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3 Mudanças no Paradigma Administrativo Brasileiro: O Estado Regulador O Direito Administrativo, ao contrário do que se sucedeu com o direito privado, não encontrou em épocas mais distantes estudiosos que se propusessem a elaborar uma teoria do direito administrativo, em sistematizá-lo ou mesmo codificá-lo. 1 Conforme ressalta Marcos Juruena Villela Souto, seu estudo como ciência ocorreu por volta do período de 1789 a 1870, “(...) quando se distinguia um ‘contencioso administrativo’ distinto do regime jurisdicional(...)”. Contudo, destaca que a sua autonomia é relacionada ao Caso Blanco em 1873, quando o Tribunal de Conflitos confirmou em sua decisão a juridisção administrativa do Conselho de Estado. 2 A importância de seu estudo apenas é reconhecida com o novo conceito de legitimidade, fundado a partir da Revolução Francesa. Dessacralizado o fundamento do poder legítimo, este passou a residir na nação, que se fazia representar pelos legisladores. Com isso, tornou-se a lei a aferidora da legitimidade da atuação dos poderes públicos, o que, no entanto, representava, face ao antigo e duradouro critério divino, um critério inseguro, sobretudo diante da cambiante política legislativa. Fez-se premente a necessidade de um estudo que dispusesse sobre a organização do Estado e de suas instituições, como forma de assegurar a legitimidade e a eficiência do regime instituído pós-revolução. Segundo Diogo de Figueiredo, os autores costumam identificar o nascimento do Direito Administrativo com a edição, em 1800, da primeira lei reguladora da pública administração. Antes disso, contudo, já em 1748, com a publicação do L’ésprit des lois, de Montesquieu, sistematizou-se a teoria da divisão dos poderes e a criação, por Napoleão, da justiça administrativa, reforçou esse processo. No entanto, a primeira obra de Direito Administrativo, intitulada 1 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em seu Curso de Direito Administrativo, afirma que os traços mais remotos de existência do Direito Administrativo encontram-se na Grécia Clássica: “Embora embrionário, e ainda confundidas as funções administrativas e jurisdicionais, já se cuidava, então, do exercício da polícia, da prestacão de serviços públicos e da repartição de atribuições entre agentes encarregados de executá-los”. 2 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 27.

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3Mudanças no Paradigma Administrativo Brasileiro: OEstado Regulador

O Direito Administrativo, ao contrário do que se sucedeu com o direito

privado, não encontrou em épocas mais distantes estudiosos que se propusessem a

elaborar uma teoria do direito administrativo, em sistematizá-lo ou mesmo

codificá-lo.1 Conforme ressalta Marcos Juruena Villela Souto, seu estudo como

ciência ocorreu por volta do período de 1789 a 1870, “(...) quando se distinguia

um ‘contencioso administrativo’ distinto do regime jurisdicional(...)”. Contudo,

destaca que a sua autonomia é relacionada ao Caso Blanco em 1873, quando o

Tribunal de Conflitos confirmou em sua decisão a juridisção administrativa do

Conselho de Estado.2

A importância de seu estudo apenas é reconhecida com o novo conceito de

legitimidade, fundado a partir da Revolução Francesa. Dessacralizado o

fundamento do poder legítimo, este passou a residir na nação, que se fazia

representar pelos legisladores. Com isso, tornou-se a lei a aferidora da

legitimidade da atuação dos poderes públicos, o que, no entanto, representava,

face ao antigo e duradouro critério divino, um critério inseguro, sobretudo diante

da cambiante política legislativa. Fez-se premente a necessidade de um estudo

que dispusesse sobre a organização do Estado e de suas instituições, como forma

de assegurar a legitimidade e a eficiência do regime instituído pós-revolução.

Segundo Diogo de Figueiredo, os autores costumam identificar o

nascimento do Direito Administrativo com a edição, em 1800, da primeira lei

reguladora da pública administração. Antes disso, contudo, já em 1748, com a

publicação do L’ésprit des lois, de Montesquieu, sistematizou-se a teoria da

divisão dos poderes e a criação, por Napoleão, da justiça administrativa, reforçou

esse processo. No entanto, a primeira obra de Direito Administrativo, intitulada

1 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em seu Curso de Direito Administrativo, afirma que os traçosmais remotos de existência do Direito Administrativo encontram-se na Grécia Clássica: “Emboraembrionário, e ainda confundidas as funções administrativas e jurisdicionais, já se cuidava, então,do exercício da polícia, da prestacão de serviços públicos e da repartição de atribuições entreagentes encarregados de executá-los”.2 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 27.

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Institutes de Droit Administratif Français, da lavra de Barão De Gérando, data de

1829.3

No Brasil, a necessidade de se organizar uma administração pública mais

eficiente, levou Paulino José Soares de Souza – membro da trindade saquarema,

juntamente com Rodrigues Torres e Eusébio de Queirós, grupo responsável pela

obra de centralização do Segundo Reinado e pela construção do Estado nacional

brasileiro – a escrever o Ensaio sobre o direito administrativo, publicado em

1862.4 Nesta obra, elaborada a partir das questões suscitadas pelas leituras de

Alexis de Tocqueville e François Guizot, Visconde do Uruguai discorre sobre o

papel do Estado e sua relação com a sociedade, criticando a eficiência das

instituições que havia ajudado a fundar.5

Em sua obra, o direito administrativo é conceituado em termos da relação

que orienta entre a autoridade administrativa e os administrados, ou seja, ocupa-se

do poder administrativo, um dos braços do poder executivo, ao lado do poder

político. Nesse sentido, ressalta o autor que a separação entre o político e o

administrativo seria essencial para reprimir eventuais desvios nas condutas dos

administradores, uma vez que a invasão de interesses políticos na administração

faz com que esta transforme-se no “(...)vasto campo dos favores e o meio de

procurar e firmar apoio político, às vezes momentâneo, com grande prejuízo dos

serviços administrativos, e às vezes com grande desmoralização.”6 A fragilidade

da organização administrativa, tão fortemente sentida no Brasil, refletia-se, nas

bruscas modificações que se davam, a cada mudança governamental, no modo de

encarar as questões de sua natureza.

3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, p. 52-53.4 Diogo de Figueiredo Moreira Neto relata que, proclamada a Independência, os Cursos Jurídicosde São Paulo e Olinda, fundados pela Carta de 11 de agosto de 1827, não traziam originalmente ascadeiras de Direito Administrativo, incluídas apenas em 1855. As obras pioneiras sobre o assuntodatam de 1857, tanto a de Vicente Pereira do Rego, com os Elementos de Direito Administrativo,quanto a de José Antônio Pimenta Bueno, que publicou o seu Direito Público Brasileiro e Análiseda Constituição do Império. No entanto, ressalta Moreira Neto que o autor mais significativo doperíodo imperial foi o Visconde do Urugaui, cuja obra pressegue na tradição francesa. Curso deDireito Administrativo, p. 59-60.5 Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, percebeu o caráter novo da matériaanalisada: “As raias do direito administrativo, o qual, como veremos, é uma ciência muito nova,não estão ainda tão claramente fixadas (...) Por isso as definições que dela deram são umas mais eoutras menos amplas (...) Cada um seguiu o seu sistema, o que produz grande confusão no espíritodaqueles que procuram iniciar-se na ciência daquele direito.” URUGUAI, Visconde do, Ensaiosobre o direito administrativo, p. 83. A trajetória do Visconde do Uruguai é analisada naintrodução de José Murilo de Carvalho à reedição da obra citada.6 URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o Direito Administrativo, p. 93. (grifo nosso)

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Ainda de acordo com sua análise, o Estado Imperial, embora onipresente,

operava de forma ineficiente, pois ficava distante de seus administrados no que se

refere à implementação de políticas públicas, inversamente ao que acontecia na

América analisada por Tocqueville, onde o papel da sociedade era “sublinhado”.

Desse modo, ele constatou que a excessiva centralização administrativa aniquilava

o espírito público dos cidadãos brasileiros.

No entanto, se, por um lado, a descentralização administrativa constituía-

se em um instrumento fundamental para a transformação da administração pública

brasileira, de acordo com os paradigmas norte-americanos e europeus de

eficiência, por outro lado, o Visconde do Uruguai destacou a necessidade da

centralização política – posição óbvia para um membro do vitalício Conselho de

Estado de D. Pedro II.7

O funcionamento político-administrativo do Império Brasileiro, não

obstante a ruptura com Portugal e o desprezo pelas repúblicas latino-americanas,

deitou as suas raízes na longa tradição ibérica, originada com os

constitucionalistas da Segunda Escolática, ainda no século XVI. De acordo com

aquela tradição, o Estado é o responsável pelo Bem Comum, que se contrapõe

tanto à idéia contratualista, que retira do Estado o seu caráter sacro, quanto à do

liberalismo, que propaga a mínima intervenção estatal na vida dos indivíduos. Em

suma, tratava-se da questão de conceder primazia ou ao coletivo, caso dos

escolásticos, ou ao indivíduo, caso dos iluministas.

Pode-se afirmar que a concepção ibérica acerca da natureza do Estado

desdobrou-se em duas vertentes: uma virtuosa, da valorização da esfera pública, e

a outra degenerada, onde a sociedade espera dos governantes a resolução de todos

os seus problemas.

Para Richard Morse, as remotas escolhas políticas feitas na Inglaterra e na

Península Ibérica foram decisivas para os seus reinos transatlânticos.8 Os ingleses,

em meados do Seiscentos, optaram por seguir as idéias contratualistas

hobbesianas, mas é importante salientar que outras se apresentavam, como por

exemplo o humanismo cristão de Milton ou o neotomismo de Richard Hooker.

7 Nessa perspectiva, assinala que o poder central deveria evitar as arbitrariedades das oligarquiasprovinciais e garantir as liberdades individuais, enfim, o Estado deveria adotar uma atitudepedagógica, conjugando autoridade e liberdade.8 MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e idéias nas Américas.

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Já, em Portugal e Espanha, a opção política fora realizada um século antes.

Morse destaca que, no século XVI foi construído um consenso espanhol,

fundamentado na interpretação teológica, que compreendia as fontes de

legitimidade do governo, o alcance de seu poder, as suas concepções jurídicas,

entre outros aspectos:

Espanha oferecia um cenário (...) em que as alternativas políticas eram buscadasdentro de uma matriz de interesses teológicos, morais e filosóficos. Nem mesmoo ‘cristão profético` Las Casas jamais tentou criar um linha política ou dissidentefora das instituições eclesiásticas; ao contrário, trabalhou dentro dessasinstituições, utilizando geralmente a linguagem do escolástico e do legista.9

Um dos maiores expoentes do neotomismo hispânico foi Francisco de

Vitoria (1492-1546), que ensinou em Paris e Salamanca, onde foi eleito

catedrático de teologia. Os escolásticos elaboraram uma teoria da sociedade

política inserida num universo regido por uma hierarquia de leis: lex aeterna, em

primeiro lugar, pela qual age o próprio Deus; lex divina, revelada por Deus nas

escrituras e sobre qual a Igreja foi fundada; lex naturalis, implantada por Deus nos

homens; e, finalmente, lex civilis, criada pelos homens.10 A influência do

tomismo continuou a se disseminar, impulsionado pelas reformas do Concílio de

Trento, e brevemente chegaria a Portugal pelas mãos dos jesuítas.

Richard Morse não estabelece uma hierarquia entre a opção inglesa e a

ibérica, interpretando-as como frutos de diferentes problemas históricos e busca

de meios de legitimação do poder estatal:

Vitoria escreveu no momento em que a Espanha se envolvia com os novosEstados nacionais e com os povos não cristãos do ultramar. (...) Vitoria enfrentouum problema de casuística – ajustar a experiência a cânones respeitáveis – maisdo que de reconstituição. Hobbes, ao contrário, nascido numa nação insular emodernizante no portentoso ano da Invencível Armada e chegando à maturidadenuma época de violência civil e cisma ideológico, teve de enfrentar o problemade reconstituir uma ordem nacional que, uma vez legitimada, proporcionasse umnovo apoio de poder internacional. Vitoria dirigia-se a um vasto mundomultiforme, Hobbes a um mundo circunscrito e homogêneo. Nos dois casosuniversalismo e particularismo ocupam posições contrárias. O desafio de Vitoriaera acomodar um amontoado idiossincrático de nações e povos numa ordemmoral universal; o de Hobbes era descobrir um conjunto de axiomas ‘científicos’através dos quais uma unidade política singular pudesse ser organizada como umprotótipo.11

9 Idem, p. 39.10 Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno.11 MORSE, Richard. Op. Cit., p. 61. (grifo nosso)

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O poder coercitivo do Estado, segundo os escoláticos, deve ser utilizado

para a realização do bem comum. Inversamente, o pacto político proposto pelo

contratualista inglês nega que a autoridade estatal seja conferida por uma

instância divina, sobre-humana, tendo sido “adotado por medo antes do que por

um espírito de realização auto-comunal.”12

A percepção de que as raízes dos problemas brasileiros encontrava-se na

herança colonial foi exposta pela primeira vez por Tavares Bastos, na obra Os

males do presente e as esperanças do futuro, publicada em 1861 e que condenava

de forma veemente o despotismo burocrático lusitano. A mesma linha foi seguida

por Manoel Bonfim, autor de A América Latina: males de origem.

Entretanto, o Estado Patrimonialista passou a constituir o cerne da análise

apenas em 1958, com a primeira edição de Os donos do Poder, do jurista

Raymundo Faoro. De fato, a persistência secular da estrutura patrimonial é a

chave para a leitura da história luso-brasileira, de D. João I a Getúlio Vargas:

Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído peloestamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, dasconcessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que,com o aperfeiçoamento da estrutura se extrema em competências fixas, comdivisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal. (...) Acompatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional,equivocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das chaves dacompreensão do fenômeno histórico português-brasileiro, ao longo de muitosséculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial.13

De acordo com Faoro, o patrimonialismo se amolda às transformações e o Estado

permanece sobre a Nação. “Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho,

vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre

rebentasse.”14 Antes disso, na década de 1940, Victor Nunes Leal já havia

analisado o coronelismo como um compromisso entre o poder público e a

decadente influência social dos chefes locais, isto é, “uma adaptação, em virtude

da qual os resíduos de nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido

coexistir com o regime político de extensa base representativa.”15

Entre as características do coronelismo, Victor Nunes destaca o

clientelismo, o sistema eleitoral fraudulento, o mandonismo e a desorganização 12 Idem, ibidem.13 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, p. 823.14 Idem, p. 837.

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dos serviços públicos locais – aqui chega-se ao ponto assinalado pelo Visconde do

Uruguai: a ineficiência da administração pública. O Estado não serve ao

contribuinte, nem à população carente, senão aos afilhados políticos dos coronéis,

que aparecem freqüentemente como benfeitores, responsáveis pelos

melhoramentos da escola, da igreja, pelos serviços de infra-estrutura, através dos

quais advém a sua liderança.

A ascendência do proprietário rural, ou do bacharel seu genro, está

baseada nas íntimas relações entre o poder privado e o poder público, denominado

de sistema de reciprocidades:

(...) de um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que conduzem magotes deeleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação políticadominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da forçapolicial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça. 16

Assim, a administração municipal constituía uma espécie de feudo dos

coronéis, que se utilizavam dela para o atendimento de favores pessoais e

obséquios paternalistas. Os chefes locais utilizavam-se da complacência dos

políticos estaduais, que trocavam o apoio daqueles pela indicação de funcionários

do estado no município, sobretudo do delegado e do subdelegado de polícia.

