3 mudanças no paradigma administrativo brasileiro: o ... · o espelho de próspero: cultura e...
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3Mudanças no Paradigma Administrativo Brasileiro: OEstado Regulador
O Direito Administrativo, ao contrário do que se sucedeu com o direito
privado, não encontrou em épocas mais distantes estudiosos que se propusessem a
elaborar uma teoria do direito administrativo, em sistematizá-lo ou mesmo
codificá-lo.1 Conforme ressalta Marcos Juruena Villela Souto, seu estudo como
ciência ocorreu por volta do período de 1789 a 1870, “(...) quando se distinguia
um ‘contencioso administrativo’ distinto do regime jurisdicional(...)”. Contudo,
destaca que a sua autonomia é relacionada ao Caso Blanco em 1873, quando o
Tribunal de Conflitos confirmou em sua decisão a juridisção administrativa do
Conselho de Estado.2
A importância de seu estudo apenas é reconhecida com o novo conceito de
legitimidade, fundado a partir da Revolução Francesa. Dessacralizado o
fundamento do poder legítimo, este passou a residir na nação, que se fazia
representar pelos legisladores. Com isso, tornou-se a lei a aferidora da
legitimidade da atuação dos poderes públicos, o que, no entanto, representava,
face ao antigo e duradouro critério divino, um critério inseguro, sobretudo diante
da cambiante política legislativa. Fez-se premente a necessidade de um estudo
que dispusesse sobre a organização do Estado e de suas instituições, como forma
de assegurar a legitimidade e a eficiência do regime instituído pós-revolução.
Segundo Diogo de Figueiredo, os autores costumam identificar o
nascimento do Direito Administrativo com a edição, em 1800, da primeira lei
reguladora da pública administração. Antes disso, contudo, já em 1748, com a
publicação do L’ésprit des lois, de Montesquieu, sistematizou-se a teoria da
divisão dos poderes e a criação, por Napoleão, da justiça administrativa, reforçou
esse processo. No entanto, a primeira obra de Direito Administrativo, intitulada
1 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em seu Curso de Direito Administrativo, afirma que os traçosmais remotos de existência do Direito Administrativo encontram-se na Grécia Clássica: “Emboraembrionário, e ainda confundidas as funções administrativas e jurisdicionais, já se cuidava, então,do exercício da polícia, da prestacão de serviços públicos e da repartição de atribuições entreagentes encarregados de executá-los”.2 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 27.
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Institutes de Droit Administratif Français, da lavra de Barão De Gérando, data de
1829.3
No Brasil, a necessidade de se organizar uma administração pública mais
eficiente, levou Paulino José Soares de Souza – membro da trindade saquarema,
juntamente com Rodrigues Torres e Eusébio de Queirós, grupo responsável pela
obra de centralização do Segundo Reinado e pela construção do Estado nacional
brasileiro – a escrever o Ensaio sobre o direito administrativo, publicado em
1862.4 Nesta obra, elaborada a partir das questões suscitadas pelas leituras de
Alexis de Tocqueville e François Guizot, Visconde do Uruguai discorre sobre o
papel do Estado e sua relação com a sociedade, criticando a eficiência das
instituições que havia ajudado a fundar.5
Em sua obra, o direito administrativo é conceituado em termos da relação
que orienta entre a autoridade administrativa e os administrados, ou seja, ocupa-se
do poder administrativo, um dos braços do poder executivo, ao lado do poder
político. Nesse sentido, ressalta o autor que a separação entre o político e o
administrativo seria essencial para reprimir eventuais desvios nas condutas dos
administradores, uma vez que a invasão de interesses políticos na administração
faz com que esta transforme-se no “(...)vasto campo dos favores e o meio de
procurar e firmar apoio político, às vezes momentâneo, com grande prejuízo dos
serviços administrativos, e às vezes com grande desmoralização.”6 A fragilidade
da organização administrativa, tão fortemente sentida no Brasil, refletia-se, nas
bruscas modificações que se davam, a cada mudança governamental, no modo de
encarar as questões de sua natureza.
3 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, p. 52-53.4 Diogo de Figueiredo Moreira Neto relata que, proclamada a Independência, os Cursos Jurídicosde São Paulo e Olinda, fundados pela Carta de 11 de agosto de 1827, não traziam originalmente ascadeiras de Direito Administrativo, incluídas apenas em 1855. As obras pioneiras sobre o assuntodatam de 1857, tanto a de Vicente Pereira do Rego, com os Elementos de Direito Administrativo,quanto a de José Antônio Pimenta Bueno, que publicou o seu Direito Público Brasileiro e Análiseda Constituição do Império. No entanto, ressalta Moreira Neto que o autor mais significativo doperíodo imperial foi o Visconde do Urugaui, cuja obra pressegue na tradição francesa. Curso deDireito Administrativo, p. 59-60.5 Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai, percebeu o caráter novo da matériaanalisada: “As raias do direito administrativo, o qual, como veremos, é uma ciência muito nova,não estão ainda tão claramente fixadas (...) Por isso as definições que dela deram são umas mais eoutras menos amplas (...) Cada um seguiu o seu sistema, o que produz grande confusão no espíritodaqueles que procuram iniciar-se na ciência daquele direito.” URUGUAI, Visconde do, Ensaiosobre o direito administrativo, p. 83. A trajetória do Visconde do Uruguai é analisada naintrodução de José Murilo de Carvalho à reedição da obra citada.6 URUGUAI, Visconde do. Ensaio sobre o Direito Administrativo, p. 93. (grifo nosso)
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Ainda de acordo com sua análise, o Estado Imperial, embora onipresente,
operava de forma ineficiente, pois ficava distante de seus administrados no que se
refere à implementação de políticas públicas, inversamente ao que acontecia na
América analisada por Tocqueville, onde o papel da sociedade era “sublinhado”.
Desse modo, ele constatou que a excessiva centralização administrativa aniquilava
o espírito público dos cidadãos brasileiros.
No entanto, se, por um lado, a descentralização administrativa constituía-
se em um instrumento fundamental para a transformação da administração pública
brasileira, de acordo com os paradigmas norte-americanos e europeus de
eficiência, por outro lado, o Visconde do Uruguai destacou a necessidade da
centralização política – posição óbvia para um membro do vitalício Conselho de
Estado de D. Pedro II.7
O funcionamento político-administrativo do Império Brasileiro, não
obstante a ruptura com Portugal e o desprezo pelas repúblicas latino-americanas,
deitou as suas raízes na longa tradição ibérica, originada com os
constitucionalistas da Segunda Escolática, ainda no século XVI. De acordo com
aquela tradição, o Estado é o responsável pelo Bem Comum, que se contrapõe
tanto à idéia contratualista, que retira do Estado o seu caráter sacro, quanto à do
liberalismo, que propaga a mínima intervenção estatal na vida dos indivíduos. Em
suma, tratava-se da questão de conceder primazia ou ao coletivo, caso dos
escolásticos, ou ao indivíduo, caso dos iluministas.
Pode-se afirmar que a concepção ibérica acerca da natureza do Estado
desdobrou-se em duas vertentes: uma virtuosa, da valorização da esfera pública, e
a outra degenerada, onde a sociedade espera dos governantes a resolução de todos
os seus problemas.
Para Richard Morse, as remotas escolhas políticas feitas na Inglaterra e na
Península Ibérica foram decisivas para os seus reinos transatlânticos.8 Os ingleses,
em meados do Seiscentos, optaram por seguir as idéias contratualistas
hobbesianas, mas é importante salientar que outras se apresentavam, como por
exemplo o humanismo cristão de Milton ou o neotomismo de Richard Hooker.
