comprador quer para terceiros.
Ora, se parece inadequado pretender responsabilizar o mero vendedor, que
se limita a ser um elo da cadeia de distribuição montada pelo produtor dos bens,
sem qualquer possibilidade de controlar a fabricação e, por conseguinte, sem
qualquer culpa quanto à concreta conformação que o bem vem a ter, não menos
inadequado parece aceitar o dano sem responsável, o mesmo é dizer aceitar que
seja o adquirente final, consumidor, a suportar o dano como se de Fado seu se
tratasse, e isto sabendo-se que o bem foi por alguém produzido, que o pôde
controlar e conformar, e que, em todo o caso, lucra com ele: o produtor62.
Percebe-se, assim, que quer a doutrina, quer a jurisprudência tenham
desenvolvido apurados esforços no sentido de criar bases para a
responsabilização contratual do produtor. Só que as várias construções, que
foram sendo ensaiadas, revelaram-se insatisfatórias para responder 59 Cfr. João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, Almedina, 1990, p. 284. 60 Mas poderá sê-lo se, porventura, o defeito resultou, ou se agravou, em virtude de más condições de armazenamento, se vendeu o produto fora do prazo de validade, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 282, 540. 61 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 282. 62 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 283
adequadamente ao problema, quer por muito artificiosas, quer porque deixavam
de fora os danos sofridos por terceiros ou por simples bystander63. O que acabou
por obrigar a responsabilização do produtor a sair para fora dos limites estreitos
da clássica responsabilidade contratual.
Nem a própria responsabilidade extracontratual, a despeito de constituir
um progresso relativamente à responsabilização em via contratual, pois permite
proteger não só o consumidor adquirente do produto, bem como qualquer
terceiro que venha a sofrer danos causados pelo produto defeituoso64, constitui
resposta suficiente para o problema, porquanto dependendo da verificação de um
conjunto de pressupostos: facto voluntário, ilicitude, imputação do facto ao
lesante, dano e o nexo de causalidade entre este e aquele facto, cuja
demonstração se afigurará, pelo menos se se fizer uma aplicação clássica dos
mesmos 65 , particularmente delicada, acaba por tornar pouco menos do que
inoperante o funcionamento desta fonte de responsabilização. Nomeadamente,
pelo que diz respeito à prova da culpa do lesante, neste caso o produtor: como é
que pode o vulgar consumidor, o comprador ou o inocente terceiro que veio a ser
vítima do produto defeituoso (v.g., o convidado a quem a garrafa acaba por
explodir nas mãos, cegando-o), demonstrar qual o defeito, e que o mesmo se
deveu ao dolo ou negligência de um concreto ou concretos sujeitos, sabido que,
nas actuais condições de produção, um produto passa por várias fases de
produção e é o resultado da intervenção de um sem número de agentes. Qual a
fase de produção em que ocorreu o erro, e qual o agente que o causou, e com que
culpa? Tudo respostas que o vulgar consumidor não tem condições práticas de
efectivar. Ora, independentemente de se determinar em concreto qual a culpa e
em que momento e através de quem se manifestou, o certo é que é o produtor
quem concebe e quem controla o processo de fabrico, sendo que, se o produto é 63 Sobre as várias tentativas, e suas insuficiências, de a nível contratual se obter a responsabilização do produtor, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 285 ss, especialmente 346 ss. 64 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 353. 65 Dizemos clássica, porquanto as dificuldades sentidas com a prova do pressuposto da responsabilidade extracontratual: culpa, levou a que fossem ensaiados vários expedientes tendentes a aligeirá-lo, que acabaram, na prática, por esvaziá-lo do seu conteúdo clássico, aproximando-o de uma responsabilidade sem culpa, embora com matizes e nuances inconvenientes do ponto de vista da certeza e segurança jurídica, fruto, justamente, do terreno movediço que representa a “ultrapassagem” do princípio da culpa para responsabilização do produtor, cfr. Calvão da Silva, idem, p. 387 ss.
defeituoso no momento da sua entrada em circulação66, o defeito ou deriva da sua
concepção (erro de design), caso em que o defeito afecta toda a série, ou do seu
fabrico, caso em que o defeito afecta um ou alguns dos produtos, mas
dificilmente todos os da série. De qualquer modo, apenas existe porque algures
no processo de concepção-fabricação, processo da exclusiva responsabilidade do
produtor, houve culpa deste, quer porque projectou mal quer porque controlou
mal o fabrico do produto. Por outras palavras, o produto sendo defeituoso fala
por si quanto à culpa do produtor (res ipsa loquitor)67.