Muito embora a primeira edição do livro de Victor Nunes Leal tenha sido

publicada em 1949, quando a maioria da população residia em municípios do

interior, diversas analogias podem ser feitas com a política contemporânea,

caracterizada ainda pelo oficialismo de alguns partidos, pela promiscuidade entre

as esferas pública e privada, pelo clientelismo, definido pela célebre expressão “é

dando que se recebe.”

Cumpre frisar que os diagnósticos acima aplicam-se também à falta de

organização dos institutos administrativos, que até hoje sobrevive na doutrina e

jurisprudência brasileiras, pois parcos são os assuntos que podem gozar de relativa

consensualidade.

No Brasil, o Direito Administrativo perfez-se como o ramo do direito

público mais afeito ao princípio de autoridade, traduzido em conceitos como o da

imperatividade, supremacia do interesse público, insindicabilidade do mérito,

15 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo noBrasil, p. 40.16 Idem, p. 63-64.

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dentre outros. Com isso, isolou-se dos demais ramos do Direito, solidificando

uma postura essencialmente autoritária.

Jacques Chevallier lembra que a idéia de poder dominou, até o final do

século XIX, o sistema de relações entre administração e sociedade, constituindo o

fundamento da legitimidade administrativa. A Administração, encarnando a

majestade do Estado, e exprimindo todo o seu poder, dota-se de uma

superioridade ontológica e prática em relação ao resto da sociedade. Assim é que

“le droit administratif, conçu avant tout comme un droit de prérrogatives et de

privilèges, n’est lui-même que la tradution de cette preéminence”. 17

Embora esta concepção autoritária da Administração Pública tenha sido

questionada já no começo do século XX, quando a doutrina administrativa

transforma a administração em ator do quotidiano e gerador do social, apenas

décadas mais tarde, com a promulgação da Constituição da República de 1988, é

que se operaria uma mudança mais substancial. De fato, a Constituição trouxe os

germes de uma constitucionalização de todos os setores do direito, mormente do

Direito Administrativo, que parecia pairar sobre o ordenamento jurídico. A

consagração, já no artigo 1o da Constituição, de um Estado Democrático de

Direito, impôs a consideração, por parte de todos os agentes do Estado, de duas

ordens distintas de referência ético-políticas: a legal e a legítima. Nesse quadro, o

enclausuramento do direito administrativo tornou-se não apenas inconveniente,

mas sobretudo inconstitucional, pois ao administrador, na elaboração de atos e

tomadas de decisão, caberia observar não só a ordem legal, como também a

ordem legítima, calcada no conceito de interesse público. Impôs-se, doravante, a

observância de valores vigentes na sociedade, espraiados por todo o sistema

jurídico.

Assim é que se pode afirmar, na esteira de Diogo de Figueiredo Moreira

Neto, observando o fenômeno em seu Mutações do Direito Administrativo, que a

afirmação do constitucionalismo e a sociedade participativa foram os fatores

essenciais para uma maior integração do direito administrativo aos demais ramos.

Inserida na constelação pós-positivista, a Constituição de 1988 ajudou na

consolidação de um forte papel atribuído aos princípios gerais do direito, muitos

dos quais encontram-se cristalizados no extenso rol dos direitos fundamentais do

17 CHEVALLIER, Jacques. “Psychologie et Science Administrative”, In : Figures de L’usager, ,p. 38.

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artigo 5o. Robert Alexy ressalta que a partir da inclusão dos direitos fundamentais

nas constituições, existe uma íntima conexão entre o direito e a moral, que

assegura aos princípios sua normatividade máxima. Nesse sentido, cabe ressaltar

as palavras de Paulo Bonavides sobre a importância dos princípios

constitucionais no papel de integração e unificação do sistema jurídico, eis que

passaram a ser encarados como “(...) a viga-mestra do sistema, o esteio da

legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma

Constituição”18.

Colocados no ápice do ordenamento jurídico, os princípios penetraram no

âmago da administração pública através do artigo 37 da Constituição da

República, que assim consagrou: “a administração pública direta e indireta de

qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e

eficiência(...)”. Ao lado destes, Marino Pazzaglini Filho elenca uma série de

princípios constitucionais implícitos, que regem a atividade administrativa, como

o da finalidade, o da igualdade, o da motivação, o da supremacia do interesse

público, os da lealdade e da boa fé administrativa, e, principalmente, os da

razoabilidade e da proporcionalidade. 19

Matriz da atividade administrativa, a legalidade envolve não apenas a

sujeição dos agentes públicos às leis, mas também, e principalmente, “aos

princípios constitucionais que regem a atuação administrativa”.20

Por outro lado, colocada ao lado da legalidade na conceituação do Estado

Democrático de Direito, a legitimidade é a manifestação do princípio

democrático, ou seja, “da conformidade do agir do Estado com a vontade

popular”.21 Traduzida no conceito de interesse público, a legitimidade, a partir da

Constituição da República de 1988, passa a ser a preocupação maior de uma

administração pública que outrora buscava fundar seus atos na força de sua

autoridade. Deve-se ressaltar que o artigo 70 da Constituição, ao dispor sobre a

fiscalização contábil, financeira e orçamentária da administração pública

gerencial, faz expressa menção à legitimidade, nestes termos: “a fiscalização

18 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constituciona,.p. 265.19 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios Constitucionais Reguladores da AdministraçãoPública.20 Idem, p. 24.21 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 206.

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contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das

entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, à legitimidade,

economicidade, aplicação das subvenções e renúncias de receitas, será exercida

pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle

interno de cada Poder”.

A crise de legitimidade, relatada por Habermas, atinge em cheio as esferas

administrativas, suas decisões e atos unilaterais, conforme foi sentida no Brasil

através da crise dos serviços públicos prestados pela administração direta e

indireta, maculados de corrupção e burocracia generalizadas.

Uma possibilidade de superação dessa crise, e isso parece ser quase que

uma unanimidade entre os autores que trabalham a matéria, encontra guarida no

princípio da participação. Habermas propõe, com base nesta constatação, um

alargamento dos mecanismos de participação da sociedade nas tomadas de

decisões institucionais, mediante o exercício de um diálogo racional dentro de um

espaço público fortalecido, essencialmente politizado. Aos tradicionais

instrumentos de participação direta da sociedade, juntam-se aqueles inaugurados

pela nova postura administrativa, eminentemente consensualista e reguladora,

consubstanciados nas leis instituidoras das agências reguladoras: o debate público,

a coleta de opinião, a audiência pública, o colegiado misto etc.

A consensualização da administração pública, que passa inevitavelmente

por uma ampla inserção ativa da sociedade, é um processo que foi importado da

experiência francesa, relatada por Alain Plantey. Ali, desde o início do século XX,

houve um anseio muito grande de participação dos cidadãos, que, alienados pela

falta de informação sobre as decisões do Poder Público, viam-se constrangidos a

praticar atos sem saber sequer a sua destinação.22 Aos poucos, a própria

administração foi percebendo que a participação dos interessados era um

poderosíssimo instrumento para a implementação das políticas públicas de forma

eficiente e que a informação dos atos do poder público aos cidadãos, trazendo

consigo a maior divulgação de suas expectativas e desejos, viabilizava um

eficiente controle social. Assim é que na Constituição francesa de 27 de outubro

22 PLANTEY, Alain. L’association au pouvoir, p. 231: “une personne digne d’être appeléeà délibérer de ses intérêts et de son avenir, préoccupation qui s’étend à tous lesdomaines(...)”.

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de 1946 já se previa a participação do trabalhador na determinação coletiva das

condições de trabalho, bem como na gestão das empresas.

O processo de aprendizagem deve superar o que Plantey chama de falta de

informação, que, aliada à falta de formação geral dos cidadãos, marcam a

alienação do homem moderno. Com tal intento é que diversas estatais francesas

promoveram campanhas de informação, de prevenção e de promoção . Por outro

lado, a instituição dos comitês dos usuários pretendia fornecer uma canal de

comunicação das opiniões e demandas de caráter geral, sem se substituir aos

eleitos.

No Brasil, essa tomada de consciência foi bem mais lenta, pois a

participação apenas foi erigida em princípio constitucional em 1988, como forma

de conferir legitimidade à atuação administrativa. Ao lado da participação, outro

princípio inserto na Constituição como critério aferidor da legitimidade foi a

eficiência, introduzido como “parâmetro de avaliação dos resultados da gestão

orçamentária, financeira e patrimonial dos órgãos e entidades da adminisração

federal, bem assim da aplicação de recursos públicos por entidades de direito

privado”.23 Não obstante a sua consagração implícita para toda a administração

pública desde a promulgação da Constituição de 1988, a Emenda Constitucional

n. 19 de 04 de julho de 1998, entendeu por bem incluí-lo ao lado dos demais

princípios expressos reguladores da administração pública.

Moreira Neto considera que dos princípios da legitimidade e da eficiência,

os “mega-princípios orientadores da renovação”, derivaram os princípios políticos

da subsidiariedade e da participação política, os princípios técnicos da autonomia

e da profissionalização, e os princípios jurídicos da transparência e da

consensualidade.24

Esses foram os supedâneos para o início de uma mudança paradigmática

de postura na Administração Pública, que busca agora calçar suas atuações em

decisões compartilhadas pelos administrados. Busca, em suma, superar a crise de

23 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit, p. 32.24 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 19.Ressaltando as vantagens do princípio da consensualidade sobre o princípio da imperatividade, oautor assevera que “as formas de participação que se logram pela consensualidade são cada vezmais importantes nas democracias contemporâneas, uma vez que: contribuem para aprimorar agovernabilidade; propiciam mais freios contra o abuso; garantem a atenção a todos os interesses;proporcionam decisão mais sábia e prudente; desenvolvem a responsabilidade das pessoas; etornam as normas mais aceitáveis e facilmente obedecidas”. Op. Cit, p. 27.

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governabilidade25, que se traduz em uma crise de legitimidade das estruturas

juspolíticas, através de uma atuação participativa e, portanto, legítima, tornando

seus atos mais eficientes.

Para atingir tal desiderato, o Estado deve sobretudo viabilizar o

fortalecimento de um espaço público, através de vias de comunicação e diálogo,

abertas pelos novos mecanismos postos para tal fim no ordenamento jurídico

brasileiro. Por outro lado, cabe à sociedade civil26 empreender um longo processo

de aprendizagem calcado no diálogo e no controle social dos atos do poder

público, a fim de que faça valer efetivamente suas posturas.

Vale notar a recente criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico

e Social, sob a coordenação do Secretário de Defesa Econômica e Social, Tarso

Genro, como órgão de consulta da Presidência à sociedade civil, permitindo um

“canal institucionalizado de negociação de pactos entre diferentes atores

societários e o governo, em relação à agenda das reformas”27. Este conselho, em

que pese as críticas de usurpação das instituições democráticas, vem, ao

contrário, reforçar os mecanismos de concertação social no campo da

administração pública, tomando como espelho o bem sucedido modelo francês.

Nesse sentido, cabe ressaltar que a previsão de tal conselho possui na França

estatura constitucional, constando de seus artigos 69, 70 e 71:

Article 69. Le conseil économique et social, saisi par le Gouvernement, donneson avis sur les projets de loi, d’ordonnance ou de décret ainsi que sur lespropositions de loi que lui sont soumis.Un membre du Conseil économique et social peut être désigné par celui-ci pourexposer devant les assemblées parlementaires l’avis du Conseil sur les projets oupropositions qui lui ont été soumis.

Article 70. Le Conseil économique et social peut être également consulté par leGouvernement sur tout problème de caractère économique ou social intéressantla République ou la Communauté. Tout plan ou tout projet de loi de programme àcaractère économique ou social lui est soumis pour avis.

25 A maior sobrecarga de demandas aliada à maior conflituosidade social e à maior distribuição edesconcentração de poder nas sociedades democráticas e pluralistas são os fatores, que paraMoreira Neto, levaram à crise de governabilidade.26 Embora não seja objeto do estudo aqui analisar a função do Ministério Público, enquantoinstituição constitucionalmente destinada a fazer observar os valores da república, não se descurada sua importante atuação em prol de um espaço público, seja através do ajuizamento de açõescivis públicas para tutela de interesses coletivos e difusos, seja mediante cobranças sociais dasinstituições do poder público.27 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a Democracia”. O Globo, 06/03/03.

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Article 71. La composition du Conseil économique ou social et ses règles defonctionnement sont fixées par une loi organique.

3.1.Do Intervencionismo à Regulação

Fatores econômicos, como uma crise fiscal aguda, quando associados àsiniciativas de mudanças de paradigmas, geralmente transformam-se emimportante argumento político para a sua aceitação.

José Maria Machado Gomes

O Estado Moderno deve ser visto em suas duas distintas vertentes: o

Estado Liberal, assentado na liberdade de iniciativa, na propriedade privada e no

livre exercício da atividade econômica, que vigorou até o século XIX, e o Estado

Social, que, tanto na sua vertente do Estado de bem estar social, quanto na sua

vertente socialista, teve início no final do século XIX e perdurou até o início dos

anos setenta.

No Brasil, o século XX iniciou um modelo de intervencionismo

econômico que só viria a se modificar substancialmente com a Constituição da

República de 1988. Decerto, foi a crise na produção do café no início daquele

século, que levou o Estado a abandonar a postura do lassez faire, adotando uma

política de valorização cafeeira. Nesse sentido, José Maria Machado Gomes

ressalta que o “Acordo de Taubaté foi assinado apesar da oposição dos

banqueiros da casa Rothschild, que temiam não receber o pagamento das dívidas

passadas, e do próprio Governo brasileiro pressionado pelos banqueiros

ingleses”.28

Apesar dessas experiências intervencionistas, apenas com o fim da

primeira Guerra Mundial e com a quebra da Bolsa de Nova Yorque, em 1929, é

que o intervencionismo mostrou-se mais contundente, assumindo o Estado papéis

relegados aos particulares. A depressão mundial fez o Brasil notar que era

fundamental uma política de industrialização que tivesse por base a empresa

nacional, essencial para a sua independência econômica. O processo de criação

28 GOMES, José Maria Machado. “O Novo Paradigma Regulatório do Estado Brasileiro: fazercoisas novas ou velhas de uma forma nova?”, p. 24.

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das estatais implementou-se na década de 40, quando foram criadas a Companhia

Siderúrgica Nacional e a Companhia Vale do Rio Doce, dentre outras.29

Praticamente em todo o mundo ocidental, o fortalecimento do Estado

Social, sob a influência do Keynesianismo norte-americano, sugeriu um Estado-

interventor capaz de reduzir os ciclos de altos e baixos do mercado, temidos pelas

sociedades capitalistas.30 No Brasil não poderia ser diferente. Contudo, Luís

Roberto Barroso assinala que aqui, bem como em Portugal, o atraso na chegada

do Estado Liberal fez-se sentir também quando se tratou de implantar o Estado

Social. De fato, o Estado Patrimonial, “no qual se sobrepunham o público e o

privado, o imperium (poder político) e o dominium (direitos decorrentes da

propriedade)”, nunca se apagou em sua totalidade, permanecendo quer sob a égide

de um pretenso Liberalismo, quer sob a égide do Estado Social.31

Aliada ao crescente intervencionismo estatal, a progressiva substituição do

termo “administrado” por “usuário”, conforme ressaltado por Jacques Chevallier,

foi representativa de uma nova postura administrativa: colocado como

beneficiário das prestações estatais, o usuário sai da antiga posição de sujeição

face à administração pública. Aliás, a aparição concomitante, no vocabulário

jurídico, dos termos usuários e serviços públicos32, legitimou o crescimento

29 BARROSO, Luís Roberto. Introdução ao livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, p. 20.30 Na Europa, o surgimento dos regimes totalitários traduziram, na essência, a contrapartidamáxima do intervencionismo contra o liberalismo econômico.31 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio ao livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto.32 Segundo Odilon ANDRADE, diferenciam-se os serviços públicos dos serviços de utilidadepública pelo processo de contato com o cidadão: os primeiros são aqueles serviços que o Estadoimpõe, o cidadão sofre, e são assegurados mediante coerção. Já, os serviços de utilidade públicasão os que o Estado coloca à disposição dos cidadãos e que eles podem aceitar ou recusar, emqualquer caso, sem nenhuma conseqüência para as suas liberdades. Continua o autor afirmandoque a utilidade pública nada mais é que a utilidade individual generalizada, posta à disposição detodos. Nesse sentido, o autor observa que nem toda utilidade pública constitui objeto de serviço eenquanto nele não se transforme, conserva seu caráter privado. O caráter público, juridicamentefalando, lhe é conferido quando o Estado se incumbe de provê-la, diretamente ou por intermédiode concessionários. Serviços Públicos e de Utilidade Pública, p. 78.