7 Nessa perspectiva, assinala que o poder central deveria evitar as arbitrariedades das oligarquiasprovinciais e garantir as liberdades individuais, enfim, o Estado deveria adotar uma atitudepedagógica, conjugando autoridade e liberdade.8 MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e idéias nas Américas.
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Já, em Portugal e Espanha, a opção política fora realizada um século antes.
Morse destaca que, no século XVI foi construído um consenso espanhol,
fundamentado na interpretação teológica, que compreendia as fontes de
legitimidade do governo, o alcance de seu poder, as suas concepções jurídicas,
entre outros aspectos:
Espanha oferecia um cenário (...) em que as alternativas políticas eram buscadasdentro de uma matriz de interesses teológicos, morais e filosóficos. Nem mesmoo ‘cristão profético` Las Casas jamais tentou criar um linha política ou dissidentefora das instituições eclesiásticas; ao contrário, trabalhou dentro dessasinstituições, utilizando geralmente a linguagem do escolástico e do legista.9
Um dos maiores expoentes do neotomismo hispânico foi Francisco de
Vitoria (1492-1546), que ensinou em Paris e Salamanca, onde foi eleito
catedrático de teologia. Os escolásticos elaboraram uma teoria da sociedade
política inserida num universo regido por uma hierarquia de leis: lex aeterna, em
primeiro lugar, pela qual age o próprio Deus; lex divina, revelada por Deus nas
escrituras e sobre qual a Igreja foi fundada; lex naturalis, implantada por Deus nos
homens; e, finalmente, lex civilis, criada pelos homens.10 A influência do
tomismo continuou a se disseminar, impulsionado pelas reformas do Concílio de
Trento, e brevemente chegaria a Portugal pelas mãos dos jesuítas.
Richard Morse não estabelece uma hierarquia entre a opção inglesa e a
ibérica, interpretando-as como frutos de diferentes problemas históricos e busca
de meios de legitimação do poder estatal:
Vitoria escreveu no momento em que a Espanha se envolvia com os novosEstados nacionais e com os povos não cristãos do ultramar. (...) Vitoria enfrentouum problema de casuística – ajustar a experiência a cânones respeitáveis – maisdo que de reconstituição. Hobbes, ao contrário, nascido numa nação insular emodernizante no portentoso ano da Invencível Armada e chegando à maturidadenuma época de violência civil e cisma ideológico, teve de enfrentar o problemade reconstituir uma ordem nacional que, uma vez legitimada, proporcionasse umnovo apoio de poder internacional. Vitoria dirigia-se a um vasto mundomultiforme, Hobbes a um mundo circunscrito e homogêneo. Nos dois casosuniversalismo e particularismo ocupam posições contrárias. O desafio de Vitoriaera acomodar um amontoado idiossincrático de nações e povos numa ordemmoral universal; o de Hobbes era descobrir um conjunto de axiomas ‘científicos’através dos quais uma unidade política singular pudesse ser organizada como umprotótipo.11
9 Idem, p. 39.10 Cf. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno.11 MORSE, Richard. Op. Cit., p. 61. (grifo nosso)
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O poder coercitivo do Estado, segundo os escoláticos, deve ser utilizado
para a realização do bem comum. Inversamente, o pacto político proposto pelo
contratualista inglês nega que a autoridade estatal seja conferida por uma
instância divina, sobre-humana, tendo sido “adotado por medo antes do que por
um espírito de realização auto-comunal.”12
A percepção de que as raízes dos problemas brasileiros encontrava-se na
herança colonial foi exposta pela primeira vez por Tavares Bastos, na obra Os
males do presente e as esperanças do futuro, publicada em 1861 e que condenava
de forma veemente o despotismo burocrático lusitano. A mesma linha foi seguida
por Manoel Bonfim, autor de A América Latina: males de origem.
Entretanto, o Estado Patrimonialista passou a constituir o cerne da análise
apenas em 1958, com a primeira edição de Os donos do Poder, do jurista
Raymundo Faoro. De fato, a persistência secular da estrutura patrimonial é a
chave para a leitura da história luso-brasileira, de D. João I a Getúlio Vargas:
Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído peloestamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, dasconcessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que,com o aperfeiçoamento da estrutura se extrema em competências fixas, comdivisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal. (...) Acompatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional,equivocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das chaves dacompreensão do fenômeno histórico português-brasileiro, ao longo de muitosséculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial.13
De acordo com Faoro, o patrimonialismo se amolda às transformações e o Estado
permanece sobre a Nação. “Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho,
vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre
rebentasse.”14 Antes disso, na década de 1940, Victor Nunes Leal já havia
analisado o coronelismo como um compromisso entre o poder público e a
decadente influência social dos chefes locais, isto é, “uma adaptação, em virtude
da qual os resíduos de nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido
coexistir com o regime político de extensa base representativa.”15
Entre as características do coronelismo, Victor Nunes destaca o
clientelismo, o sistema eleitoral fraudulento, o mandonismo e a desorganização 12 Idem, ibidem.13 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, p. 823.14 Idem, p. 837.
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dos serviços públicos locais – aqui chega-se ao ponto assinalado pelo Visconde do
Uruguai: a ineficiência da administração pública. O Estado não serve ao
contribuinte, nem à população carente, senão aos afilhados políticos dos coronéis,
que aparecem freqüentemente como benfeitores, responsáveis pelos
melhoramentos da escola, da igreja, pelos serviços de infra-estrutura, através dos
quais advém a sua liderança.
A ascendência do proprietário rural, ou do bacharel seu genro, está
baseada nas íntimas relações entre o poder privado e o poder público, denominado
de sistema de reciprocidades:
(...) de um lado, os chefes municipais e os ‘coronéis’, que conduzem magotes deeleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação políticadominante do Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da forçapolicial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça. 16
Assim, a administração municipal constituía uma espécie de feudo dos
coronéis, que se utilizavam dela para o atendimento de favores pessoais e
obséquios paternalistas. Os chefes locais utilizavam-se da complacência dos
políticos estaduais, que trocavam o apoio daqueles pela indicação de funcionários
do estado no município, sobretudo do delegado e do subdelegado de polícia.
Muito embora a primeira edição do livro de Victor Nunes Leal tenha sido
publicada em 1949, quando a maioria da população residia em municípios do
interior, diversas analogias podem ser feitas com a política contemporânea,
caracterizada ainda pelo oficialismo de alguns partidos, pela promiscuidade entre
as esferas pública e privada, pelo clientelismo, definido pela célebre expressão “é
dando que se recebe.”
Cumpre frisar que os diagnósticos acima aplicam-se também à falta de
organização dos institutos administrativos, que até hoje sobrevive na doutrina e
jurisprudência brasileiras, pois parcos são os assuntos que podem gozar de relativa
consensualidade.
No Brasil, o Direito Administrativo perfez-se como o ramo do direito
público mais afeito ao princípio de autoridade, traduzido em conceitos como o da
imperatividade, supremacia do interesse público, insindicabilidade do mérito,
15 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo noBrasil, p. 40.16 Idem, p. 63-64.
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dentre outros. Com isso, isolou-se dos demais ramos do Direito, solidificando
uma postura essencialmente autoritária.