Conclusão, o funcionamento das regras gerais da responsabilidade civil,
quer contratual quer extracontratual, afiguram-se insuficientes para efeitos da
protecção do consumidor em face de produtos defeituosos68.
Dada a insuficiência das várias tentativas ensaiadas para obter o “resultado
justo” da responsabilização do produtor, percebe-se que se tenha avançado para a
responsabilização objectiva do produtor, não escrava da prova da culpa do
agente, pois69.
O empresário é responsável, independentemente de culpa, ou seja, não
subjectiva mas objectivamente, pois, pelos danos causados por defeitos dos
produtos que comercializa (art.º 85.º, n.º 1). Verificado o dano, o defeito do
produto e estabelecido o nexo de causalidade entre o defeito e o dano, o
empresário responderá para com o lesado, seja este aquele que adquiriu o bem,
um terceiro a quem o facultou (v.g. o convidado) ou um simples bystander (v.g.
o terceiro que fica ferido ao passar junto do local onde a garrafa de gás defeituosa
explodiu).
A lei representa um passo importante para a protecção dos terceiros em
geral, e dos consumidores em particular, mas convém não nos iludirmos sobre as
suas reais potencialidades. Na verdade, não basta o dano, como não basta o
defeito, é necessário a demonstração do nexo de causalidade entre um e outro. E
se é verdade que a prova do dano se não afigurará, na generalidade dos casos,
66 O que só por si já se afigurará tarefa não isenta de muitos e difíceis escolhos. 67 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 390 ss. 68 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 383 ss. 69 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 444 ss.
como particularmente difícil, já o mesmo se não pode dizer no que toca quer ao
defeito quer ao nexo de causalidade, entre este e aquele. No que respeita ao
defeito, são particularmente elucidativos os casos da garrafa que explode,
provocando danos na pessoa do lesado, que, justamente, pela dificuldade da
prova do defeito na garrafa (era a garrafa que era defeituosa ou foi o
manuseamento indevido pelo lesado que provocou a sua explosão? Era a garrafa
defeituosa ab initio ou o defeito adveio-lhe ulteriormente por deficiente
manuseamento, p.e., do funcionário do supermercado onde foi comercializada? E
com a garrafa destruída pela explosão, como é que se vai fazer prova da
existência de um defeito na mesma?)70, acabam por não ser ressarcidos. Mas,
mesmo demonstrada a existência do defeito, é ainda necessária a demonstração
de que aquele concreto defeito é que provocou aqueles concretos danos71. E tudo
isto é matéria cuja prova incumbe ao lesado, por força das regras de distribuição
do ónus da prova (art.º 335.º Cód.Civil)72, com as inerentes probabilidades de
insucesso. Por outro lado, nem todos os danos são ressarcíveis, como sucede nos
demais casos de responsabilidade civil em geral, mas apenas os indicados no art.º
91.º73.
A lei considera, para estes efeitos, produtor não apenas aquele que
efectivamente produziu (produtor real) o produto, produto acabado (v.g.
automóvel), parte componente (v.g. bateria do automóvel) ou matéria prima (v.g.
ferro, aço que é utilizado na produção do automóvel), mas também quem, a
despeito de não ser o real produtor, como tal se apresenta (produtor aparente),
comercializando os produtos, que podem ou não ter sido fabricados segundo as
suas instruções por terceiros que permanecem desconhecidos do consumidor, sob
o seu nome (firma), marca ou outro sinal distintivo (art.º 85.º, n.º 1). Nestes
casos, a origem dos produtos, pelo que respeita ao consumidor, é o empresário
identificado pelo sinal distintivo aposto nos mesmos, pois este representa a única
pista quanto à determinação daquela, sendo que é com a origem correspondente a
70 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 391. 71 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 711. 72 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 580, nota 1. 73 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 677 ss.