Para Celso Antônio Bandeira de MELLO, o serviço público consiste em “toda atividadede oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados,prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público (...)instituído pelo Estado em favor de interesses que houver definido como próprios no sistemanormativo”. Curso de Direito Administrativo, p. 477.

Marçal JUSTEN FILHO e Cesar A. Guimarães PEREIRA assinalam que o que faz oserviço ser público é a sua publicatio, ou seja, a edição de norma que submeta o serviço a regimede direito público, atribuindo sua titularidade ao Estado. Isso não impede, segundo estes autores,que seja prestado em outro regime jurídico, como é o caso da concessão e da permissão. Para eles,a essencialidade e a compulsoriedade na prestação e na utilização do serviço não são obstáculos àsua concessão, pois que esta é forma de regulação da prestação de serviços públicos assegurada

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desmesurado de atividades prestadas pelo Estado, destinadas a assegurar o

interesse geral.

Nesse sentido, a ação administrativa era toda guiada, em tese, para a

satisfação dos usuários. O serviço público, ressalta Chevallier, mostra-se como a

caução do bom uso do poder e a garantia última da legitimidade administrativa.

Entretanto, essa pretensa emancipação do administrado, sob o signo de principal

beneficiário da atividade estatal centralizada, apenas representou uma nova forma

de dominação, bem mais sutil. Capturado pelas necesidades dos mercados, e não

o inverso, o usuário acaba por obedecer à sua lógica. A criação de “necessidades”

e a sujeição às leis impostas pelo mercado, ainda que centralizado pelo Estado,

são meticulosamente disfarçadas sob o manto do interesse público, entregue à

discricionariedade administrativa.

O malogro da exploração direta da atividade econômica pelo Estado,

calcada no modelo de serviços públicos, foi destacada já em 1937, por Odilon

Andrade, que descreveu com clareza admirável os problemas gerados por uma

administração excessivamente centralizada:

a) falta de interesse pessoal pelos resultados do serviço(...); b) organizaçãoburocrática, inseparável da gerência pelo Estado, é outra causa de fracasso(...); c)finalmente, e como causa das causas, a intervenção constante da politicagem, nãosó quanto ao preenchimento dos cargos, superlotação de empregados e suadisciplina, como também quanto ao funcionamento, pela acomodação do serviçoaos interesses locais ou particulares, com sacrifício dos gerais.(...)33

A concessão do serviço público era, naquela época, o principal

instrumento de que dispunha a administração para desincumbir-se da prestação

direta dos serviços de utilidade pública. Nesse sentido, Odilon Andrade, embora

reconhecendo a impossibilidade de o Estado prestar todos os serviços de que

necessitavam os usuários, percebe os inconvenientes da política de concessão, que

se traduz na apropriação do interesse público pelo privado, resultando no seu

desvirtuamento, e na dificuldade de conciliação entre os interesses do

concessionário e os do público a quem serve, que lhes são contrários por natureza.

constitucionalmente: a existência de maior relevância social do serviço apenas conduz àconsagração de metas e critérios mais estritos e rigorosos. “Concessão de Serviços Públicos deLimpeza Urbana”, p. 272.

33 ANDRADE, Odilon. Serviços Públicos e de Utiidade Pública, p. 87-8.

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Ou o Estado, nesse contrato, fica acima do particular, como poder público, e ocontrato não pode existir, ou a ele se equipara, para contratar, mas neste caso,despido do poder público, é um particular como qualquer outro, e o contrato quefizer nada tem com o direito público. O que não se concebe é a misteriosatransubstanciação por que o fazem passar, de príncipe a súdito, podendo tudoantes do contrato e nada depois dele, igualado ao concessionário no simples lancede uma assinatura.34

Como forma de resolver o impasse, o autor traz à baila a experiência

regulatória norte-americana, a qual, no entanto, considera incompatível com o

ordenamento jurídico brasileiro então vigente. De fato, o constituinte de 1934

limitara a intervenção estatal nas empresas concessionárias de serviço de utilidade

pública apenas à fiscalização e revisão de suas tarifas.

No Brasil, a impossibilidade de prestação dos serviços de utilidade pública

apenas pela administração direta, bem como o inconveniente das concessões

destas atividades a empresas privadas, que a subtraíam ao interesse público,

auxiliaram na consolidação de uma administração indireta, materializada

sobretudo na Reforma Administrativa de 1967. Esta sistematizou,

legislativamente, “a conceituação das entidades integrantes da administração

pública descentralizadas por devolução de poderes e, assim, dotadas de

personalidade jurídica própria (arts. 4º e 5º), nominadas como autarquia, empresa

pública e sociedade de economia mista(...)”. 35

Nessa época, notadamente nas décadas de 60 e 70, tornou-se mais visível o

incontornável processo de agigantamento do Estado, possibilitado pelo

crescimento desmesurado das empresas estatais, que chegaram, no âmbito federal,

ao número de 530 em 1981.36

O Estado, transformado em prestador de serviços, conferiu ao Poder

Executivo amplos poderes, outorgando-lhe diversos instrumentos normativos, tais

como decretos-leis - hoje medidas provisórias -, leis delegadas, regulamentos etc.

Esta concepção do Estado “(...) coloca em segundo plano o problema dos limites

do poder que constituíam a base do Estado liberal, preocupado com as

salvaguardas das liberdades individuais”.37 Assim é que o modelo centralizador38

34 Idem, p. 96.35 DIAS, Francisco Mauro. As transformações da esfera administrativa e o poder público, p. 14.36 Dados tomados da introdução que Luís Roberto Barroso dedicou à obra de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, intitulada Direito Regulatório.37 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,franquia, terceirização e outras formas, p. 25.

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do Estado Brasileiro, influenciado pelo modelo francês, levou, aos poucos, à

hipertrofia estatal39, o que foi possibilitado por processos de endividamento do

próprio Estado, contraídos por empréstimos em condições favoráveis à época.

Nos anos setenta, o esgotamento do modelo unitário gerou uma série de

discussões sobre a necessidade de redefinição do papel do Estado, centrando-se os

debates em duas ordens de idéias: o fato de que “os instrumentos de

compatibilização entre o mercado e o welfare state haviam aumentado o nível de

complexidade da sociedade, gerando (...) uma inflexibilidade burocrática(...)”40, e

a crença de que a origem dessa crise de ingovernabilidade estaria na

“(...)incapacidade do Estado de gerar, no âmbito administrativo, o consenso

necessário à criação de normas e instituições capazes de operar de forma

eficiente”41.

Nos anos 80, agudizou-se a crise das finanças públicas, que trouxe à tona a

incapacidade do Estado em alocar recursos na expansão e manutenção da infra-

estrutura. Às taxas de inflação crescentes juntaram-se as elevadas dívidas internas

e externas, que, somadas aos acontecimentos internacionais – o segundo choque

do petróleo, em 1979, a recessão econômica dos países capitalistas do “1o

Mundo”, elevação das taxas de juros no mercado internacional, aumentando

gastos com pagamento do serviço da dívida externa e, finalmente, a suspensão de

novos empréstimos ao Brasil pelo Sistema Financeiro Internacional -, levaram o

antigo modelo desenvolvimentista e centralizador ao colapso.42

Nesse sentido, José Maria Machado Gomes ressalta que, com o intuito de

combater a inflação e propiciar subsídios ao setor privado, adotou-se uma política

de defasagem das tarifas e preços das estatais, política esta que arruinou por

completo a situação financeira dessas empresas. Estas chegaram, assim, ao final

dos anos 80, muito endividadas e com dificuldade de se autofinanciarem. A crise

38 Falando sobre os males de uma excessiva centralização, Paulino José Soares de SOUZA, oVisconde do Uruguai, ressalta já no século XIX: “tende a multiplicar em demasia as rodas e aspeças da máquina administrativa, os empregados, as comunicações hierárquicas do serviço, apapelada, a escrita, as dúvidas e as formalidades. Tende a aumentar ultra modum a chaga dosempregados assalariados, e a despesa que trazem seus ordenados, gratificações e aposentadorias”.Visconde do Uruguai, p. 44139 O fim da segunda guerra mundial trouxe como conseqüência uma atuação estatal maiscontundente, para evitar os possíveis “abusos” do mercado. O Estado brasileiro reflete essa posturaatravés de uma feição empresarial centrada essencialmente nos serviços de infra-estruturas.40 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 1.41 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 1.42 Idem, p. 72-73.

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financeira internacional de 1982-1983 levou ao colapso as economias, pois os

Estados, diante das elevadas taxas de juros dos empréstimos internacionais,

tiveram de romper sucessivamente com o Fundo Monetário Internacional,

gerando situação de inadimplência profunda.

Alexandre Santos de Aragão assinala, nesse sentido, como foi que, até

meados dos anos oitenta, o Estado Democrático assumiu um modelo fortemente

interventivo e redistributivo, tomando para si largos setores da economia.

Acreditava-se que, como “(...)numa sociedade altamente diferenciada, os

indivíduos estão em forte medida dependentes do fornecimento destes bens de

consumo elementares(...)”, seria de todo indesejável “(...)confiar uma tal

administração das elementares necessidades existenciais, tendencialmente

monopolísticas, a empresas privadas”.43 Contudo, não é despiciendo sublinhar as

sábias palavras de Luís Roberto Barroso, para quem o Estado brasileiro nunca foi

verdadeiramente liberal, nem social e muito menos socialista. Foi um Estado do

atraso social, um “favelizador ideológico”, que assumiu como norte de sua

atuação a burocracia e a ineficiência: um Estado que contraía empréstimos no

exterior para financiar uma burguesia industrial e financeira, a qual,

paradoxalmente, quer dele agora se livrar.44

A superação desse Estado afigurava-se inevitável, e tal foi feito em prol de

um Estado-regulador. Esta direção mostrou-se necessária para “permitir a

liberdade de atuação dos agentes econômicos e incentivar o crescimento auto-

sustentado”45. Parte-se da premissa de que a sociedade pode resolver grande parte

de seus problemas de uma forma mais eficiente, descentralizada e menos custosa.

Redimensiona-se o postulado da imperatividade estatal, a fim de se alcançar um

equilíbrio entre a coerção e o consenso, “(...) dando surgimento ao conceito do

público não estatal e, com isso, a uma desmonopolização do poder”.46

O neoliberalismo, adotado como alternativa de superação da crise do

modelo providencialista, diferencia-se substancialmente do liberalismo clássico

por admitir algum controle sobre a concentração do poder econômico que seja

prejudicial ao próprio mercado. Esse modelo assinala, contudo, nos moldes do

43 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 63.44 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio ao livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto.45 BENJÓ, Isaac. Fundamentos de Economia de Regulação, p. 17.46 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 41.

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liberalismo, a necessidade de o Estado respeitar a liberdade de iniciativa e o livre

exercício da atividade econômica, colocados como princípios fundamentais do

sistema econômico nacional, os quais devem ser contrabalançados com o extenso

rol de direitos fundamentais consagrados na Constituição, mormente com o

dispositivo que assegura a dignidade da pessoa humana. O Estado consolida,

portanto, uma postura subsidiária, necessária quando se trata de equilibrar a

balança dos interesses sociais. Segundo Di Pietro, o princípio da subsidiariedade

insere-se na tentativa de colocar o Estado em novos trilhos:

(...)cabe a este promover, estimular, criar condições para que o indivíduo sedesenvolva livremente e igualmente dentro da sociedade; para isso é necessárioque se criem condições para a participação do cidadão no processo político e nocontrole das atividades governamentais.47

As reformas recentes por que passou o Estado brasileiro podem ser

sintetizadas, de acordo com Luís Roberto Barroso, em três importantes

transformações estruturais: a primeira adveio da Emenda Constitucional n. 6, de

15.08.95, a qual suprimiu as restrições existentes ao capital estrangeiro na ordem

econômica nacional; a segunda, efetuada pela Emenda Constitucional n. 5, de

15.08.95, foi responsável pela flexibilização dos monopólios estatais; finalmente,

a terceira efetivou-se mediante a edição da Lei n. 8031, de 12.04.90, que instituiu

o Programa Nacional de Desestatização. Além dessas modificações, acrescente-se

a criação das agências reguladoras independentes, efetuadas mediante leis

específicas.48

Cumpre frisar que todo esse esforço em suplantar a forma de Estado-

providência insere-se na tentativa de expurgar a forma burocrática de organização,

baseada nos “(...)princípios da hierarquia, especialização, impessoalidade,

controle formal, durante muito tempo considerada ideal para a Administração

Pública”.49 Para o intento, promoveu-se um enxugamento do Estado, a fim de que

apenas o seu núcleo estratégico, constituído pelos Poderes do Estado, pelo

Ministério Público e pelos órgãos de assessoramento direto ao chefe do Poder

Executivo, fosse regido pela forma típica que rege a administração pública. Aliás,

47 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,franquia, terceirização e outras formas, p. 28.48 BARROSO, Luís Roberto. Introdução ao livro Direito Regulatório, de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, p. 23-24.49 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,franquia, terceirização e outras formas, p. 32.

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como ressalta Di Pietro, isso é o que consta do Plano Diretor da Reforma do

Estado- MARE.50

O Plano Diretor da Reforma do Estado, baseando-se nas atividades-fim da

Administração Pública, dividiu a atuação do Estado em quatro setores, a saber: o

núcleo estratégico, acima referido; as atividades exclusivas, que compreendem as

atividades que só o Estado pode prestar; os serviços não exclusivos, setor em que

o Estado atua simultaneamente com outras organizações privadas ou públicas não

estatais, tais como os serviços sociais do Estado; e o setor de produção de bens e

serviços para o mercado, que corresponde à área de atuação das empresas.

Atento a todas essas modificações, Moreira Neto ressalta o fenômeno de

transformação do direito administrativo, que resulta em um re-equilíbrio entre o

direito público e o direito privado. Nesse contexto, avultam de importância as

idéias correlatas de parceria e de integração.

A idéia de parceria na administração pública traz em si uma reelaboração

das funções do Estado, que agora as exerce em conjunto com a sociedade: a

delegação dos serviços públicos, por meio da concessão e permissão; o fomento à

iniciativa privada de interesse público, via convênio ou contrato de gestão; a

forma de cooperação do particular na execução de atividades próprias da

administração, pelo instrumento da terceirização; o instrumento de

desburocratização e de instauração da chamada administração pública gerencial,

por meio dos contratos de gestão. Todas essas formas de parceria indicam um

novo rumo a ser tomado pelo Estado, agora não mais prestador de serviços

públicos, mas regulamentador de seu exercício.

No Brasil, a privatização, como mecanismo para a reforma do Estado, teve

início após a promulgação de sua Constituição da República de 1988. Antes disso,

porém, através do Decreto n. 91991 de 28 de novembro de 1985, o governo

aprovou uma nova legislação, incrementando os procedimentos privatizantes,

reestruturando-o, a fim de torná-lo mais amplo e conferir-lhe maior transparência.