Jacques Chevallier lembra que a idéia de poder dominou, até o final do
século XIX, o sistema de relações entre administração e sociedade, constituindo o
fundamento da legitimidade administrativa. A Administração, encarnando a
majestade do Estado, e exprimindo todo o seu poder, dota-se de uma
superioridade ontológica e prática em relação ao resto da sociedade. Assim é que
“le droit administratif, conçu avant tout comme un droit de prérrogatives et de
privilèges, n’est lui-même que la tradution de cette preéminence”. 17
Embora esta concepção autoritária da Administração Pública tenha sido
questionada já no começo do século XX, quando a doutrina administrativa
transforma a administração em ator do quotidiano e gerador do social, apenas
décadas mais tarde, com a promulgação da Constituição da República de 1988, é
que se operaria uma mudança mais substancial. De fato, a Constituição trouxe os
germes de uma constitucionalização de todos os setores do direito, mormente do
Direito Administrativo, que parecia pairar sobre o ordenamento jurídico. A
consagração, já no artigo 1o da Constituição, de um Estado Democrático de
Direito, impôs a consideração, por parte de todos os agentes do Estado, de duas
ordens distintas de referência ético-políticas: a legal e a legítima. Nesse quadro, o
enclausuramento do direito administrativo tornou-se não apenas inconveniente,
mas sobretudo inconstitucional, pois ao administrador, na elaboração de atos e
tomadas de decisão, caberia observar não só a ordem legal, como também a
ordem legítima, calcada no conceito de interesse público. Impôs-se, doravante, a
observância de valores vigentes na sociedade, espraiados por todo o sistema
jurídico.
Assim é que se pode afirmar, na esteira de Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, observando o fenômeno em seu Mutações do Direito Administrativo, que a
afirmação do constitucionalismo e a sociedade participativa foram os fatores
essenciais para uma maior integração do direito administrativo aos demais ramos.
Inserida na constelação pós-positivista, a Constituição de 1988 ajudou na
consolidação de um forte papel atribuído aos princípios gerais do direito, muitos
dos quais encontram-se cristalizados no extenso rol dos direitos fundamentais do
17 CHEVALLIER, Jacques. “Psychologie et Science Administrative”, In : Figures de L’usager, ,p. 38.
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artigo 5o. Robert Alexy ressalta que a partir da inclusão dos direitos fundamentais
nas constituições, existe uma íntima conexão entre o direito e a moral, que
assegura aos princípios sua normatividade máxima. Nesse sentido, cabe ressaltar
as palavras de Paulo Bonavides sobre a importância dos princípios
constitucionais no papel de integração e unificação do sistema jurídico, eis que
passaram a ser encarados como “(...) a viga-mestra do sistema, o esteio da
legitimidade constitucional, o penhor da constitucionalidade das regras de uma
Constituição”18.
Colocados no ápice do ordenamento jurídico, os princípios penetraram no
âmago da administração pública através do artigo 37 da Constituição da
República, que assim consagrou: “a administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência(...)”. Ao lado destes, Marino Pazzaglini Filho elenca uma série de
princípios constitucionais implícitos, que regem a atividade administrativa, como
o da finalidade, o da igualdade, o da motivação, o da supremacia do interesse
público, os da lealdade e da boa fé administrativa, e, principalmente, os da
razoabilidade e da proporcionalidade. 19
Matriz da atividade administrativa, a legalidade envolve não apenas a
sujeição dos agentes públicos às leis, mas também, e principalmente, “aos
princípios constitucionais que regem a atuação administrativa”.20
Por outro lado, colocada ao lado da legalidade na conceituação do Estado
Democrático de Direito, a legitimidade é a manifestação do princípio
democrático, ou seja, “da conformidade do agir do Estado com a vontade
popular”.21 Traduzida no conceito de interesse público, a legitimidade, a partir da
Constituição da República de 1988, passa a ser a preocupação maior de uma
administração pública que outrora buscava fundar seus atos na força de sua
autoridade. Deve-se ressaltar que o artigo 70 da Constituição, ao dispor sobre a
fiscalização contábil, financeira e orçamentária da administração pública
gerencial, faz expressa menção à legitimidade, nestes termos: “a fiscalização
18 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constituciona,.p. 265.19 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios Constitucionais Reguladores da AdministraçãoPública.20 Idem, p. 24.21 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 206.
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contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das
entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, à legitimidade,
economicidade, aplicação das subvenções e renúncias de receitas, será exercida
pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle
interno de cada Poder”.
A crise de legitimidade, relatada por Habermas, atinge em cheio as esferas
administrativas, suas decisões e atos unilaterais, conforme foi sentida no Brasil
através da crise dos serviços públicos prestados pela administração direta e
indireta, maculados de corrupção e burocracia generalizadas.
Uma possibilidade de superação dessa crise, e isso parece ser quase que
uma unanimidade entre os autores que trabalham a matéria, encontra guarida no
princípio da participação. Habermas propõe, com base nesta constatação, um
alargamento dos mecanismos de participação da sociedade nas tomadas de
decisões institucionais, mediante o exercício de um diálogo racional dentro de um
espaço público fortalecido, essencialmente politizado. Aos tradicionais
instrumentos de participação direta da sociedade, juntam-se aqueles inaugurados
pela nova postura administrativa, eminentemente consensualista e reguladora,
consubstanciados nas leis instituidoras das agências reguladoras: o debate público,
a coleta de opinião, a audiência pública, o colegiado misto etc.
A consensualização da administração pública, que passa inevitavelmente
por uma ampla inserção ativa da sociedade, é um processo que foi importado da
experiência francesa, relatada por Alain Plantey. Ali, desde o início do século XX,
houve um anseio muito grande de participação dos cidadãos, que, alienados pela
falta de informação sobre as decisões do Poder Público, viam-se constrangidos a
praticar atos sem saber sequer a sua destinação.22 Aos poucos, a própria
administração foi percebendo que a participação dos interessados era um
poderosíssimo instrumento para a implementação das políticas públicas de forma
eficiente e que a informação dos atos do poder público aos cidadãos, trazendo
consigo a maior divulgação de suas expectativas e desejos, viabilizava um
eficiente controle social. Assim é que na Constituição francesa de 27 de outubro
22 PLANTEY, Alain. L’association au pouvoir, p. 231: “une personne digne d’être appeléeà délibérer de ses intérêts et de son avenir, préoccupation qui s’étend à tous lesdomaines(...)”.
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de 1946 já se previa a participação do trabalhador na determinação coletiva das
condições de trabalho, bem como na gestão das empresas.
O processo de aprendizagem deve superar o que Plantey chama de falta de
informação, que, aliada à falta de formação geral dos cidadãos, marcam a
alienação do homem moderno. Com tal intento é que diversas estatais francesas
promoveram campanhas de informação, de prevenção e de promoção . Por outro
lado, a instituição dos comitês dos usuários pretendia fornecer uma canal de
comunicação das opiniões e demandas de caráter geral, sem se substituir aos
eleitos.
No Brasil, essa tomada de consciência foi bem mais lenta, pois a
participação apenas foi erigida em princípio constitucional em 1988, como forma
de conferir legitimidade à atuação administrativa. Ao lado da participação, outro
princípio inserto na Constituição como critério aferidor da legitimidade foi a
eficiência, introduzido como “parâmetro de avaliação dos resultados da gestão
orçamentária, financeira e patrimonial dos órgãos e entidades da adminisração
federal, bem assim da aplicação de recursos públicos por entidades de direito
privado”.23 Não obstante a sua consagração implícita para toda a administração
pública desde a promulgação da Constituição de 1988, a Emenda Constitucional
n. 19 de 04 de julho de 1998, entendeu por bem incluí-lo ao lado dos demais
princípios expressos reguladores da administração pública.
Moreira Neto considera que dos princípios da legitimidade e da eficiência,
os “mega-princípios orientadores da renovação”, derivaram os princípios políticos
da subsidiariedade e da participação política, os princípios técnicos da autonomia
e da profissionalização, e os princípios jurídicos da transparência e da
consensualidade.24
Esses foram os supedâneos para o início de uma mudança paradigmática
de postura na Administração Pública, que busca agora calçar suas atuações em
decisões compartilhadas pelos administrados. Busca, em suma, superar a crise de
23 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit, p. 32.24 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 19.Ressaltando as vantagens do princípio da consensualidade sobre o princípio da imperatividade, oautor assevera que “as formas de participação que se logram pela consensualidade são cada vezmais importantes nas democracias contemporâneas, uma vez que: contribuem para aprimorar agovernabilidade; propiciam mais freios contra o abuso; garantem a atenção a todos os interesses;proporcionam decisão mais sábia e prudente; desenvolvem a responsabilidade das pessoas; etornam as normas mais aceitáveis e facilmente obedecidas”. Op. Cit, p. 27.
