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3. O estatuto do empresário 3.1 Introdução Nas sociedades modernas, o papel dos empresários é fundamental, porquanto é da actividade comercial que resulta a maior parte das receitas dos Estados. Compreende-se então que os legisladores consagrem particular atenção aos empresários e às condições em que exercem as suas actividades, para o efeito estabelecendo uma série de normas destinadas a assegurar a transparência e eficiência das relações dos empresários com o mercado. A existência de um particular regime jurídico para os empresários é ainda justificada com o facto de em regra a dimensão das empresas determinar a necessidade do recurso ao crédito, para o que é preciso assegurar aos seus financiadores meios de controlo e de garantia dos seus créditos. O termo estatuto na linguagem jurídica significa o conjunto de normas que definem os direitos e obrigações de determinado sujeito. O estatuto jurídico do empresário é pois o conjunto de normas que definem a sua posição jurídica, do ponto de vista dos direitos e obrigações e vantagens e desvantagens correlativas, perante o ordenamento jurídico. Dentre as obrigações, que é o aspecto mais importante desse estatuto, cobrem particular importância as indicadas no art.º 12.º: a) Adoptar uma firma; b) Ter escrituração mercantil; c) Fazer inscrever no registo os actos a ele sujeitos; d) Prestar contas 3.2. 1. Firma A firma é um sinal nominativo destinado a identificar/distinguir o sujeito na sua qualidade de empresário: é o nome que o empresário utiliza no exercício

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3. O estatuto do empresário

3.1 Introdução

Nas sociedades modernas, o papel dos empresários é fundamental,

porquanto é da actividade comercial que resulta a maior parte das receitas dos

Estados. Compreende-se então que os legisladores consagrem particular atenção

aos empresários e às condições em que exercem as suas actividades, para o efeito

estabelecendo uma série de normas destinadas a assegurar a transparência e

eficiência das relações dos empresários com o mercado.

A existência de um particular regime jurídico para os empresários é ainda

justificada com o facto de em regra a dimensão das empresas determinar a

necessidade do recurso ao crédito, para o que é preciso assegurar aos seus

financiadores meios de controlo e de garantia dos seus créditos.

O termo estatuto na linguagem jurídica significa o conjunto de normas que

definem os direitos e obrigações de determinado sujeito. O estatuto jurídico do

empresário é pois o conjunto de normas que definem a sua posição jurídica, do

ponto de vista dos direitos e obrigações e vantagens e desvantagens correlativas,

perante o ordenamento jurídico.

Dentre as obrigações, que é o aspecto mais importante desse estatuto,

cobrem particular importância as indicadas no art.º 12.º:

a) Adoptar uma firma;

b) Ter escrituração mercantil;

c) Fazer inscrever no registo os actos a ele sujeitos;

d) Prestar contas

3.2. 1. Firma

A firma é um sinal nominativo destinado a identificar/distinguir o sujeito

na sua qualidade de empresário: é o nome que o empresário utiliza no exercício

da sua actividade mercantil. É também um sinal de uso obrigatório (aliás é o

único sinal distintivo [sinais destinados a identificar e contradistinguir o

empresário, a empresa e os seus produtos dos demais empresários, empresas e

produtos) de uso obrigatório], correspondente a uma das obrigações dos

comerciantes a que se refere o art.º 12.º. A firma, dissemos, é um sinal

nominativo, porquanto, como veremos, é um sinal composto obrigatória e

exclusivamente por vocábulos, não por figuras ou emblemas (art.º 22.º).

Nos termos do art.º 14.º, n.º 1: «O empresário comercial é designado, no

exercício da sua empresa, sob um nome comercial, que constitui a sua firma, e

com ele deve assinar os documentos àquela respectivos». A firma é assim

concebida como um sinal destinado a identificar o empresário, um sinal

subjectivo pois.

Sendo um sinal subjectivo, a firma deveria ser insusceptível de

transmissão, tal como acontece com o nome civil das pessoas. Contudo, a firma

não é apenas um sinal identificativo de um sujeito, é o sinal que identifica um

sujeito a actuar no mundo do comércio. Daqui decorre a consequência de, muitas

vezes, a firma acabar por vir a identificar a própria empresa, maxime quando não

existe nome de estabelecimento (empresa). Nestes casos, a firma objectiva-se,

deixa de identificar exclusivamente o sujeito para identificar o objecto: a

empresa. Assim, e porque isto acontece, admite-se que a firma possa ser

transmitida conjuntamente com a empresa, em relação à qual seja utilizada (art.º

31.º). Nessa circunstância, a firma não identificará necessariamente um certo e

determinado sujeito, mas o sujeito que em cada momento for titular daquela

empresa, porquanto a lei apenas admite a transmissão da firma conjuntamente

com a empresa, para cujo exercício foi criada (art.º 31.º, n.º 6).

3.2.1.1. Princípios da firma

A firma deve ser composta com observância do princípio da verdade, da

novidade e da unidade.

3.2.1.1.1. Princípio da verdade

O princípio da verdade, consagrado no art.º 15.º, n.º 1 diz-nos que a firma

não pode transmitir informações não coincidentes com a realidade que se destina

a identificar, deve pois transmitir uma imagem verdadeira, não distorcida, da

realidade1. Por conseguinte, não pode a firma conter elementos que falseiem ou

criem confusão com a identidade do empresário, ou dos sócios ou associados

(problema de homonímia), a natureza do respectivo titular (se pessoa singular ou

antes colectiva, e, dentro destas, se sociedade ou antes v.g. associação, etc.),

sugiram o exercício de actividades que não possam ser desenvolvidas pelo

empresário em questão (v.g. actividade bancária, por um empresário individual,

art.º 18.º, n.º 1 do D/L 32/93/M, de 5 de Julho), ou uma dimensão da empresa

(v.g., supermercado para uma pequena mercearia2, “Casa Internacional”, para um

pequeno empresário, singular ou colectivo, de âmbito local 3 ) diversa da

realidade. As alíneas do n.º 2 do referido preceito fazem aplicações do princípio

regra consagrado no n.º 1. Com efeito, o disposto na al. a) proíbe que da firma

façam parte elementos que sugiram o exercício de actividades diversas daquelas

a que o sujeito se dedica (v.g. farmácia para uma drogaria); a al. b) proscreve que

se sugira pela firma uma caracterização jurídica do sujeito diversa da real, assim,

não pode um empresário individual compor a sua firma com expressões que

sugiram tratar-se de uma sociedade (Companhia Manuel Silva), nem uma

sociedade utilizar o vocábulo associação (v.g. Associação Rio das Pérolas, S.A.)

ou vice versa (Sociedade dos Cidadãos de Apelido Ching), etc.4.

O princípio da verdade da firma não fica prejudicado pelo facto de a lei

admitir puras firmas de fantasia, porquanto o que este princípio proíbe é a

comunicação de informações não coincidentes com a realidade, já não que a

firma contenha, necessariamente, informações concernentes à identidade do

1 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 153. 2 Cfr. Ferrer Correia, 1994, p. 154, nota 2. 3 Cfr. Julius von Gierke, Derecho comercial y de la navegación, I, tradução de Juan M.Semon, Tipográfica Editora Argentina S.A., Buenos Aires, p. 146, nota 93. 4 Cfr. Coutinho de Abreu, 1998, p. 137ss.

titular, da sua actividade ou dimensão do seu negócio. O princípio da verdade da

firma assume assim uma dimensão essencialmente negativa.

3.2.1.1.2. Princípio da novidade

O princípio da novidade significa que a firma deve ser nova, no sentido de

ser distinta e insusceptível de confusão ou erro com outra já existente (art.º 16.º,

n.º 1). A firma sendo um sinal cuja função é identificar um concreto empresário

tem de ter capacidade distintiva, mas não lhe basta ser apta a distinguir o

empresário em questão, é também necessário que não seja fonte de confusão ou

erro. Com efeito, a firma é um sinal distintivo, destina-se a contradistinguir o

empresário em questão dos demais empresários que com ele competem. Ora, se

fosse confundível com outra já registada, a firma nova em vez de cumprir aquela

sua função, representaria um meio de confusão. Por conseguinte, há-de ser

composta por forma tal que seja distinta, nova, de todas as demais firmas já

registadas.

Contudo, o facto de a firma nova ter de ser distinta, não confundível, com

as firmas já registadas, não significa que tenha de ser absolutamente nova, no

sentido de ter ser diferente em todo e cada um dos seus elementos componentes.

Pode a firma conter elementos comuns a outras firmas já registadas, sem que

com isso seja com elas confundível. Sendo certo, aliás, que a lei veda

expressamente a apropriação exclusiva de certos elementos considerados de uso

comum (art.º 16., n.º 3).

Saber se a firma nova é ou não confundível com outra já registada,

depende de um juízo a efectivar, tendo em conta a impressão de conjunto aferida

pelo destinatário médio (o consumidor). Não é assim o critério dos interessados

directos, o empresário cuja firma se regista e o empresário cuja firma já está

registada, que releva. Na verdade, estes tendem a ser particularmente sensíveis a

qualquer mínimo pormenor quer para diferenciar quer para desconsiderar a

relevância da capacidade distintiva5.

5 Cfr. J.Gierke, 1957, pp. 147ss.

Sendo certo que o juízo do consumidor médio, medianamente sagaz e

distraído, é ainda circunscrito pelas indicações dadas no n.º 2 do art.º 16.º. Assim

relevará para efeitos do juízo de confundibilidade ou não confundibilidade, o tipo

de empresário, i.e. se se trata de pessoa singular ou colectiva e dentro destas de

que espécie de pessoa colectiva, a maior ou menor afinidade das actividades

desenvolvidas (afinidade merceológica) 6 . Por conseguinte, o grau de

diferenciação entre as várias firmas será mais ou menos intenso consoante se

trate ou não de actividades similares (art.º 16.º, n.º 2). Assim, se, por exemplo,

um empresário individual usa uma firma confundível com outra já registada, mas

o objecto das respectivas empresas (actividade desenvolvida) é perfeitamente

distinto (um fabrica camisas e o outro vende computadores, por exemplo), a

possibilidade de confusão normalmente não se verificará.

Na aferição da novidade há-de ser dada particular atenção aos elementos

originais, porquanto os vocábulos de uso comum não são susceptíveis de

apropriação exclusiva e por conseguinte não podem ser tidos em conta para

aquela aferição (art.º 16.º, n.º 3): são elementos desprovidos de capacidade

distintiva, aquilo que se designa, na esteira da doutrina alemã, por sinais francos;

i.e. sinais de uso livre, que não podem como tal ser tidos em conta para a aferição

da originalidade do sinal e respectiva tutela.

Finalmente, a aferição da confundibilidade é efectuada não apenas

relativamente às firmas registadas, mas também relativamente aos demais sinais

distintivos (v.g. nome e insígnia de establecimento, marca), por força do art.º

16.º, n.º 6. Na verdade, a inclusão na firma de elementos que a tornassem

confundível com um dos demais sinais distintivos, daria azo a que se criasse a

ideia de que o titular da firma era o titular dos sinais distintivos em causa, ou,

pelo menos, de que alguma estreita ligação com o respectivo titular existiria. Não

é que não seja possível a composição da firma com sinais distintivos (v.g., nome,

6 A versão original do n.º 2 do art.º 16.º exigia ainda que, como elemento a considerar no juízo de confundibilidade, se incluísse a localização da respectiva sede (pessoa colectiva) ou domicílio (pessoa singular). A esse propósito dizíamos: “que em Macau, atenta a exiguidade do Território, é de parca ou nula consideração”; o legislador também assim considerou e dispensou a necessidade da consideração desse aspecto, deixando de o mencionar na nova redacção do n.º 2 do art.º 16.º ( resultante do art.º 1.º da Lei nº 16/2009, de 10 de Agosto).

insígnia, marca, etc.) pertencentes a outrem, pois que o é, desde que haja a

necessária autorização do respectivo titular (art.º 16.º, n.º 4). A recente lei n.º

16/2009, de 10 de Outubro, entendeu não ser suficiente o disposto no n.º 4, ou

não ser suficientemente claro???, e vai daí introduziu um novo n.º 5, no art.º 16.º,

passando o anterior n.º 5 a n.º 6. O novel n.º 5 tem a seguinte redacção: “Para

efeitos de registo de firmas pertencentes ao mesmo ramo de actividade é

permitida a incorporação de sinais distintivos já registados, desde que haja

autorização do titular do respectivo registo.” Ora, como se disse, o n.º 4 diz que a

incorporação da firma de sinais distintivos registados está sujeita à prova do seu

uso legítimo. Pois bem, por mais voltas que se dê ao texto, não se vê o que é que

o novo n.º 5 contenha que já não contivesse o n.º 4. A menção “ao mesmo ramo

de actividade” não basta para justificar o novo número, pois que a redacção do

n.º 4, obviamente, comporta-a: independentemente, de se no mesmo ou diverso

ramo de actividade, a incorporação de sinais distintivos registados na composição

da firma está dependente de o seu uso ser legítimo, e é-o se estiver autorizado

pelo titular.

3.2.1.1.3. Princípio da unidade

Apesar de não estar contido directamente na lei, um outro princípio, que

se costuma referir como informando a composição da firma, é o princípio da

unidade, segundo o qual a cada empresário apenas é permitido a utilização de

uma firma. A questão que a aplicação deste princípio coloca é a de saber se vale

para todas as situações ou não; ou seja, se se aplica a todos os empresários ou

apenas a alguns. Aqui as opiniões dividem-se: uns dizem que o princípio da

unidade é de preceito pelo que diz respeito às pessoas colectivas, maxime

sociedades7, mas já no que toca aos empresários individuais, seria objecto de

restricções. Assim, diz-se que, tratando-se de empresário individual, nada obsta a

que, se ele é titular de mais do que uma empresa (v.g., uma fábrica de vestuário e

uma agência de viagens), possa, relativamente a cada uma delas, exercer com

7 Cfr.Coutinho de Abreu, 1998, p. 146; Ferrer Correia, 1973, p. 283; Canaris, 2000, p. 263.

uma firma diferente (v.g. Fábrica de Vestuário João Leong; Agência de Viagens

João Leong). Já não seria admitido que o empresário usasse mais do que uma

firma para exercer os vários ramos ou sucursais da sua empresa. Por conseguinte,

a unidade da firma seria aqui entendida no sentido de que cada empresa,

independentemente de ter vários ramos ou sucursais, apenas pode ser exercida

sob uma única firma8, já não que a cada empresário individual corresponde só e

apenas uma única firma.

As razões, que explicam a diversidade de entendimento no que respeita

aos empresários individuais e às sociedades, prendem-se com o risco de indução

em erro que a utilização de mais do que uma firma para o exercício de empresas

autónomas pode representar. Assim, no que tange às sociedade, e contrariamente

às pessoas singulares, a firma é não só o respectivo nome comercial, mas também

o seu “nome civil”9. Na verdade, a sociedade apenas tem a sua firma para se

identificar, contrariamente às pessoas singulares que, para além da sua firma,

têm, em primeiro lugar, o seu nome civil.

Este argumento, quer pelo seu formalismo quer porque leva a um círculo

vicioso, não parece ser determinante10. Determinante afigura-se, antes, o facto de

que, a admissibilidade de uma sociedade poder exercer as suas várias empresas

autónomas sob várias firmas, seria susceptível de criar uma ideia falsa quanto às

relações de responsabilidade11. A pluralidade de firmas, ao sugerir a existência

não de uma mas de várias sociedades, não de um mas de vários patrimónios de

responsabilização, contribuiria para uma inconveniente falta de transparência

quanto a um aspecto cardinal do tráfico mercantil. Por conseguinte, não seria de

admitir a possibilidade de uma sociedade poder actuar sob mais do que uma

firma, mesmo que relativamente a empresas autónomas. Tanto mais que, sendo a

firma o “nome civil” da sociedade, admitir-se tal possibilidade significaria

aceitar-se que um sujeito de direito pudesse ter vários nomes. Ora, do mesmo

8Cfr. Ferrer Correia, idem, p. 283; Canaris, idem, p. 261. 9 Cfr. Ferrer Correia, idem, pp. 283, 284. 10 Cfr. Canaris, idem, p. 263. 11 Idem, ibidem.

modo que tal possibilidade não é admitida para as pessoas singulares, também

não deve ser permitida às sociedades.

Mas, perguntar-se-á, as preocupações expendidas quanto às sociedades,

relativas ao risco de falta de transparência quanto à responsabilização pelas

dívidas mercantis, não se verificam igualmente quanto às pessoas singulares?

Diz-se que não, porquanto as pessoas singulares para além das suas dívidas

mercantis têm (ou podem ter) dívidas civis, pelo que os credores estão sempre

obrigados a um exercício de investigação para determinarem o estado patrimonial

do seu devedor12. Assim, a possibilidade de o empresário individual, quando

titular de várias empresas autónomas, exercer cada uma delas sob uma firma

diferente, para além de responder a interesses dignos de tutela deste, que pretende

identificar-se nas suas várias actividades de forma clara, não representam, do

ponto de vista dos credores, um agravar da sua situação, porque, justamente,

estes não podem pretender que as dívidas do seu devedor, ao contrário do que

acontece nas sociedades, resultam apenas da sua actividade mercantil, pois

podem bem resultar de muitas outras circunstâncias. Daqui que o credor de um

empresário individual seja sempre convocado a um especial dever de diligência,

pelo que respeita a conhecer a verdadeira situação patrimonial do seu devedor,

que lhe permitirá conhecer a eventual exposição patrimonial do seu devedor

resultante do exercício de outras empresas sob outras firmas.

3.2.1.1.4. Obrigatoriedade de utilização das línguas oficiais

Para além de obedecer aos princípios da verdade e da novidade, a firma

há-de também ser composta numa das línguas oficiais da RAEM ou em ambas.

Pode também ser redigida em inglês, quando seja composta em ambas as línguas

oficiais: quer dizer, apenas é admitida uma versão em inglês da firma que tem

uma versão em ambas as línguas oficiais (art.º 17.º, n.º 1). Pode a firma ser

composta numa outra língua (que pode ser, obviamente, o inglês), ou conter

vocábulos em língua diversa das línguas oficiais, nas situações indicadas nas

12 Idem, ibidem.

várias alíneas do n.º 3 do art.º 17.º. A exigência feita neste preceito parece

deslocada em Macau, em que a língua franca dos negócios é o inglês, sendo certo

também que a globalização aconselha a maior liberdade na composição da firma.

Por outro lado, nas situações mais gravosas, já o princípio da verdade permite a

sua exclusão, pelo que não parecem subsistir razões para esta limitação. Sendo

certo que mesmo em Portugal esta exigência foi já afastada.