Também o Decreto 95886 de 29 de março de 1988 dispõe sobre o processo de

privatização e desregulamentação.

O Programa Nacional de Desestatização, no entanto, somente foi

implementado em 1990, pela Lei nº 8031, regulamentada posteriormente pelos

50 Idem, p. 33.

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Decretos 99463/90 e 99464/91. O Programa passa a ser visto como peça

essencial das reformas estruturais a serem realizadas no país.

Cumpre frisar, como o faz Di Pietro, que a privatização, considerada em

sentido amplo, abarca todos os instrumentos de que o Estado se serve para reduzir

a máquina administrativa. Daí porque todas aquelas formas de parceria sejam

encaradas como privatização lato sensu ou desestatização, como prefere Marcos

Juruena Villela Souto, inserindo-se na Reforma do Estado, orientada para os

valores da eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos “(...) e pelo

desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações”.51

Para finalizar, cabe ressaltar o paradoxo da desestatização, que

representou, em alguns setores, uma forma de publicização, pois devolveu à

sociedade “feudos apropriados privadamente”.52

3.2.O Estado Brasileiro pós-constituição de 1988

O processo que levou à aprovação da Constituição da República

Federativa de 1988 foi bastante peculiar: os trabalhos da Assembléia Constituinte

marcaram-se pela influência exercida pelos comunitários brasileiros, que,

inspirados pelo constitucionalismo comunitário português e espanhol,

envolveram-se no debate de “(...)como seria possível conformar uma sociedade

justa e uma estrutura normativa a ela adequada”.53

O esforço empreendido pelos comunitários brasileiros rendeu frutos que se

averiguam da leitura de diversos dispositivos da Carta Constitucional:

(...) em seu preâmbulo, quando identifica a igualdade e a justiça como valoressupremos da sociedade brasileira; ao definir os objetivos e fundamentos doEstado Brasileiro, destacando a dignidade da pessoa humana e a construção deuma sociedade justa e solidária; ao adotar diversos institutos processuais queasseguram o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição, revelando umcompromisso entre a soberania popular com a democracia participativa (...).54

51 Idem, p. 42.52 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio do livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto.53 CITTADINO, Gisele. Op. Cit, p. 454 Idem, p. 228.

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A conciliação de interesses, marca não só da própria Constituição, mas

também, e principalmente, de seu processo de elaboração, é de basilar importância

para a compreensão do contexto em que surgiram as agências reguladoras, que

buscam sua legitimidade através de uma solução de compromisso com os diversos

interesses sociais. A consensualidade, marca principal desse novo papel da

Administração, foi reforçada pela crescente importância do princípio da

subsidiariedade, de forma que cada vez mais o entendimento é no sentido de que o

Estado só deve imiscuir-se naquilo em que sua presença se mostrar efetivamente

imprescindível.

Por outro lado, deve-se ressaltar que a unidade do ordenamento jurídico é

um dos paradigmas do direito moderno e assume sua força no texto

constitucional. A Constituição compromissória, em meio à diversidade de valores

e idéias espraiados na sociedade, acolhe normas potencialmente colidentes, as

quais são resolvidas mediante o recurso a técnicas de ponderação aplicadas ao

caso concreto, tendo sempre como norte o princípio da dignidade da pessoa

humana, razão de ser de todo o ordenamento jurídico.55

Ao assumir esta condição, o princípio da dignidade da pessoa humana

encontra concretização nos demais princípios que o fazem valer na prática: diante

de uma colisão entre princípios, aquele que melhor o atender no caso concreto

será considerado o mais adequado. Com isso, legitima-se uma série de outros

princípios, resguardados de possíveis esvaziamentos substantivos, autorizando o

ingresso do ordenamento jurídico brasileiro na constelação pós-positivista:

Esta nova constelação do pensamento jurídico, denominada pós-positivista (...) émais afeita à realização dos ideais de justiça política e social e, também, maiscomprometida com o efetivo funcionamento do Estado Democrático de Direito,especialmente no que toca às atividades concretas de interpretação e aplicação dodireito. 56

A Constituição de 1988 representou, nas palavras de Daniel Sarmento,

“um marco essencial na supressão do autoritarismo e na restauração do Estado

55 SARMENTO, Daniel. A ponderação de Interesses na Constituição Federal, p. 25. Nessesentido, o autor contrapõe-se a Robert ALEXY, para quem não existe um princípio absoluto, sendotodos relativos, apenas podendo ser dimensionados no caso concreto. Daniel SARMENTO afirmaque, não obstante os princípios sejam relativos, existe um princípio que se encarrega de conferir aunidade e coesão ao ordenamento jurídico, e que serve como norte ao intérprete: trata-se doprincípio da dignidade da pessoa humana.56 MAIA, Antônio Cavalcanti. “Os Princípios Gerais de Direito e a Perspectiva de Perelman”. P.16.

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Democrático de Direito, timbrado pela preocupação com a promoção dos direitos

humanos e da justiça social no país”.57

Diante desse quadro, cumpre salientar a importância do princípio da

participação como concretizador da dignidade da pessoa humana, uma vez que a

coloca como efetivo sujeito de direitos perante o Poder Público.

Na administração pública, a participação assume a função essencial de

legitimadora de suas atividades, representando, assim, um marco no modelo de

democracia participativa. Insere-se no que Habermas chama de modelo

procedimental e participativo do Direito: entendido como sistema de integração

social, o direito permite a institucionalização formal de procedimentos discursivos

racionais formadores de opinião, que possibilitam uma articulada esfera pública.

Esta é que, segundo o filósofo, poderá fazer frente às incessantes tentativas de

colonização do mundo da vida pelos processos de burocratização e monetarização.

Por outro lado, segundo adverte Habermas, as sociedades pluralistas

caracterizam-se pela multiplicidade de subsistemas, que tendem a uma crescente

especialização. Paradoxalmente, a crescente especialização dos subsistemas traz a

idéia de auxílio de outras áreas do conhecimento, ou seja, de

interdisciplinariedade. Daí porque, segundo Alexandre Santos de Aragão, “quanto

mais o Direito conhecer o campo a ser regulado, mais chances terá de propiciar

uma regulação eficiente e dotada de maior efetividade”.58

Nesse sentido, frise-se que a economia, por ser extremamente imprevisível

e dinâmica, é um subsistema com enorme capacidade de se auto-regrar, o que

deve ser atenuado pela influência decisiva do direito, através de uma regulação

eficiente, que conheça os postulados econômicos. Decerto, a possibilidade de

estatuição de normas abertas e flexíveis permite ao direito inserir em seus âmbitos

aspectos de elevado conteúdo técnico-especializado do subsistema regulado.

Assim é que, segundo Aragão,

o Direito Público da Economia deve ser visto como uma constante busca doponto de equilíbrio entre, de um lado, a necessidade de regulação suficientementeflexível para atuar sobre uma realidade instável e tendencialmente autônoma e, deoutro, a conservação de um mínimo de previsibilidade e coercitividade sem a

57 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, p. 58. O autorassevera que “o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em termos jurídicos, a máximakantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nuncacomo um meio.” (Ob. Cit., p. 59)58 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 92

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qual perderia o caráter jurídico. Trata-se de manter a inevitável instabilidade emum nível razoável. 59

Contudo, a fluidez das normas jurídicas adotadas em determinados setores

poderia levar a decisões políticas sem estabilidade, o que é remediado pela criação

de entes reguladores, autônomos em relação aos agentes políticos do Estado. 60 O

modelo implantado com as agências reguladoras representou, em certa medida, “a

perenização das finalidades públicas traçadas pela lei do setor, que não mais ficam

– ou não deveriam ficar – variando conforme o momento político fugaz”. 61

Em suma, a solução compromissória traduz-se na seguinte equação: se por

um lado, a Constituição da República de 1988 determinou uma atuação

empresarial do Estado bastante limitada, por outro, aumentou as hipóteses de

fiscalização e regulação do Estado não só na execução dos serviços públicos,

como também no exercício das atividades econômicas stricto sensu. O regime

implantado, portanto, consagrou o Estado regulador da atividade econômica,

papel este desenvolvido, em grande parte, pelas agências reguladoras. É de se

notar ainda que a adoção do modelo regulador adveio da opção política, presente

em quase todo o mundo, de desestatizar a economia como forma de superar

problemas com o antigo regime centralizador. Nesse sentido, ressalta José Maria

Machado Gomes que,

(...)apesar do reconhecimento do papel da retórica em relação aos modelos dereforma, o debate político, institucional e administrativo nos anos 90 trouxe umnovo enfoque para a atuação do governo e da sociedade. Este enfoque se pautapela visão da reforma do Estado como um processo que se destina não apenas aapoiar ações voltadas para o aparato estatal, mas que envolvam outros atorespolíticos e sociais, como o setor privado e a sociedade civil, com o objetivo deajudar na formulação e implementação de políticas públicas. 62

Gomes afirma que “existe uma crise do Estado que afeta todas as

instâncias de governo (...)”, sendo certo que esta crise, “(...) deve ser enfrentada

com a remodelação do Estado(...)”.63 A reforma estatal passa, portanto, por

processos diferenciados e conexos, devendo-se destacar as seguintes tendências

institucionais da Administração Pública no Brasil, nas palavras de Diogo de

59 Idem, p. 96.60 Idem, p. 96.61 Idem, p. 218.62 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit. P. 100 .63 Idem, p. 99.

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Figueiredo Moreira Neto: a despolitização, a pluralização de interesses, a

subsidiariedade e a delegação social.64

Tanto na descentralização institucional ou autárquica quanto na

descentralização social, a “tônica da modernidade”65 é a participação do

administrado no controle, fiscalização e execução de serviços cometidos ao

Estado.

Cumpre frisar ainda a importância que assume, nos dias atuais, o princípio

da motivação dos atos administrativos, como corolário de princípios mais amplos

assegurados na Constituição, como o do devido processo legal, o da ampla defesa

e o do contraditório - ex vi do disposto no artigo 5., LV da Constituição -, que

remetem inevitavelmente a uma Administração Pública calcada na transparência e

razoabilidade de seus atos e decisões. A importância do princípio é de tal monta

que Moreira Neto já fala em uma “era da motivação” do direito administrativo.

3.3.A Motivação dos Atos Administrativos: Um Modelo Administrativomais Democrático

A Administração Pública possui como pilar fundamental de sua atuação o

tão confuso conceito de interesse público. Para Celso Antônio Bandeira de Mello,

o Estado é o “representante axiomático dos interesses públicos”66, cuja satisfação

constitui o serviço público. Alçado a padrão de legitimidade dos atos

administrativos, por força da adoção, no artigo 1º da Constituição da República de

1988, de um “Estado Democrático de Direito”, o interesse público passou a

ocupar lugar de primazia nos fins colimados pela Administração Pública.

O interesse público, “qualitativamente diverso do interesse individual”, na

expressão de Moreira Neto, define-se pelo esforço conjunto de legitimidade e

legalidade, os dois pedestais que erguem todo o edifício jurídico no direito

administrativo. 67 À legitimidade cabe a captação política dos interesses da

64 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 152.65 Idem. Op. Cit, p. 152.66 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Concessão de Serviço Público. Apud. PEDROSA,Henrique Emanuel Gomes. Privatizações sob a Ótica do Direito Privado: desigualdade contratuale fiscalização, p. 95.67 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, p. 12.

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sociedade, enquanto que à legalidade incumbe a cristalização jurídica desses

interesses.

A submissão da ação política ao Direito trouxe, como imediata conseqüência, aunificação dos interesses sociais politicamente definidos e dos interesses sociaisjuridicamente definidos de nossa sociedade, surgindo o conceito de interessepúblico com as características que hoje conhecemos(...) 68

O reconhecimento de uma ordem jurídica legítima, ademais de legal,

implica uma forma mais compromissada de agir do administrador público,

caracterizada, de um lado, pela obrigatoriedade de fundamentação expressa de

seus atos e, de outro lado, pela participação efetiva dos cidadãos na tomada de

decisões. Na verdade, estes são os contrapontos de uma mesma balança: quanto

maior o grau de consensualidade do ato administrativo, menor a necessidade de

fundamentação, já que o reconhecimento dos participantes como autores e

destinatários daquele ato legitima-o diretamente. Em contrapartida, é sobretudo

nas decisões unilaterais tomadas pela Administração Pública, onde mínima é a

participação dos administrados, que a fundamentação de seus atos afigura-se

essencial.

Cabe frisar que num Estado Democrático de Direito, não há apenas um

interesse público, mas diversos interesses públicos, cujos parâmetros não podem

ser delineados aprioristicamente. Daí a dificuldade de se ter o interesse público

expressamente definido em lei, abrindo um largo espaço para a utilização da

discricionariedade administrativa. Esta traduz-se assim no poder-dever da

Administração de adequar o conteúdo legal cristalizado – o interesse público

especificamente definido na lei como finalidade do agir administrativo - às

situações concretas, abrindo um leque de possibilidades ao administrador, que se

origina ou expressamente da norma jurídica ou dos conceitos jurídicos

indeterminados de valor dela constantes.

Marino Pazzaglini Filho ressalta que o que há não é propriamente ato

discricionário, mas um juízo ou decisão discricionária que antecede à prática do

ato administrativo.69 E, acrescenta, “mesmo nos atos denominados vinculados,

68 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, p. 13.69 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit., p. 78.

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pode remanescer prévia apreciação discricionária do administrador, quanto ao

momento oportuno da prática do ato administrativo regrado(...)”.70

A discricionariedade está para o motivo e o objeto da atividade

administrativa, porém não para a finalidade e competência, que se encontram

vinculadas à estatuição legislativa. Contudo, Pazzaglini Filho observa que, em se

tratando da finalidade mais geral – o interesse público -, pode haver o uso de

expressões jurídicas indeterminadas de valor, que reclamarão a integração via

juízo discricionário. No mais, no que tange à finalidade específica do ato, este será

sempre vinculado, pois que decorrente do comando normativo.71

A finalidade específica do ato, definida em lei, serve então como balisa

para a atuação discricionária: “a discricionariedade não pode ser exercida nem

contra a finalidade, nem mesmo sem ela, mas, apenas, em favor dela”.72 Assim é

que, somente quando atendida a finalidade a que se destina é que se pode dizer

que o ato tem mérito, enquanto conseqüência da atuação discricionária. O mérito

é, segundo Moreira Neto, o correto exercício da discricionariedade, ou seja, o

exercício que se encontre dentro dos limites do legal e do legítimo.

Por outro lado, o limite do legítimo encontra-se materializado

teleologicamente73 no princípio da razoabilidade, que se preocupa em verificar se

a integração discricionária de uma norma pela administração pública atende

satisfatoriamente aos interesses públicos.74 Neste sentido, importantes as

contribuições de José Carlos Vieira de Andrade que, tratando do assunto,

considera que a integração discricionária do interesse público deve se pautar num

discurso racional, que possibilite um convencimento da adequação do instrumento

escolhido:

A procura discricionária da melhor solução para a pacificação do interessepúblico pela Administração, apesar de não se orientar exclusivamente porcritérios de justiça, deve assumir em certa medida a racionalidade do discursojurídico-normativo, produzindo igualmente uma fundamentação que dê umajustificação “interna” e “externa” da decisão- isto é, que não pretende mostrar

70 Idem, p. 80.71 Idem, p. 98.72 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, p. 34.73 Neste sentido, ver Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO. Legitimidade e Discricionariedade.74 MOREIRA NETO afirma que na lógica do razoável, diferentemente, da lógica do racional,interesses e razões são dados apenas experimentalmente referenciáveis, sujeitos a valoraçõessubjetivas. É uma lógica para decidir e não para conhecer.