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governabilidade25, que se traduz em uma crise de legitimidade das estruturas
juspolíticas, através de uma atuação participativa e, portanto, legítima, tornando
seus atos mais eficientes.
Para atingir tal desiderato, o Estado deve sobretudo viabilizar o
fortalecimento de um espaço público, através de vias de comunicação e diálogo,
abertas pelos novos mecanismos postos para tal fim no ordenamento jurídico
brasileiro. Por outro lado, cabe à sociedade civil26 empreender um longo processo
de aprendizagem calcado no diálogo e no controle social dos atos do poder
público, a fim de que faça valer efetivamente suas posturas.
Vale notar a recente criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico
e Social, sob a coordenação do Secretário de Defesa Econômica e Social, Tarso
Genro, como órgão de consulta da Presidência à sociedade civil, permitindo um
“canal institucionalizado de negociação de pactos entre diferentes atores
societários e o governo, em relação à agenda das reformas”27. Este conselho, em
que pese as críticas de usurpação das instituições democráticas, vem, ao
contrário, reforçar os mecanismos de concertação social no campo da
administração pública, tomando como espelho o bem sucedido modelo francês.
Nesse sentido, cabe ressaltar que a previsão de tal conselho possui na França
estatura constitucional, constando de seus artigos 69, 70 e 71:
Article 69. Le conseil économique et social, saisi par le Gouvernement, donneson avis sur les projets de loi, d’ordonnance ou de décret ainsi que sur lespropositions de loi que lui sont soumis.Un membre du Conseil économique et social peut être désigné par celui-ci pourexposer devant les assemblées parlementaires l’avis du Conseil sur les projets oupropositions qui lui ont été soumis.
Article 70. Le Conseil économique et social peut être également consulté par leGouvernement sur tout problème de caractère économique ou social intéressantla République ou la Communauté. Tout plan ou tout projet de loi de programme àcaractère économique ou social lui est soumis pour avis.
25 A maior sobrecarga de demandas aliada à maior conflituosidade social e à maior distribuição edesconcentração de poder nas sociedades democráticas e pluralistas são os fatores, que paraMoreira Neto, levaram à crise de governabilidade.26 Embora não seja objeto do estudo aqui analisar a função do Ministério Público, enquantoinstituição constitucionalmente destinada a fazer observar os valores da república, não se descurada sua importante atuação em prol de um espaço público, seja através do ajuizamento de açõescivis públicas para tutela de interesses coletivos e difusos, seja mediante cobranças sociais dasinstituições do poder público.27 FLEURY, Sônia. “O Conselho e a Democracia”. O Globo, 06/03/03.
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Article 71. La composition du Conseil économique ou social et ses règles defonctionnement sont fixées par une loi organique.
3.1.Do Intervencionismo à Regulação
Fatores econômicos, como uma crise fiscal aguda, quando associados àsiniciativas de mudanças de paradigmas, geralmente transformam-se emimportante argumento político para a sua aceitação.
José Maria Machado Gomes
O Estado Moderno deve ser visto em suas duas distintas vertentes: o
Estado Liberal, assentado na liberdade de iniciativa, na propriedade privada e no
livre exercício da atividade econômica, que vigorou até o século XIX, e o Estado
Social, que, tanto na sua vertente do Estado de bem estar social, quanto na sua
vertente socialista, teve início no final do século XIX e perdurou até o início dos
anos setenta.
No Brasil, o século XX iniciou um modelo de intervencionismo
econômico que só viria a se modificar substancialmente com a Constituição da
República de 1988. Decerto, foi a crise na produção do café no início daquele
século, que levou o Estado a abandonar a postura do lassez faire, adotando uma
política de valorização cafeeira. Nesse sentido, José Maria Machado Gomes
ressalta que o “Acordo de Taubaté foi assinado apesar da oposição dos
banqueiros da casa Rothschild, que temiam não receber o pagamento das dívidas
passadas, e do próprio Governo brasileiro pressionado pelos banqueiros
ingleses”.28
Apesar dessas experiências intervencionistas, apenas com o fim da
primeira Guerra Mundial e com a quebra da Bolsa de Nova Yorque, em 1929, é
que o intervencionismo mostrou-se mais contundente, assumindo o Estado papéis
relegados aos particulares. A depressão mundial fez o Brasil notar que era
fundamental uma política de industrialização que tivesse por base a empresa
nacional, essencial para a sua independência econômica. O processo de criação
28 GOMES, José Maria Machado. “O Novo Paradigma Regulatório do Estado Brasileiro: fazercoisas novas ou velhas de uma forma nova?”, p. 24.
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das estatais implementou-se na década de 40, quando foram criadas a Companhia
Siderúrgica Nacional e a Companhia Vale do Rio Doce, dentre outras.29
Praticamente em todo o mundo ocidental, o fortalecimento do Estado
Social, sob a influência do Keynesianismo norte-americano, sugeriu um Estado-
interventor capaz de reduzir os ciclos de altos e baixos do mercado, temidos pelas
sociedades capitalistas.30 No Brasil não poderia ser diferente. Contudo, Luís
Roberto Barroso assinala que aqui, bem como em Portugal, o atraso na chegada
do Estado Liberal fez-se sentir também quando se tratou de implantar o Estado
Social. De fato, o Estado Patrimonial, “no qual se sobrepunham o público e o
privado, o imperium (poder político) e o dominium (direitos decorrentes da
propriedade)”, nunca se apagou em sua totalidade, permanecendo quer sob a égide
de um pretenso Liberalismo, quer sob a égide do Estado Social.31
Aliada ao crescente intervencionismo estatal, a progressiva substituição do
termo “administrado” por “usuário”, conforme ressaltado por Jacques Chevallier,
foi representativa de uma nova postura administrativa: colocado como
beneficiário das prestações estatais, o usuário sai da antiga posição de sujeição
face à administração pública. Aliás, a aparição concomitante, no vocabulário
jurídico, dos termos usuários e serviços públicos32, legitimou o crescimento
29 BARROSO, Luís Roberto. Introdução ao livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, p. 20.30 Na Europa, o surgimento dos regimes totalitários traduziram, na essência, a contrapartidamáxima do intervencionismo contra o liberalismo econômico.31 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio ao livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto.32 Segundo Odilon ANDRADE, diferenciam-se os serviços públicos dos serviços de utilidadepública pelo processo de contato com o cidadão: os primeiros são aqueles serviços que o Estadoimpõe, o cidadão sofre, e são assegurados mediante coerção. Já, os serviços de utilidade públicasão os que o Estado coloca à disposição dos cidadãos e que eles podem aceitar ou recusar, emqualquer caso, sem nenhuma conseqüência para as suas liberdades. Continua o autor afirmandoque a utilidade pública nada mais é que a utilidade individual generalizada, posta à disposição detodos. Nesse sentido, o autor observa que nem toda utilidade pública constitui objeto de serviço eenquanto nele não se transforme, conserva seu caráter privado. O caráter público, juridicamentefalando, lhe é conferido quando o Estado se incumbe de provê-la, diretamente ou por intermédiode concessionários. Serviços Públicos e de Utilidade Pública, p. 78.
Para Celso Antônio Bandeira de MELLO, o serviço público consiste em “toda atividadede oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados,prestado pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público (...)instituído pelo Estado em favor de interesses que houver definido como próprios no sistemanormativo”. Curso de Direito Administrativo, p. 477.