essa aparência que os consumidores podem legitimamente contar (v.g. grossistas,
empresas de venda de bens por correspondência, etc.)74. Se o real produtor não se
encontra identificado, mas o distribuidor, aponha ou não um seu sinal distintivo,
claramente significa a sua qualidade de distribuidor, não há lugar a falar de
produtor aparente, mas tão só à aplicação do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º
85.º75. Por outro lado, e atento que grande parte dos produtos são importados, a
lei equipara ao produtor (produtor presumido), para o sujeitar à responsabilidade
aqui em questão, aquele que importa, com fins de ulterior comercialização76, os
produtos para Macau (art.º 85.º, n.º 3, al. a)). Na verdade, a não ser assim, os
terceiros, que sofressem danos causados por produtos defeituosos, ver-se-iam
impedidos, na prática, de serem ressarcidos, porquanto teriam de ir perseguir o
produtor, para efeitos da execução da sentença, no seu país de origem77. Do
mesmo modo, é considerado produtor o distribuidor (produtor presumido), i.e.
aquele que vende o produto, enquanto não indicar ou o produtor ou o importador
ou qualquer distribuidor que o anteceda na cadeia distributiva78 (art.º 85.º, n.º 3,
al. b)), por forma a que o lesado possa, efectivamente, actuar contra o
responsável, em última instância ou o fabricante ou o importador.
Para efeitos da lei, produto é qualquer coisa móvel 79 , ainda que
incorporada noutra coisa móvel (v.g. os pneus dos automóveis) ou imóvel (art.º
86.º, n.º 1). Os imóveis, enquanto tais, estão assim afastados da protecção do
presente regime normativo80, não já os bens com que sejam construídos, p.e. os
tijolos, o ferro dos alicerces, etc.. A lei exceptua os produtos do solo, da pecuária, 74 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 550 ss. 75 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 553. 76 Não estão abrangidos aqueles que muito embora tenham importado o produto, não o fizeram no exercício da sua empresa, ou seja, com vista à sua comercialização, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 558, 559. 77 Quanto a esta difícil problemática, vide, uma vez mais, Clavão da Silva, idem, pp. 127 ss, e 557, 558. 78 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 560 ss. 79 Atendendo a que a energia eléctrica, o gás, o vapor, a água são coisas materiais, e, como tal, móveis, por não designadas no art.º 195.º do Cód.Civil, estão os mesmos abrangidos pelo regime de responsabilidade por produtos defeituosos, sendo o produtor, nestes casos, aqueles que têm a direcção efectiva da rede de transporte e de distribuição do bem em causa (v.g. energia eléctrica); igualmente será de considerar como produto, para os efeitos do regime legal de responsabilidade do produtor, o sangue e órgãos humanos, quando objecto de comercialização, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 608, 609, 618. 80 Contudo, nos EUA discute-se a extensão também aos imóveis (construção e venda de casas) do regime de responsabilidade civil do produtor por produtos defeituosos (product liability), cfr. Calvão da Silva, idem, p. 3, nota 3.
da pesca e da caça, quando não tenham sofrido qualquer transformação (por via
de intervenção do homem, entenda-se) (art.º 86.º, n.º 2). A explicação reside em
se tratar de produtos, tal qual resultam da natureza, relativamente aos quais, pois,
não há intervenção do homem a determinar as respectivas qualidades, e, por
conseguinte, cujos perigos de utilização se não podem assacar à intervenção
humana. Assim sendo, se os produtos em causa são objecto de transformação,
como tal se devendo entender toda e qualquer intervenção humana que altere o
estado dos bens tal qual resultaria da natureza (v.g. o milho, enquanto produto
natural, não está abrangido, mas o milho geneticamente modificado, como tal
objecto de intervenção humana, está), passam a estar abrangidos pela lei81.