3.2.1.1.5. Outros requisitos

A lei veda ainda que a firma possa ser composta de tal forma que seja

ofensiva da moral pública ou dos bons costumes (art.º 18.º, n.º 1), desrespeite

símbolos da RAEM, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou

significado seja de salvaguardar por razões históricas, científicas, institucionais,

culturais ou outras atendíveis (art.º 18.º, n.º 2). Também não permite a lei que a

firma, para além de ser veículo de promoção de interesses próprios, possa ser

utilizada para menoscabo de terceiros (art.º 18.º, n.º 3).13

3.2.1.2. Elementos que podem entrar na composição da firma: os

aditamentos obrigatórios

Ao contrário do que sucedia no direito pretérito, em que a composição da

firma obedecia a regras diferentes consoante se tratasse de empresários

individuais ou de sociedades, actualmente a composição da firma obedece às

mesmas regras (art.º 22.º), salvo pelo que toca aos aditamentos obrigatórios.

No direito pretérito, a firma dos comerciantes em nome individual e das

sociedades em nome colectivo e em comandita era composta obrigatoriamente

com o nome de pessoas (firma-nome), o do próprio sujeito (art.º 20.º Código

Comercial de 1888) ou o dos seus (todos, alguns ou algum) sócios (art.º 21.º e

22.º Código Comercial de 1888), embora pudesse (e apenas pudesse) conter

13 A estes requisitos, engloba-os Coutinho de Abreu (1998, p. 147) sob o que denomina de princípio da licitude residual.

expressões alusivas à actividade comercial respectiva; já a firma das sociedades

anónimas originariamente não podia ser composta com nomes de pessoas, daí a

designação de anónimas, mas apenas com uma expressão que desse quanto

possível a conhecer o objecto (firma-denominação) (art.º 23.º Código Comercial

de 1888). As sociedades por quotas, introduzidas no direito português pela Lei de

11 de Abril de 1901 (LSQ), podiam utilizar na sua firma quer nomes de pessoas

(firma-nome) quer denominações particulares (firma-denominação) ou ambas

(firma-mista) (art.º 3.º LSQ). A partir de 1931 (Decreto n.º 19631 de 18 de

Abril), a firma das sociedades anónimas passou a poder ser composta com nomes

de pessoas, sócios ou não, deixando de justificar a sua designação.

Estas regras decorriam em linha recta do princípio da verdade: a firma

havia de transmitir informações verídicas sobre a situação do sujeito ou entidade

que identificava. Os aspectos publicitários e reclamísticos não eram

considerados, pelo menos directamente.

A obrigatoriedade da composição da firma com o nome do sujeito ou dos

sócios decorreria do facto de o crédito ser concedido com base numa relação de

confiança, donde que seria necessário que se soubesse quem é o comerciante ou

os sócios da sociedade que está a actuar, para que se pudesse conceder crédito.

Com efeito, sabido quem era o comerciante ou os sócios, conhecido estaria o

respectivo património e logo a garantia que era oferecida.

Esta ideia de o crédito se ligar à pessoa, supõe um tempo em que as

relações comerciais não são anónimas, mas pessoais. Quem actua no domínio da

actividade comercial conhece e é conhecido pelos seus pares. A actividade

comercial é uma espécie de clube privado em que toda a gente se conhece.

Entrados na fase da massificação das relações comerciais, o anonimato da

esmagadora maioria dos agentes passa a ser a regra, com o que deixa de fazer

grande sentido que se continue a exigir, como outrora, que a firma seja composta

obrigatoriamente com o nome civil do sujeito.

No mundo do anonimato, que é o nosso, o único caminho para se

assegurar aos interessados o conhecimento e identificação daqueles com quem

pretendem entrar em relações negociais é a exigência de registo obrigatório.

Como dissemos, a lei sempre admitiu a possibilidade da transmissão da

firma, em sede de trespasse (alienação definitiva) da empresa, caso em que, como

é óbvio, a firma já não identificava o sujeito inicial, mas sim o adquirente. Ora,

sendo possível que a firma seja utilizada por outra pessoa que não aquela com

cujo nome é composta, parece claro que a única coisa que a firma pode

verdadeiramente assegurar é a identificação da natureza do empresário, não a sua

identificação civil.

Por outro lado, assiste-se um pouco por todo o lado (v.g. França (1985),

Alemanha (1998), Áustria (2007)) a uma tendência no sentido de promover a

função reclamística da firma em detrimento da sua função original de

identificação de um concreto sujeito.

Por isso, ao contrário do direito pretérito, a lei, independentemente de se

tratar de empresários pessoas singulares ou pessoas colectivas, concedeu aos

interessados a maior liberdade para a composição da sua firma. Assim, a firma

pode ser composta com o nome, completo (v.g. Manuel da Silva Abrantes) ou

abreviado (v.g. M.Silva), ou por alcunha (v.g. o Sapo) do sujeito (empresário

individual), dos sócios (sociedades) ou associados (v.g. agrupamentos de

interesse económico), todos, alguns ou algum (firma-nome, v.g. Silva, Moledo &

Conceição, Lda.; Silva & Moledo, Lda.; Maria da Conceição, E.I.), por

expressões alusivas à actividade comercial desenvolvida (firma-denominação, v

.g. Fábrica de Vestuário da Penha, Lda.), por designações de fantasia (v.g.

Galaxy, SA) ou pela conjugação destes elementos, todos ou alguns (firma-mista,

v.g. José Malaquias, Restaurante O Cortiço, Lda.) (art.º 22.º, n.º 1).

A identificação do tipo e natureza jurídica do concreto empresário eram

assegurados pela imposição da adopção de um aditamento obrigatório,

relativamente a todos os empresários. Assim, os empresários individuais deviam

aditar a sua firma do aditamento «Empresário Individual» ou as iniciais «E.I.»

(v.g. Manuel Silva, E.I.; Manuel Silva, Empresário Individual), mas apenas

quando a firma fosse redigida em português, porque só então fazia sentido. O que

não quer dizer que o aditamento, quando a firma seja redigida em português,

tenha de ser obrigatoriamente reduzido às iniciais «E.I.». As sociedades em nome

colectivo por esta mesma designação, que se tornou aditamento obrigatório, ou

também pelas iniciais «S.N.C.», se redigida em língua portuguesa; as sociedades

em comandita simples pelo aditamento «Sociedades em Comandita», ou também

pelas iniciais «S.C.», se redigida a firma em língua portuguesa; as sociedades em

comandita por acções pelo aditamento «Sociedade em Comandita por Acções»,

ou também pelas iniciais «S.C.A.», se redigida a firma em língua portuguesa; as

sociedades por quotas pelo aditamento «Limitada» ou também pela abreviatura

«Lda.», se redigida em português; a firma das sociedades por quotas unipessoais

pelo aditamento «Sociedade Unipessoal Limitada» ou «Sociedade Unipessoal

Lda.»; a firma das sociedades anónimas pelo aditamento «Sociedade Anónima»

ou também pelas iniciais «S.A.», se redigida em português; a firma dos

agrupamentos de interesse económico, pelo aditamento «Agrupamento de

Interesse Económico» ou também pelas iniciais «A.I.E.», se redigida em

português. Finalmente, o art.º 30.º determina que a firma de qualquer outro

empresário pessoa colectiva contenha um aditamento que permita identificar

claramente o tipo de pessoa colectiva em causa. Excepto pelo que diz respeito ao

aditamento das sociedades por quotas, em que o aditamento não identifica

claramente o tipo de pessoa colectiva, nos demais casos fica-se a saber pelo

aditamento de que tipo de pessoa colectiva se trata.

Utilizou-se o pretérito, porque a situação que se acaba de descrever

corresponde ao regime gizado no Código Comercial, no entanto, a situação

alterou-se com as alterações introduzidas pela lei n.º 6/2000. Com efeito, a

referida lei veio permitir a todos os empresários a manutenção das firmas já

utilizadas, sem necessidade de adaptação das mesmas aos novos dados do

sistema (art.º 11.º do D/L n.º 40/99/M, de 3 de Agosto, na redacção resultante do

art.º 1.º da lei n.º 6/2000); mais, permitiu que os empresários que, entretanto, já

houvessem procedido às alterações da firma para se conformarem com o novo

regime, pudessem fazer marcha atrás e recuperar a firma pretérita (art.º 5.º da lei

n.º 6/2000).

Atendendo a que as novas regras de composição da firma não estão em

contradição com as regras anteriores, o objectivo das alterações introduzidas pela

lei n.º 6/2000 restringe-se à matéria dos aditamentos obrigatórios, única matéria

onde se verificaram inovações, sendo que a lei expressamente ressalvava a

manutenção das firmas de pretérito (art.º 11.º, n.º 1 D/L n.º 40/99/M, de 3/8).

Tendo em conta que não existem sociedades em comandita em Macau, que as

sociedades em nome colectivo são pouco menos do que inexistentes, que a

esmagadora maioria das sociedades são sociedades por quotas, cujo aditamento

obrigatório não determina qualquer adaptação às firmas já existentes, impõe-se a

conclusão de que a alteração se restringe às sociedades anónimas e aos

empresários individuais. Quanto aos últimos não se quis a introdução do

aditamento como compulsiva, quanto às sociedades anónimas, não se quis a

retirada dos vocábulos «responsabilidade limitada». O número de beneficiários

da alteração introduzida é pequeno, pois são apenas as sociedades anónimas, já

que apenas quanto a estas o aditamento é obrigatório, ora por isso não se percebe

qual a tão premente necessidade que justificasse a medida.

Na verdade, o novo aditamento obrigatório para as sociedades anónimas,

que se limita a reduzir a fórmula sacramental do aditamento resultante do art.º

23.º do Código Comercial de 1888 à designação pela qual estas sociedades são

conhecidas «Sociedade Anónima», é obrigatório para as sociedades a constituir,

o que demonstra que por si só é suficiente para cumprir o desiderato de

identificação do tipo de empresário em causa, o mesmo é dizer o tipo de

responsabilidade a que se sujeitam os seus sócios. Percebe-se que não se queira o

novo aditamento por menos expressivo, o que se não percebe é porque é que o

novo aditamento só não é adequado para as sociedades já existentes: uma de

duas, ou o aditamento cumpre a função que o justifica, e então deve valer para

todas as sociedades anónimas, ou não, e então não deve valer para nenhuma.

Aliás, a alteração introduzida pelo novo Código tem o precedente de idêntica

alteração introduzida em Portugal, onde o universo das sociedades anónimas é

incomparavelmente maior, com o Código das Sociedades Comerciais de 1986,

sem que a medida tenha suscitado quaisquer reparos ou dificuldades. Sendo certo

que neste caso, como aliás em tudo o que respeita à disciplina societária, o

sentido das alterações introduzidas pelo novo Código Comercial era público

desde 1989, pelo menos, e não se conhece quanto ao ponto a existência de

quaisquer reservas.

Dir-se-á que não apenas em relação às sociedades anónimas se dirigem as

alterações da lei n.º 6/2000, mas também aos empresários individuais. E à

primeira vista assim é, mas olhando mais de perto, logo nos damos conta de que

é mera ilusão.

Na verdade, a lei introduziu também para os empresários individuais um

aditamento obrigatório, que, por conseguinte, obrigava a que as firmas anteriores

dos comerciantes individuais devessem ser aditadas em conformidade;

aditamento que seria efectuado oficiosa e graciosamente (aliás, como em todos os

demais casos), caso o interessado o não promovesse atempadamente (art.º 11.º,

n.º 3 D/L n.º 40/99/M, de 3/8). A introdução do aditamento obrigatório para os

empresários individuais, para além de uma pedagogia de clareza e transparência,

era imposta pelo facto de a lei estender sem reservas aos empresários individuais

as amplas possibilidade abertas em matéria de composição da firma (regime

jurídico muito semelhante, consagrou o legislador alemão com a reforma do

HGB de 1998 (consultável em www. bundesrecht.juris.de/bundesrecht/hgb/).

Daqui decorre a possibilidade, como vimos, de o empresário individual compor a

sua firma exclusivamente com expressões alusivas à sua actividade ou até por

puras designações de fantasia. Ora, quando assim suceda, o único meio de se

poder identificar a expressão escolhida pelo interessado como firma, e

designadamente distingui-la de outros sinais distintivos do comércio, maxime

nome do estabelecimento, era o aditamento obrigatório. Sendo que a

identificação do concreto sujeito, que sob essa firma girava, era assegurada pela

obrigatoriedade do registo, que a lei tornou obrigatório para todos os empresários

plenos (não pequenos), pessoas físicas (art.º 3.º, na redacção original, do

Cód.Reg.Comercial).

Ora a lei n.º 6/2000 veio dispensar a obrigatoriedade do aditamento

«Empresário Individual» ou as iniciais «E.I.», se redigida a firma em português,

e a lei n.º 5/2000, a obrigatoriedade do registo dos empresários individuais, sem

que, contudo, tivesse o legislador estabelecido qualquer limitação quanto às

possibilidades de composição da firma, oferecidas pela lei ao empresário

individual.

No futuro coexistirão, sem quaisquer limitações temporais, firmas

compostas por obediência a diversos parâmetros relativas ao mesmo tipo de

empresário, o que não pode certamente ser considerado como contribuição para a

clarificação e transparência do sistema. O que só não torna a situação grave,

porque, como se viu, o universo dos sujeitos a quem a medida aproveita é

relativamente pequeno.

As amplas possibilidades concedidas pela lei em matéria de composição

de firma afastam a maior parte dos casos de homonímia, i.e. os casos de

coincidência entre a firma de dois sujeitos, resultante do facto de a mesma dever

ser composta com o respectivo nome civil. Agora a lei já não impõe que o sujeito

utilize obrigatoriamente o seu nome, completo ou abreviado, como firma, pelo

que nessa medida as possibilidades de homonímia certamente diminuirão.

Contudo, se a lei não impõe a composição da firma com o nome civil dos sujeitos

não deixa de admitir essa solução, daí que as possibilidades de homonímia

continuem a poder verificar-se. Nesse sentido, a lei estabeleceu no n.º 2 do art.º

22.º critérios para a solução dessa situação, que vão do acrescentar de novos

nomes, à retirada de nomes ou ao aditamento de expressões alusivas à actividade

comercial desenvolvida ou designações de fantasia.

3.2.1.3. Direito à firma

O registo da firma, que ocorre simultaneamente com o registo do próprio

empresário (art.ºs 3.º e 34.º do CRegCom), e, uma vez efectuado, confere ao seu

titular um direito de uso exclusivo sobre o sinal respectivo (art.º 20.º, n.º 1), que

tem carácter de direito absoluto. Este direito tem uma dimensão positiva: a de o

interessado poder usar a firma registada, no âmbito dos seus negócios; e uma

dimensão negativa: a de nenhum outro sujeito poder usar a firma registada sem

autorização do titular. Esta dimensão negativa tem uma extensão mais ampla do

que a dimensão positiva, porquanto não só é a firma, tal qual está registada, cuja

utilização não autorizada pelo titular está proibida, mas também aqueles sinais

que com ela sejam susceptíveis de confusão.

A violação do direito à firma atribui ao seu titular o direito a exigir o

imediato fim da utilização indevida, independentemente da ocorrência, ou

determinação de quaisquer danos, e, caso estes se verifiquem, à competente

indemnização; eventualmente, pode a violação da firma integrar um ilícito

criminal (art.º 21.º).

A firma não registada apenas goza da tutela frágil que as regras sobre

concorrência desleal lhe poderão conceder (art.º 159.º).

3.2.1.4. Transmissão da firma

A firma pode ser transmitida, temporária ou definitivamente (art.º 31.º, n.º

1, 5), mas, em qualquer caso, apenas no âmbito de uma negociação da empresa

para cujo exercício foi criada (art.º 31.º, n.º 6). Para além de apenas poder ser

negociada no âmbito da negociação da empresa, é ainda necessário que o

transmitente da empresa, e titular da firma, consinta na sua transmissão (n.º 1 do

art.º 31.º. Por outras palavras, é necessário a autorização do titular, sendo que não

basta, para este efeito, o facto da transmissão, porquanto ao contrário do que

sucede, por exemplo, em matéria de marcas (art.º 227.º, n.º 1 do RJPI), a lei não

se contenta com o silêncio para que a transmissão se consume. Não quer isto

dizer que seja necessária uma autorização por escrito, mas é imprescindível que a

vontade de transmitir a firma seja expressa, directa ou implicitamente, de forma

inequívoca14.

Já não exige a lei, ao contrário do que sucedia com o art.º 24.º do Código

Comercial de 1888, o aditamento da declaração de sucessão na firma (v.g. Chao

Leong, comércio de automóveis, adquirente), para evitar as chamadas firmas-

comboio (v.g., Alberto Chao, Comércio de Acessórios de Automóveis, Lda.,

Sucessor Manuel Leong). Não desconhecia a lei os interesses que justificavam a

exigência da declaração de sucessão e que se prendiam, essencialmente, com os

14 Cfr. Claus-Wilhelm Canaris, Handelsrecht, 23 ed.ª, Munique, 2000, p. 229.

que estão ligados ao princípio da verdade15: assegurar que a firma não é veículo

de falseamento da realidade. Por conseguinte, a declaração de sucessão permitia

a terceiros conhecer que a firma em causa não era uma firma originária, mas

antes uma firma derivada. Assim os precavendo, para o facto de a pessoa

designada na firma já não ter nada que ver com a mesma, ou, tratando-se de

sociedades, podendo já nada ter que ver com a mesma, e permitindo-lhes, com

averiguações complementares, saberem quem se abrigava à sombra da mesma.

Estes interesses, a nova lei prosseguia-os através da obrigatoriedade do

registo de todos os negócios que envolvessem a empresa. Por uma simples

consulta ao registo, qualquer interessado estaria em condições de saber quem é

que actuava sob determinada firma. Acontece que a Lei n.º 6/2000 veio dispensar

de registo os negócios de alienação de empresa, embora tenha mantido essa

obrigatoriedade relativamente a todos os outros, i.e. àqueles que envolvam uma

transmissão meramente temporária da empresa, quer pela constituição de um

direito pessoal de gozo (v.g., uma locação) quer pela constituição de um direito

real de gozo (v.g., um usufruto), ou a constituição de um direito real de garantia

(art.º 103.º). Por outro lado, a Lei n.º 5/2000, que alterou o Cód.Reg.Com, como

se disse, transformou em facultativo o registo das pessoas singulares (art.º 3.º).

Sem prejuízo, o n.º 6 do art.º 31.º sujeita a registo a transmissão da firma, pelo

que, se a alienação da empresa coenvolveu a firma, este facto deve ser registado,

sob pena de não produzir efeitos contra terceiros.