Marçal JUSTEN FILHO e Cesar A. Guimarães PEREIRA assinalam que o que faz oserviço ser público é a sua publicatio, ou seja, a edição de norma que submeta o serviço a regimede direito público, atribuindo sua titularidade ao Estado. Isso não impede, segundo estes autores,que seja prestado em outro regime jurídico, como é o caso da concessão e da permissão. Para eles,a essencialidade e a compulsoriedade na prestação e na utilização do serviço não são obstáculos àsua concessão, pois que esta é forma de regulação da prestação de serviços públicos assegurada
90
desmesurado de atividades prestadas pelo Estado, destinadas a assegurar o
interesse geral.
Nesse sentido, a ação administrativa era toda guiada, em tese, para a
satisfação dos usuários. O serviço público, ressalta Chevallier, mostra-se como a
caução do bom uso do poder e a garantia última da legitimidade administrativa.
Entretanto, essa pretensa emancipação do administrado, sob o signo de principal
beneficiário da atividade estatal centralizada, apenas representou uma nova forma
de dominação, bem mais sutil. Capturado pelas necesidades dos mercados, e não
o inverso, o usuário acaba por obedecer à sua lógica. A criação de “necessidades”
e a sujeição às leis impostas pelo mercado, ainda que centralizado pelo Estado,
são meticulosamente disfarçadas sob o manto do interesse público, entregue à
discricionariedade administrativa.
O malogro da exploração direta da atividade econômica pelo Estado,
calcada no modelo de serviços públicos, foi destacada já em 1937, por Odilon
Andrade, que descreveu com clareza admirável os problemas gerados por uma
administração excessivamente centralizada:
a) falta de interesse pessoal pelos resultados do serviço(...); b) organizaçãoburocrática, inseparável da gerência pelo Estado, é outra causa de fracasso(...); c)finalmente, e como causa das causas, a intervenção constante da politicagem, nãosó quanto ao preenchimento dos cargos, superlotação de empregados e suadisciplina, como também quanto ao funcionamento, pela acomodação do serviçoaos interesses locais ou particulares, com sacrifício dos gerais.(...)33
A concessão do serviço público era, naquela época, o principal
instrumento de que dispunha a administração para desincumbir-se da prestação
direta dos serviços de utilidade pública. Nesse sentido, Odilon Andrade, embora
reconhecendo a impossibilidade de o Estado prestar todos os serviços de que
necessitavam os usuários, percebe os inconvenientes da política de concessão, que
se traduz na apropriação do interesse público pelo privado, resultando no seu
desvirtuamento, e na dificuldade de conciliação entre os interesses do
concessionário e os do público a quem serve, que lhes são contrários por natureza.
constitucionalmente: a existência de maior relevância social do serviço apenas conduz àconsagração de metas e critérios mais estritos e rigorosos. “Concessão de Serviços Públicos deLimpeza Urbana”, p. 272.
33 ANDRADE, Odilon. Serviços Públicos e de Utiidade Pública, p. 87-8.
91
Ou o Estado, nesse contrato, fica acima do particular, como poder público, e ocontrato não pode existir, ou a ele se equipara, para contratar, mas neste caso,despido do poder público, é um particular como qualquer outro, e o contrato quefizer nada tem com o direito público. O que não se concebe é a misteriosatransubstanciação por que o fazem passar, de príncipe a súdito, podendo tudoantes do contrato e nada depois dele, igualado ao concessionário no simples lancede uma assinatura.34
Como forma de resolver o impasse, o autor traz à baila a experiência
regulatória norte-americana, a qual, no entanto, considera incompatível com o
ordenamento jurídico brasileiro então vigente. De fato, o constituinte de 1934
limitara a intervenção estatal nas empresas concessionárias de serviço de utilidade
pública apenas à fiscalização e revisão de suas tarifas.
No Brasil, a impossibilidade de prestação dos serviços de utilidade pública
apenas pela administração direta, bem como o inconveniente das concessões
destas atividades a empresas privadas, que a subtraíam ao interesse público,
auxiliaram na consolidação de uma administração indireta, materializada
sobretudo na Reforma Administrativa de 1967. Esta sistematizou,
legislativamente, “a conceituação das entidades integrantes da administração
pública descentralizadas por devolução de poderes e, assim, dotadas de
personalidade jurídica própria (arts. 4º e 5º), nominadas como autarquia, empresa
pública e sociedade de economia mista(...)”. 35
Nessa época, notadamente nas décadas de 60 e 70, tornou-se mais visível o
incontornável processo de agigantamento do Estado, possibilitado pelo
crescimento desmesurado das empresas estatais, que chegaram, no âmbito federal,
ao número de 530 em 1981.36
O Estado, transformado em prestador de serviços, conferiu ao Poder
Executivo amplos poderes, outorgando-lhe diversos instrumentos normativos, tais
como decretos-leis - hoje medidas provisórias -, leis delegadas, regulamentos etc.
Esta concepção do Estado “(...) coloca em segundo plano o problema dos limites
do poder que constituíam a base do Estado liberal, preocupado com as
salvaguardas das liberdades individuais”.37 Assim é que o modelo centralizador38
34 Idem, p. 96.35 DIAS, Francisco Mauro. As transformações da esfera administrativa e o poder público, p. 14.36 Dados tomados da introdução que Luís Roberto Barroso dedicou à obra de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, intitulada Direito Regulatório.37 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,franquia, terceirização e outras formas, p. 25.
92
do Estado Brasileiro, influenciado pelo modelo francês, levou, aos poucos, à
hipertrofia estatal39, o que foi possibilitado por processos de endividamento do
próprio Estado, contraídos por empréstimos em condições favoráveis à época.
Nos anos setenta, o esgotamento do modelo unitário gerou uma série de
discussões sobre a necessidade de redefinição do papel do Estado, centrando-se os
debates em duas ordens de idéias: o fato de que “os instrumentos de
compatibilização entre o mercado e o welfare state haviam aumentado o nível de
complexidade da sociedade, gerando (...) uma inflexibilidade burocrática(...)”40, e
a crença de que a origem dessa crise de ingovernabilidade estaria na
“(...)incapacidade do Estado de gerar, no âmbito administrativo, o consenso
necessário à criação de normas e instituições capazes de operar de forma
eficiente”41.
Nos anos 80, agudizou-se a crise das finanças públicas, que trouxe à tona a
incapacidade do Estado em alocar recursos na expansão e manutenção da infra-
estrutura. Às taxas de inflação crescentes juntaram-se as elevadas dívidas internas
e externas, que, somadas aos acontecimentos internacionais – o segundo choque
do petróleo, em 1979, a recessão econômica dos países capitalistas do “1o
Mundo”, elevação das taxas de juros no mercado internacional, aumentando
gastos com pagamento do serviço da dívida externa e, finalmente, a suspensão de
novos empréstimos ao Brasil pelo Sistema Financeiro Internacional -, levaram o
antigo modelo desenvolvimentista e centralizador ao colapso.42
Nesse sentido, José Maria Machado Gomes ressalta que, com o intuito de
combater a inflação e propiciar subsídios ao setor privado, adotou-se uma política
de defasagem das tarifas e preços das estatais, política esta que arruinou por
completo a situação financeira dessas empresas. Estas chegaram, assim, ao final
dos anos 80, muito endividadas e com dificuldade de se autofinanciarem. A crise
38 Falando sobre os males de uma excessiva centralização, Paulino José Soares de SOUZA, oVisconde do Uruguai, ressalta já no século XIX: “tende a multiplicar em demasia as rodas e aspeças da máquina administrativa, os empregados, as comunicações hierárquicas do serviço, apapelada, a escrita, as dúvidas e as formalidades. Tende a aumentar ultra modum a chaga dosempregados assalariados, e a despesa que trazem seus ordenados, gratificações e aposentadorias”.Visconde do Uruguai, p. 44139 O fim da segunda guerra mundial trouxe como conseqüência uma atuação estatal maiscontundente, para evitar os possíveis “abusos” do mercado. O Estado brasileiro reflete essa posturaatravés de uma feição empresarial centrada essencialmente nos serviços de infra-estruturas.40 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 1.41 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, p. 1.42 Idem, p. 72-73.