A origem dessa orientação encontra-se na jurisprudência sociológica, desenvolvida emfins do século XIX, principalmente pelos expositores da jurisprudência dos interesses,substituindo-se a preocupação formalista pelo primado dos interesses tutelados.

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apenas a legitimidade das conclusões, mas também a validade daspremissas(...).75

O princípio da razoabilidade, consagrado num primeiro momento pelas

doutrinas constitucionalista e administrativista, e posteriormente pela Lei 9784/99

(Lei do Processo Administrativo Federal), traz para o bojo da Administração

Pública uma necessidade de motivação de seus atos, fundada num discurso

racional. A aferição da razoabilidade passa pela possibilidade de análise das

razões levadas em conta pela Administração Pública na tomada de decisão. Nesse

sentido, vislumbra-se como o modelo adotado pela Administração Pública

converge com o modelo argumentativo, acima descrito em suas principais

vertentes.

No Brasil, a motivação expressa dos atos administrativos apenas encontrou

guarida legislativa com a edição da Lei n. 9784/99, que a consagra para os atos

administrativos eminentemente decisórios. É o que se verifica da leitura do seu

dispositivo 55. Contudo, desde a promulgação da Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, que exige, no inciso LV do artigo 5o., a ampla

defesa e o contraditório para os processos administrativos, pode-se afirmar que o

princípio da motivação encontra-se presente. Isso porque não se concebe o

exercício correto de tais direitos assegurados como fundamentais pela

Constituição sem que se possa ter acesso às razões que nortearam a decisão

administrativa. A não ser assim, seria fazer letra morta de um dispositivo

constitucional de maior importância.

Na doutrina portuguesa, José Carlos Vieira de Andrade assinala a

importância da motivação dos atos administrativos como propulsora de uma

postura mais responsável e ética do administrador público: para o autor, a simples

existência da obrigação de motivar, que implica um mais acentuado controle

posterior de seus atos, traz ao administrador uma preocupação maior quanto à

aceitabilidade de suas decisões. Assim é que, mormente nos casos de decisões não

concertadas, ou seja, naqueles casos em que não se observa substancialmente a

participação dos interessados, é que sobressai de importância uma mais minuciosa

motivação, condizente com o interesse público perseguido. Trata-se aqui de uma

necessidade de convencimento imposto ao administrador público, que, no

75 ANDRADE, José Carlos Vieira de. O Dever da Fundamentação Expressa de ActosAdministrativos, p. 16-17.

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exercício da sua discricionariedade, deve mostrar à sociedade que atendeu da

melhor forma possível ao interesse público.

Aliás, mesmo nas áreas típicas de emprego do ato administrativo(...)- afundamentação é especialmente valiosa nas hipóteses em que a participação dosparticulares no procedimento (consulta, audição , concordância ou outro tipo deintervenção) não se verifica ou não se mostra eficaz, ou quando as decisõesoriginam situações de desvantagem ou de desigualdade: isto é, sempre que porqualquer motivo é mais evidente o modelo de poder-obediência.76

A necessidade de fundamentação externa uma conformação do discurso

administrativo como público, o que é de fundamental importância numa

administração que reavalia todas as suas relações público-privado, através da

constatação da necessária complementação entre ambos. A reformulação público-

privado passa ainda pela concepção neoliberal do Estado, que se transforma cada

vez mais em um Estado regulador, como que um árbitro entre os diversos

interesses em jogo.

Ainda sobre a importância da motivação expressa dos atos administrativos,

Andrade pondera que :

(...) a primeira função do imperativo de fundamentação se cumpre logo noprocedimento decisório, no momento da formação da vontade administrativa(...)Na ausência de qualquer preconceito, parece adequado reconhecer que o primeirointeresse servido pela obrigatoriedade de fundamentação, sobretudo quandocontextual, há-de ser, pela ordem natural das coisas, a correção jurídica ou aracionalidade da própria decisão administrativa. (...) A proteção através docontrole vem logicamente depois, como garantia de segunda linha dalegitimidade ou retitude da decisão. Ótimo seria, contudo, que o controle fosseapenas uma possibilidade e que a repressão não tivesse de existir, por a decisãoda Administração ter sido ponderada e, conseqüentemente –pressupõe-se - ,tomada em ordem à realização do interesse público.77

Vale frisar, como o faz o autor supra-citado, que a obrigação expressa de

motivação dos atos administrativos surge num contexto de revalorização do

direito formal, procedimental, em meio a um cenário marcado pela necessidade

premente de adequação dos atos administrativos aos conteúdos legais. Essa

revalorização do direito formal é marcada não apenas por uma necessidade

prática, mas também “(...) detecta-se a influência da tradição jurídica anglo-

saxônica, que sempre conferiu um papel próprio e relevante ao procedimento (due

process), bem como uma diferenciada mas convergente produção teórica que

76 Idem, 17-18.77 Idem, p. 72-74.

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enfatiza as idéias de participação e de legitimação procedimental no sistema

democrático de decisões públicas”78.

Exsurge, como afirma Moreira Neto, a idéia de processo como

instrumento de legitimação, fruto da racionalidade argumentativa.79 Nesse sentido,

deve-se destacar a importância da obra de Habermas, que, ao propor um modelo

democrático procedimental como paradigma a ser seguido pelo direito, consagra a

importância das garantias formais de participação democrática nos processos de

tomada de decisão, o que se liga diretamente com a questão da motivação dos atos

do poder público. Na medida em que satisfaz, dentre outros objetivos, como os

acima notados, à exigência de transparência, a motivação traz consigo os germes

para uma administração mais participativa, abrindo à sociedade a possibilidade de

interferir, via judiciário ou espaço público, em seus atos. Por outro lado, afirma

Andrade, essa revalorização do direito formal embasou-se no sistema de direitos

fundamentais consagrados nas constituições a partir, fundamentalmente, de Peter

Häberle, em cuja concepção de status activus processualis, “(...)passou a

reconhecer-se nos direitos fundamentais materiais um “lado processual”, cuja

realização prática era condição de efetividade da respectiva proteção jurídico-

constitucional”80.

Convergiram, portanto, teoria e prática, para reconhecerem na motivação

dos atos do poder público um instrumento capaz de fornecer inúmeras

contribuições para uma praxis jurídica e social mais democrática, calcada nos

princípios da transparência, da juridicidade dos atos administrativos, da

legitimidade, da razoabilidade, da eficiência, da participação e da

consensualidade. Tais princípios não guardam entre si uma relação de

anterioridade lógica, mas se imbricam de forma extremamente complexa, muitas

vezes se fazendo sentir antes mesmo de seu reconhecimento expresso. O princípio

da motivação, embora também entre nesse jogo, parece se relacionar de uma

forma muito íntima com todos os outros, guardando um sentido peculiar para uma

administração pública mais legítima e consensualista, calcada na democraticidade

de sua atuação. Em suma, a motivação expressa das decisões administrativas,

segundo Andrade, significa “a imposição de um dever que pressupõe uma

78 Idem, p. 185-186.79 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 156.80 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit, p. 189.

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autonomia responsável: o dever de dar conta à comunidade da razão de ser dos

seus atos será o sinal de que a função administrativa integra uma modalidade

autônoma da realização do Estado de Direito material”81.

A possibilidade de um espaço público influenciar decisões político-

administrativas parece passar, pois, por um modelo administrativo baseado no

princípio da motivação de seus atos, garantidor de uma atuação responsável,

controlada e transparente. Importa, assim, numa rearticulação público-privado,

reconhecendo-se a necessidade de as decisões administrativas, enquanto decisões

públicas, serem motivadas, para colocar-se ao alcance de todos os possíveis

interessados.

3.4A Política Desestatizante: Surgimento das Agências Reguladoras

A rearticulação público-privado faz-se sentir no Brasil com toda a sua

força principalmente quando se trata de colocar em prática os postulados da

Reforma do Estado. Mariane Sardenberg Sussekind ressaltou como as novas

relações entre estado e sociedade trazem implicações nas fronteiras clássicas entre

o direito privado e o direito público. Exemplos dessa tendência são encontrados

nos crescentes processos de privatização do público e de publicização do

privado.82

Particularmente em relação ao processo de privatização do público cabe

frisar que “a generalização do recurso às técnicas contratuais por parte da

administração pública resulta de um processo histórico lento(...)”83, marcado

substancialmente pela participação dos administrados e por uma busca de

consenso.

A tradicional dicotomia direito público – direito privado girava em torno

da discussão do primado do interesse público sobre o privado ou vice-versa.

Porém, inserida num contexto consensualista ou concertado da administração

pública, essa distinção parece esvaziar-se profundamente: não se trata mais de

primado de um sobre o outro, senão de conciliação de um com o outro,

81 Idem, p. 399.82 SUSSEKIND, Mariane Sardenberg. “Atuação do Estado e Produção do Direito: papel dasagências reguladoras independentes”, p. 17.83 Idem, p. 20.

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ultrapassando as barreiras da antiga dicotomia, que se perfez historicamente. A

introdução do conceito de “Estado-parceiro” ou “Estado-interlocutor” traduz uma

nova forma de atuação administrativa, que se coloca agora em relação de paridade

com a sociedade. Isso reflete “(...) uma total inovação em face da tradicional

lógica autoritária do instrumental administrativo”.84

A separação entre a política e a administração, nunca existente em sua

inteireza no Brasil, tornou-se premente para superar o gigantismo de uma

administração pública que, confundida com o governo, passava a açambarcar

todas as propostas de um novo governo, sem se desfazer das antigas. A esse

respeito, vale frisar as palavras de Visconde do Uruguai:

Não há país em que a administração esteja mais confundida com a política do queo Brasil, e onde menos tenha feito a legislação para distingui-las e separá-las .(...) Tudo ressombra política e é considerado pelo lado político. A imprensa seocupa de política; todas as discussões nas Câmaras e fora delas são políticas etêm relação com a política (...).85

A ausência de separação entre as duas esferas reflete sobremaneira o modo

como se concebe a administração pública, passando a ser “um simples e cego

instrumento da política(...)”.86 Enfraquecidos os institutos administrativos, fica

mais fácil à política sobrepujar a administração sempre que isto lhe for

conveniente. Nisto, a administração pública brasileira diferencia-se

essencialmente da francesa, que prima pela organização das instituições

administrativas, que conseguiram manter-se a despeito das revoluções que se

operaram no seio de sua sociedade. No Brasil, a cada governo oberva-se uma

modificação da postura administrativa, inteiramente subordinada aos preceitos

políticos do momento. Era preciso um modelo que, por mais legítimo, fosse mais

estável, capaz de se consolidar em meio à cambiante sociedade pluralista.

Esse modelo veio a ser o modelo do Estado regulador, que, através da

criação de entes reguladores autônomos, pretende regular as atividades de

interesse público de forma separada dos influxos políticos do momento. Cabe

frisar que no modelo intervencionista do Estado de bem estar social, incrementado

pela criação de entes da administração indireta, era de somenos importância a

atividade reguladora estatal, pois que a Administração Pública acabaria por

84 Idem, p. 20.85 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 95.86 Idem, Ibidem.

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regular suas próprias atividades. As estatais, nas palavras de Moreira Neto,

“gozavam de relativa autonomia técnica para prestar os serviços públicos que lhes

eram delegados e, por isso, considerava-se supérfluo e redundante manter

controles estatais específicos sobre seu desempenho”. Ocorre que, conforme

ressaltou o administrativista, as empresas estatais acabavam por desenvolver uma

“(...) autonomia de fato e uma burocracia própria que as afastavam da prossecução

dos interesse públicos e acabavam servindo de instrumento de parasitismo e de

privilégios” .87

O modelo centralizador da administração pública trouxe consigo os

germes da sua própria destruição, mormente quando à centralização política

juntou-se a administrativa. Vale frisar as palavras de Visconde do Uruguai, no

sentido de que tal modelo:

(...)põe os cidadãos na dependência imediata do poder central, em negócios nosquais pode essa imediata dependência escusar-se. Um governo bem organizadonão deve governar tudo diretamente, e substituir em todo e por tudo a suainiciativa, ação e atividade a de todos. Há muitos assuntos nos quais a ação dointeresse particular ou local é mais ativa, mais pronta, mais eficaz, maiseconômica do que a do governo (...) Em lugar de fortificar o poder, enfraquece-o,tornando a sua missão cada vez mais complicada e onerosa.88

O intuito de ultrapassar todas essas dificuldades empurrou o Brasil rumo a

uma Reforma do Estado que questionou os próprios fundamentos da

administração pública: diminuindo-se suas atividades, o que se pretendeu foi uma

valorização de seus institutos, voltados agora, fundamentalmente, para o núcleo

considerado estratégico. Esse caminho, conforme assinalado, foi aberto por uma

concepção reguladora do Estado, que, segundo Marcos Juruena Villela Souto,

aumenta “a oferta e a qualidade na prestação dos serviços, criação de

oportunidades atraentes de investimento e de desenvolvimento tecnológico e

industrial, dentro de um ambiente competitivo e harmônico com as metas de

desenvolvimento social do país”.89 Segundo Alexandre Santos de Aragão,

A superação da oposição público/privado, conjugada com a “despolitização” deuma série de funções estatais, leva a o que JACQUES CHEVALLIER denominade “ruptura do monolitismo de uma Administração que evolui para a adoção de

87 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 146.88 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit., p. 442.89 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 109.

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um modelo policêntrico, caracterizado pela coexistência de vários centros dedecisão e responsabilidade90

No Brasil, a Reforma do Estado desenvolveu-se junto à idéia de que era

necessário desestatizar. Embora não atrelada necessariamente ao paradigma

regulatório, o fato é que, no Brasil, a relação entre privatização91 e regulação é

quase que embrionária. Infelizmente, porém, o processo de privatização antecedeu

a consolidação de uma postura regulatória suficientemente aparelhada para conter

os abusos deste processo. Interesses escusos de grandes capitais distorceram o

processo desestatizante, resultando numa privatização que não colocou fim aos

problemas gerados pela falta de verbas das estatais, bem como na rede de

garantismo e clientelismo existente. As agências reguladoras surgem, diante desse

contexto, como um paliativo, pois que fazem sombra aos problemas da relação

entre o Poder Executivo e os seus dirigentes, ou entre estes e os grupos de pressão.

Em suma, pode-se dizer que o modelo regulatório foi implantado no Brasil

no bojo de um processo desestatizador92. Este teve início já no governo

Figueiredo, quando foi criado o ministério da desburocratização, que embora não

tenha alcançado resultados substantivos, abriu o caminho para a edição do

Decreto nº 91991/85, que dispôs sobre o processo de privatização de empresas sob

controle direto ou indireto do governo federal. Apenas no Governo Collor,

contudo, foi implantado o Programa Nacional de Desestatização, que visou um

processo de redução da máquina estatal e conseqüente privatização das estatais e

de concessionárias de serviços de utilidade pública.

Segue o Brasil, instrumentalizado pelo Programa Nacional de

Desestatização, rumo ao Estado-mínimo, regulador, pretensamente provedor de

serviços universais essenciais: ensino básico, saúde e segurança. Moreira Neto, 90 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 204.91 Vale frisar que o termo privatização é objeto de diversas controvérsias, centradasfundamentalmente na extensão que o conceito permite atingir. Para alguns doutrinadores, seusentido é amplo, ao passo que para outros seu sentido é restrito, referindo-se apenas à“transferência de ativos ou de ações de empresas estatais para o setor privado” (Lei 9427/97). Osentido estrito é considerado, dentre outros, por Marcos Juruena Villela Souto, para quem o termoprivatização é espécie do gênero desestatização, este, sim, amplo.