O consentimento para a transmissão da firma há-de ser dado pelo

transmitente (art.º 31.º, n.º 2), na generalidade dos casos, mas nos casos de

transmissão da empresa do autor da sucessão já a solução necessita de

complementações. Assim, é necessário distinguir consoante o de cujus tenha ou

não disposto, por escrito, sobre o ponto, prevalecendo, em princípio, a sua

vontade (art.º 31.º, n.º 2). Dizemos em princípio, porque a protecção da lei

explica-se por poderem estar em causa direitos de personalidade do de cujus, o

que se verificará caso a firma seja composta, total ou parcialmente, com o seu

nome. Já se a firma não foi composta com o nome do de cujus, é, por hipótese,

15 Cfr. Ferrer Correia, 1973, p. 276; J.Gierke, 1957, p. 151.

uma firma de pura fantasia ou limita-se a indicar o objecto da empresa (firma-

denominação), as razões da tutela da lei não se verificam, pelo que não faria

sentido obrigar-se os herdeiros a respeitar a vontade do de cujus16. Caso o de

cujus não tenha deixado disposição sobre a questão, o consentimento para a

transmissão da firma compete à maioria dos herdeiros, quer se trate de

transmissão para terceiro quer se trate de adjudicação da empresa a um ou alguns

dos herdeiros (art.º 31.º, n.º 2).

No caso de se tratar de firma de sociedade comercial composta com o

nome de sócio, a transmissão da firma não está sujeita, em princípio, à

necessidade do consentimento do sócio, contrariamente ao que sucedia no direito

pretérito, em que tal consentimento era obrigatório. O consentimento do sócio só

será necessário, caso isso tenha sido acordado e exarado no pacto social (art.º

31.º, n.º 3). A solução da lei decorre do facto de que, contrariamente ao que

sucedia em face do regime legal da firma no Código Comercial de 1888, já não

existir em nenhum tipo social a obrigatoriedade de a firma ser composta com o

nome de sócios. Por outras palavras, a utilização do nome de sócios na firma é

meramente facultativa. Por conseguinte, se o sócio consentiu que o seu nome,

sem a tal estar obrigado, figure na firma, sabe que fica sujeito a que a firma seja

transmitida sem que tenha de ser ouvido sobre o caso. Se quer permitir a inclusão

do seu nome na firma e, simultaneamente, assegurar-se o direito de impedir a

transmissão da firma inalterada, isto é, com o seu nome, deve ter o cuidado de

fazer estipular nos estatutos essa sua prerrogativa.

Em qualquer circunstância, o sócio, cujo nome figure na firma, deixará de

responder pelas dívidas sociais, naquelas sociedades em que aos sócios é

cometida tal responsabilidade, a partir do registo e publicação do acto de

transmissão (art.º 31.º, n.º 4). Esta solução da lei, supunha o registo de todo e

qualquer acto de negociação da empresa, como inicialmente estava previsto no

art.º 103.º. Acontece que, como já se referiu, a regra foi alterada, não sendo agora

os actos de alienação definitiva da empresa (vulgo trespasse), sujeita a registo,

sendo que nenhum acto de negociação o é a publicação. Assim sendo, só resta ao

16 Cfr. Canaris, 2000, p. 226.

sócio provocar ele próprio esse registo, se quiser aproveitar da faculdade que a lei

lhe faculta no n.º 4 do art.º 31.º.

3.2.1.5. Invalidade da firma

A firma pode ser inválida, quer porque se verifica uma nulidade na sua

composição quer porque se verifica uma anulabilidade. A firma é nula quando

tenha sido composta em violação de regras legais imperativas. Assim, a violação

do princípio da verdade, consagrado no art.º 15.º, bem como a violação da

obrigatoriedade da composição numa das línguas oficiais (art.º 17.º), ou do art.º

18.º, tornam a firma nula (art.º 33.º, n.º 1).

A nulidade tem de ser decretada pelo tribunal, por força do n.º 2 do art.º

33.º; sentença, esta, que está sujeita a registo e publicação (n.º 3 do art.º 33.º).

A firma pode também ser anulada, a requerimento do interessado (n.º 2 do

art.º 34.º), em acção judicial intentada no prazo de três anos a contar do registo,

quando de boa fé (se o registo foi feito de má fé, a acção judicial não prescreve –

art.º 34.º, n.º 3) (art.º 34.º, n.º 2), quando na sua composição tenham sido violado

os direitos de terceiros, nomeadamente o princípio da novidade (art.º 34.º, n.º 1).

A sentença de anulação da firma está, tal-qualmente a de nulidade da firma,

sujeita registo e publicação (art.º 34.º, n.º 4). Trata-se em ambos os casos de

assegurar que o registo representa uma representação fidedigna da situação dos

empresários e das empresas a que respeita, em ordem à protecção do tráfico

mercantil.

3.2.1.6. Extinção do direito à firma

A firma pode ainda extinguir-se por caducidade, nos casos indicados no

art.º 35.º. Assim, o encerramento e liquidação da empresa, a dissolução e

liquidação da pessoa colectiva ou o seu simples não uso por um período superior

a três anos, determinam a caducidade da firma, porquanto a mesma foi criada

para distinguir um concreto sujeito, o empresário, no exercício daquela empresa.

Extinguida esta, a causa daquela desaparece, daí que a firma se deva considerar

extinta com aquela. Sendo a firma um bem acessório do exercício da empresa,

não existe em si e por si, mas tão só enquanto meio de contradistinção para o

exercício de uma empresa, enquanto estratégia da sua afirmação, acreditação no

mercado, percebe-se que o seu destino esteja inextrincavelmente ligado àquele

exercício: extinto este, extinta a firma, como lógica decorrência daquela sua

ligação umbilical.

O facto do simples não uso também determinar a extinção da firma por

caducidade também se explica por causa daquela inextricável ligação funcional

entre a firma e o exercício de uma empresa. A firma, disse-se, não constitui um

bem em si e por si, desde logo apenas pode ser negociado com a empresa a cujo

exercício anda ligada, como tal não pode subsistir à margem daquele exercício;

mais, à margem de um qualquer exercício empresarial. A firma é, assim,

funcionalmente dependente de um exercício empresarial; este é o sustento

energético daquela, desaparecido aquele, a firma extingue-se por inanidade. Isto,

apesar de a firma ser objecto de um direito absoluto17, e estes não se extinguirem

com o simples não uso, pois o não uso é ainda uma firma de uso.

A caducidade da firma necessita de ser declarada pela conservatória

competente, a pedido de qualquer interessado (art.º 36.º, n.º 1), não opera, pois,

oficiosamente. A conservatória dará um prazo de um mês, ao titular inscrito, para

responder, caso queira (art.º 36.º, n.º 2). Caso julgue verificados os factos

fundamento da caducidade, indicados no art.º 35.º, a conservatória declarará a

caducidade e averba-la-á oficiosamente (art.º 36.º, n.º 3 e 5). Desta declaração de

caducidade cabe recurso para o tribunal. Tornando-se definitiva a declaração de

caducidade, a firma respectiva fica livre, podendo ser objecto de novo pedido de

registo, a favor de novo titular, nos termos gerais.

Finalmente, o direito à firma, enquanto direito disponível, pode ser

objecto de renúncia do seu titular, mediante declaração por escrito à

conservatória competente (art.º 37.º, n.º 1 e 2).

17 Cfr. Ferrer Correia, 1973, p. 281.

3.3. Escrituração mercantil e prestação de contas

3.3.1. Enquadramento e fundamentos

Todo o empresário comercial está obrigado a ter escrita organizada,

adequada à sua empresa, que permita o conhecimento cronológico de todas as

suas operações, bem como à elaboração periódica de balanços e inventários (art.º

38.º), e, especialmente, a permitir conhecer com clareza a representação

fidedigna do seu património, da sua situação financeira e dos resultados da

exploração da sua empresa, em conformidade com as disposições legais (art.º

54.º, n.º 2)18.

A obrigação de o empresário ter escrita organizada é-lhe imposta no seu

próprio interesse, e, indirectamente, no interesse dos terceiros (credores) que com

ele têm relações comerciais, e no interesse da própria RAEM, interessada em

conhecer a verdadeira situação e os resultados da exploração da empresa19.

A contabilidade foi e continua a ser um elemento fundamental para

aperfeiçoar o funcionamento da empresa, porque através dela o empresário fica

não só em condições de conhecer a sua situação patrimonial e o estado dos seus

negócios, mas também, com base na informação que a contabilidade encerra,

programar a sua linha de conduta futura, de modo mais racional. Por outro lado,

se a contabilidade é verdadeira, está bem organizada e elaborada, e representa

uma representação fidedigna do seu património, da situação financeira e dos

resultados da exploração da empresa, isso é benéfico para o interesse geral. A

RAEM está interessada em conhecer a verdadeira situação patrimonial dos

empresários, não só por razões fiscais, dado que estes são os seus principais

contribuintes, mas também para a atribuição de benefícios fiscais, subvenções,

etc., bem como para efeitos da qualificação da falência, sabido que esta pode

constituir crime (art.ºs 223.º, 224.º e 225.º do Cód. Penal). Mas a contabilidade

devidamente ordenada protege também, indirectamente embora, os credores do 18 Cfr. Manuel Broseta Pont, Fernando Martínez Sanz, Manual de derecho mercantil, vol. I, 11.ª ed., TECNOS, 2002, p. 101; Canaris, 2000, p. 272. 19 Idem, ibidem; Peter Jung, Handelsrecht, 5.ª ed.ª, Verlag C.H.Beck, 2006, p. 180.

empresário, quer os actuais quer os futuros, pois a sua decisão, de concederem ou

não crédito ao empresário, dependerá da situação patrimonial que este apresente.

Situação patrimonial, esta, para cujo conhecimento se afigura de fundamental

importância a documentação e registo das operações mercantis do empresário,

isto é a sua contabilidade. Finalmente, a contabilidade é de primacial relevo para

os sócios das sociedades comerciais e membros dos demais empresários

comerciais, pessoas colectivas, pois dela dependerá a exacta determinação dos

lucros de exercício, com base nos quais será efectuada a repartição do dividendo

(art.º 198.º, n.º 2)20.

A última nota referida logo nos alerta para o facto de que a escrita

mercantil se imbrica inextrincavelmente com a obrigação de prestação de contas,

que a lei comete aos empresários, e que assume a sua relevância máxima em sede

de sociedades comerciais. Justamente por isso é que, p.e., Canaris21 considera a

escrita mercantil (Handelsbücher), como parte de uma mais geral obrigação de

prestação de contas (Rechnunglegung), e nesse contexto expõe o tema.

A disciplina legal baseia-se nas disposições do anterior Código Comercial,

que simplificou substancialmente (v.g., diminuiu os livros obrigatórios), mas

também nas disposições do Anteprojecto de Lei das Sociedades Comerciais

respeitantes às contas anuais, e, muito especialmente, na directiva comunitária n.º

78/600/CEE, de 25 de Julho de 1978 (4.ª directiva sobre sociedades), sobre as

contas anuais das sociedades de capitais. Embora a referida directiva se referisse,

como disse, apenas às sociedades de capitais, tendo em conta que a maioria dos

empresários comerciais são sociedades, e dentro destas sociedades de capitais

(anónimas ou por quotas), por um lado, que os demais tipos societários são

irrelevantes em Macau e que os empresários individuais são em regra pequenos

empresários, e por isso, lhes seriam inaplicáveis as disposição relativas à

obrigação de ter escrita organizada (art.º 13.º, n.º 1), entendeu-se generalizar a

20 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 104. 21 2002, p. 270.

aplicação das referidas exigências a todos os empresários, e, por conseguinte,

incluiu-se o essencial da disciplina em questão no Código Comercial22.

3.3.2. Livros obrigatórios

A escrita mercantil é efectuada com o apoio de um conjunto de livros,

impostos por lei, e, por isso, ditos obrigatórios. Os livros obrigatórios são os

indicados no n.º 1 do art.º 39.º (na redacção da Lei n.º 6/2000): o livro de

inventário e balanços e os demais que sejam fixados por ordem executiva. Não

era assim na redacção original do preceito, pois então prescrevia-se, para além do

livro de inventário e balanços, um livro do diário e não se fazia qualquer

referência a livros impostos por ordem executiva.

A exclusão do livro do diário do n.º 1 do art.º 39.º levantava uma dúvida

quanto ao exacto alcance da medida, porquanto a lei continuava a prever a função

e o modo de escrituração do mesmo, no art.º 43.º. Esta situação foi saneada pela

Lei n.º 16/2009, que revogou este preceito. Apesar de a função do livro do diário

ser a de registo quotidiano das operações praticadas, como base para a elaboração

dos futuros balanços, ter-se-á julgado que, porventura, esses registos podem ser

assegurados sem o recurso a este livro.

Quanto aos livros que sejam impostos por ordem executiva, o que se pode

dizer é que se tratou de repetir aquilo que já se dizia, e continuou a dizer aliás, no

n.º 5 do art.º 39.º, na medida em que as ordens executivas se enquadram dentro

das disposições especiais (como os regulamentos administrativos e as leis da

AL), a que a lei se refere no n.º 5. Fez bem, por isso, a lei (Lei n.º 16?2009) ao

dar nova redacção ao n.º 1 do art.º 39.º, em que se já não faz menção à ordem

executiva. A mesma lei deu também nova e mais elegante redacção ao n.º 2.

22 Acompanhou o legislador a opção do legislador espanhol que, pelos mesmos motivos, incluiu no Código Comercial as normas resultantes da transposição da directiva comunitária em questão (cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 102. Idêntico procedimento se adoptou na Alemanha, tendo a transposição da 4.ª directiva, bem como das 7.ª e 8.ª directivas sobre sociedades, respeitantes, respectivamente, a balanço dos grupos de sociedades e a auditoria, levado à reforma de 1986 do HGB, com a introdução de um novo Livro III, dedicado à escrituração mercantil (cfr. Canaris, 2000, p. 269; K.Schmidt, 1997, pp. 439, 440).

Aos indicados no n.º 1 do art.º 39.º, acrescem, para os empresários pessoas

colectivas, livros de actas (art.º 39.º, n.º 2) (da assembleia geral, do conselho de

administração, do conselho fiscal – art.º 252.º, n.º 1, als. a), b) e c)), o livro de

registo de ónus, encargos e garantias (art.º 252.º, n.º 1, al. d)), o livro de registo

de acções (art.º 252.º, n.º 1, al. e)), o livro de registo de emissão de obrigações

(art.º 252.º, n.º 1, al. f)). Estes três últimos tipos de livros obrigatórios

representam exemplos de livros impostos por disposições especiais, a que faz

referência o n.º 5 do art.º 39.º. A par destes, prevê a lei a possibilidade de os

empresários utilizarem outros livros (v.g. livro do razão, onde os elementos, que

são de incluir no livro do diário, aparecem em contas de Deve e Haver, por forma

a facilmente se conhecer a situação económica do empresário), consoante assim o

entendam conveniente (art.º 39.º, n.º 5).

O livro de inventários e balanços abre com um balanço inicial e detalhado

da empresa (do que é que a constitui) e nele são lançados os balanços a que

empresário está obrigado por lei (art.º 42.º).

3.3.3. Formalidades e requisitos externos da escrituração

A diferença entre livros obrigatórios e não obrigatórios reside na

circunstância de, relativamente àqueles que considera obrigatórios, a lei

estabelecer particulares cautelas destinadas a assegurar a fidedignidade da

informação neles contida. Assim, impunha a sua legalização (art.º 40.º, n.º 1) por

intermédio de notário23 ou do conservador do registo comercial (art.º 41.º). A lei

n.º 6/2000 veio permitir que a legalização dos livros obrigatórios possa ser

efectuada por qualquer membro da gerência24 ou administração, devidamente

23 O que representa uma novidade relativamente ao direito pretérito em que apenas o conservador do registo comercial podia efectuar a legalização dos livros obrigatórios, tal qual ainda sucede hoje em Portugal. Pretendeu a lei aproveitar do facto de em Macau existir o regime de notariado privado, por um lado, e de a maioria dos advogados serem notários privados, por outro, para, sem cedências às exigências de rigor, agilizar a legalização dos livros de escrituração mercantil obrigatórios. 24 A lei quer referir a gerência órgão das sociedades, não o gerente, a que se referem os art.ºs 64.º ss. Na verdade, a lei introduziu, no art.º 383.º, um novo n.º 2 (dizemos que introduziu um novo n.º 2, porquanto, embora o art.º 383.º já tivesse um n.º 2, o conteúdo do novo n.º 2 nada tem que ver com o anterior, não representando uma mera alteração de redacção, mas sim um verdadeira revogação do anterior e

autorizado (Por quem? Pelos restantes membros do órgão, todos apenas a

maioria? E se o órgão for singular? Pela Assembleia Geral?), ou pelo secretário

(da sociedade). Por conseguinte, a lei n.º 6/2000 veio estender para os livros, em

sentido estrito, a faculdade que admitia para os livros compostos por folhas soltas

(infra). A partir de agora, a legalização apenas será efectuada por notário ou pela

conservatória quando se trate de empresários individuais, pois não é crível que,

podendo-o fazer directamente sem custos e sem demoras, os interessados vão

requerer a terceiros (notário ou conservador) a legalização dos seus livros.

A lei, atendendo à crescente divulgação e utilização dos meios

informáticos, para permitir a impressão da informação arquivada em computador,

já tinha admitido que os livros pudessem ser constituídos por folhas soltas (art.º

39.º, n.º 3). As quais, em conjuntos de 60, devem ser numeradas sequencialmente

e rubricadas pela gerência ou administração ou secretário, que também lavram os

termos de abertura e de encerramento (art.º 39.º, n.º 4). Contudo, continuava a

exigir a legalização das folhas soltas, agrupadas em conjuntos de 60 e, depois de

devidamente numeradas, rubricadas e com os respectivos termos de abertura e de

encerramento lavrados (art.º 39.º, n.º 4, in fine). A legalização consistiria nesse

caso na assinatura, pelo notário ou conservador, ou quem este representasse, dos

termos de abertura e de encerramento (art.º 40.º, n.º 2). A partir da lei n.º 6/2000,

já não existe esta última exigência legal.

No fundo, tratou-se de alargar a todos os livros, independentemente da sua

composição, da faculdade conferida aos interessados relativamente aos livros

constituídos por folhas soltas e de afastar a necessidade da intervenção do notário

ou do conservador. Ora, a comissão da legalização a um terceiro, oficial público

ou dotado de fé pública, visava assegurar a integridade e incolumidade dos livros

obrigatórios, o que não é seguro que esteja assegurado no novo sistema. O que é

que impede os interessados de terem vários livros, para poderem manipular a sua

contabilidade a seu bel prazer, se são eles mesmos que os legalizam?

introdução de um novo n.º 2), que permite que os estatutos das sociedades por quotas (e as outras não podem?) possam prever outras designações para os administradores, como, p.e., directores, gerentes.

A legalização consiste na assinatura dos termos de abertura e de

encerramento, na indicação, na última folha25, do número de folhas que o livro

contem e na numeração e rubrica de cada uma das folhas que compõem o

respectivo livro (art.º 41.º, n.º 2).