93
financeira internacional de 1982-1983 levou ao colapso as economias, pois os
Estados, diante das elevadas taxas de juros dos empréstimos internacionais,
tiveram de romper sucessivamente com o Fundo Monetário Internacional,
gerando situação de inadimplência profunda.
Alexandre Santos de Aragão assinala, nesse sentido, como foi que, até
meados dos anos oitenta, o Estado Democrático assumiu um modelo fortemente
interventivo e redistributivo, tomando para si largos setores da economia.
Acreditava-se que, como “(...)numa sociedade altamente diferenciada, os
indivíduos estão em forte medida dependentes do fornecimento destes bens de
consumo elementares(...)”, seria de todo indesejável “(...)confiar uma tal
administração das elementares necessidades existenciais, tendencialmente
monopolísticas, a empresas privadas”.43 Contudo, não é despiciendo sublinhar as
sábias palavras de Luís Roberto Barroso, para quem o Estado brasileiro nunca foi
verdadeiramente liberal, nem social e muito menos socialista. Foi um Estado do
atraso social, um “favelizador ideológico”, que assumiu como norte de sua
atuação a burocracia e a ineficiência: um Estado que contraía empréstimos no
exterior para financiar uma burguesia industrial e financeira, a qual,
paradoxalmente, quer dele agora se livrar.44
A superação desse Estado afigurava-se inevitável, e tal foi feito em prol de
um Estado-regulador. Esta direção mostrou-se necessária para “permitir a
liberdade de atuação dos agentes econômicos e incentivar o crescimento auto-
sustentado”45. Parte-se da premissa de que a sociedade pode resolver grande parte
de seus problemas de uma forma mais eficiente, descentralizada e menos custosa.
Redimensiona-se o postulado da imperatividade estatal, a fim de se alcançar um
equilíbrio entre a coerção e o consenso, “(...) dando surgimento ao conceito do
público não estatal e, com isso, a uma desmonopolização do poder”.46
O neoliberalismo, adotado como alternativa de superação da crise do
modelo providencialista, diferencia-se substancialmente do liberalismo clássico
por admitir algum controle sobre a concentração do poder econômico que seja
prejudicial ao próprio mercado. Esse modelo assinala, contudo, nos moldes do
43 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 63.44 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio ao livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto.45 BENJÓ, Isaac. Fundamentos de Economia de Regulação, p. 17.46 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 41.
94
liberalismo, a necessidade de o Estado respeitar a liberdade de iniciativa e o livre
exercício da atividade econômica, colocados como princípios fundamentais do
sistema econômico nacional, os quais devem ser contrabalançados com o extenso
rol de direitos fundamentais consagrados na Constituição, mormente com o
dispositivo que assegura a dignidade da pessoa humana. O Estado consolida,
portanto, uma postura subsidiária, necessária quando se trata de equilibrar a
balança dos interesses sociais. Segundo Di Pietro, o princípio da subsidiariedade
insere-se na tentativa de colocar o Estado em novos trilhos:
(...)cabe a este promover, estimular, criar condições para que o indivíduo sedesenvolva livremente e igualmente dentro da sociedade; para isso é necessárioque se criem condições para a participação do cidadão no processo político e nocontrole das atividades governamentais.47
As reformas recentes por que passou o Estado brasileiro podem ser
sintetizadas, de acordo com Luís Roberto Barroso, em três importantes
transformações estruturais: a primeira adveio da Emenda Constitucional n. 6, de
15.08.95, a qual suprimiu as restrições existentes ao capital estrangeiro na ordem
econômica nacional; a segunda, efetuada pela Emenda Constitucional n. 5, de
15.08.95, foi responsável pela flexibilização dos monopólios estatais; finalmente,
a terceira efetivou-se mediante a edição da Lei n. 8031, de 12.04.90, que instituiu
o Programa Nacional de Desestatização. Além dessas modificações, acrescente-se
a criação das agências reguladoras independentes, efetuadas mediante leis
específicas.48
Cumpre frisar que todo esse esforço em suplantar a forma de Estado-
providência insere-se na tentativa de expurgar a forma burocrática de organização,
baseada nos “(...)princípios da hierarquia, especialização, impessoalidade,
controle formal, durante muito tempo considerada ideal para a Administração
Pública”.49 Para o intento, promoveu-se um enxugamento do Estado, a fim de que
apenas o seu núcleo estratégico, constituído pelos Poderes do Estado, pelo
Ministério Público e pelos órgãos de assessoramento direto ao chefe do Poder
Executivo, fosse regido pela forma típica que rege a administração pública. Aliás,
47 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,franquia, terceirização e outras formas, p. 28.48 BARROSO, Luís Roberto. Introdução ao livro Direito Regulatório, de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, p. 23-24.49 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,franquia, terceirização e outras formas, p. 32.
95
como ressalta Di Pietro, isso é o que consta do Plano Diretor da Reforma do
Estado- MARE.50
O Plano Diretor da Reforma do Estado, baseando-se nas atividades-fim da
Administração Pública, dividiu a atuação do Estado em quatro setores, a saber: o
núcleo estratégico, acima referido; as atividades exclusivas, que compreendem as
atividades que só o Estado pode prestar; os serviços não exclusivos, setor em que
o Estado atua simultaneamente com outras organizações privadas ou públicas não
estatais, tais como os serviços sociais do Estado; e o setor de produção de bens e
serviços para o mercado, que corresponde à área de atuação das empresas.
Atento a todas essas modificações, Moreira Neto ressalta o fenômeno de
transformação do direito administrativo, que resulta em um re-equilíbrio entre o
direito público e o direito privado. Nesse contexto, avultam de importância as
idéias correlatas de parceria e de integração.
A idéia de parceria na administração pública traz em si uma reelaboração
das funções do Estado, que agora as exerce em conjunto com a sociedade: a
delegação dos serviços públicos, por meio da concessão e permissão; o fomento à
iniciativa privada de interesse público, via convênio ou contrato de gestão; a
forma de cooperação do particular na execução de atividades próprias da
administração, pelo instrumento da terceirização; o instrumento de
desburocratização e de instauração da chamada administração pública gerencial,
por meio dos contratos de gestão. Todas essas formas de parceria indicam um
novo rumo a ser tomado pelo Estado, agora não mais prestador de serviços
públicos, mas regulamentador de seu exercício.
No Brasil, a privatização, como mecanismo para a reforma do Estado, teve
início após a promulgação de sua Constituição da República de 1988. Antes disso,
porém, através do Decreto n. 91991 de 28 de novembro de 1985, o governo
aprovou uma nova legislação, incrementando os procedimentos privatizantes,
reestruturando-o, a fim de torná-lo mais amplo e conferir-lhe maior transparência.
Também o Decreto 95886 de 29 de março de 1988 dispõe sobre o processo de
privatização e desregulamentação.
O Programa Nacional de Desestatização, no entanto, somente foi
implementado em 1990, pela Lei nº 8031, regulamentada posteriormente pelos
50 Idem, p. 33.
96
Decretos 99463/90 e 99464/91. O Programa passa a ser visto como peça
essencial das reformas estruturais a serem realizadas no país.