No sentido amplo do termo privatização, cabe frisar as palavras de Di Pietro: “é corretoafirmar que a concessão de serviços e obras públicas e os vários modos de parceria com o setorprivado constituem formas de privatizar; e que a própria desburocratização proposta para algumasatividades da Administração Pública também constitui instrumento de privatização”. Parcerias naAdministração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 20.

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apostando no novo modelo implementado, sugere que não se trata de chegar a um

Estado mínimo, mas a um Estado melhor.93 Exsurge, portanto, a idéia de que o

Estado não deve ser um concorrente privilegiado da sociedade, cabendo-lhe

primordialmente as funções de normatização, regulação e fiscalização.

Não obstante, os acelerados processos de privatização que desde então

tiveram início, efetivaram-se de forma bastante obscura. Em vários casos, como

nas privatizações da Petrobrás Química S.A. (Petroquisa)94 e da Companhia Vale

do Rio Doce95, só para citar alguns exemplos, houve uma considerável

subavaliação de seus preços, desmoralizando todo o processo de privatização das

estatais. Ademais, a utilização, como artifício para redução da dívida interna, na

compra de estatais, de “moedas podres” – títulos públicos de baixo valor de

mercado -, trouxe um imenso descrédito para a política desestatizante. Diante

desse quadro, fazia-se urgente a criação de órgãos reguladores, alheios ao jogo

político, capazes de criar um clima de confiabilidade para a manutenção e criação

de novos investimentos. A estes órgãos caberia, doravante, a difícil tarefa de

equilibrar os interesses: por um lado, os investidores esperam um órgão

regulador96 suficientemente capacitado para garantir um retorno adequado a fim

de remunerar suas aplicações, por outro, os consumidores esperam que os serviços

sejam prestados a preços módicos e em condições adequadas. Para Isaac Benjó,

92 A desestatização, segundo SOUTO, assume sua feição mais radical com a privatização, queimplica na transmissão definitiva e permanente de propriedades e ativos públicos para o setorprivado.93 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 74.94 No caso da Petroquisa - consoante informação extraída do livro de Henrique Emanuel GomesPEDROSA, Privatizações sob a ótica do direito privado: desigualdade contratual e fiscalização –a atuação do Tribunal de Contas conseguiu evitar um rombo nos Cofres Públicos de sete milhões emeio de reais, por força de uma decisão que determinou a reavaliação daquela empresa.95 A Companhia Vale do Rio Doce foi subavaliada, segundo informação ainda de HenriqueEmanuel Gomes Pedrosa, em dois bilhões de dólares.96 Issac BENJÓ ressalta que: “na Argentina, as agências responsáveis por supervisionar e regularos serviços estatais foram mantidas no processo de privatização. Eram agências fracas e com faltade autonomia. As ofertas para aquisição compensaram, num primeiro momento, a falta de umregime regulatório claro e compreensivo (...) Havia necessidade de altos níveis de investimentospara capitalização das empresas. Ainda assim, após o processo de privatização, quase todos oscontratos foram alterados para reduzir as tarifas a serem cobradas.É ilustrativo o exemploargentino para chamar atenção de que o estabelecimento da estrutura regulatória em fase posteriorgera insegurança para os investidores. Nos casos da ENTEL e da SV, a orientação determinadapelos contratos de venda estabelecia que as tarifas seria definidas pelo governo argentino com basena inflação e na taxa de câmbio. Entretanto, a lei de conversibilidade da moeda estabeleceu que astarifas deveriam ser corrigidas com base na taxa de câmbio. Assim, a política monetária dogoverno se sobrepôs às regras preestabelecidas pelos contratos de venda”. Fundamentos deEconomia da Regulação, p. 59.

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o estabelecimento de agências reguladoras, atualizadas com o processo deprivatização, é fator precípuo ao sucesso das concessionárias desestatizadas. Anecessidade de alívio fiscal, viabilizado pelas receitas de privatização, nãojustifica o descuido com a operacionalização imediata da regulaçãoindependente.97

Alexandre Santos de Aragão ressalta, a esse respeito, que também merece

menção “o fato de que as agências reguladoras, no momento da desestatização,

resultaram em grande monta das ‘sugestões’, às vezes bastante incisivas, de

investidores estrangeiros interessados nos serviços públicos, e de instituições

multilaterais que financiavam o processo de desestatização”.98 Decerto, conforme

aponta Moreira Neto, “os investidores são guiados não apenas pela existência de

condições econômicas favoráveis como pela existência de condições juspolíticas

que garantam a segurança jurídica das inversões”. Nesse sentido, sobressai de

importância a existência de características que garantam as agências contra as

flutuações políticas, a burocracia e a corrupção.99 Para o autor,

importante é observar(...) que a segurança jurídica (...) envolve notadamente asegurança dos investidores no contexto competitivo, uma vez que a atribuição defunções normativas, para a edição de regras claras, gerais e adequadas para odesempenho das atividades sob regulação, bem como a atribuição de funçõesparajudicativas, necessárias para a composição extrajudicial de conflitos,estimulam o clima de confiança propício para o progresso.100

Por outro lado, importa notar, como o faz Marcos Juruena Villela Souto,

que a descentralização, de um modo geral, não se distancia do dever de fiscalizar

a qualidade do serviço, envolvendo “(...)os princípios inerentes à sua gestão, já

que o usuário, legalmente equiparado a consumidor, tem direito à sua adequada e

eficaz prestação”. 101 Assim, embora a concepção reguladora do Estado não esteja

necessariamente atrelada à política de desestatização, podendo ela existir em

outros contextos, o fato é que quando estiver em curso, num país, uma política

97 BENJÓ, Isaac. Fundamentos de Economia de Regulação, p. 62.98 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 267. A este respeito, o BancoMundial, em Relatório sobre a desestatização do setor elétrico, condicionou qualquer empréstimono setor elétrico ao estabelecimento de um quadro jurídico e processos regulatórios satisfatóriospara o Banco. “Para este fim, em conjunção com outras iniciativas de âmbito econômico, o Bancoexigirá dos países que estabeleçam processos regulatórios transparentes que sejam claramenteindependentes dos fornecedores de energia e que evitem interferência governamental nasoperações cotidianas da companhia”. ( World Bank, The World Bank,s Role In The Electric PowerSector, The World Bank. Apud. Fernando Herren Aguillar. O controle social de serviços públicos.P. 234/235.)99 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 140-141.100 Idem, p. 141.101 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 111.

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acirrada de desestatização, a existência de entes reguladores é quase que exigência

do bom andamento desse processo.

Atento às modificações advindas das diversas reformas pelas quais passou

o Estado brasileiro, Souto já destaca um sub-ramo do direito administrativo, a que

ele denomina de direito administrativo regulatório, desenvolvido principalmente a

partir do surgimento das agências reguladoras. No entanto, conforme destacou

Moreira Neto, “a regulação ainda é um conceito em construção, mas que, de tão

carregado conteúdo inovativo, já prenuncia a emergência de um novo modelo de

Estado e quiçá de uma nova concepção de Direito”.102

Porém, se a criação das agências reguladoras representou um avanço para

o processo de privatização em curso, permitindo a consideração de direitos

fundamentais dos consumidores, atuando ao lado de órgãos de defesa da livre

concorrência, como o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica,

por outro lado, a forma como tais agências foram adaptadas no direito brasileiro

engendrou uma série de discussões de cunho constitucional-administrativo,

centradas principalmente na questão da função normativa que exercem.

3.4.1.Diferentes Modelos: O Norte-Americano e o Francês

Para copiar as instituições de um país e aplicá-las a outro, no todo ou em parte, épreciso, primeiro que tudo, conhecer o seu todo e o seu jogo perfeita ecompletamente.

Visconde do Uruguai.

O modelo regulador implantado no Brasil adveio da adoção quase que

integral do modelo norte-americano, cuja experiência em agências independentes

confunde-se com a própria razão de ser de seu Direito Administrativo. O “direito

das agências”, conforme é chamado o modelo, assenta-se na idéia de que tais

agências devem ficar distanciadas dos poderes políticos do Estado, mormente do

Poder Executivo, a fim de que possam exercer de maneira “autônoma” e eficiente

suas funções, eminentemente técnicas. Aliás, as agências reguladoras surgem

quase que como corolário do princípio da especialização técnica: o entendimento

102 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 209.

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é o de que, em determinados assuntos, a técnica deve preponderar sobre os

instáveis processos políticos, sob pena de comprometimento do próprio serviço

público prestado.

Ocorre que os Estados Unidos, bem como a Inglaterra, países de tradição

anglo-saxônica, vivenciaram experiências administrativas extremamente distintas

da brasileira, bastando observar a parca importância naqueles países do princípio,

consagrado desde a Revolução Francesa, da separação dos poderes, como seria de

se esperar de países com tradição de self-government. Decerto, nesses países, a

forma encontrada para diminuir a força da autoridade consistiu em distribuir o uso

das forças por diferentes funcionários, “dando a cada um todo o poder necessário

para levar a efeito o que a lei lhe incumbe”103.

A Inglaterra, a despeito da centralização política, não conheceu uma

centralização administrativa, o que era suprido por uma unidade oriunda da

semelhança dos elementos sociais. A presença daquilo que Visconde do Uruguai

chamou de “espírito nacional” assegurava o necessário respeito à lei e aos

“sentimentos do justo e do dever”104.

A organização das municipalidades na Inglaterra e nos Estados Unidos descansasobre a idéia, à qual se deu a maior expansão, de que cada um é o melhorapreciador do que lhe diz respeito, e está mais em estado de prover as suasnecessidades particulares.105

Nos Estados Unidos da América, cujo legado do auto-governo foi

diretamente herdado da Inglaterra, a feição da administração pública é

eminentemente descentralizadora. Ali, “o poder administrativo está quase todo

encerrado na municipalidade e distribuído por muitas mãos”.106

Entretanto, foi principalmente no período do New Deal, sob o comando de

Roosevelt, que proliferaram as agências reguladoras. Somente nessa época é que a

regulação norte-americana alcançou sua maturidade, a partir do questionamento

que se levantou sobre a efetividade do postulado liberal clássico da auto-

regulação, considerando as crises de instabilidade e de recessão do período entre-

guerras. Entendeu-se necessário garantir “um redobrado cuidado para proteger as

103 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit., p. 468-469104 Idem, p. 472.105 Idem, p. 472.106 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 489.

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economias dos aliados de novos colapsos”.107 Assim, a economia norte-americana

respondia às crises bélicas e econômicas valendo-se das agências administrativas

independentes do poder político, ou seja, fazendo uso de uma intervenção

econômica leve.

No entanto, cabe salientar que nos países de tradição anglo-saxônica,

existe uma tradição muito forte e bastante respeitada de separação entre a

administração e a política, que aqui se desconhece. Isso permitiu àquelas

sociedades de participarem da administração sem imiscuirem-se na política. A

respeito do modelo norte-americano, vale novamente destacar as contribuições do

Visconde do Uruguai:

As autoridades administrativas não se prevalecem da sua independência parainvadirem a órbita política em que gira o governo (...) Lá estão a eleição, atribuna, a imprensa e um poderoso espírito público para conter e corrigir osdesmandos governamentais.108

Em suma, o modelo do auto-governo norte-americano recorreu, para fazer

face às crises que se instalavam em meados do século XX, a um terceiro agente,

“homeostásico”, “capaz de impor uma regra que recupere e mantenha o

equilíbrio(...)”.109 Este o modelo das agencies norte-americanas, há muito

consolidado naquele país.

As mesmas crises por que passaram os Estados Unidos da América

também assombraram as economias dos países continentais. Porém, adotando

solução radicalmente diversa para as crises, os países europeus implementaram

uma política econômica de cunho fortemente interventivo, sob a égide dos

Estados de Bem-Estar Social e Socialista. Assim, preferiram desempenhar

diretamente atividades econômicas, ou, quando muito, criar agências

administrativas dependentes do poder político para o desempenho das atividades

econômicas críticas.

Nessa esteira é que se deve entender a Administração Pública brasileira,

que encontra na França o berço de suas instituições. Decerto, o modelo francês

não se assenta no self-government, mas ao contrário, caracteriza-se por ser

essencialmente “uniforme, preventivo e centralizador”.110

107 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 82.108 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 474.109 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 77.110 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 503.

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No entanto, cumpre frisar que o fenômeno das agências reguladoras

também despontou na França, embora com características peculiares ao seu

sistema administrativo. Sob a denominação de “autoridades administrativas

independentes”, tais entidades possuem ali três características primordiais: o fato

de integrarem a administração, o exercício de função de autoridade e um estatuto

de independência, o seu grande traço diferencial.

Antes disso porém, deve-se salientar que a França conheceu um amplo

processo de estatização ao longo do século XX, quando o intervencionismo

econômico mostrou-se mais forte. As primeiras nacionalizações efetuaram-se já

em 1936, através da estatização do Banque de France, das indústrias de

armamento e de estradas de ferro. Contudo, as nacionalizações mais importantes

ocorreram no período da Libération – período da desocupação nazista, daí

libération-, quando foram estatizados os setores-chave da economia: o gás, a

eletricidade e o carvão. No domínio financeiro e no domínio dos transportes

também se verificou o fenômeno. No ano de 1982, segundo Jean-Bernard Auby,

mais estatizações foram implementadas, desta feita em cinco importantes

sociedades industriais: “la Compagnie générale d’électricité, Saint-Gobain,

Pechiney-Ugine-Kuhlmann, Rhône-Poulenc et Thomson-Brandt. Elles portèrent

ensuite sur la plupart des banques non nationalisées à la Libération(…)”111

O reverso desse processo ocorreria a partir do governo eleito em 1986,

quando tiveram início as privatizações. Nesse sentido, uma Lei de habilitação de

julho daquele ano autorizou as desestatizações por parte do Governo em uma série

de empresas públicas. Inaugurou-se, portanto, o modelo que iria consolidar a

importância das autoridades administrativas independentes, como forma de

preservar um papel fundamental ao Estado.

Cumpre ressaltar, junto com autores como G. Giraudi e M. S. Righetini,

ambos citados por Moreira Neto, que, ao contrário dos países de cultura anglo-

saxônica, em que as funções dos órgãos reguladores surgiram da iniciativa dos

próprios agentes dos setores regulados, nas cultura jurídicas de herança

continental européia, a iniciativa de cometimento dessas funções a tais entes

originou-se no próprio Estado.112

111 AUBY, Jean-Bernard. “Les interventions de la puissance publique en matière économique”.112 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório, p. 135.

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Assim é que, conquanto exerçam elevado grau de autonomia, as

autoridades administrativas independentes integram diretamente o poder

executivo central, servindo como uma forma de auto-limitação deste.113 Decerto,

elas vinculam-se diretamente ao ministério do setor que regulam, embora não se

sujeitem ao controle hierárquico. Dentro da esfera administrativa, as “autoridades”

constituem uma categoria jurídica específica, permitindo ao Estado, segundo

Olivier Dugrip114, conservar, no seio da administração, suas responsabilidades.

Na base da criação dessas autoridades encontra-se o cuidado com a

proteção dos cidadãos e dos administrados, tanto é que elas se instituem nos

domínios relativos às liberdades públicas: na informação e comunicação, na

regulação da economia de mercado e na relação administração-administrados,

através da instituição do mediador.

A elevada importância de suas atribuições confere-lhes amplo poder

normativo e autoridade moral perante o setor concernido, o que lhes permite

sensibilizar a opinião pública através da informação de irregularidades constadas.

Esta tarefa possui, aliás, um importante instrumento: a redação de um relatório

anual prestando conta de suas atividades, que beneficia a sua mais ampla difusão

pelas vias oficiais.