Permite ainda a lei que a escrita mercantil possa ser levada

exclusivamente em termos informáticos, ou seja, sem necessidade da reprodução

da informação respectiva em folhas soltas. Antes da Lei n.º 16/2009, isso

resultava inequivocamente do art.º 46.º, n.º 3 que expressamente referia tal forma

de manutenção da escrituração mercantil, contanto que se conformasse com os

princípios de uma contabilidade ordenada (art.º 46.º, n.º 3). Para tal era

necessário assegurar que a informação, arquivada em suporte informático, ficasse

acessível durante o período de conservação obrigatória, que era de 10 anos (art.ºs

46.º, n.º 4, 49.º, n.º 1), e agora passou a 5. Os n.º 3 e 4 do ar.º 46.º foram,

contudo, revogados pela Lei n.º 16/2009, mas não o seu conteúdo que passou a

constituir o n.º 3 do art.º 49.º. O que, aliás, é confirmado pelo n.º 6 do art.º 46.º,

que se refere à legalização dos livros em suporte informático, dizendo-se aí que a

mesma está sujeita à adopção de procedimentos que garantam a inalterabilidade

da informação neles contida. Por outro lado, foi dada nova redacção ao art.º 47.º,

passando aí a prever-se não só, como até agora a microfilmagem dos documentos

de suporte da escrituração, mas também à sua passagem para suporte electrónico.

Contudo, a deslocalização do conteúdo dos n.ºs 3 e 4 do art.º 46.º, , para o art.º

49.º, que trata do prazo da conservação, não parece acertada, porquanto a

manutenção da escrituração em suporte electrónico é questão que se prende com

a forma da conservação (v.g., em papel, em suporte electrónico?), tratada no

referido art.º 46.º, não com o problema do prazo pelo qual deve ser conservada,

que constitui o objecto do art.º 49.º, pelo que era ali que correctamente estava

ubiquada.

Quanto aos requisitos externos da escrituração, determina a lei que os

livros devem de ser lavrados com clareza, por ordem cronológica, sem espaços

em branco, interpolações, emendas ou rasuras, não podendo ser utilizados

25 Na redacção original, dizia-se que esta indicação era efectuada na primeira folha de cada livro.

códigos, siglas ou abreviaturas cujo significado não seja claro relativamente à lei

(art.º 46.º, n.º 1, 1ª parte e in fine). Os erros ou omissões devem ser corrigidos,

imediatamente após a sua descoberta, sendo que, se for necessário efectuar o

cancelamento de algum registo, este deve ser realizado de forma a que o registo

cancelado se mantenha legível (art.º 46.º, n.º 1).

A escrituração mercantil, para além de poder ser conservada em suporte

informático, pode ainda ser microfilmada, substituindo os microfilmes os

originais para todos os efeitos (art.º 47.º). As fotocópias e as ampliações obtidas a

partir do microfilme têm a força probatória do original, contanto que contenham

a assinatura do responsável pela microfilmagem, devidamente autenticada (art.º

48.º).

O empresário estava ainda obrigado a conservar a sua escrituração

mercantil (livros, correspondência, documentos e demais justificativos relativos à

sua empresa), devidamente ordenados, pelo prazo de 10 anos, a partir do último

assento lavrado nos livros, sem prejuízo do disposto em disposições especiais

(art.º 49.º, n.º 1). O prazo de 10 anos, que, recorde-se, reduziu a metade o anterior

prazo de 20 anos fixado no art.º 40.º do Código Comercial de 1888, era fixado

por coordenação com o prazo de prescrição do procedimento penal, fixado na al.

c) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 110.º do Cód.Penal, atento a que, nos termos do art.º

223.º, n.º 1, a falência intencional é punida com pena de prisão até cinco anos.

Esta obrigação do empresário mantinha-se, mesmo após a cessação do

exercício da empresa, até ao decurso do prazo de 10 anos, e mesmo que o

empresário tivesse falecido, devendo neste caso a conservação da escrita

mercantil ser assegurada pelos herdeiros, e, tratando-se de empresário comercial,

pessoa colectiva (v.g. sociedade, agrupamento de interesse económico) pelos

liquidatários (art.º 49.º, n.º 2), embora o prazo de conservação, neste caso e só

neste caso, fosse apenas de 5 anos, por força do art.º 322.º, n.º 2. “Tendo em

conta que é este prazo de 5 anos o fixado pela pela lei fiscal para a conservação

dos livros de escrituração, talvez fosse conveniente uniformizar estas

disposições”, escrevíamos nós ao tempo. Esta uniformização foi efectuada

recentemente pela Lei n.º 6/2009, de 10 de Agosto, pelo que o prazo de

conservação dos livros de escriuração mercantil é agora de apenas 5 anos.

3.3.4. Contas anuais ou de exercício

O empresário está ainda obrigado, no seguimento da obrigação de levar

escrituração mercantil ordenada, e agora numa perspectiva de prestação de

contas, a elaborar as contas anuais ou de exercício, no prazo de 3 meses a contar

do encerramento do exercício, que compreenderão o balanço, a conta de ganhos e

perdas e o anexo (art.º 54.º, n.º 1). O balanço compreende, com a devida

separação, os bens e direitos que constituem o activo da empresa e as obrigações

que formam o passivo da mesma, especificando os fundos próprios (art.º 55.º, n.º

1, 1.ª parte). Nos termos da parte final do n.º 1 do art.º 55.º, o balanço de abertura

de um exercício deve corresponder ao balanço de encerramento do exercício

anterior (princípio da identidade).

O balanço de exercício permite conhecer a situação patrimonial resultante

da exploração da empresa, num dado momento (dimensão estática)26.

A conta de ganhos e perdas constitui um complemento do balanço e

compreende, com a devida separação, os proveitos e os custos do exercício e, por

diferenças, o resultado, positivo ou negativo, do mesmo, ou seja, a existência de

ganhos (lucros) ou perdas, distinguindo os resultados ordinários, aqueles que

resultam da exploração da empresa, dos resultados extraordinários, aqueles que

não resultam daquela exploração (v.g. a venda de um imóvel, no caso de um

empresário têxtil) (art.º 55.º, n.º 2).

A conta de ganhos e perdas, contrariamente ao balanço, não permite

conhecer apenas a situação patrimonial num dado momento, mas sim o

desenvolvimento da situação patrimonial ao longo do exercício, permitindo

determinar a utilização dada aos recursos e a causa dos lucros ou perdas

verificadas (dimensão dinâmica)27.

26 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, 2002, p. 106. 27 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, idem, p. 106.

Ao balanço e à conta de ganhos e perdas acresce ainda o anexo que

completa, amplia e explica a informação contida naqueles (art.º 55.º, n.º 3, 1.ª

parte). Assume basicamente uma função explicativa da informação contida quer

no balanço, quer na conta de ganhos e perdas.

As contas anuais são elaboradas pelo empresário, como aliás toda a

demais escrituração mercantil, ou por alguém por sua indicação, e devem ser

redigidas com clareza, de modo a mostrar a representação fidedigna 28 do

património (true and fair view)29, da situação financeira e dos resultados da

empresa (art.º 54.º, n.º 2). A necessidade de as contas revelarem a representação

fidedigna do património é o princípio cardinal nesta matéria, de tal sorte que, se a

aplicação das normas legais não for suficiente para assegurar a imagem fiel do

património, devem as mesmas ser complementadas com as informações

necessárias a atingir aquele desiderato (art.º 54.º, n.º 3), podendo até determinar a

inaplicação de normas jurídicas, em princípio, aplicáveis, quando da aplicação

destas possa resultar uma distorção daquela imagem (art.º 54.º, n.º 4, 1.ª parte).

Quanto aos critérios valorimétricos a utilizar na redacção das contas

anuais, os mesmos são determinados por lei, em ordem a permitir que as contas

de todos os empresário sejam normalizadas para poderem ser comparadas30, e

correspondem aos princípios de contabilidade geralmente aceites (art.º 58.º, n.º

1). A lei indica, nas várias alíneas neste n.º 1, algumas das regras que devem ser

observadas para a redacção das contas anuais: a presunção de que a empresa

continua em funcionamento (princípio da continuidade formal), que os critérios

valorimétricos não se alteram de ano para ano (princípio da consistência), que é

observada a adequada prudência valorativa (princípio da prudência), que os

custos e os lucros são imputados ao exercício em que se verificaram,

independentemente do momento da data do pagamento ou da cobrança (princípio

da especialização ou acréscimo), que os vários elementos integrantes das diversas

rubricas do activo e do passivo, são valorizados autonomamente (princípio da

28 Esta expressão foi introduzida pela Lei n.º 16/2009, em substituição da expressão “imagem fiel”. Nada a dizer, porquanto a nova expressão parece mais rigorosa e técnica, o que se aplaude. 29 Cfr. Broseta Pont, Martínez Sanz, idem, p. 106; K.Schmidt, 1997, p. 461. 30 Idem.

avaliação individual), que os elementos do activo imobilizado e do activo

circulante são contabilizados pelo custo de aquisição ou custo de produção

(princípio do custo histórico). Em caso de conflito, prevalece a regra da

prudência valorativa, que obriga a indicar no balanço apenas os lucros já

realizados na data do seu encerramento (princípio da realização), a ter em conta

os riscos previsíveis e as perdas eventuais com origem no exercício ou em

exercício anterior, distinguindo-se as realizadas ou irreversíveis das potenciais ou

reversíveis e a ter em conta as depreciações (princípio da materialidade) (art.º

58.º, n.º 2). Em situações excepcionais, estes princípios podem não ser aplicados,

devendo a sua inaplicação ser fundamentada no anexo, e explicada a sua

influência sobre o património, a situação financeira e os resultados da empresa

(art.º 58.º, n.º 3).

As contas anuais devem ser assinadas pelo empresário, ou, tratando-se de

empresário comercial, pessoa colectiva, por todos os seus administradores (art.º

57.º, n.º 1, als. a) e b)). Ao assinarem as contas anuais, as pessoas a quem a lei o

impõe, assumem o seu conteúdo e eventuais inexactidões, independentemente de

terem sido ou não eles que as elaboraram31.

3.3.5. Valor probatório da escrituração mercantil

A escrituração mercantil devidamente organizada pode ser utilizada pelo

empresário como meio de prova contra outros empresários, nas condições

indicadas no art.º 51.º. A lei supõe que se a escrituração está devidamente

elaborada e organizada, então os factos que reporta são verdadeiros. Com isto a

lei permite ao empresário fazer prova com factos que ele própria cria. Trata-se de

faculdade que a lei em nenhum outro local atribui, o valor de prova dos vários

factos é determinado pela própria lei, mas não pode ser determinado directamente

pelos próprios interessados. Quer dizer, em regra, os interessados não podem

atribuir valor probatório aos seus próprios factos, não podem criar a sua própria

prova. Pois bem, no âmbito da actividade mercantil, supõe a lei que os

31 Idem.

empresários, sendo pessoas diligentes e zelosos dos seus interesses, ao registarem

os factos do seu comércio fazem-no porque os mesmos são verdadeiros. E como

verdadeiros os considera a lei para efeitos de prova contra outros empresários,

que, de duas uma, ou apresentam assentos contabilísticos devidamente ordenados

de sinal contrário aos que resultam dos assentos do primeiro ou então verão ser

contra eles prevalecente o sentido que dos registos deste resultam contra si (art.º

51.º, n.º 1, al. b) e c)), se não apresentarem prova em contrário. Quer dizer,

mesmo que, de acordo com as regras gerais de distribuição do ónus da prova,

incumbisse ao empresário fazer a prova dos factos que invoca, se ele apresenta a

sua escrituração mercantil devidamente organizada, basta-lhe invocar os assentos

constantes dos seus livros de escrituração, para que passe a ser a contraparte a ter

de demonstrar que a materialidade invocada não corresponde à realidade. Se este

tem, também ele, a sua escrituração mercantil regularmente arrumada, e da

mesma constam assentos que contrariam os assentos do outro, volta-se à primeira

fase: é o empresário que pretende invocar certo direito que terá de fazer prova

dos factos constitutivos, e a correr consequentemente o risco da não prova. Se o

empresário, contra o qual se invocam certos assentos contabilísticos, tem

escrituração mercantil organizada, mas não apresenta assentos opostos aos do

outro (al.b do n.º 1 do art.º 51.º), ou se não tem a sua escrituração devidamente

ordenada, ainda que dela constem assentos opostos aos da outra parte (al.c) do n.º

1 do art.º 51.º), então só através dos meios gerais pode infirmar a materialidade

que daqueles flui. Não o conseguindo, verá prevalecer contra si aqueles assentos,

com as inerentes consequências.

Os assentos constantes dos livros de escrituração mercantil, devidamente

arrumados, farão prova também contra o empresário que, em vez de apresentar

escrita desorganizada, pura e simplesmente não tem os livros de escrituração, que

está obrigado a ter, ou se recusa a apresentá-los, salvo se a falta dos livros se

dever a caso de força maior (v.g. furto, incêndio), e sem prejuízo do recurso aos

meios gerais de prova (art.º 51.º, n.º 2).

Os assentos contabilísticos do empresário que lhe sejam desfavoráveis,

mesmo quando este não tenha a sua escrituração mercantil devidamente

arrumada, fazem prova contra ele (al.a) do n.º 1 do art.º 51.º), pois presume a lei

que, tendo a escrita desorganizada, se mesmo assim nela registou certo facto que

lhe é adverso é porque o mesmo é verdadeiro. Contudo, aquele que de tais factos

se pretenda prevalecer tem também de suportar os factos registados que lhe sejam

desfavoráveis, a despeito da desorganização da escrita mercantil da contraparte

(art.º 51.º, n.º 1, al. a), in fine). Não pode pois escolher os que lhe são favoráveis

e desconsiderar os adversos: ou tudo ou nada.

3.3.6. Carácter secreto da escrituração mercantil

A escrituração mercantil é secreta, não podendo ser objecto de devassa

sem prévio consentimento do empresário, sendo certo que sobre aqueles que, em

virtude das suas funções, tomam conhecimento da mesma impende um dever de

segredo. A lei, em certas circunstâncias, as indicadas no n.º 2 do art.º 52.º,

permite que, mesmo contra a vontade do empresário, a escrituração possa ser

consultada e examinada (exame geral), a requerimento de quem nisso tenha

interesse [v.g. os herdeiros, os credores do falido, os sócios em nome colectivo

(art.º 336.º, n.º 1)] ou oficiosamente. Fora desses casos, o exame da escrita é

sempre particular, ou seja, limitado aos aspectos relacionados directamente com

o assunto em discussão, e apenas possível desde que o empresário respectivo

tenha interesse ou responsabilidade no assunto. O que logo nos diz que a

exibição só pode verificar-se compulsivamente em sede da competente acção

judicial (art.º 52., n.º 3).

O exame da escrituração mercantil será efectuado de forma a limitar o

mais possível os riscos de devassa, devendo o mesmo ocorrer na empresa e na

presença do empresário ou de quem o represente (art.º 53.º, n.º 1). Aquele a quem

a lei confere o direito de exame, quer geral quer particular, poderá fazer-se

acompanhar por técnicos auxiliares, na forma e número que o tribunal entender

conveniente (n.º 2 do art.º 53.º). Pretende a lei assegurar o exercício material do

direito de exame e não apenas o exercício formal, porquanto, implicando a

compreensão da escrituração mercantil especiais qualificações, sempre que o

interessado as não possuísse, ver-se-ia impedido, de facto, de exercer o seu

direito.

3.3.7. Auditoria das contas anuais

Para além de em certas circunstâncias, limitadas embora, a lei permitir o

exame, quer geral quer particular, da escrituração mercantil do empresário,

também admite, e por vezes determina, a possibilidade de as contas anuais

(balanço, conta de ganhos e perdas e anexo) serem auditadas. Umas vezes, a lei

impõe que as contas anuais sejam sempre auditadas [v.g. contas anuais das

Seguradoras (art.º 88.º, n.º 1 do D/L n.º 27/97/M, de 30 de Junho), dos Bancos

(art.º 53.º, n.º1, do D/L n.º 32/93/M, de 5 de Julho) etc.], outras vezes, permite

que a requerimento de quem nisso demonstre interesse sério (v.g., quando um

sócio tiver fundadas suspeitas de graves irregularidades, pode requerer ao

tribunal exame judicial à sociedade, nomeando o tribunal um auditor de contas

para o efeito – art.º 211.º, n.ºs 1 e 2) o tribunal ordene que as contas anuais sejam

sujeitas a auditoria (art.º 60.º, n.º 1). Neste último caso, o tribunal exigirá que o

requerente preste caução adequada a cobrir as custas processuais e despesas da

auditoria, as quais ficarão a cargo do requerente, quando não se encontrem vícios

ou irregularidades (art.º 60.º, n.º 2).

4. Obrigação de registar certos factos

A lei determina a necessidade de o empresário registar certos actos (art.º

12.º, al. c)), para tal institui o registo comercial destinado a dar publicidade à

situação jurídica dos empresários e das empresas comerciais, tendo em vista a

segurança do comércio jurídico (art.º 61.º).

Na verdade, o exercício da empresa traduz-se na prática de actos em

massa, o que origina a estipulação de inúmeras relações com terceiros; além

disso, os empresários recorrem intensamente ao crédito, potenciam a sua

intervenção jurídica no mundo económico através de gerentes, utilizam firmas,

por vezes de mera fantasia (art.º 22.º, n.º 1, al. c)), firmas, essas, que podem ter

pertencido a outrem (art.º 31.º); por outro lado, as empresas são objecto de um

direito de propriedade (art.º 95.º), e podem ser objecto de vários negócios, tudo

circunstâncias que aconselhem um adequado sistema de publicidade que permita

aos terceiros facilmente conhecerem a situação jurídica dos empresários e

respectivas empresas.

Esse sistema de publicidade jurídica é, justamente, assegurado pelo registo

comercial, cujo regime jurídico, para lá das duas disposições (art.ºs 61.º e 62.º)

que o Código Comercial lhe dedica, consta do D/L n.º 56/99/M, de 11 de

Outubro32, com as alterações resultantes da Lei n.º 5/2000, de 26 de Abril.

A função essencial do registo é dar publicidade a certos factos em ordem à

protecção da segurança do comércio jurídico, por isso, em regra, um acto sujeito

a registo, enquanto não registado, se produz efeitos entre as partes e seus

herdeiros, já não produz efeitos contra terceiros, a menos que estes os

conhecessem ou não devessem ignorar, atentas as circunstâncias (art.º 9.º, n.º 1,

CRC).

Em regra o registo tem um efeito meramente declarativo (art.º 8.º CRC),

em certos casos, porém, assume uma feição constitutiva (art.º 9.º, n.º 2). Assim,

v.g., as sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica com a sua

inscrição no registo (art.º 176.º), o penhor de empresa só se considera constituído

com registo (art.º 145.º), o mesmo sucede com a garantia flutuante (art.º 931.º, n.º

2).

3. Os auxiliares do empresário

3.1. Auxiliares subordinados e auxiliares autónomos

Para desenvolver a sua empresa, o empresário comercial, para o

desempenho das várias tarefas em que se desdobra o exercício da empresa, tem

normalmente necessidade de recorrer aos serviços de terceiros que se tornam

32 De ora em diante CRC.

seus colaboradores ou auxiliares, e que se distinguem em duas grandes

categorias: auxiliares subordinados e auxiliares autónomos.