Cumpre frisar, como o faz Di Pietro, que a privatização, considerada em
sentido amplo, abarca todos os instrumentos de que o Estado se serve para reduzir
a máquina administrativa. Daí porque todas aquelas formas de parceria sejam
encaradas como privatização lato sensu ou desestatização, como prefere Marcos
Juruena Villela Souto, inserindo-se na Reforma do Estado, orientada para os
valores da eficiência e qualidade na prestação de serviços públicos “(...) e pelo
desenvolvimento de uma cultura gerencial nas organizações”.51
Para finalizar, cabe ressaltar o paradoxo da desestatização, que
representou, em alguns setores, uma forma de publicização, pois devolveu à
sociedade “feudos apropriados privadamente”.52
3.2.O Estado Brasileiro pós-constituição de 1988
O processo que levou à aprovação da Constituição da República
Federativa de 1988 foi bastante peculiar: os trabalhos da Assembléia Constituinte
marcaram-se pela influência exercida pelos comunitários brasileiros, que,
inspirados pelo constitucionalismo comunitário português e espanhol,
envolveram-se no debate de “(...)como seria possível conformar uma sociedade
justa e uma estrutura normativa a ela adequada”.53
O esforço empreendido pelos comunitários brasileiros rendeu frutos que se
averiguam da leitura de diversos dispositivos da Carta Constitucional:
(...) em seu preâmbulo, quando identifica a igualdade e a justiça como valoressupremos da sociedade brasileira; ao definir os objetivos e fundamentos doEstado Brasileiro, destacando a dignidade da pessoa humana e a construção deuma sociedade justa e solidária; ao adotar diversos institutos processuais queasseguram o alargamento do círculo de intérpretes da Constituição, revelando umcompromisso entre a soberania popular com a democracia participativa (...).54
51 Idem, p. 42.52 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio do livro Direito Regulatório de Diogo de FigueiredoMoreira Neto.53 CITTADINO, Gisele. Op. Cit, p. 454 Idem, p. 228.
97
A conciliação de interesses, marca não só da própria Constituição, mas
também, e principalmente, de seu processo de elaboração, é de basilar importância
para a compreensão do contexto em que surgiram as agências reguladoras, que
buscam sua legitimidade através de uma solução de compromisso com os diversos
interesses sociais. A consensualidade, marca principal desse novo papel da
Administração, foi reforçada pela crescente importância do princípio da
subsidiariedade, de forma que cada vez mais o entendimento é no sentido de que o
Estado só deve imiscuir-se naquilo em que sua presença se mostrar efetivamente
imprescindível.
Por outro lado, deve-se ressaltar que a unidade do ordenamento jurídico é
um dos paradigmas do direito moderno e assume sua força no texto
constitucional. A Constituição compromissória, em meio à diversidade de valores
e idéias espraiados na sociedade, acolhe normas potencialmente colidentes, as
quais são resolvidas mediante o recurso a técnicas de ponderação aplicadas ao
caso concreto, tendo sempre como norte o princípio da dignidade da pessoa
humana, razão de ser de todo o ordenamento jurídico.55
Ao assumir esta condição, o princípio da dignidade da pessoa humana
encontra concretização nos demais princípios que o fazem valer na prática: diante
de uma colisão entre princípios, aquele que melhor o atender no caso concreto
será considerado o mais adequado. Com isso, legitima-se uma série de outros
princípios, resguardados de possíveis esvaziamentos substantivos, autorizando o
ingresso do ordenamento jurídico brasileiro na constelação pós-positivista:
Esta nova constelação do pensamento jurídico, denominada pós-positivista (...) émais afeita à realização dos ideais de justiça política e social e, também, maiscomprometida com o efetivo funcionamento do Estado Democrático de Direito,especialmente no que toca às atividades concretas de interpretação e aplicação dodireito. 56
A Constituição de 1988 representou, nas palavras de Daniel Sarmento,
“um marco essencial na supressão do autoritarismo e na restauração do Estado
55 SARMENTO, Daniel. A ponderação de Interesses na Constituição Federal, p. 25. Nessesentido, o autor contrapõe-se a Robert ALEXY, para quem não existe um princípio absoluto, sendotodos relativos, apenas podendo ser dimensionados no caso concreto. Daniel SARMENTO afirmaque, não obstante os princípios sejam relativos, existe um princípio que se encarrega de conferir aunidade e coesão ao ordenamento jurídico, e que serve como norte ao intérprete: trata-se doprincípio da dignidade da pessoa humana.56 MAIA, Antônio Cavalcanti. “Os Princípios Gerais de Direito e a Perspectiva de Perelman”. P.16.
98
Democrático de Direito, timbrado pela preocupação com a promoção dos direitos
humanos e da justiça social no país”.57
Diante desse quadro, cumpre salientar a importância do princípio da
participação como concretizador da dignidade da pessoa humana, uma vez que a
coloca como efetivo sujeito de direitos perante o Poder Público.
Na administração pública, a participação assume a função essencial de
legitimadora de suas atividades, representando, assim, um marco no modelo de
democracia participativa. Insere-se no que Habermas chama de modelo
procedimental e participativo do Direito: entendido como sistema de integração
social, o direito permite a institucionalização formal de procedimentos discursivos
racionais formadores de opinião, que possibilitam uma articulada esfera pública.
Esta é que, segundo o filósofo, poderá fazer frente às incessantes tentativas de
colonização do mundo da vida pelos processos de burocratização e monetarização.
Por outro lado, segundo adverte Habermas, as sociedades pluralistas
caracterizam-se pela multiplicidade de subsistemas, que tendem a uma crescente
especialização. Paradoxalmente, a crescente especialização dos subsistemas traz a
idéia de auxílio de outras áreas do conhecimento, ou seja, de
interdisciplinariedade. Daí porque, segundo Alexandre Santos de Aragão, “quanto
mais o Direito conhecer o campo a ser regulado, mais chances terá de propiciar
uma regulação eficiente e dotada de maior efetividade”.58
Nesse sentido, frise-se que a economia, por ser extremamente imprevisível
e dinâmica, é um subsistema com enorme capacidade de se auto-regrar, o que
deve ser atenuado pela influência decisiva do direito, através de uma regulação
eficiente, que conheça os postulados econômicos. Decerto, a possibilidade de
estatuição de normas abertas e flexíveis permite ao direito inserir em seus âmbitos
aspectos de elevado conteúdo técnico-especializado do subsistema regulado.
Assim é que, segundo Aragão,
o Direito Público da Economia deve ser visto como uma constante busca doponto de equilíbrio entre, de um lado, a necessidade de regulação suficientementeflexível para atuar sobre uma realidade instável e tendencialmente autônoma e, deoutro, a conservação de um mínimo de previsibilidade e coercitividade sem a
57 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, p. 58. O autorassevera que “o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em termos jurídicos, a máximakantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo e nuncacomo um meio.” (Ob. Cit., p. 59)58 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 92
99
qual perderia o caráter jurídico. Trata-se de manter a inevitável instabilidade emum nível razoável. 59
Contudo, a fluidez das normas jurídicas adotadas em determinados setores
poderia levar a decisões políticas sem estabilidade, o que é remediado pela criação
de entes reguladores, autônomos em relação aos agentes políticos do Estado. 60 O
modelo implantado com as agências reguladoras representou, em certa medida, “a
perenização das finalidades públicas traçadas pela lei do setor, que não mais ficam
– ou não deveriam ficar – variando conforme o momento político fugaz”. 61
Em suma, a solução compromissória traduz-se na seguinte equação: se por
um lado, a Constituição da República de 1988 determinou uma atuação
empresarial do Estado bastante limitada, por outro, aumentou as hipóteses de
fiscalização e regulação do Estado não só na execução dos serviços públicos,
como também no exercício das atividades econômicas stricto sensu. O regime
implantado, portanto, consagrou o Estado regulador da atividade econômica,
papel este desenvolvido, em grande parte, pelas agências reguladoras. É de se
notar ainda que a adoção do modelo regulador adveio da opção política, presente
em quase todo o mundo, de desestatizar a economia como forma de superar
problemas com o antigo regime centralizador. Nesse sentido, ressalta José Maria
Machado Gomes que,
(...)apesar do reconhecimento do papel da retórica em relação aos modelos dereforma, o debate político, institucional e administrativo nos anos 90 trouxe umnovo enfoque para a atuação do governo e da sociedade. Este enfoque se pautapela visão da reforma do Estado como um processo que se destina não apenas aapoiar ações voltadas para o aparato estatal, mas que envolvam outros atorespolíticos e sociais, como o setor privado e a sociedade civil, com o objetivo deajudar na formulação e implementação de políticas públicas. 62
Gomes afirma que “existe uma crise do Estado que afeta todas as
instâncias de governo (...)”, sendo certo que esta crise, “(...) deve ser enfrentada
com a remodelação do Estado(...)”.63 A reforma estatal passa, portanto, por
processos diferenciados e conexos, devendo-se destacar as seguintes tendências
institucionais da Administração Pública no Brasil, nas palavras de Diogo de
59 Idem, p. 96.60 Idem, p. 96.61 Idem, p. 218.62 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit. P. 100 .63 Idem, p. 99.