O produto considera-se defeituoso quando, no momento em que entra em
circulação, i.e. passa a ser comercializado, não oferece a segurança com que
legitimamente se pode contar82, atentas todas as circunstâncias, nomeadamente a
sua apresentação (v.g. um medicamento apresentado sob a forma de uma
guloseima83), características e a utilização que dele possa ser razoavelmente ser
feita (v.g. os brinquedos ou as esferográficas não são feitos, em regra, para serem
levados à boca, mas a verdade é que esta última utilização é vulgar, pelo que o
fabricante deve ter em conta não apenas o uso típico do bem que produz, mas
também aqueles outros que normalmente se verificam84) (art.º 87.º, n.º 1).
O simples facto de o o produto ser objecto de melhorias no futuro não
significa que a anterior versão fosse defeituosa (art.º 87.º, n.º 2) 85 . Pode, e
normalmente será isso o que acontece, corresponder apenas a uma estratégia de
afirmação no mercado, através do contínuo melhoramento e aperfeiçoamento dos
produtos.
Não basta, para a responsabilização nesta sede do empresário produtor, a
verificação de defeitos, susceptíveis de causar danos a terceiros, se se verificar 81 Cfr. Calvão da Silva, idem, 621 ss. 82 Toda e qualquer pessoa, não apenas a do concreto utilizador; assim, se, por exemplo, certo produto provoca uma alergia ao utilizador, mas não a qualquer outra pessoa, não se pode pretender que o produto era defeituoso, cfr. Calvão da Silva, idem, p. 636. 83 Cfr. Maria Afonso Vaz, Manuel Variz, Da responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos (Anotação ao Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro, que transpõe a Directiva n.º 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985), Coimbra Editora, 1991, pp. 36, 37. 84 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 640. 85 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 646.
uma das situações de exclusão de responsabilidade indicadas no art.º 88.º. Assim:
se o produtor, a despeito de ter fabricado o produto defeituoso, provar que não o
colocou em circulação (v.g. o produto foi furtado) ou que não o colocou em
circulação com objectivos económicos (v.g. facultou apenas amostras para
avaliação dos seus distribuidores) ou não o fez no exercício da sua empresa, i.e.
que não o produziu para comercialização ou tão só não o comercializou, pois
(als. a) e c)); se o defeito não existia ao momento da entrada em circulação, o
mesmo é dizer se o defeito é superveniente e, como tal, insusceptível de poder ser
assacado ao produtor (al. b)); que o defeito resulta da observância de normas
(técnicas) imperativas (por força de lei) determinadas pelas autoridades públicas
(al.d); que, no momento da entrada em circulação, o estado do desenvolvimento
técnico-científico não permitia conhecer a existência do defeito (o chamado risco
do desenvolvimento) (al. e)); ou que o defeito, tratando-se de parte componente,
advém não do produto, mas da concepção do produto no qual é incorporada ou às
instruções dadas pelo produtor do mesmo [v.g. o capotar do automóvel,
provocado pela descolagem da camada de aderência do pneu, resulta, atenta a
concepção do veículo, da inadequação do pneu para o veículo (erro na escolha do
tipo de pneu adequado)] (al.f). A estas causas de exclusão de responsabilidade
indicadas na lei acresce a de caso de força maior, que a lei não indica por já
resultar das regras gerais86.
Existindo vários responsáveis (v.g. o capotar do automóvel, sendo
resultante de um defeito nos pneus, mas potenciado por um defeito de design do
próprio veículo), a sua responsabilidade é solidária (art.º 89.º, n.º 1). Trata-se de
uma medida de protecção do lesado, porquanto é a responsabilidade solidária que
melhor acautela os interesses do credor, que pode exigir de qualquer dos
devedores a totalidade da dívida, estando, assim, mais resguardado quanto à
insolvência de algum dos devedores. A medida da concreta responsabilidade de
cada um dos responsáveis será determinada pela sua contribuição (medida quer
86 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 737, 738.
pelo risco quer pelo grau de culpa) na verificação do dano (art.º 89.º, n.º 2). Em
caso de dúvida, todos são responsáveis por igual (art.º 89.º, n.º 3)87.