Os auxiliares subordinados são aqueles que se obrigam mediante

retribuição a colaborar na empresa, prestando a sua actividade intelectual ou

manual sobre a direcção e dependência do empresário. Os auxiliares

subordinados distinguem-se em dirigentes (administrativos ou técnicos),

empregados e operários. O vínculo que liga os auxiliares subordinados ao

empresário é normalmente um vínculo laboral.

Os auxiliares autónomos são aqueles que se obrigam perante o empresário

a realizar por sua conta, sem vínculo de subordinação, uma obra ou serviço.

Muitas vezes, estes são, por sua vez, empresários, e com a sua empresa fornecem

um determinado serviço aos empresários de que são auxiliares: é o caso do

agente, cuja actividade consiste em promover negócios para o principal (art.º

622.º), ou celebrando em nome próprio negócios, no interesse e por conta do

empresário comitente (art.º 593.º).

Entre as actividades que fazem surgir os auxiliares autónomos, o Código

regula o contrato de agência (art.ºs 622.º ss); o contrato de mediação (art.ºs 708.º

ss); o contrato de comissão (art.ºs 593.º ss); o contrato de expedição (art.º s 616.º

ss), que representam outros tantos exemplos das actividades auxiliares a que se

refere a al.e) do n.º1 do art.º 2.º.

3.2. Auxiliares subordinados com poderes de representação

Entre os auxiliares subordinados, assumem particular importância aqueles

que têm poderes de representação, i.e. poderes para praticarem em nome e por

conta do empresário determinados actos jurídicos cujos efeitos se repercutem

sobre o património do empresário. Este poder de representação é regulado por

normas especiais – que fazem parte do estatuto do empresário – dirigidas a

consentirem aos terceiros, que entram em relações com os representantes do

empresário, conhecerem com rapidez e segurança os exactos poderes destes

representantes.

A regra nesta matéria é a de que os colaboradores têm todos os poderes de

representação necessários ao exercício das funções de que estão encarregados

dentro da empresa, com exclusão daqueles que lhes tenham sido retirados por

modo que seja cognoscível pelos terceiros interessados, ou de que estes tenham

tido conhecimento33.

Os representantes comerciais distinguem-se em representantes gerais

(gerentes e procuradores) e representantes particulares (auxiliares strictu sensu):

os primeiros têm poderes para praticar todos os actos respeitantes ao exercício da

empresa, salvo aqueles que forem expressamente excluídos pela lei ou pela

proposição de gerência; os segundos têm apenas poderes para praticar

determinados actos.

3.2.1. Auxiliares com poderes de representação gerais

3.2.1.1. O gerente

O gerente (no direito pretérito designado gerente de comércio – art.º 248.º

Código Comercial de 1888) é o representante geral do empresário no exercício da

empresa ou de uma sucursal da empresa, na sede principal ou numa sede

secundária (v.g. director geral da filial de um Banco). Ao gerente é assim

confiada toda a actividade da empresa ou de uma parte desta que constitua uma

unidade orgânica (sucursal).

A proposição de gerência é o negócio jurídico pelo qual o empresário

nomeia o gerente, atribuindo-lhe os poderes de representação previstos na lei. A

proposição de gerência pode resultar de um comportamento, colocando uma

pessoa à frente da empresa ou de uma parte da empresa (art.º 64.º). Os poderes de

representação do gerente estendem-se por força da lei (art.º 65.º, n.º 1) a todos os

actos respeitantes ao exercício da empresa para que se acha proposto, salvas as

limitações resultantes da proposição. O gerente tem pois, em princípio, os

poderes para praticar não só os actos materiais inerentes ao exercício de uma

33 Cfr. G.Auletta, N.Salanitro, 1998, p. 100.

empresa (v.g., decidir o que produzir, em que quantidade, de que qualidade, etc.),

mas também os actos jurídicos que esse exercício reclamar, v.g., contratar

pessoal, comprar maquinismos (máquinas, ferramentas, computadores, etc.),

adquirir matéria prima, vender os produtos acabados, etc..

Estes poderes podem, como dissemos, ser limitados pela proposição, v.g.,

a proposição pode excluir os poderes de constituir garantias sobre bens móveis;

mas não existindo nenhuma limitação, o gerente terá os poderes de representação

indicados no n.º 1 do art.º 65.º. Em todo o caso, o gerente não tem poderes para

alienar (v.g., vender) ou onerar (v.g., hipotecar) os bens imóveis afectados ao

exercício da empresa, se esses poderes não lhe tiverem sido expressamente

conferidos na proposição (art.º 65.º, n.º 1 in fine). A lei menciona os bens

imóveis afectados ao exercício da empresa, querendo com isso significar aqueles

que são utilizados para o desenvolvimento do processo produtivo (v.g. o imóvel

onde se encontra instalada a fábrica, ou a sede da empresa), por conseguinte, o

gerente tem poderes para alienar os imóveis que constituem o produto acabado da

actividade desenvolvida na empresa, v.g., as fracções autónomas dos prédios

construídos por um empresário de construção civil34.

Por outro lado, sendo os poderes do gerente relativos ao exercício da

empresa é claro que ele não pode decidir a cessação do exercício, nem tão-pouco

celebrar negócios que tenham por objecto a própria empresa, v.g., venda da

empresa, locação da empresa, constituição de penhor sobre a empresa35.

O gerente tem também poderes de representação processual, activa e

passiva, do proponente em tudo o que diga respeito aos actos praticados no

exercício da empresa, podendo actuar em juízo em nome deste (art.º 65.º, n.º 2).

Assim, p.e., pode exigir judicialmente o cumprimento dos contratos que tenha

celebrado no âmbito do exercício da empresa, bem como pode ser accionado

judicialmente por qualquer incumprimento36. O proponente pode naturalmente

estipular limites aos poderes de representação processual do gerente, mas parece

34 Cfr. G.Auletta, N.Salanitro, idem, p. 101. 35 Ibidem. 36 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 363.

que apenas relativamente àqueles que respeitam à legitimação processual activa,

já não à passiva37.

O gerente está obrigado, conjuntamente com o empresário, a inscrever no

registo os actos a este sujeitos, bem como à observância das disposições legais

relativas à organização da escrituração mercantil (art.º 66.º).

O gerente está obrigado a indicar, aos terceiros com quem contrata no

exercício da empresa, a qualidade em que intervém no acto, devendo utilizar a

firma do empresário e assinar indicando a sua qualidade de gerente, nos

documentos relativos aos actos relativos ao exercício da empresa (art.º 69.º).

Caso omita a qualidade de gerente, ao terceiro de boa fé, responderá para com

este como se o negócio fosse seu; sendo que, se o terceiro vier a conhecer

ulteriormente a verdadeira situação, poderá actuar também contra o proponente,

mas sem perder o direito de responsabilizar o gerente (art.º 70.º). A lei

responsabiliza o gerente, porque, embora este actue para o proponente, ao não

clarificar perante o terceiro a qualidade em que intervém no acto, criou a

aparência de celebrar o negócio para si mesmo. O terceiro deve poder confiar

nessa aparência, pois só essa o determinou à celebração do negócio. Isto é, o

terceiro, desconhecendo a real situação, apenas podia confiar na pessoa do

gerente, e esta sua expectativa não deve ser defraudada. Por outro lado, o

negócio, se celebrado no exercício da empresa, vai aproveitar ao proponente,

pelo que a lei também a ele o responsabiliza, já que é ele que vai beneficiar do

negócio. Segue-se daqui que, se o negócio celebrado pelo gerente não se integrar

no âmbito da empresa para que se encontra proposto, já o terceiro não poderá

pretender responsabilizar o proponente, pois que a responsabilidade deste, pela

actuação do seu gerente, pára onde termina a empresa. O exercício da empresa

constitui o círculo delimitativo quer da competência do gerente, quer da

responsabilidade do proponente. Mas se assim é, e suposto que o proponente é

responsável, o que quer dizer que o negócio se integrou no exercício da empresa,

porque é que a lei não liberta o gerente da responsabilidade pelo acto? Porque foi

37 Ibidem.

nele que o terceiro confiou, por um lado, e porque pretende pressionar o gerente a

uma actuação transparente, por outro.

O gerente está obrigado a não fazer concorrência ao proponente, por si ou

por intermédio ou de conta de outrem, salvo se este o autorizar (art.º 71.º, n.º 1).

Presume-se o consentimento, quando à data da proposição de gerência, o gerente

já estivesse na situação de concorrente (n.º 2 do art.º 71.º). Compreende-se a

limitação legal, o gerente pela sua especial posição dentro da empresa do

proponente tem condições de efectuar uma concorrência particularmente nociva.

A violação da obrigação de não concorrência pelo gerente sujeita-o a ter de

indemnizar o proponente pelos danos causados (art.º 71.º, n.º 3), sem prejuízo de

este poder fazer seus os negócios celebrados pelo gerente em contravenção desta

obrigação (art.º 71.º, n.º 4).

O gerente, tendo em conta o carácter pessoal da proposição de gerência,

não pode fazer-se substituir no exercício das suas funções por terceiro, salvo

expresso consentimento do proponente (art.º 74.º).

A proposição de gerência dada a intensidade da confiança pessoal que

envolve, pode ser denunciada a todo o tempo, por qualquer das partes, mas, caso

não exista justa causa, o contraente, que denunciar o contrato, fica obrigado a

indemnizar a contraparte pelos prejuízos causados (art.º 73.º).

A proposição de gerência não caduca com a morte ou sobrevinda

incapacidade legal (v.g. interdição) do proponente, pois em princípio a empresa

subsistirá (art.º 75.º). Contudo, quer os herdeiros, quer o gerente poderão

denunciar a proposição de gerência, nos termos do art.º 73.º.

A proposição de gerência, a exemplo do que sucedia no Código Comercial

de 1888 [art.º 249.º e art.º 3.º, al. c) do D/L n.º 42644, de 14/11/1959 (CRCom.)],

nos termos do art.º 67.º, n.º 1 e do art.º 2.º, al. d) do CRC, estava sujeita a registo.

O não registo da proposição de gerência não determinava a ineficácia do acto

perante terceiros, mas tão-só reputar-se a mesma geral e compreensiva de todos

os actos necessários ou convenientes ao exercício da empresa; i.e., a falta de

registo não significava que o gerente não o era, mas apenas que as limitações,

que a proposição de gerência eventualmente contivesse, não seriam oponíveis aos

terceiros, que as desconhecessem (art.º 67.º, n.º 2). Estando registada a

proposição de gerência, as limitações aos poderes de representação do gerente

eram oponíveis aos terceiros, mesmo que estes as desconhecessem sem culpa

(eficácia positiva do registo); não estando registada, as limitações aos poderes de

representação do gerente não eram oponíveis a terceiros, salvo se o empresário

provasse que estes as conheciam ou que, atentas as circunstâncias, as não podiam

desconhecer, no momento da celebração do contrato.

Na medida em que os poderes de representação dos gerentes resultam da

lei, e o seu âmbito está pensado em ordem a facilitar a celebração dos negócios,

porquanto assegura a segurança e certeza do tráfico jurídico-mercantil, salvas as

limitações que a própria lei estabelece (art.º 65.º, n.º 1 in fine), os terceiros sabem

que o gerente pode praticar todos os actos inerentes ao exercício da empresa para

a qual se acha proposto. Se assim não for, e só não o será se os poderes, tal qual

resultam da lei, tiverem sido objecto de compressão na proposição, é necessário

dar-se disso público testemunho, por forma a que os interessados tomem desse

facto conhecimento, daí a necessidade do registo. Na verdade, só com o registo

estão os terceiros em condições de poderem conhecer os exactos contornos dos

poderes dos gerentes da empresa de outrem com os quais contratam.

Do mesmo modo, se os poderes tal qual resultam da lei ou, concretamente,

da proposição de gerência forem modificados ou revogados, essa modificação ou

revogação deveria ser registada, sob pena de não ser oponível perante terceiros.

Se os poderes são modificados, isso pode suceder quer porque se comprimiram

os poderes, quer porque se alargaram; a primeira situação, compressão dos

poderes, pode suceder quer porque inicialmente os poderes do gerente não

estavam sujeitos a nenhuma limitação, quer porque foram alargadas as limitações

já existentes. Em todo o caso, torna-se necessário, em ordem à protecção do

tráfico, informar publicamente os potenciais interessados das sobrevindas

alterações aos poderes do gerente. Do mesmo modo, no caso de serem os poderes

alargados, quer porque se atribuem ao gerente poderes para alienar ou onerar os

imóveis afectados ao exercício da empresa, quer porque se revogam as

limitações, todas ou algumas, contidas na proposição, disso se deve dar público

conhecimento.

No caso da revogação dos poderes de gerência, e por conseguinte em sede

de extinção da relação jurídica de gerência, é de prima evidência a necessidade

de disso se dar conhecimento aos interessados, porquanto até então, e mesmo que

a proposição não houvesse sido registada, havia alguém – o gerente – que, por

força da lei, tinha poderes de representação.

Quer a modificação, quer a revogação dos poderes de gerência estavam

sujeitas a registo, por força do art.º 68.º, n.º 1 e da al. o) do art.º 2.º do CRC; as

consequências da falta de registo, traduziam-se na não oponibilidade aos

terceiros, que as desconhecessem, das referidas modificações e revogação (n.º 2

do art.º 68.º). Se, p.e., os poderes de gerência fossem revogados, mas o facto não

fosse registado, o contrato que, após a cessação desses poderes, fosse celebrado

pelo ex-gerente com um terceiro desconhecedor da situação obrigava o

empresário, tal qual como se ele continuasse a ter os referidos poderes; sem

prejuízo da responsabilidade no plano interno das relações entre o empresário e o

gerente ou ex-gerente.

Os artigos 67.º e 68.º foram, contudo, revogados. As limitações,

alterações, revogações da proposição de gerência, diz a lei, podem ser levadas ao

conhecimento público se nisso os interessados convierem (art.º 2.º, n.º 1, als. g),

h) do CRC38). O que é que pretendeu a lei com este curioso regime? Quando a lei

diz que os interessados podem registar, também permite que não possam registar,

e, quer num caso quer noutro, sem quaisquer consequências, nomeadamente em

sede de oponibilidade a terceiros? Se não se ligam quaisquer consequências à não

efectivação do registo, o que é que ganham ou perdem os interessados com isso?

Foi isto que se quis? Seria, pelo menos, estranho que tivesse sido esta a intenção.

E desde que o interessado pode ou não registar estes actos, nos casos em que o

não faça, significa isso que as limitações, modificações e revogação da

proposição de gerência são, apesar de tudo, oponíveis aos terceiros que as

38 Código do Registo Comercial, aprovado pelo D/L n.º 56/99/M, de 11 de Outubro, com a redacção dada pela Lei n.º 5/2000, de 26 de Abril.

desconhecessem? A mera enunciação de tal possibilidade, por de tal modo

repugnar ao sentido jurídico, logo nos diz que não foi isso que se pretendeu.

Tendo em conta que os poderes do gerente decorrem da lei, e que é com

esses que qualquer pessoa pode e deve contar, pois ninguém pode invocar a

ignorância da lei para se eximir ao seu cumprimento e consequências, terá o

legislador querido que as limitações, modificações e revogação da proposição de

gerência, apenas relevassem nas relações internas, mas não fossem oponíveis a

terceiros, num sistema idêntico ao da Prokura germânica 39 , aproximando-se

assim do regime dos Códigos Comerciais da Coreia do Sul, do Japão e Taiwan?

Não cremos que tenha sido essa a intenção.

Por conseguinte terá querido o legislador dizer algo diverso. Pensamos

que terá impressionado o facto de a lei, no art.º 67.º, n.º 1, depois de dizer que a

proposição de gerência está sujeita a registo, vir dizer no n.º 2 que, enquanto não

registada, a proposição de gerência se considera compreensiva de todos os

poderes que, para o gerente, resultam do art.º 65.º. Afinal o registo é meramente

facultativo, e, por conseguinte, o acto não está sujeito a registo, pode ser

registado, se os interessados assim o entenderem.

O facto de certo acto estar sujeito a registo (traduzido na fórmula

sacramental “está sujeito a registo”), não significa que o registo do acto seja

obrigatório, no sentido de que, se o não for, o obrigado lhe verá ser aplicada uma

qualquer sanção40. O que sucede é que, se o registo for omitido, o obrigado não

pode opor o acto em causa aos terceiros, que dele não tenham conhecimento41.

39 Na Alemanha, o gerente de comércio tem uma Prokura, que se traduz na atribuição ao beneficiário de todos os poderes necessários, úteis ou convenientes para o exercício da empresa de que é encarregado, sendo que tais poderes, para além das limitações legais, que grosso modo correspondem às indicadas na parte final do art.º 65.º, n.º 1, são insusceptíveis de quaisquer compressões ou limitações com efeitos para terceiros. Ou seja, tais limitações podem ser acordadas pelos interessados, mas não são oponíveis a terceiros (Cfr. K.Schmidt, 1997, p. 488; Canaris, 2000, pp. 287 ss). 40 Na verdade, quando o registo é obrigatório, a sua efectividade é acompanhada de sanções, era o que sucedia na vigência do anterior Cód.Reg.Com. (D/L n.º 42644, de 14 de Novembro de 1959), no que toca às sociedades. Dizia-se, no art.º 6.º, que a matrícula dos comerciantes em nome individual era facultativa e a das sociedades e navios obrigatória. O não registo da sociedade, no prazo determinado (90 dias), dava lugar à aplicação de uma multa (14.º, n.º 1), e podia dar azo a procedimento criminal (14.º, n.º 2). 41 Falam os autores em obrigatoriedade indirecta, para significar justamente esta dimensão, por contraposição à obrigatoriedade directa, relativa àquelas situações em que a falta de registo é acompanhada de sanções (multa) (cfr. Menezes Cordeiro, 2001, p. 324).

Tão-só. Por isso é que os art.ºs 67.º, n.º 2 e 68.º, n.º 2 se limitavam a dizer que,

enquanto não registados, tais actos (as limitações, modificações e revogação da

proposição de gerência) não seriam oponíveis a terceiros. Não fazia mais a lei do

que aplicação da regra da não oponibilidade a terceiros, que, aliás, é enunciada,

em termos gerais, no art.º 9.º, n.º 1, do C.R.C. E, desse ponto de vista há que

concordar, as disposições dos art.ºs 67.º e 68.º eram desnecessárias, por já

estarem previstas, ou também estarem previstas no art.º 2.º do CRC, diploma

específico sobre a matéria.