À guisa de conclusão, pode-se afirmar que, a par das diferenças entre os

modelos assinalados, algumas características principais das agências reguladoras

podem ser sintetizadas, como o faz Aragão: a independência de que são dotadas

nada mais é que uma autonomia reforçada em relação à Administração central;

“(...) a restrição ao poder de exoneração dos dirigentes dos órgãos ou entidades

independentes de regulação não compromete o poder de direção do Governo,

sendo este compreendido nos termos das respectivas leis criadoras(...)” ; “(...)

todas elas concentram poderes fiscalizatórios, sancionatórios, compõem conflitos

e editam regulamentos(...)”; finalmente, “(...) os amplos poderes regulamentares

são admitidos desde que a lei fixe os standards em que deverão se

desenvolver”.115

113 Alexandre Santos de Aragão ressalta que na França, paradoxalmente, o fato de tais entes nãoterem personalidade jurídica confere-lhes, por si só, certa autonomia, eis que, pelo dogma da tutelavigente naquele país, não há logicamente como uma pessoa jurídica da administração indireta nãose submeter a um forte e absorvente controle ministerial.114 DUGRIP, Olivier. “Autorités Administratives Indépendantes”.115 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 261.

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Apesar dos benefícios que poderiam resultar de uma adoção, no Brasil, de

uma postura moderada, conciliando mecanismos das “autoridades administrativas

independentes”, que conferem um amplo poder normativo a uma atuação mais

comprometida das autoridades públicas, com os instrumentos mais liberais das

agências norte-americanas, como a separação mais rígida entre a administração e

o governo, o fato é que o direito administrativo brasileiro optou integralmente

pelo modelo mais liberal, representado pelas agencies norte-americanas. Assim,

uma vez excluídas dos quadros governamentais, as agências reguladoras

brasileiras ficam “livres” para implementar as suas atividades, cuja moldura mais

geral restou delineada pela esfera político-administrativa do Ministério

competente. Na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello, as agências,

conquanto devam permanecer afastadas do jogo político, deveriam dotar-se de

mecanismos de maior comprometimento dos seus dirigentes, ressaltando-se, a

título de exemplo, a previsão de um mandato fixo apenas em relação ao

governante que os tenha nomeado.

Ainda que se entenda ser o modelo de auto-governo o mais eficaz, o fato é que

os modelos precisam ser adaptados às tradições existentes, e, nesse sentido, a

administração brasileira ainda se encontra num modelo muito incipiente de

regulação.

3.4.2As Agências Reguladoras Brasileiras

No Brasil, apenas a partir da década de noventa é que se começa a assistir

à proliferação dessas entidades, há muito desenvolvida em outros países. Inseridas

no contexto de desestatização, empreendem uma releitura de diversos institutos

administrativistas, ajustando-os às mais modernas leis de regulação da economia.

Contudo, as agências reguladoras não são novidade no direito

administrativo brasileiro. A novidade, segundo Moreira Neto, “(...)está no

ressurgimento da importância dessas entidades, rebatizadas (...)de agências

reguladoras, para desempenharem autarquicamente essas funções na disciplina de

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118

certos serviços, cuja execução vem sendo transferida de empresas estatais para

empresas privadas”.116

O caminho para as agências reguladoras no Brasil já havia sido aberto com

a criação de diversas “(...) autarquias de regime especial a cujos dirigentes a lei

restringia o poder de exoneração do Chefe do Poder Executivo ao estabelecer a

sua nomeação por mandato determinado(...)”, como fora o antigo Instituto de

Aposentadoria e Pensões dos Industriários, criado em 1960. Contudo, à época, o

Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional essa autonomia reforçada,

por considerar violadora do poder de direção do Presidente da República sobre

toda a Administração Pública. 117 Por outro lado, outras entidades foram dotadas

de funções reguladoras, como o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central

do Brasil, o Instituto do Alcóol e do Açúcar, a Comissão de Valores Mobiliários,

dentre outras. Contudo, vale frisar que nenhuma destas entidades detinha o perfil

de independência frente ao Chefe do Poder Executivo.

Decerto, as agências reguladoras caracterizam-se não só pela existência de

poderes regulatórios, como também pela autonomia reforçada de que gozam, e

nisso reside a sua especificidade em relação às demais autarquias. Cumpre

ressaltar que a sua natureza jurídica de autarquia é essencial para conciliar a

atuação imperativa do Estado no exercício da regulação com a flexibilidade

negocial, conseguida através de uma ampliação de sua autonomia administrativa,

financeira e política.118

Com a Lei de Concessões (Lei n. 8987/95), publicada no início do

primeiro mandato do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso,

materializou-se a postura reguladora do Poder Público, conforme preceitua o

artigo 174 da Constituição da República de 1988. Na esteira do fenômeno

globalizado do surgimento das agências reguladoras, aquela Lei previu a criação

das autarquias reguladoras, com o objetivo de criar condições favoráveis ao

processo de concessão dos serviços públicos, visando ainda proteger o

116 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 145.117 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 264.118 Segundo Alexandre Santos de Aragão, nada impede que uma agência reguladora, além daautonomia finalística, oriunda da lei que a instituiu, venha a gozar de uma ainda maior autonomiagerencial através da qualificação como agências executivas e subseqüente celebração de contratode gestão, isso quando a lei não preveja a celebração de contrato de gestão independentemente daprévia qualificação como agência executiva A autonomia especial das agências executivaspermite-lhes elevar os valores-limites das dispensas de licitação previstos nos incisos I e II doartigo 24 da Lei nº 8666/93. Agências Reguladoras, p. 377.

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consumidor de eventuais falhas na prestação desses serviços. Este o sentido do

artigo 30, parágrafo único, da Lei:

Parágrafo único. A fiscalização do serviço será feita por intermédio de órgãotécnico do poder concedente ou por entidade com ele conveniada, e,periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar, por comissãocomposta de representantes do poder concedente, da concessionária e dosusuários.

Nesse sentido, José Maria Machado Gomes assevera:

(...)surgem as agências reguladoras, a quem compete permanentemente a tarefade fiscalizar, supervisionar e gerenciar o concessionário, para que este preste umserviço público com eficiência, qualidade, a preços competitivos, em umambiente de regras claras e críveis119.

Cabe lembrar que inexiste lei que trate genericamente das agências

reguladoras. Elas têm surgido por leis esparsas, especificamente elaboradas para a

sua criação, sendo certo que a única lei genérica é a Lei 9986 de 18 de julho de

2000, referente à gestão dos recursos humanos das agências. Outrossim, cumpre

frisar que esta lei está sendo objeto de exame de liminar em ação declaratória de

inconstitucionalidade, por estipular para as agências o regime do emprego

público, o qual é incompatível com o exercício de atividades típicas de Estado.

A falta de uma sistematização legislativa dificulta a consolidação da

matéria, além de criar um clima de instabilidade e incerteza maléficos para a

sociedade brasileira. A despeito dessa ausência de normatização geral, as

principais características das agências reguladoras podem ser depreendidas da

leitura do artigo 8o, §2o da Lei n. 9472 de 16 de julho de 1997, criadora da

Agência Nacional de Telecomunicações, certamente a mais bem elaborada em

matéria de agências. Esse dispositivo prevê que “a natureza da autarquia especial

conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de

subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e

autonomia financeira”.

As agências reguladoras, autarquias especiais instituídas por lei específica

para regularem determinado setor, trazem como principal característica a

independência, que se manifesta em vários aspectos. 120 Assim é que, segundo

119 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, parte introdutória.120 A designação das agências reguladoras como autarquias especiais justifica-se diante de umprocesso que vinha engessando as atividades autárquicas, decorrente de um exacerbado controledos meios de sua atuação. O fenômeno, chamado por Venancio Filho de “desautarquização das

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Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as agências reguladoras são dotadas de

independência política dos gestores, traduzida num mandato fixo e estável;

independência técnica decisional, no sentido de que suas decisões são apolíticas;

independência normativa, “necessária para o exercício de competência reguladora

dos setores de atividades de interesse público a seu cargo”121; e independência

gerencial orçamentária e financeira, possibilitada pelo estabelecimento de fonte de

recursos próprios.

A natureza jurídica de autarquia, ainda que de regime especial, faz jus à

função que exercem tais agências reguladoras. Decerto, as autarquias foram

criadas para exercerem funções típicas do Estado, como o são as funções de

regulação, de fiscalização, de sanção de serviços públicos. Vale notar, contudo,

que tem havido um alargamento notável no campo de atuação dessas agências,

jungidas inicialmente à regular serviços públicos, e que agora passam a regular

também atividades econômicas. Tal é o caso da ANP- Agência Nacional do

Petróleo e de outras tantas que vêm surgindo em curto espaço de tempo.

A independência das agências reguladoras deve ser vista como uma

autonomia reforçada, que se lhe confere para evitar influências políticas

indevidas, bem como para possibilitar uma atuação técnica especializada. A

designação de autarquias especiais bem denota essa peculiaridade, o que se faz

premente diante de um quadro institucional marcado por um enfraquecimento

generalizado das instituições autárquicas enquanto instâncias decisórias, pois que

fortemente influenciadas e pressionadas pelos grupos de interesses políticos

dominantes.

Cabe frisar que essa autonomia das agências reguladoras não as retira por

completo de qualquer tipo de controle administrativo, pois que, como entes

integrantes da administração indireta, sujeitam-se ao controle ministerial, ainda

que este controle não seja exercido de forma tutelar ou hierárquica. O fato é que a

referida “independência”, ou melhor, autonomia reforçada, não tem o condão de

transformar tais agências em verdadeiras entidades que pairam sobre o Estado. O

atendimento às políticas públicas definidas pelo ministério correspondente é a

autarquias”, gerou o cuidado na denominação, eis que, justamente, o que se visava ressaltar comela era sua autonomia reforçada, chamada atecnicamente de independência. FILHO, Venâncio. AIntervenção do Estado no Domínio Econômico- O Direito Público Econômico no Brasil. Apud.ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 273.121 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo., p. 148.

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razão de ser de sua atuação, não se concebendo nenhuma autonomia que não seja

a necessária para o atendimento de seus preceitos fundamentais. Aliás, a própria

Reforma Administrativa de 1967, concretizada no Decreto-Lei n. 200/67, previa,

no seu artigo 4°., parágrafo único que “as entidades compreendidas na

administração indireta vinculam-se ao ministério em cuja área de competência

estiver enquadrada sua principal atividade”. Assim é que a independência que se

lhe concede via lei deve ser entendida em face do Chefe do Poder Executivo e não

do Poder Executivo em si.

Outrossim, com relação à previsão de mandato fixo, estabelecido como

necessário para a independência das agências, cabe ressaltar as críticas trazidas

por Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem tal previsão viola princípio

constitucional que assegura a temporariedade dos mandatos.122 Decerto, o

mandato fixo permite uma espécie de “burla eleitoral” que consiste na escolha,

pelo Presidente da República, de um dirigente que terá um mandato ultrapassando

o do seu sucessor. Ou seja, através desta previsão, um Presidente da República,

democraticamente eleito, pode ter as suas ações “engessadas” por força de

dirigente nomeado pelo presidente anterior, e que influenciará decisivamente na

condução da política do país.

Atento a esta situação Celso Antônio Bandeira de Mello propõe que o

mandato do dirigente das agências seja fixo dentro do mandato do Presidente da

República que o tenha nomeado, isto é, que a vedação da exoneração ad nutum só

valha efetivamente para aquele que o nomeou. Parece que é uma solução bastante

razoável para os conflitos que porventura venham a surgir neste sentido.

3.4.3.O Debate sobre a Função Normativa dos Entes ReguladoresIndependentes no Brasil

O aumento das funções normativas do Poder Executivo já era um processo

em curso antes mesmo do surgimento das agências reguladoras independentes,

desde que a necessidade de individualização da atuação estatal se fez sentir de

122 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Aliás, tal parece tersido a postura do ainda presidente da república Fernando Henrique Cardoso, que, perto de perderas eleições, nomeou dirigente da ANATEL, por mandato de cinco anos, ou seja, mandato queultrapassará o do próximo presidente, Luís Inácio Lula da Silva.

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forma mais intensa. De fato, a complexidade, a pluralidade e o tecnicismo das

matérias que deveriam ser reguladas tornaram insuficiente o modelo que

centralizava no Poder Legislativo o monopólio da edição das leis.123 Nessa esteira,

o surgimento de ordenamentos setoriais refletiu a necessidade de especialização

não apenas das matérias a serem reguladas, mas também de suas fontes.

A instituição das agências reguladoras como forma de tornar mais eficiente

a regulação de determinado setor reflete essa necessidade de delegação normativa.

Daí porque a atribuição fundamental das agências reguladoras, como bem

demonstra o próprio nome que as designa, encerra-se em sua função reguladora.

Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão expõe que

a necessidade de descentralização normativa, principalmente de natureza técnica,é a razão de ser das entidades reguladoras independentes, ao que podemosacrescer o fato de a competência normativa, abstrata ou concreta, integrar opróprio conceito de regulação.124

Em que pese essa constatação, a delegação normativa conferida às

agências reguladoras pelas respectivas leis criadoras125 é exatamente o aspecto

que mais tem gerado críticas, que apontam, de forma geral, para a existência de

um eventual deficit democrático. Este originar-se-ia, segundo os críticos, de uma

falta de legitimidade política das agências, cujos dirigentes, nomeados e não

eleitos, implementariam normativamente as políticas públicas traçadas para o

setor.

Nesse sentido, Lúcia Valle Figueiredo e Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

restringem a esfera de normatização das agências, argumentando que:

(...) mesmo para as que têm fundamento constitucional, a competência reguladoratem que se limitar aos chamados regulamentos administrativos ou deorganização, só podendo dizer respeito às relações entre os particulares que estãoem situação de sujeição especial ao Estado. No caso da ANATEL e da ANP asmatérias que podem ser por elas reguladas são exclusivamente as que dizemrespeito aos respectivos contratos de concessão, observados os parâmetros eprincípios estabelecidos em lei.126

123 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 66 – 67.124 Idem, P. 380.125 Cumpre frisar que, especificamente nos casos da ANATEL e da ANP, é a própria constituiçãoque prevê a função normativa de tais entes.126 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão,permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 158.

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123

Decerto, o aparecimento dessas agências independentes faz florescer um

debate sobre a constitucionalidade da função normativa que lhes é conferida, o

que parece ser solucionado através de uma redefinição dos princípios da

legalidade e da separação de poderes.

Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a questão da função reguladora

conferida às agências é resolvida em termos de uma adequada compreensão da

relação do princípio da legalidade com outros princípios, como o da eficiência127/128. De fato, o modelo trazido pelas agências implica, por força da autonomia

reforçada que lhes é assegurada, “uma ostensiva delegação de poderes, uns

quase-legislativos, uns quase-judiciais e outros quase-regulamentares”. 129

A possibilidade de uma delegação instrumental insere-se, assim, na

competência do Estado como agente normativo e regulador da atividade

econômica, em nome do princípio da eficiência. Segundo o autor, “é impossível

exigir-se eficiência da Administração sem dar-lhe competência para alocar fins

específicos e encontrar meios correspondentes”130. Contudo, segundo Ferraz

Júnior, a delegação às agências reguladoras, implementada mediante lei, e

fundamentada no princípio da eficiência e num novo conceito de legalidade,

decorrente de uma mutação constitucional, deve obedecer a alguns parâmetros,

sinteticamente trazidos à colação:

127 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “a eficiência cria para a Administração umaresponsabilidade que não se reduz nem ao risco administrativo, nem à igualdade perante osencargos públicos, mas antes as incorpora em nome da obrigação imposta ao Poder Público, aoexercer funções reguladoras no mercado, de evitar assimetrias de informação que funcionem comoum incentivo para o comportamento oportunista dos agentes privados, levando o mercado a umadisfunção”. Op. Cit, p. 151128 Vale lembrar que Robert Alexy opõe-se à concepção de princípios absolutos: para ele, “(...)opróprio conceito de princípio exclui a possibilidade de existência de princípios absolutos. Nunca éuma determinação. O conceito de princípio absoluto é em si contraditório, já que importaria numadeterminação e afastaria a utilização da ponderação de princípios. Diante de uma colisão, oprincípio absoluto sempre teria precedência e seria, inclusive, uma impropriedade falar de colisão(...)” GEREMBERG, Alice Leal Wolf. Op. Cit, p. 30-31.129 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 143. Para Alexandre Santos de Aragão, “(...)asimples qualificação como ‘quasi’ traz implícita a confissão de que as classificações conhecidasnão são mais aplicáveis sem problemas e ‘quasi’ é uma cobertura que damos para aliviar nossaconfusão da mesma forma que poderíamos usar uma colcha para cobrir uma cama desarrumada”.Nesse sentido, o autor ressalta que a concepção originária dos Estados Unidos da América e osistema do Common Law praticamente desconheciam a função administrativa, daí a já mencionadautilização da nomenclatura de função “quase-judicial” e “quase-legislativa” das agênciasreguladoras, para o que, na realidade, não era nada mais do que, respectivamente, a funçãoprocessual e regulamentar da Administração Pública. (...) As outroras chamadas funções “quase-judiciais” e “quase-legislativas” das agências reguladoras são espécie da função administrativalato sensu(...). Agências Reguladoras, p. 231-2.

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124

1- uma política regulatória eficiente deve procurar preservar uma

distribuição de rendas politicamente ótima(...);

2- políticas que reduzem a riqueza total disponível para a

redistribuição devem, em princípio, ser evitadas na medida em

que reduzem a recompensa política (interesse público) do ato

regulatório (...);

3- regras orientadoras das análises que conduzem a uma ação

reguladora devem ser previamente conhecidas (...);

4- os atos regulatórios devem ser tomados por autoridade dotada

de mandato fixo (para minimizar a pressão de interesses(...);

5- por sua (tradicional) impermeabilidade institucional, o Poder

Judiciário deve ser levado a decidir sobre o mérito das

regulações;

6- a eficiência é pressuposto tanto de atos vinculados quanto de

discricionários, estando o agente da regulação obrigado a

afinar suas decisões com os objetivos políticos setoriais

prescritos em lei (legalidade em sentido de legitimação);

7- a participação do usuário dos serviços e atividades regulados

no controle das atividades deve estar prevista(...)131

Alexandre de Moraes, por sua vez, recorre a uma concepção mais flexível

do princípio da separação dos poderes132, esboçado por Aristóteles e sistematizado

por Montesquieu. O autor utiliza-se de uma moderna concepção do princípio para

afirmar que, através dele “(...) mantém-se a centralização governamental nos

Poderes Políticos – Executivo e Legislativo -, que deverão fixar os preceitos

básicos, as metas e finalidades da Administração Pública, porém exige maior

descentralização administrativa, para a consecução desses objetivos”133. Como às

130 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit, p. 152.131 Idem.132 Diogo de Figueiredo Moreira Neto acentua que o prinçipio da separação de poderes éessencialmente histórico, devendo a sua interpretação, por isso, obedecer às circunstânciaspolíticas de cada Estado e em cada época. Nesse sentido, ressalta que “esses institutos podem edevem ser considerados como uma nova e criativa manifestação contemporânea aperfeiçoadora doclássico princípio”.Direito Regulatório, p. 150.133 MORAES, Alexandre de. “Agências Reguladoras”, p. 743. Augustín Gordillo, destacando anecessidade da entidade reguladora ser apartada do Poder Concedente e do serviço públicoregulado, considera-a mesmo “(...)uma imposição do princípio atualizado da divisão dos poderes edos sistema de freios e contra-pesos acolhidos pela Constituição(...)”.GORDILLO, Audustín.Tratado de Derecho Administrativo. Apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. AgênciasReguladoras. P. 376.

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agências reguladoras cabem as tarefas de fiscalização e gerenciamento - que

tradicionalmente pertenciam à administração direta, enquanto cedente dos

serviços públicos por meio de concessões ou permissões -, devem, para o

desempenho dessas atividades, expedir uma regulação específica do setor

regulado. Para Moreira Neto,

(...) essa competência normativa atribuída às agências reguladoras é a chave deuma desejada atuação célere e flexível para a solução, em abstrato e em concreto,de questões em que predomine a escolha técnica, distanciada e isolada dasdisputas partidarizadas e dos complexos debates congressuais em quepreponderam as escolhas abstratas político-administrativas, que são a arena deação dos Parlamentos, e que depois se prolongam nas escolhas administrativasdiscricionárias concretas e abstratas, que prevalecem na ação dos órgãosburocráticos da Administração direta.134

Também Alexandre Santos de Aragão recorre a um novo enfoque dado ao

princípio da separação dos poderes para justificar o poder normativo das agências

reguladoras, afirmando que “(...) a complexidade e a autonomia das competências

conferidas às agências reguladoras em nada contraria a divisão de funções

estabelecida pelas constituições contemporâneas e os valores do Estado de Direito

que, afinal, constituem o principal parâmetro da admissibilidade ou não do

exercício de distintas funções pelo mesmo órgão ou entidade pública”.135 Ou seja,

desde que a acumulação de funções respeite os postulados do Estado de Direito,

essa acumulação mostrar-se-á constitucional. Nesse sentido, ressalta o mesmo

autor que

(...)as competências complexas das quais as agências reguladoras independentessão dotadas fortalecem o Estado de Direito, vez que, ao retirar do emaranhadodas lutas políticas a regulação de importantes atividades sociais e econômicas,atenuando a concentração de poderes na Administração Pública central,alcançam, com melhor proveito, o escopo maior – não meramente formal – daseparação de poderes.136

Na tentativa de conferir constitucionalidade à função normativa das

agências, Aragão cita ainda Gunther Teubner, para quem a unidade e identidade

134 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 162.135 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 375. Para o autor, o próprioconceito de autonomia de um ente está atrelado, em alguma medida, ao poder de editar suaspróprias regras de conduta. Ela pode exprimir um determinado grau de autoridade e independênciareconhecida a uma pessoa jurídica, mas qual seja este grau não pode ser determinadoaprioristicamente.136 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 375-376.

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de um sistema deriva da característica fundamental de auto-referencialidade de

suas operações e processos:

Isso significa que só por referência a si próprios podem os sistemas continuar aorganizar-se e reproduzir-se como tais, como sistemas distintos do respectivomeio envolvente. São as próprias operações sistêmicas que, numa dinâmicacircular produzem os seus elementos, as suas estruturas e processos, os seuslimites, e a sua unidade essencial. (...) É sob esta perspectiva que o podernormativo das agências reguladoras, com seu dinamismo, independência,especialização técnica e valorização das soluções consensuais, deve servalorizada como um importante instrumento de intercomunicação do sistemajurídico com os demais subsistemas sociais envolventes (econômico, familiar,cultural, científico, religioso etc.)137

Aragão ressalta que, na verdade, a extensão do poder normativo das

agências reguladoras depende do setor por elas regulado. Assim é que, em se

tratando de agências reguladoras de serviços públicos, o poder normativo abrange

as relações entre as delegatárias e entre estas e os usuários-consumidores.

Atenderá, portanto, à execução dos objetivos legais e das finalidades traçadas por

órgão central de fixação das políticas públicas do setor. No caso das agências

reguladoras da exploração privada de bens e atividades monopolizadas,

(...)como o proprietário do bem monopolizado ou titular exclusivo da atividademonopolizada é o próprio Estado, pode estabelecer as condições contratuais que,dentro do que a lei permitir, melhor lhe convenham. Ao longo da execução docontrato, também se impõe a atuação regulatória do Poder Público integrando einterpretando cláusulas contratuais. 138

Na regulação das atividades privadas de interesse geral, o poder público

limita-se à expedição de normas que digam respeito aos interesses primários a

serem atendidos. Aqui, as agências reguladoras têm, em relação às autorizações,

amplo poder de normatização ao longo do desenvolvimento das atividades

autorizadas, conformando-as permanentemente aos objetivos políticos para o

setor.139

Cumpre notar que a delegação normativa atribuída às agências reguladoras

insere-se naquilo que Moreira Neto chama de deslegalização, admitida como tal

na própria Constituição da República.140 Assim é que a Emenda Constitucional nº

137 ARAGÃO, Alexandre Santos de. “O Poder Normativo das Agências Reguladoras”, p. 7.138 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 391.139 Idem, p. 396.140 Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, adotando os ensinamentos de García de Enterría,distingue esse tipo de atividade normativa da regulamentação da lei e da delegação legislativa.

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8, de 15 de agosto de 1995, prevê a existência de um órgão regulador autônomo

para exercer funções normativas sobre os serviços de telecomunicações (artigo 21,

XI), e a Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995, prevê a criação

de um órgão regulador autônomo para exercer funções normativas sobre o

monopólio do petróleo da União (artigo 177, §2º, III). Essas duas agências

reguladoras têm, portanto, sede constitucional, estando as suas atribuições

reguladoras ali garantidas.

O fenômeno da deslegalização pode ser melhor entendido recorrendo-se à

clássica distinção feita por Eduardo García de Enterría entre delegação receptícia,

delegação remissiva e deslegalização, todas espécies do gênero delegação

legislativa.141

A delegação receptícia, segundo seus ensinamentos, consiste na

transferência ao Poder Executivo do poder de produzir normas, com força de lei,

desde que dentro de um quadro limitado e de tempo determinado, ambos fixados

no ato da delegação. Trata-se, no direito pátrio, das leis delegadas, admitidas nos

artigos 59, IV, e 68 da Constituição de 1988. Por sua vez, a delegação remissiva

significa a remessa, feita pela lei, a um ato normativo ulterior, elaborado pela

Administração, sem força de lei, dentro do quadro por ela traçado. Esta instituição

corresponde, no direito brasileiro, ao poder regulamentar atribuído ao chefe do

Poder Executivo. Finalmente, a deslegalização consiste na retirada, pelo

legislador, de determinadas matérias do domínio da lei, passando a ser tratada por

ato normativo inferior.

A deslegalização é ainda tratada por Marcos Juruena Villela Souto, nos

seguintes termos:

(...) é a existência de matérias sob domínio da lei e outras que podem ser tratadasem atos inferiores; a deslegalização (que abre portas à regulação normativa) éprecioso instrumento nesse mister, sem negar vigência ao princípio da legalidade.(...) Ainda que os limites e condições impostos à edição de regulamentosautônomos se apliquem integralmente às normas regulatórias, não há que seconfundir ambas as espécies de atos normativos; o regulamento, autônomo ounão, é emanado de autoridade política, sem compromisso de neutralidade; anorma regulatória traça conceitos técnicos, despidos de valoração política (quedeve estar contida na norma a ser implementada); deve ser equidistante dosinteresses em jogo, resultando de uma ponderação entre os custos e os benefícios

141 A classificação de Eduardo García de Enterría foi retirada do livro de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, Direito Regulatório, no qual ele traça a distinção de forma exemplar.

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envolvidos (daí dever ser necessariamente motivada, editada, preferencialmente,por agente independente) (...)142

Parece, portanto, que a questão sobre a função normativa das agências

resolve-se com o conceito de deslegalização, que transfere às agências o poder de

editar normas sobre determinadas matérias, nas quais prepondere a

“discricionariedade técnica”: as agências têm liberdade na regulamentação de

assuntos que, por sua natureza eminentemente técnica, - entendida esta na acepção

de não-política - devem ficar a cargo de especialistas e não de grupos de interesses

políticos. Na realidade, não há verdadeira discricionariedade na

“discricionariedade técnica”, pois esta não abrange os conceitos de conveniência

e oportunidade, ou seja, de mérito. É uma escolha guiada preponderantemente

pelo princípio da eficiência. Na formulação da política pública, o Ministério

competente fixa os parâmetros que devem ser seguidos pela agência do setor,

assim como o legislativo fixa o quadro geral através de standards. Cabe à agência

concretizar ambos os aspectos, para o que se lhe é conferido o poder normativo,

no sentido de discrionariedade técnica. Não há margem de escolha que fuja à

eficiência, logo não há discricionariedade na escolha dos meios necessários à

implementação da política pública perseguida.

Em suma, deslegalizada a matéria, a produção normativa operada pela

agência reguladora em nada se confunde com as normas regulamentares

expedidas pelo Poder Executivo, e muito menos com as normas emanadas do

Poder Legislativo.143

Com isso, esvazia-se o argumento do deficit democrático das agências,

baseado na assertiva de que pessoas não legitimadas eleitoralmente acabavam por

normatizar determinado setor através da delegação normativa. A necessidade

imperiosa de eficiência traz a possibilidade, como assinalado acima, de uma

regulação do setor concernido através de conceitos técnicos, e, para tanto, a

existência de uma autonomia reforçada afigura-se essencial.

Contudo, Alexandre Santos de Aragão critica a observação estrita e isolada

do conteúdo técnico na normatização efetuada pelas agências, afirmando que:

o elevado conteúdo técnico das múltiplas funções das agências reguladoras nãolhes retira o conteúdo político. A tentativa de legitimá-las por uma suposta

142 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit, p. 48-51.143 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 127.

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característica exclusivamente técnica das suas competências acaba levando aorisco de não serem enfrentados os verdadeiros problemas das sua legitimaçãodemocrática.144

Tais aspectos serão melhor abordados no capítulo seguinte, quando o

princípio da participação nas agências permitirá melhor equacionar a questão da

legitimidade.

Neste ponto, é preciso assinalar que o modelo implantado com os entes

reguladores independentes, que traduz a vontade de separar as esferas política e

administrativa145, traz um corte no conceito de legitimidade, dividindo-a em dois

planos distintos: no plano da legitimação política, calcada na representação

democrática e na eficiência política, e, no plano da legitimação administrativa,

que, nas palavras de Moreira Neto, “se atinge pela participação democrática e pela

eficiência técnica no equacionamento administrativo e na aplicação da solução

reguladora específica ao setor”.146

Vale frisar que o argumento democrático é o que mais tem sido levantado

em favor das agências reguladoras, pois que as legislações que as instituíram

previram mecanismos de participação popular, que podem ser utilizados para

aumentar a legitimidade de suas decisões. Assim é que, pela consensualidade e

participação nas audiências públicas e em coletas de opinião, pode-se conceber

um modelo regulador inserido nas novas exigências democráticas, fruto de uma

sociedade auto-reflexiva e pluralista. Nesse sentido, sublinhe-se as palavras de

Moreira Neto:

(...)o núcleo juspolítico da administração reguladora está indisputadamente nademocratização do processo de tomada de decisão administrativa a ser adotadonos setores econômicos e sociais em que a politização da decisão carece desentido e em que, distintamente, a consensualidade produz resultados maiscéleres, mais justos e menos onerosos.147

Este é, em linhas gerais, o contexto no qual se inserem as agências

reguladoras brasileiras, influenciadas pelo novo paradigma da Administração

Pública, que busca conciliar os interesses públicos, privados e das empresas. Por

força da inserção de tais entidades em um “Estado Democrático de Direito”, é de

144 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras. P. 449.145 Tal como queria, desde o século XIX, Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai.146 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 155.147 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 178.

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se notar a íntima relação que guardam com o atendimento ao interesses público,

colocado como padrão de legitimidade de atuação do poder público.

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