No caso, de o lesado ter contribuído também com o seu comportamento
culposo (v.g. o dano verifica-se, porque o lesado desrespeita as instruções claras
do fabricante) para a verificação do dano, ou para o respectivo agravamento, a
indemnização pode ser reduzida ou até excluída (art.º 90.º, n.º 1).
A responsabilidade por produtos defeituosos, como se disse, não abrange
todos os danos causados, mas apenas os danos na pessoa (morte ou lesão
corporal, psíquica ou moral 88 ) e os verificados em coisa, mas agora
independentemente de se móvel ou imóvel 89 , diversa do próprio produto
defeituoso, contanto que a coisa danificada seja destinada ao uso e consumo
privado (v.g. o frigorífico usado por uma família na sua habitação; já não o
frigorífico usado numa empresa de produtos congelados90) e tenha sido esse o
principal destino que lhe foi dado (art.º 91.º). Com esta última restricção,
pretende a lei abranger aqueles bens que, sendo objecto de utilização prioritária
em ambiente empresarial, acabaram por se transformar em objectos de uso geral
e, por conseguinte, também puramente privado (v.g. computadores, máquinas de
escrever91). Neste caso, se o lesado provar que o bem era objecto de utilização
meramente privada, funcionará o regime legal de protecção contra produtos
defeituosos, caso contrário, não. Imaginemos que o frigorífico, acima referido,
por defeituoso, explode ou incendeia, causando danos quer no edifício quer nos
demais bens que naquele espaço se encontram. Se o frigorífico se encontra numa
habitação, por isso destinado a uso privado, todos estes danos ocorridos no
edifício e nos demais bens do lesado são ressarcíveis, nos termos da
87 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 575 ss, com soluções interessantes, mas que se afastam dos estritos cânones clássicos, quanto à responsabilização dos produtores de certo produto, quando não seja possível à vítima especificar a qual deles se deve o produto ou produtos que causaram os danos. 88 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 679. 89 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 697. 90 O exemplo é de Calvão da Silva, idem, p. 698, que indica ainda o caso do automóvel que o empresário utiliza para seu uso privado, por isso abrangido pelo regime legal, relativamente ao automóvel da empresa, que não é para uso ou consumo privado e, como tal, não abrangido pela lei, do mesmo modo que o táxi que o taxista eventualmente usa nas suas folgas para uso privado, mas que não é normalmente a isso destinado, não estando abrangido no regime de repsonsabilidade civil do rpodutor. 91 Os exemplos, mais uma vez, são de Calvão da Silva, idem, p. 699.
responsabilidade civil do produtor, já não se o frigorífico se encontrava numa
empresa, pois nesse caso falece o pressuposto uso ou consumo privado92.
Não são abrangidos os danos resultantes dos prejuízos sofridos com o
inaproveitamento do produto defeituoso, tão-pouco os eventualmente decorrentes
da deterioração ou destruição das coisas destinadas ao uso ou consumo privado
(v.g. lucros cessantes, privação do uso, etc.), nem os designados danos
patrimonias puros (pure economic loss)93. Os danos ressarcíveis, nos termos do
art.º 91.º, abrangem apenas os ocorridos em coisa diversa do próprio produto
defeituoso, o que quer dizer que o dano ocorrido neste não é um daqueles
abrangidos pela norma. Estes danos poderão ser ressarcidos apenas por via da
responsabilidade contratual ou extracontratual, caso se verifiquem os respectivos
pressupostos94.
A acção destinada a efectivar a responsabilidade do produtor deve ser
intentada no prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado teve ou devia ter
tido conhecimento do dano, do defeito e da identidade do empresário produtor
(art.º 93.º). Em qualquer caso, a possibilidade de agir judicialmente contra o
produtor fica precludida, por caducidade, decorridos 10 anos sobre a entrada em
circulação do produto defeituoso (art.º 94.º).
92 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 700. 93 Cfr. Calvão da Silva, ibidem; Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2002, p. 372. 94 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 702 ss.