Ora, o legislador terá cuidado que, dizendo que os interessados podem

registar se quiserem, estaria, no fundo, a dizer a mesma coisa, de forma mais

clara. Acontece é que, a par disso, continua a falar em actos sujeitos a registo,

desde logo os indicados no n.º 2 do mesmo preceito, a que se aplicam,

indubitavelmente, as consequências indicadas no citado n.º 1 do art.º 9.º do CRC

Contudo, este preceito limita-se a consagrar a regra da inoponibilidade dos actos

não registados, relativamente àqueles actos que estão sujeitos a registo: “Os

factos sujeitos a registo (...) só produzem efeitos contra terceiros depois da data

do respectivo registo”. De maneira que temos esta dificuldade: os factos que

podem ser registados não estão abrangidos pela letra do preceito, nem na lei

encontramos qualquer outra norma que estabeleça o mesmo efeito para os factos

que podem ser registados.

Não sofre dúvidas que a lei claramente diferencia factos sujeitos a registo

e factos que podem ser registados, mas será que com isso pretendeu estabelecer

um regime diverso, pelo menos no que respeita à oponibilidade a terceiros, para

ambas as categorias? Poder-se-ia ser tentado a concluir afirmativamente,

considerando que a lei, depois de ter transmudado em “podem ser sujeitos a

registo” todos os actos indicados no n.º 1 do art.º 2.º do CRC, manteve, quanto

aos indicados no n.º 2, a indicação de que estão sujeitos a registo. Tanto mais

quanto é certo que na redacção original do art.º 2.º do CRC não existia qualquer

numeração. A lei introduziu a numeração, porque quis claramente separar os

efeitos jurídicos ligados à prática dos actos indicados no n.º 1 e no n.º 2, só pode.

Mais, entre os actos indicados no n.º 1 do art.º 2.º CRC que podem ser

registados, encontra-se a proposição de gerentes e a constituição de procuradores

(al. d) do referido preceito), ora a lei introduziu uma nova alínea o) no art.º 5.º do

CRCom., com a mesma redacção daquela al.d) do art.º 2.º deste mesmo diploma

legal. Esta alínea o) não existia na versão original do CRC. Pela razão simples de

que se encontrava no art.º 2.º, pois que se trata de acto relativo à empresa. É de

gerentes e procuradores da empresa que se cuida na referida alínea d), não de

gerentes membros do órgão de administração, como facilmente se conclui do

facto de a lei continuar a fazer menção a estes na al. m). Pois bem, a introdução

de uma nova alínea no art.º 5.º do CRC, que trata dos actos sujeitos a registo

relativos aos empresários comerciais pessoas colectivas (v.g., sociedades),

mantendo-se a redacção da al. d) do art.º 2.º, embora num novo n.º 1, só poderia

entender-se como sendo consequência da alteração introduzida no corpo desta

norma. Tendo a lei determinado que os actos indicados no n.º 1 do art. 2.º podem

ser registados, terá pensado que, no âmbito societário (pois que é basicamente

disso que se trata no art.º 5.º do CRC), isso não bastava, sendo necessário que,

neste âmbito, esse registo tivesse um carácter mais intenso do que o que, a partir

da nova redacção do n.º 1 do art.º 2.º CRC, estaria reservado aos actos aqui

previstos, entre eles a proposição de gerentes e a constituição de procuradores,

daí a necessidade da nova al. o) do art.º 5.º do CRC, preceito este onde a lei

manteve a fórmula sacramental do “estão sujeitos a registo”.

Por outras palavras, a lei teria introduzido, no art.º 5.º do CRC, uma al. o)

com praticamente a mesma redacção da al. d) do n.º 1 do art.º 2.º, por entender

que, no caso das pessoas colectivas, era necessário assegurar que tais actos

seriam registados: “estão sujeitos a registo”, coisa que o “podem ser registados”

não garantiria, com o que julgaria que os efeitos ligados à utilização da fórmula

“podem ser registados” não são os mesmos dos ligados à fórmula “estão sujeitos

a registo”.

É certo que a introdução de uma nova alínea o) no art.º 5.º ainda se

poderia explicar: Como a lei deixou de sujeitar a registo a empresa, tornando este

facto num daqueles que podem ser registados, e como, nos termos do art.º 2.º, o

registo da proposição de gerentes e a constituição de procuradores supõe aquele

registo (da empresa), não poderiam estes factos nas pessoas colectivas ser

registados. Assim, o que se teria querido seria sujeitar a proposição de gerentes e

a constituição de procuradores a registo, mesmo que a empresa não fosse

registada.

Ainda assim, não parece poder encontrar-se qualquer explicação plausível

para o facto da introdução do n.º 2 do art.º 2.º do CRC, caso a nova fórmula do

n.º 1 e a inalterada da versão original e transposta para o novo n.º 2 valessem

afinal o mesmo, na ideia do legislador. Não se perceberia, efectivamente, se o

“podem ser registados” tivesse o mesmo valor do “estão sujeitos a registo”,

porque é que se teria alterado a fórmula do n.º 1 e mantido a original neste novo

n.º 2. A alteração, cremos bem, foi determinada pelo convencimento do

legislador de que os efeitos ligados a uma e a outra fórmula são diferentes: o que

não quer dizer, bem entendido, que seja correcto o convencimento, bem pelo

contrário.

Só que, como se disse, se esse convencimento foi o de que os actos que

podem ser registados não são susceptíveis de ser oponíveis a terceiros, então

deixaria de haver qualquer razão plausível para os interessados se darem à

maçada (e despesas!) de os registarem. Se, por outro lado, se quisesse pretender

que os mesmos produziriam sempre efeitos contra terceiros, estando ou não

registados, estariam criadas as condições para os maiores abusos, com

repercussões gravíssimas na segurança do tráfico mercantil. Por conseguinte, e

sob pena de ficar sem qualquer sentido útil a fórmula da lei, e mais grave a

diligência dos interessados, os actos que podem ser registados, se o forem, hão-

de ser oponíveis a terceiros. Terão, pois, o mesmo sentido útil dos actos que estão

sujeitos a registo: a lei não pode promover a prática de actos inúteis.

Assim, impõe-se uma interpretação hábil do n.º 1 do art.º 9.º do CRC, no

sentido de que, quando a lei menciona os factos sujeitos a registo, não quer

significar apenas aqueles factos que a lei expressamente diz estarem sujeitos a

registo, mas quaisquer factos que sejam susceptíveis de registo, também, pois, os

que podem ser registados. O resultado final vem assim a ser aquele que valia

antes da intervenção legislativa, para quê, então, esquartejar, trucidar a lei?

Mas não é tudo: com efeito, o legislador depois de ter revogado os art.ºs

67.º e 68.º (art.º 4.º da lei n.º 6/2000), manteve a sujeição a registo da proposição

de gerentes para os empresários comerciais, pessoas colectivas, maxime

sociedades comerciais (dando nova redacção à al. o) do art.º 5.º do

Cód.Reg.Com.), mas já não a revogação da proposição de gerência!!! e muito

menos as limitações ou alterações aos respectivos poderes. É que, ao contrário do

art.º 2.º, redacção original, do CRC, o art.º 5.º não tem nenhuma alínea com o

conteúdo da al. o) daquele preceito. Na verdade, o legislador transpôs para a

novel al. o) do art.º 5.º do CRC o conteúdo da al. d) do art.º 2.º, na redacção

original do CRC, onde efectivamente menção alguma se fazia à necessidade de

registo quer das alterações, quer da revogação aos poderes do gerente, mas isso

por desnecessidade, dado que tais factos se encontravam previstos por força da

al. o), que sujeitava a registo toda e «Qualquer alteração dos elementos indicados nas

alíneas a), b) e d)», logo as alterações, bem como a revogação dos poderes de

gerente estavam sujeitas a registo; o que aliás já resultava (ou resultava

essencialmente) do art.º 68.º.

Ora, não se vê porque é que a proposição de gerência deva estar apenas

sujeita a registo tratando-se de empresários comerciais, pessoas colectivas,

porque, como vimos, os respectivos poderes decorrem directamente da lei; por

conseguinte, o que é necessário é sujeitar-se a registo as limitações, bem como as

eventuais alterações, aos poderes que da lei decorrem directamente para o

gerente.

3.2.1.2. Os procuradores do empresário

Os procuradores são uma espécie de representantes do empresário que têm

em comum com o gerente o carácter continuativo da sua representação (art.º

76.º), mas que carecem dos poderes (materiais) para exercer (gerir) a empresa ou

uma sua sucursal42.

A expressão procurador no seu significado comum abarca qualquer pessoa

que esteja investida de poderes de representação, com uma procuração, geral ou

especial para actos particulares, substancial ou processual. Mas no sentido

específico com que aparece no art.º 76.º, a expressão abrange apenas os

representantes do empresário investidos, com carácter de estabilidade, dos

poderes para celebrar, em nome do empresário, negócios relativos ao exercício

da empresa deste, apesar de não se encontrarem propostos (como gerentes) para o

exercício da mesma (v.g., director de pessoal, director de compras).

Tal como sucede com os gerentes, a procuração escora-se num negócio

causal duradouro, regra geral um contrato de trabalho, mas pode também ser um

outro contrato duradouro, v.g. mandato43.

3.2.2. Os auxiliares com poderes de representação particular (auxiliares strictu

sensu)

Os auxiliares strictu sensu são também representantes estáveis do

empresário, mas investidos de poderes mais limitados do que os do gerente e do

procurador, apesar de continuados, resultantes de um contrato de trabalho

subordinado.

Não confundir com os representantes do comerciante que, na vigência do

anterior Código Comercial, eram designados por auxiliares (art.ºs 256.º e 257.º),

porquanto estes eram as pessoas que, não sendo gerentes, os comerciantes

encarregavam do desempenho constante, i.e. estável, continuado, de algum ou

alguns ramos do tráfico a que se dedicassem, e os empregados enviados pelo

comerciante a localidade diversa daquela em que tivesse o seu domicílio com

poderes para efectuar operações do comércio daquele. A diferença entre os

auxiliares e os gerentes de comércio residia na extensão dos respectivos poderes:

42 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 367. 43 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 368; F.Galgano, “Diritto civile e commerciale”, passim.

os destes eram gerais, os daqueles parciais44. Ora, para o Código Comercial as

pessoas que estejam propostas para o exercício de um ramo particular da empresa

(ramo do tráfico) de outrem são gerentes e os que, não sendo gerentes, podem

celebrar, de modo continuado, negócios relativos ao exercício da empresa de

outrem são procuradores; pelo que aqueles que a lei anterior designava por

auxiliares estão hoje englobados na figura do gerente e do procurador. Assim

sendo, a figura dos auxiliares no Código Comercial abrange as pessoas que no

direito pretérito eram designadas por caixeiros (art.ºs 259.º e seguintes).

Quanto aos poderes de representação de que gozam os auxiliares, a regra é

a de que, salvas as limitações decorrentes dos usos ou da lei, estes podem praticar

todos os actos que, de acordo com o tipo de empresa 45 , normalmente se

enquadram na espécie de operações de que estão encarregados (art.º 77.º, n.º 1).

Limites legais aos poderes dos auxiliares são a proibição de exigir o preço das

mercadorias que não tenham vendido, e por conseguinte das quais não façam a

entrega, ou de conceder dilações (prazo) de pagamento ou descontos que não

sejam conforme com os usos, se para tal não estiverem expressamente

autorizados (art.º 77.º, n.º 2). Mesmo que tenham sido eles a efectuar a venda, se

porventura existe uma caixa própria para o efeito (v.g. pré-pagamento; as várias

caixas de pagamento que existem no Yaohan) não podem receber o pagamento

do preço (art.º 80.º, n.º 1). Se a venda é efectuada fora das instalações da empresa

(caixeiros-viajantes), o auxiliar não tem poderes apesar disso para receber o

preço se não entregar o recibo assinado pelo empresário (ou por quem tenha

poderes para o obrigar, v.g., gerente), salvo se para o efeito tiverem sido

autorizados pelo empresário ou por quem o represente (art.º 78.º, n.º 2).

Se o empresário tiver pré-elaborado um clausulado contratual, para a

celebração dos negócios da sua empresa, os auxiliares mesmo que estejam

autorizados a celebrar negócios em nome do empresário, não podem derrogar as

cláusulas gerais da empresa sem autorização escrita para o efeito (art.º 78.º). Pelo

44 Cfr. António Menezes Cordeiro, “Manual de direito comercial”, I vol., Almedina, 2001, p. 487. 45 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 371.

que o respectivo negócio só obrigará o empresário caso este o ratifique, nos

termos gerais.

Os auxiliares, relativamente aos negócios que hajam efectivamente

celebrado em nome do empresário (não pois relativamente àqueles que, muito

embora estejam compreendidos dentro dos seus poderes representativos, não

tenham sido por eles celebrados), têm legitimação passiva substancial para

receber em nome deste as declarações respeitantes à execução do contrato e as

reclamações relativas aos eventuais incumprimentos contratuais (art.º 79.º, n.º 1).

Têm também legitimidade activa para requererem providências cautelares no

interesse do empresário; legitimação que se deve considerar extensiva a outros

actos, como, por exemplo, denúncia de vícios ou defeitos das coisas compradas,

e outros actos extrajudiciais destinados a salvaguardar os interesses do

empresário 46 . Estes poderes, pelo que diz respeito à legitimação activa, na

medida em que são conferidos para tutela dos interesses do empresário, podem

por este ser excluídos ou limitados; já os de legitimação passiva, porque

instituídos para protecção dos interesses dos terceiros que com o empresário

contratem, não podem por este ser limitados, muito menos excluídos47.

Quanto à oponibilidade a terceiros dos poderes dos auxiliares, bem como

das respectivas limitações ou revogação, como o acto do qual decorre a qualidade

de auxiliar (contrato de trabalho) não está sujeito a registo, aplicam-se as regras

gerais sobre representação do Código Civil (art.ºs 251.º ss), especialmente o art.º

259.º48.

4. Da responsabilização pelo exercício da empresa

4.1. Dos bens que respondem por dívidas contraídas no exercício da empresa

46 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 372; António Pinto Monteiro, “Contrato de agência – anotação ao Decreto-Lei n.º 178/86”, 2.ª ed. actualizada, Almedina, 1993, pp. 47, 48. 47 Cfr. A.De Martini, ibidem. 48 Cfr. A.De Martini, 1983, p. 371.

Em matéria de responsabilidade por dívidas, a regra é a de que o devedor

responde com todo o seu património, indiferenciadamente, quer se trate de

pessoa singular quer se trate de pessoa colectiva, maxime sociedade49. É isso que

se pretende dizer, quando se afirma que o património do devedor constitui a

garantia geral do credor (art.º 596.º Ccivil).

Dissémos que responde indiferenciadamente com o todo o seu património,

porque a lei não prevê em geral a possibilidade de o devedor, que pretende

exercer uma actividade económica, limitar a sua exposição a uma parte do seu

património, a não ser através da via indirecta da constituição de uma sociedade

comercial, por quotas ou anónima. Tão-pouco prevê em geral, a lei, uma

qualquer regra de precedência na responsabilização dos bens do devedor que

tenha em conta a fonte da dívida. Independentemente de se tratar de uma dívida

comercial ou de uma dívida particular, o credor tem sempre à sua disposição a

totalidade do património do seu devedor para obter a satisfação do seu crédito.

No mundo mercantil, a principal razão para a concessão de crédito a um

empresário reside na existência, e, sobretudo, no funcionamento da empresa, pois

é o exercício desta que, regra geral, permitirá ao devedor a obtenção dos

rendimentos necessários à satisfação dos seus débitos, quer os mercantis quer os

outros. Entendeu, por isso, a lei, sem ter ido ao ponto de criar um património

separado, criar uma regra de precedência no acesso aos bens do devedor para

efeitos da satisfação das suas dívidas, consoante se trate de dívidas resultantes do

49 É assim errónea a ideia da contraposição entre sociedades de responsabilidade ilimitada (v.g sociedades em nome colectivo) e sociedades de responsabilidade limitada (v.g. sociedades por quotas). A responsabilidade das sociedades, enquanto pessoas jurídicas diversas dos seus sócios, pelas dívidas sociais é sempre ilimitada, como a de qualquer pessoa singular. O que pode suceder é que, ademais da responsabilização do património da sociedade (todo), respondam ainda, em via subsidiária, os sócios. É quando isto acontece que se fala em sociedade de responsabilidade ilimitada, por contraposição às de responsabilidade limitada, em que os sócios não são nunca chamados a responder pelas dívidas sociais. Mas já se vê que a responsabilidade que assim se tem em vista não é a da sociedade, esta responde sempre nos termos do art. 559.º Ccivil, mas sim dos seus sócios, estes é que podem responder pelas dívidas sociais, assumindo responsabilidade ilimitada por aquelas dívidas. Uma última nota: a designação de sociedades de responsabilidade limitada, é ainda errónea sob outro ponto de vista. Na verdade, com essa expressão quer-se significar que os sócios não respondem pelas dívidas sociais, mas ainda assim sugere-se que têm alguma responsabilidade, embora limitada. Ora, os sócios das sociedades, ditas de responsabilidade limitada, não têm nem pouca nem muita responsabilidade pelas dívidas sociais: pura e simplesmente não são responsáveis. Têm é a responsabilidade de pagar à sociedade a contrapartida da participação social que subscreveram, quer no momento da constituição quer no momento de um ulterior aumento de capital. Liquidada esta contribuição, nenhuma outra responsabilidade social lhes é assacada.

exercício da empresa ou antes de dívidas provenientes de outros factos. Assim,

quando se trate de dívidas provenientes do exercício da empresa, respondem em

primeiro lugar os bens que constituem a empresa, pois foi nestes que o credor

fundou, em regra, a expectativa de satisfação do seu crédito, e apenas quando

estes não bastem, poderá agredir os demais bens do devedor (reserva civil) (art.º

82.º, n.º 1). Do mesmo passo, os credores particulares do empresário não poderão

satisfazer os seus créditos sobre bens da empresa, enquanto não demonstrarem a

insuficiência dos bens particulares para o efeito (art.º 82.º, n.º 2).

A norma tem a sua fonte nos velhos costumes mercantis, que concediam o

privilégio de os bens do negócio do comerciante individual responderem

preferencialmente pelos créditos resultantes do seu exercício50.

A norma, obviamente, não preclude o funcionamento das regras

particulares relativas às várias garantias.

4.2 Responsabilidade dos bens do casal por dívidas comerciais dos cônjuges

4.2.1. Dívidas comerciais da responsabilidade de ambos os cônjuges contraídas

pelo cônjuge comerciante

4.2.1.1. O regime do art.º 1558.º, n.º 1, al. d) do Ccivil e seu fundamento

Nos regimes de comunhão, geral ou de adquiridos, de bens, as dívidas

contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio são da

responsabilidade de ambos (al. d do n.º 1 do art.º 1558.º do CCivil), respondendo

por elas os bens comuns do casal e, subsidiariamente, os bens próprios de cada

um dos cônjuges (art.º 1562.º, al. c) do CCivil).

Responsabilizando os bens comuns do casal e, na falta ou insuficiência

destes, os bens próprios de cada um dos cônjuges, reforçou o legislador a

garantia dos credores do comerciante.

50 Cfr. Paulo Merea Sendim, Lições de direito comercial e da economia, vol. I, p. 93.

Como se disse, um dos interesses que cumpre ao direito comercial

defender é o da tutela do crédito por forma a facilitar ao máximo a sua

obtenção51. A tutela do crédito faz-se em dois momentos: a montante, na altura

da concessão/obtenção do crédito; a jusante, na altura da efectivação do crédito.

Quanto ao primeiro destes momentos, a facilidade na obtenção de crédito

está directamente ligada à garantia dos credores: quanto mais forte for essa

garantia, mais predispostos estarão os credores a concedê-lo ao comerciante.

O art.º 1558.º, n.º 1, al. d) ao considerar como da responsabilidade de

ambos os cônjuges as dívidas resultantes do comércio do cônjuge devedor, tem

como imediata consequência a directa responsabilização dos bens comuns e dos

bens próprios dos cônjuges, assim aumentando a base patrimonial adstrita à

satisfação dos respectivos credores52.

Trata-se de uma disposição nitidamente dirigida à protecção do tráfico

mercantil, daí que apenas quanto às dívidas contraídas no âmbito da actividade

mercantil profissional do cônjuge devedor tenha lugar a sua aplicação.

Com efeito, comercial é toda a dívida que promane de um acto de

comércio, mas nem todos os actos de comércio praticados pelo cônjuge

comerciante são praticadas no exercício do seu comércio, no exercício da sua

actividade mercantil profissional. Ora, apenas estas, as contraídas no exercício da

actividade mercantil profissional do cônjuge devedor, ou seja, aquelas que põem

em jogo interesses de tutela do crédito mercantil, reclamam a responsabilidade de

ambos os cônjuges e logo a afectação do património familiar e particular dos

cônjuges à sua satisfação53.

Terá sido uma ideia de justiça relativa que terá informado a solução da al.

d) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil. O legislador terá entendido que, sendo o

comércio exercido, na generalidade dos casos, para benefício da família (sendo o

comércio a profissão do cônjuge devedor, será normalmente exercido, como

qualquer outra profissão, em ordem a obter meios que lhe permitam satisfazer as

suas necessidades e as da sua família, quando seja este o caso), por isso, se 51 Cfr. Lobo Xavier, 1977/78, p. 93. 52 Idem, p. 91. 53 Idem, pp. 97, 98.

afigura razoável que por essas dívidas sejam responsabilizados, numa primeira

linha, aqueles bens que estão especialmente afectados à satisfação das

necessidades da família: os bens comuns; e, numa segunda linha, os bens

próprios de qualquer dos cônjuges, pois que ambos aproveitam do comércio

exercido apenas por um deles.

Esta ideia transparece cristalinamente do facto de a lei permitir que o

cônjuge do devedor afaste quer a responsabilização dos bens comuns quer a dos

seus bens próprios, provando que a dívida, apesar de contraída no exercício do

comércio do cônjuge devedor, não foi contraída em proveito comum. Se a dívida

foi contraída pelo cônjuge devedor animado por uma intenção de satisfação de

necessidades puramente pessoais, então não há razão nem para se responsabilizar

aqueles bens que estão vocacionados para satisfazer necessidades comuns, nem

para se responsabilizar os bens próprios do outro cônjuge54.

O mesmo acontece, desresponsabilização dos bens comuns e dos próprios

do outro cônjuge, nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do CCivil, se este

provar que a dívida, muito embora comercial, não foi contraída no exercício do

comércio do seu cônjuge. Não quer isto dizer, note-se, que a dívida em questão

passe, sem mais, a ser da responsabilidade exclusiva do cônjuge devedor. Na

verdade, a prova de que a dívida, sendo comercial, não foi, no entanto, contraída

no desenvolvimento da actividade mercantil profissional do cônjuge devedor,

apenas afasta a responsabilização dos bens comuns e dos próprios do outro ao

abrigo da al. d) do art.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil. Isto, porque falta o

pressuposto básico em que assenta a norma: a de que o exercício profissional do

comércio é efectuado a benefício de ambos os cônjuges. Mas pode bem suceder

que a referida dívida venha a afectar na mesma ambos os cônjuges, e logo os

bens comuns e os próprios do outro, por força de uma das demais alíneas do n.º 1

do referido art.º 1558.º.

As dívidas comerciais do cônjuge comerciante contraídas no exercício da

sua actividade mercantil profissional, só não responsabilizarão os bens comuns

do casal e os próprios do outro, caso não tenham sido contraídas em proveito

54 Idem, p. 91 e nota 3.

comum do casal. Será o caso de os cônjuges se encontrarem separados de facto e

não contribuir o cônjuge comerciante para o sustento do outro55.

É claro que, por força da al. c) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil, as dívidas

contraídas por qualquer dos cônjuges em proveito comum do casal, e nos limites

dos seus poderes de administração, já seriam comuns. Só que, nestes casos, o

proveito comum não se presume; pelo que o credor, para responsabilizar ambos

os cônjuges pela dívida, teria que provar o proveito comum. Ora é a prova do

proveito comum que a al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil, quanto às dívidas

nela mencionadas, dispensa ao credor, para o efeito de poder responsabilizar os

bens comuns e os próprios dos cônjuges56.

4.2.1.2 O art.º 81.º do Ccom. e a responsabilização dos bens do casal por dívidas

comerciais

Mas o legislador ainda previu uma outra disposição destinada a proteger o

crédito dos credores dos comerciantes: o art.º 81.º do Ccom.. Com efeito, pelo

funcionamento da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do Ccivil, o credor está

dispensado de provar o proveito comum do casal para responsabilizar os bens

comuns e os bens próprios dos cônjuges, mas já não está dispensado de provar

que a dívida é comercial e, mais importante, que foi contraída no exercício do

comércio do cônjuge devedor57.

Contudo, o art.º 81.º veio estabelecer que as dívidas comerciais do

empresário comercial se presumem contraídas no exercício da sua empresa. Ora

dívidas comerciais são as resultantes de actos de comércio, pelo que basta ao

credor fazer prova disto (de que a dívida promana de um acto de comércio), para

que a mesma se presuma contraída no exercício da empresa do devedor, o mesmo

é dizer no exercício do comércio do devedor, para, sendo este casado num dos

regimes de comunhão de bens, responsabilizar os bens comuns do casal e, na sua

falta ou insuficiência, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. 55 Idem, ibidem. 56 Idem, p. 94. 57 Idem, p. 98.

Por força deste art.º 81.º, o credor do empresário poderá mais facilmente

aproveitar do disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º, reforçando deste modo a

tutela do crédito mercantil..

Resumindo, a consideração isolada da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do

Ccivil, não dispensa o credor de provar a pertinência da dívida comercial ao

exercício do comércio, rectius da empresa comercial, do cônjuge devedor. Mas

essa pertinência é dispensada pelo art.º 81.º.

O credor do comerciante, para efeitos da responsabilização dos bens

comuns do casal e dos bens próprios do outro cônjuge, apenas terá que fazer

prova de que a dívida é comercial, porque imediatamente funcionará a presunção

ínsita no art.º 81.º.

O que assume particular significado em sede de dívidas cambiárias. Com

efeito, a subscrição de uma letra de câmbio58 representa sempre, na medida em

que prevista na lei comercial, um acto de comércio objectivo e, nessa medida, a

dívida aí titulada uma dívida comercial. Ora, se subscrita por um comerciante,

essa dívida, por força da presunção resultante do art.º 81.º, considera-se contraída

no exercício do sua empresa e logo, por força da al. d) do n.º 1 do art.º 1558.º do

Ccivil, será da responsabilidade de ambos os cônjuges. O que quer dizer que o

credor cambiário terá particularmente facilitada a tarefa de responsabilizar os

bens comuns do casal e os próprios dos cônjuges.

Nem se diga, como alguns, que a subscrição de um título de crédito,

nomeadamente de uma letra de câmbio, ou de uma livrança como é mais comum

em Macau, está longe de se ligar ao exercício do comércio. Temos sérias reservas

quanto ao bem fundado desta ideia que não se demonstra, ao que saibamos, em

qualquer estudo estatístico. Ora sem uma base estatística segura que demonstre

inequivocamente que a utilização dos títulos de crédito, deixou de ser obra dos

comerciantes e passou a ser obra essencialmente dos particulares, é puramente

gratuita a afirmação de que hoje em dia a subscrição de, por exemplo, uma letra

de câmbio ou de uma livrança não está relacionada com o exercício mercantil

profissional.

58 O mesmo se diga relativamente a qualquer outro título de crédito.

Esta ideia, se bem julgamos perceber, radica numa confusão: a de que a

utilização comum dos títulos de crédito significa que essa utilização deixou de

ser obra preferencial dos comerciantes. Ora a possibilidade da utilização comum

dos títulos de crédito representa apenas uma consequência lógica e necessária da

consideração de que os mecanismos mercantis, sendo invenções determinadas

pelas específicas necessidades do mundo do comércio, não deixam de ser aptas

para tutelar necessidades mais simples, como as ligadas ao mundo civil.

O direito comercial, como nos ensina Orlando de Carvalho, é sempre um

direito pioneiro, pois, tal como a expansão mercantil postula uma busca constante

de novos produtos, de novos serviços, de novas formas de associação, também

postula uma constante procura de novos instrumentos jurídicos. Não é por acaso

que a invenção de novos mecanismos jurídicos, nomeadamente no domínio da

técnica contratual, se verifica no espaço das economias mais desenvolvidas. E

assim é que o franchising, o factoring, o engineering, o merchandising, as joint

ventures, etc., surgiram nos EUA, que é como sabemos a mais forte economia a

nível mundial.

O direito comercial surgiu historicamente porque os quadros do direito

civil se revelaram inadequados às novas necessidades postas pelo

desenvolvimento do comércio. E esse circunstancialismo mantém-se como uma

característica do direito comercial moderno; é tão-só natural que as novas formas

de exercício mercantil se não encaixem nos quadros tradicionais e por isso

tenham os interessados de inventar novos produtos jurídicos para satisfação das

novas necessidades. Do mesmo modo que é natural que essas novas soluções

sejam depois importadas pelo mundo civil, o que não quer dizer que deixem de

ser soluções fundadas na lógica mercantil.

Mas também fora do domínio cambiário a importância do art.º 81.º é

manifesta. Quanto às dívidas resultantes de qualquer acto de comércio objectivo,

porque presumindo-as como contraídas no exercício mercantil do cônjuge

empresário, dispensa assim o credor de provar essa pertinência, passando a ser o

outro cônjuge quem tem que provar que a dívida, sendo comercial, não foi

contraída no exercício mercantil profissional do seu cônjuge, ou que não foi

contraída em proveito comum do casal.

Por outro lado, dada a existência de uma presunção genérica de

comercialidade para os actos de carácter patrimonial praticados pelos

comerciantes, basta que estejamos perante um destes actos, do qual não resulte

que não foi praticado no exercício do comércio do cônjuge devedor, para que

funcione o art.º 81.º.

Quer isto dizer que o art.º 81.º do Ccom. se traduz numa disposição

especialmente vocacionada à tutela do comércio, na medida em que cria as

condições para que a responsabilização de ambos os cônjuges por dívidas

comerciais, e logo o benefício do alargamento da base patrimonial adstrita à

satisfação das mesmas, se torne mais fácil e expedito.

4.2.2. A coordenação entre o art.º 1558.º, n.º 1 do CCivil, al. d) e o art.º 84.

Atento o art.º 82.º e o regime de responsabilidade dos bens do casal,

resultante do art.º 1558.º, n.º 1, al. d) e do art.º 1562.º, a lei estabeleceu a

coordenação que entre esses preceitos se deve verificar, dispondo que primeiro,

tal qual resulta do art.º 82.º, n.º 1, respondem os bens da empresa e, só na falta ou

insuficiência destes, é que, então respondem os bens comuns do casal e

subsidiariamente os bens próprios de qualquer dos cônjuges. Assim, se a empresa

não é um bem comum do casal, por outras palavras é um bem próprio de um dos

cônjuges, respondem, por força do art.º 82.º, os bens da empresa, que são

próprios de um dos cônjuges, e, na falta ou insuficiência, os bens comuns, não

chegando estes, respondem então, solidariamente, os bens próprios do cônjuge

não empresário e os restantes bens próprios do cônjuge empresário. Neste caso,

começaram por responder, por dívidas que são da responsabilidade de ambos os

cônjuges, bens próprios de um deles, o cônjuge empresário, pelo que se torna

necessário proceder à sua compensação, sob pena de locupletamento dos bens do

casal e do outro cônjuge às custas daquele. Por conseguinte, é necessário

distinguir consoante existem ou não bens comuns suficientes: se existem, depois

de satisfeitos os credores mercantis, pela diferença, entre o montante suportado

pelos bens comuns e o total da dívida, deve o cônjuge empresário ser

compensado pelos bens comuns. Como consequência teremos um correlativa

diminuição do património comum do casal, o que se aceita, atento a que, em

primeiro lugar, era a este património que cabia responder por aquelas dívidas,

enquanto comuns. Não chegando os bens comuns para integral satisfação dos

credores, procederão, estes, contra os patrimónios particulares dos cônjuges, em

regime de solidariedade (art.º 1562.º, al. c)). Podem então suceder várias

situações: a) os credores atacam exclusivamente os bens particulares do cônjuge

empresário; b) atacam exclusivamente os bens particulares do outro cônjuge; c)

atacam indiferenciadamente uns e outros. Na primeira hipótese, o cônjuge

empresário terá respondido exclusivamente com bens próprios por dívidas que

são comuns, pelo que deverá ser compensado pelo outro cônjuge, nos termos do

art.º 1565.º, n.º 1. Na segunda hipótese, far-se-á o acerto de contas entre o que

cada um deles suportou das dívidas comuns, em ordem a determinar a quem

pertence o saldo credor, ficando o cônjuge respectivo credor do outro, nos termos

do art. 1565.º, .º 1. Na terceira hipótese, proceder-se-á como na hipótese anterior:

deslindar-se-á o que é cada um pagou, apurar-se-á o saldo respectivo e aplicar-se-

á o n.º 1 do art.º 1562.º.

Sendo a empresa um bem comum, como sucederá na generalidade dos

casos, respondem os bens que a compõem e, na falta ou insuficiência, os demais

bens comuns, caso existam, e subsidiariamente os bens próprios de qualquer dos

cônjuges. Os acertos de contas entre os cônjuges, relativamente ao que qualquer

deles tenha suportado a mais do que lhe competia, será efectuado nos termos do

art.º 1562.º, n.º 1.

4.3. O art.º 83.º e a tutela dos credores de Macau

O art.º 83.º, n.º 1 determina que, no caso de empresários não residentes

que aqui tenham uma representação da sua empresa, os bens afectados à

representação apenas respondem por dívidas não relacionadas com a exploração

da representação, depois de satisfeitos todos os créditos originados em Macau.

Trata-se de uma norma que, complementada pelo n.º 2, que estabelece limites

quanto à inclusão na massa falida, de falência decretada fora de Macau, dos bens

da representação, pretende tutelar os credores de Macau, que fizeram fé no

património que o seu devedor demonstrava em Macau, a não verem as suas

expectativas defraudadas. Norma semelhante, que constituiu fonte deste preceito,

encontra-se no art.º 25.º do D/L n. 33/93/M, de 5 de Julho (RJSFM), mas que se

entendeu corresponder a preocupações dignas de tutela não apenas no âmbito da

actividade bancária.

4.4. Da responsabilidade civil do (empresário) produtor

O empresário pode ser responsável, como qualquer outra pessoa, para com

terceiros quer contratualmente, quer extracontratualmente. Neste último caso,

para que o empresário responda para com o terceiro é necessário que este

demonstre que se verificam no caso os pressupostos da responsabilidade civil

extracontratual (art.º 477.º, n.º 1 do Código Civil).

Actualmente tende-se a entender que o empresário deve responder

objectivamente, independentemente de culpa pois, para com aqueles com quem

se relaciona e mesmo para com qualquer terceiro, já que o exercício de uma

actividade económica de per si cria uma situação de risco acrescido, por cujos

danos deve o empresário responder, pois que daquela situação, que criou o risco,

se aproveita. É nesta linha que se enquadra a responsabilidade por produtos

defeituosos, consagrada no Título VIII, art.ºs 85.º a 94.º, que, no essencial,

recolhe, a disciplina da directiva comunitária (Directiva CEE 85/374, de 25 de

Julho de 1985) sobre a questão.

A aplicação das regras gerais relativas à venda de coisas defeituosas (art.ºs

905.º e seguintes), revela-se insuficiente. Em primeiro lugar, porque não confere

protecção a todo o círculo de potenciais lesados pelo defeito do produto, pois

que, por força do princípio da relatividade dos contratos, apenas protege os

compradores, deixando de fora todos os demais lesados59 (v.g. A adquire uma

bebida gaseificada a B, que serve a C, seu convidado, e a garrafa explode

provocando danos a C); depois, porque, mesmo relativamente ao comprador, a

lei apenas admite a reparação ou substituição da coisa, se o vendedor conhecia o

vício ou falta de qualidade do bem (art.ºs 906.º e 907.º, n.º 2). Ora, atento que,

relativamente à maioria dos produtos, o vendedor não é o produtor, mas um

simples intermediário que nenhuma intervenção tem sobre o bem que vende,

limitando-se a adquiri-lo ao produtor, e armazená-lo até proceder à sua venda, na

esmagadora maioria dos casos não só não será a fonte do defeito 60 , como

desconhecerá sem culpa o vício ou falta de qualidade do bem e, por conseguinte,

não poderá ser responsabilizado, nem sequer neste limite mínimo da reparação ou

substituição da coisa61. E se não pode responsabilizar o vendedor, também não

pode responsabilizar o produtor, porque com este não celebrou nenhum contrato.

O dano contudo verificou-se quer na medida em que o bem padece de vício ou

falta de qualidade, quer porque esses vício e falta de qualidades foram causa da

produção de outros danos, quer para o comprador quer para terceiros.

Ora, se parece inadequado pretender responsabilizar o mero vendedor, que

se limita a ser um elo da cadeia de distribuição montada pelo produtor dos bens,

sem qualquer possibilidade de controlar a fabricação e, por conseguinte, sem

qualquer culpa quanto à concreta conformação que o bem vem a ter, não menos

inadequado parece aceitar o dano sem responsável, o mesmo é dizer aceitar que

seja o adquirente final, consumidor, a suportar o dano como se de Fado seu se

tratasse, e isto sabendo-se que o bem foi por alguém produzido, que o pôde

controlar e conformar, e que, em todo o caso, lucra com ele: o produtor62.

Percebe-se, assim, que quer a doutrina, quer a jurisprudência tenham

desenvolvido apurados esforços no sentido de criar bases para a

responsabilização contratual do produtor. Só que as várias construções, que

foram sendo ensaiadas, revelaram-se insatisfatórias para responder 59 Cfr. João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, Almedina, 1990, p. 284. 60 Mas poderá sê-lo se, porventura, o defeito resultou, ou se agravou, em virtude de más condições de armazenamento, se vendeu o produto fora do prazo de validade, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 282, 540. 61 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 282. 62 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 283

adequadamente ao problema, quer por muito artificiosas, quer porque deixavam

de fora os danos sofridos por terceiros ou por simples bystander63. O que acabou

por obrigar a responsabilização do produtor a sair para fora dos limites estreitos

da clássica responsabilidade contratual.

Nem a própria responsabilidade extracontratual, a despeito de constituir

um progresso relativamente à responsabilização em via contratual, pois permite

proteger não só o consumidor adquirente do produto, bem como qualquer

terceiro que venha a sofrer danos causados pelo produto defeituoso64, constitui

resposta suficiente para o problema, porquanto dependendo da verificação de um

conjunto de pressupostos: facto voluntário, ilicitude, imputação do facto ao

lesante, dano e o nexo de causalidade entre este e aquele facto, cuja

demonstração se afigurará, pelo menos se se fizer uma aplicação clássica dos

mesmos 65 , particularmente delicada, acaba por tornar pouco menos do que

inoperante o funcionamento desta fonte de responsabilização. Nomeadamente,

pelo que diz respeito à prova da culpa do lesante, neste caso o produtor: como é

que pode o vulgar consumidor, o comprador ou o inocente terceiro que veio a ser

vítima do produto defeituoso (v.g., o convidado a quem a garrafa acaba por

explodir nas mãos, cegando-o), demonstrar qual o defeito, e que o mesmo se

deveu ao dolo ou negligência de um concreto ou concretos sujeitos, sabido que,

nas actuais condições de produção, um produto passa por várias fases de

produção e é o resultado da intervenção de um sem número de agentes. Qual a

fase de produção em que ocorreu o erro, e qual o agente que o causou, e com que

culpa? Tudo respostas que o vulgar consumidor não tem condições práticas de

efectivar. Ora, independentemente de se determinar em concreto qual a culpa e

em que momento e através de quem se manifestou, o certo é que é o produtor

quem concebe e quem controla o processo de fabrico, sendo que, se o produto é 63 Sobre as várias tentativas, e suas insuficiências, de a nível contratual se obter a responsabilização do produtor, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 285 ss, especialmente 346 ss. 64 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 353. 65 Dizemos clássica, porquanto as dificuldades sentidas com a prova do pressuposto da responsabilidade extracontratual: culpa, levou a que fossem ensaiados vários expedientes tendentes a aligeirá-lo, que acabaram, na prática, por esvaziá-lo do seu conteúdo clássico, aproximando-o de uma responsabilidade sem culpa, embora com matizes e nuances inconvenientes do ponto de vista da certeza e segurança jurídica, fruto, justamente, do terreno movediço que representa a “ultrapassagem” do princípio da culpa para responsabilização do produtor, cfr. Calvão da Silva, idem, p. 387 ss.

defeituoso no momento da sua entrada em circulação66, o defeito ou deriva da sua

concepção (erro de design), caso em que o defeito afecta toda a série, ou do seu

fabrico, caso em que o defeito afecta um ou alguns dos produtos, mas

dificilmente todos os da série. De qualquer modo, apenas existe porque algures

no processo de concepção-fabricação, processo da exclusiva responsabilidade do

produtor, houve culpa deste, quer porque projectou mal quer porque controlou

mal o fabrico do produto. Por outras palavras, o produto sendo defeituoso fala

por si quanto à culpa do produtor (res ipsa loquitor)67.

Conclusão, o funcionamento das regras gerais da responsabilidade civil,

quer contratual quer extracontratual, afiguram-se insuficientes para efeitos da

protecção do consumidor em face de produtos defeituosos68.

Dada a insuficiência das várias tentativas ensaiadas para obter o “resultado

justo” da responsabilização do produtor, percebe-se que se tenha avançado para a

responsabilização objectiva do produtor, não escrava da prova da culpa do

agente, pois69.

O empresário é responsável, independentemente de culpa, ou seja, não

subjectiva mas objectivamente, pois, pelos danos causados por defeitos dos

produtos que comercializa (art.º 85.º, n.º 1). Verificado o dano, o defeito do

produto e estabelecido o nexo de causalidade entre o defeito e o dano, o

empresário responderá para com o lesado, seja este aquele que adquiriu o bem,

um terceiro a quem o facultou (v.g. o convidado) ou um simples bystander (v.g.

o terceiro que fica ferido ao passar junto do local onde a garrafa de gás defeituosa

explodiu).

A lei representa um passo importante para a protecção dos terceiros em

geral, e dos consumidores em particular, mas convém não nos iludirmos sobre as

suas reais potencialidades. Na verdade, não basta o dano, como não basta o

defeito, é necessário a demonstração do nexo de causalidade entre um e outro. E

se é verdade que a prova do dano se não afigurará, na generalidade dos casos,

66 O que só por si já se afigurará tarefa não isenta de muitos e difíceis escolhos. 67 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 390 ss. 68 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 383 ss. 69 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 444 ss.

como particularmente difícil, já o mesmo se não pode dizer no que toca quer ao

defeito quer ao nexo de causalidade, entre este e aquele. No que respeita ao

defeito, são particularmente elucidativos os casos da garrafa que explode,

provocando danos na pessoa do lesado, que, justamente, pela dificuldade da

prova do defeito na garrafa (era a garrafa que era defeituosa ou foi o

manuseamento indevido pelo lesado que provocou a sua explosão? Era a garrafa

defeituosa ab initio ou o defeito adveio-lhe ulteriormente por deficiente

manuseamento, p.e., do funcionário do supermercado onde foi comercializada? E

com a garrafa destruída pela explosão, como é que se vai fazer prova da

existência de um defeito na mesma?)70, acabam por não ser ressarcidos. Mas,

mesmo demonstrada a existência do defeito, é ainda necessária a demonstração

de que aquele concreto defeito é que provocou aqueles concretos danos71. E tudo

isto é matéria cuja prova incumbe ao lesado, por força das regras de distribuição

do ónus da prova (art.º 335.º Cód.Civil)72, com as inerentes probabilidades de

insucesso. Por outro lado, nem todos os danos são ressarcíveis, como sucede nos

demais casos de responsabilidade civil em geral, mas apenas os indicados no art.º

91.º73.

A lei considera, para estes efeitos, produtor não apenas aquele que

efectivamente produziu (produtor real) o produto, produto acabado (v.g.

automóvel), parte componente (v.g. bateria do automóvel) ou matéria prima (v.g.

ferro, aço que é utilizado na produção do automóvel), mas também quem, a

despeito de não ser o real produtor, como tal se apresenta (produtor aparente),

comercializando os produtos, que podem ou não ter sido fabricados segundo as

suas instruções por terceiros que permanecem desconhecidos do consumidor, sob

o seu nome (firma), marca ou outro sinal distintivo (art.º 85.º, n.º 1). Nestes

casos, a origem dos produtos, pelo que respeita ao consumidor, é o empresário

identificado pelo sinal distintivo aposto nos mesmos, pois este representa a única

pista quanto à determinação daquela, sendo que é com a origem correspondente a

70 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 391. 71 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 711. 72 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 580, nota 1. 73 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 677 ss.

essa aparência que os consumidores podem legitimamente contar (v.g. grossistas,

empresas de venda de bens por correspondência, etc.)74. Se o real produtor não se

encontra identificado, mas o distribuidor, aponha ou não um seu sinal distintivo,

claramente significa a sua qualidade de distribuidor, não há lugar a falar de

produtor aparente, mas tão só à aplicação do disposto na al. b) do n.º 2 do art.º

85.º75. Por outro lado, e atento que grande parte dos produtos são importados, a

lei equipara ao produtor (produtor presumido), para o sujeitar à responsabilidade

aqui em questão, aquele que importa, com fins de ulterior comercialização76, os

produtos para Macau (art.º 85.º, n.º 3, al. a)). Na verdade, a não ser assim, os

terceiros, que sofressem danos causados por produtos defeituosos, ver-se-iam

impedidos, na prática, de serem ressarcidos, porquanto teriam de ir perseguir o

produtor, para efeitos da execução da sentença, no seu país de origem77. Do

mesmo modo, é considerado produtor o distribuidor (produtor presumido), i.e.

aquele que vende o produto, enquanto não indicar ou o produtor ou o importador

ou qualquer distribuidor que o anteceda na cadeia distributiva78 (art.º 85.º, n.º 3,

al. b)), por forma a que o lesado possa, efectivamente, actuar contra o

responsável, em última instância ou o fabricante ou o importador.

Para efeitos da lei, produto é qualquer coisa móvel 79 , ainda que

incorporada noutra coisa móvel (v.g. os pneus dos automóveis) ou imóvel (art.º

86.º, n.º 1). Os imóveis, enquanto tais, estão assim afastados da protecção do

presente regime normativo80, não já os bens com que sejam construídos, p.e. os

tijolos, o ferro dos alicerces, etc.. A lei exceptua os produtos do solo, da pecuária, 74 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 550 ss. 75 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 553. 76 Não estão abrangidos aqueles que muito embora tenham importado o produto, não o fizeram no exercício da sua empresa, ou seja, com vista à sua comercialização, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 558, 559. 77 Quanto a esta difícil problemática, vide, uma vez mais, Clavão da Silva, idem, pp. 127 ss, e 557, 558. 78 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 560 ss. 79 Atendendo a que a energia eléctrica, o gás, o vapor, a água são coisas materiais, e, como tal, móveis, por não designadas no art.º 195.º do Cód.Civil, estão os mesmos abrangidos pelo regime de responsabilidade por produtos defeituosos, sendo o produtor, nestes casos, aqueles que têm a direcção efectiva da rede de transporte e de distribuição do bem em causa (v.g. energia eléctrica); igualmente será de considerar como produto, para os efeitos do regime legal de responsabilidade do produtor, o sangue e órgãos humanos, quando objecto de comercialização, cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 608, 609, 618. 80 Contudo, nos EUA discute-se a extensão também aos imóveis (construção e venda de casas) do regime de responsabilidade civil do produtor por produtos defeituosos (product liability), cfr. Calvão da Silva, idem, p. 3, nota 3.

da pesca e da caça, quando não tenham sofrido qualquer transformação (por via

de intervenção do homem, entenda-se) (art.º 86.º, n.º 2). A explicação reside em

se tratar de produtos, tal qual resultam da natureza, relativamente aos quais, pois,

não há intervenção do homem a determinar as respectivas qualidades, e, por

conseguinte, cujos perigos de utilização se não podem assacar à intervenção

humana. Assim sendo, se os produtos em causa são objecto de transformação,

como tal se devendo entender toda e qualquer intervenção humana que altere o

estado dos bens tal qual resultaria da natureza (v.g. o milho, enquanto produto

natural, não está abrangido, mas o milho geneticamente modificado, como tal

objecto de intervenção humana, está), passam a estar abrangidos pela lei81.

O produto considera-se defeituoso quando, no momento em que entra em

circulação, i.e. passa a ser comercializado, não oferece a segurança com que

legitimamente se pode contar82, atentas todas as circunstâncias, nomeadamente a

sua apresentação (v.g. um medicamento apresentado sob a forma de uma

guloseima83), características e a utilização que dele possa ser razoavelmente ser

feita (v.g. os brinquedos ou as esferográficas não são feitos, em regra, para serem

levados à boca, mas a verdade é que esta última utilização é vulgar, pelo que o

fabricante deve ter em conta não apenas o uso típico do bem que produz, mas

também aqueles outros que normalmente se verificam84) (art.º 87.º, n.º 1).

O simples facto de o o produto ser objecto de melhorias no futuro não

significa que a anterior versão fosse defeituosa (art.º 87.º, n.º 2) 85 . Pode, e

normalmente será isso o que acontece, corresponder apenas a uma estratégia de

afirmação no mercado, através do contínuo melhoramento e aperfeiçoamento dos

produtos.

Não basta, para a responsabilização nesta sede do empresário produtor, a

verificação de defeitos, susceptíveis de causar danos a terceiros, se se verificar 81 Cfr. Calvão da Silva, idem, 621 ss. 82 Toda e qualquer pessoa, não apenas a do concreto utilizador; assim, se, por exemplo, certo produto provoca uma alergia ao utilizador, mas não a qualquer outra pessoa, não se pode pretender que o produto era defeituoso, cfr. Calvão da Silva, idem, p. 636. 83 Cfr. Maria Afonso Vaz, Manuel Variz, Da responsabilidade civil decorrente de produtos defeituosos (Anotação ao Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro, que transpõe a Directiva n.º 85/374/CEE do Conselho, de 25 de Julho de 1985), Coimbra Editora, 1991, pp. 36, 37. 84 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 640. 85 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 646.

uma das situações de exclusão de responsabilidade indicadas no art.º 88.º. Assim:

se o produtor, a despeito de ter fabricado o produto defeituoso, provar que não o

colocou em circulação (v.g. o produto foi furtado) ou que não o colocou em

circulação com objectivos económicos (v.g. facultou apenas amostras para

avaliação dos seus distribuidores) ou não o fez no exercício da sua empresa, i.e.

que não o produziu para comercialização ou tão só não o comercializou, pois

(als. a) e c)); se o defeito não existia ao momento da entrada em circulação, o

mesmo é dizer se o defeito é superveniente e, como tal, insusceptível de poder ser

assacado ao produtor (al. b)); que o defeito resulta da observância de normas

(técnicas) imperativas (por força de lei) determinadas pelas autoridades públicas

(al.d); que, no momento da entrada em circulação, o estado do desenvolvimento

técnico-científico não permitia conhecer a existência do defeito (o chamado risco

do desenvolvimento) (al. e)); ou que o defeito, tratando-se de parte componente,

advém não do produto, mas da concepção do produto no qual é incorporada ou às

instruções dadas pelo produtor do mesmo [v.g. o capotar do automóvel,

provocado pela descolagem da camada de aderência do pneu, resulta, atenta a

concepção do veículo, da inadequação do pneu para o veículo (erro na escolha do

tipo de pneu adequado)] (al.f). A estas causas de exclusão de responsabilidade

indicadas na lei acresce a de caso de força maior, que a lei não indica por já

resultar das regras gerais86.

Existindo vários responsáveis (v.g. o capotar do automóvel, sendo

resultante de um defeito nos pneus, mas potenciado por um defeito de design do

próprio veículo), a sua responsabilidade é solidária (art.º 89.º, n.º 1). Trata-se de

uma medida de protecção do lesado, porquanto é a responsabilidade solidária que

melhor acautela os interesses do credor, que pode exigir de qualquer dos

devedores a totalidade da dívida, estando, assim, mais resguardado quanto à

insolvência de algum dos devedores. A medida da concreta responsabilidade de

cada um dos responsáveis será determinada pela sua contribuição (medida quer

86 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 737, 738.

pelo risco quer pelo grau de culpa) na verificação do dano (art.º 89.º, n.º 2). Em

caso de dúvida, todos são responsáveis por igual (art.º 89.º, n.º 3)87.

No caso, de o lesado ter contribuído também com o seu comportamento

culposo (v.g. o dano verifica-se, porque o lesado desrespeita as instruções claras

do fabricante) para a verificação do dano, ou para o respectivo agravamento, a

indemnização pode ser reduzida ou até excluída (art.º 90.º, n.º 1).

A responsabilidade por produtos defeituosos, como se disse, não abrange

todos os danos causados, mas apenas os danos na pessoa (morte ou lesão

corporal, psíquica ou moral 88 ) e os verificados em coisa, mas agora

independentemente de se móvel ou imóvel 89 , diversa do próprio produto

defeituoso, contanto que a coisa danificada seja destinada ao uso e consumo

privado (v.g. o frigorífico usado por uma família na sua habitação; já não o

frigorífico usado numa empresa de produtos congelados90) e tenha sido esse o

principal destino que lhe foi dado (art.º 91.º). Com esta última restricção,

pretende a lei abranger aqueles bens que, sendo objecto de utilização prioritária

em ambiente empresarial, acabaram por se transformar em objectos de uso geral

e, por conseguinte, também puramente privado (v.g. computadores, máquinas de

escrever91). Neste caso, se o lesado provar que o bem era objecto de utilização

meramente privada, funcionará o regime legal de protecção contra produtos

defeituosos, caso contrário, não. Imaginemos que o frigorífico, acima referido,

por defeituoso, explode ou incendeia, causando danos quer no edifício quer nos

demais bens que naquele espaço se encontram. Se o frigorífico se encontra numa

habitação, por isso destinado a uso privado, todos estes danos ocorridos no

edifício e nos demais bens do lesado são ressarcíveis, nos termos da

87 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 575 ss, com soluções interessantes, mas que se afastam dos estritos cânones clássicos, quanto à responsabilização dos produtores de certo produto, quando não seja possível à vítima especificar a qual deles se deve o produto ou produtos que causaram os danos. 88 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 679. 89 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 697. 90 O exemplo é de Calvão da Silva, idem, p. 698, que indica ainda o caso do automóvel que o empresário utiliza para seu uso privado, por isso abrangido pelo regime legal, relativamente ao automóvel da empresa, que não é para uso ou consumo privado e, como tal, não abrangido pela lei, do mesmo modo que o táxi que o taxista eventualmente usa nas suas folgas para uso privado, mas que não é normalmente a isso destinado, não estando abrangido no regime de repsonsabilidade civil do rpodutor. 91 Os exemplos, mais uma vez, são de Calvão da Silva, idem, p. 699.

responsabilidade civil do produtor, já não se o frigorífico se encontrava numa

empresa, pois nesse caso falece o pressuposto uso ou consumo privado92.

Não são abrangidos os danos resultantes dos prejuízos sofridos com o

inaproveitamento do produto defeituoso, tão-pouco os eventualmente decorrentes

da deterioração ou destruição das coisas destinadas ao uso ou consumo privado

(v.g. lucros cessantes, privação do uso, etc.), nem os designados danos

patrimonias puros (pure economic loss)93. Os danos ressarcíveis, nos termos do

art.º 91.º, abrangem apenas os ocorridos em coisa diversa do próprio produto

defeituoso, o que quer dizer que o dano ocorrido neste não é um daqueles

abrangidos pela norma. Estes danos poderão ser ressarcidos apenas por via da

responsabilidade contratual ou extracontratual, caso se verifiquem os respectivos

pressupostos94.

A acção destinada a efectivar a responsabilidade do produtor deve ser

intentada no prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado teve ou devia ter

tido conhecimento do dano, do defeito e da identidade do empresário produtor

(art.º 93.º). Em qualquer caso, a possibilidade de agir judicialmente contra o

produtor fica precludida, por caducidade, decorridos 10 anos sobre a entrada em

circulação do produto defeituoso (art.º 94.º).

92 Cfr. Calvão da Silva, idem, p. 700. 93 Cfr. Calvão da Silva, ibidem; Luís Menezes Leitão, Direito das obrigações, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2002, p. 372. 94 Cfr. Calvão da Silva, idem, pp. 702 ss.