100
Figueiredo Moreira Neto: a despolitização, a pluralização de interesses, a
subsidiariedade e a delegação social.64
Tanto na descentralização institucional ou autárquica quanto na
descentralização social, a “tônica da modernidade”65 é a participação do
administrado no controle, fiscalização e execução de serviços cometidos ao
Estado.
Cumpre frisar ainda a importância que assume, nos dias atuais, o princípio
da motivação dos atos administrativos, como corolário de princípios mais amplos
assegurados na Constituição, como o do devido processo legal, o da ampla defesa
e o do contraditório - ex vi do disposto no artigo 5., LV da Constituição -, que
remetem inevitavelmente a uma Administração Pública calcada na transparência e
razoabilidade de seus atos e decisões. A importância do princípio é de tal monta
que Moreira Neto já fala em uma “era da motivação” do direito administrativo.
3.3.A Motivação dos Atos Administrativos: Um Modelo Administrativomais Democrático
A Administração Pública possui como pilar fundamental de sua atuação o
tão confuso conceito de interesse público. Para Celso Antônio Bandeira de Mello,
o Estado é o “representante axiomático dos interesses públicos”66, cuja satisfação
constitui o serviço público. Alçado a padrão de legitimidade dos atos
administrativos, por força da adoção, no artigo 1º da Constituição da República de
1988, de um “Estado Democrático de Direito”, o interesse público passou a
ocupar lugar de primazia nos fins colimados pela Administração Pública.
O interesse público, “qualitativamente diverso do interesse individual”, na
expressão de Moreira Neto, define-se pelo esforço conjunto de legitimidade e
legalidade, os dois pedestais que erguem todo o edifício jurídico no direito
administrativo. 67 À legitimidade cabe a captação política dos interesses da
64 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 152.65 Idem. Op. Cit, p. 152.66 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Concessão de Serviço Público. Apud. PEDROSA,Henrique Emanuel Gomes. Privatizações sob a Ótica do Direito Privado: desigualdade contratuale fiscalização, p. 95.67 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, p. 12.
101
sociedade, enquanto que à legalidade incumbe a cristalização jurídica desses
interesses.
A submissão da ação política ao Direito trouxe, como imediata conseqüência, aunificação dos interesses sociais politicamente definidos e dos interesses sociaisjuridicamente definidos de nossa sociedade, surgindo o conceito de interessepúblico com as características que hoje conhecemos(...) 68
O reconhecimento de uma ordem jurídica legítima, ademais de legal,
implica uma forma mais compromissada de agir do administrador público,
caracterizada, de um lado, pela obrigatoriedade de fundamentação expressa de
seus atos e, de outro lado, pela participação efetiva dos cidadãos na tomada de
decisões. Na verdade, estes são os contrapontos de uma mesma balança: quanto
maior o grau de consensualidade do ato administrativo, menor a necessidade de
fundamentação, já que o reconhecimento dos participantes como autores e
destinatários daquele ato legitima-o diretamente. Em contrapartida, é sobretudo
nas decisões unilaterais tomadas pela Administração Pública, onde mínima é a
participação dos administrados, que a fundamentação de seus atos afigura-se
essencial.
Cabe frisar que num Estado Democrático de Direito, não há apenas um
interesse público, mas diversos interesses públicos, cujos parâmetros não podem
ser delineados aprioristicamente. Daí a dificuldade de se ter o interesse público
expressamente definido em lei, abrindo um largo espaço para a utilização da
discricionariedade administrativa. Esta traduz-se assim no poder-dever da
Administração de adequar o conteúdo legal cristalizado – o interesse público
especificamente definido na lei como finalidade do agir administrativo - às
situações concretas, abrindo um leque de possibilidades ao administrador, que se
origina ou expressamente da norma jurídica ou dos conceitos jurídicos
indeterminados de valor dela constantes.
Marino Pazzaglini Filho ressalta que o que há não é propriamente ato
discricionário, mas um juízo ou decisão discricionária que antecede à prática do
ato administrativo.69 E, acrescenta, “mesmo nos atos denominados vinculados,
68 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, p. 13.69 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. Cit., p. 78.
102
pode remanescer prévia apreciação discricionária do administrador, quanto ao
momento oportuno da prática do ato administrativo regrado(...)”.70
A discricionariedade está para o motivo e o objeto da atividade
administrativa, porém não para a finalidade e competência, que se encontram
vinculadas à estatuição legislativa. Contudo, Pazzaglini Filho observa que, em se
tratando da finalidade mais geral – o interesse público -, pode haver o uso de
expressões jurídicas indeterminadas de valor, que reclamarão a integração via
juízo discricionário. No mais, no que tange à finalidade específica do ato, este será
sempre vinculado, pois que decorrente do comando normativo.71
A finalidade específica do ato, definida em lei, serve então como balisa
para a atuação discricionária: “a discricionariedade não pode ser exercida nem
contra a finalidade, nem mesmo sem ela, mas, apenas, em favor dela”.72 Assim é
que, somente quando atendida a finalidade a que se destina é que se pode dizer
que o ato tem mérito, enquanto conseqüência da atuação discricionária. O mérito
é, segundo Moreira Neto, o correto exercício da discricionariedade, ou seja, o
exercício que se encontre dentro dos limites do legal e do legítimo.
Por outro lado, o limite do legítimo encontra-se materializado
teleologicamente73 no princípio da razoabilidade, que se preocupa em verificar se
a integração discricionária de uma norma pela administração pública atende
satisfatoriamente aos interesses públicos.74 Neste sentido, importantes as
contribuições de José Carlos Vieira de Andrade que, tratando do assunto,
considera que a integração discricionária do interesse público deve se pautar num
discurso racional, que possibilite um convencimento da adequação do instrumento
escolhido:
A procura discricionária da melhor solução para a pacificação do interessepúblico pela Administração, apesar de não se orientar exclusivamente porcritérios de justiça, deve assumir em certa medida a racionalidade do discursojurídico-normativo, produzindo igualmente uma fundamentação que dê umajustificação “interna” e “externa” da decisão- isto é, que não pretende mostrar
70 Idem, p. 80.71 Idem, p. 98.72 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e Discricionariedade, p. 34.73 Neste sentido, ver Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO. Legitimidade e Discricionariedade.74 MOREIRA NETO afirma que na lógica do razoável, diferentemente, da lógica do racional,interesses e razões são dados apenas experimentalmente referenciáveis, sujeitos a valoraçõessubjetivas. É uma lógica para decidir e não para conhecer.
A origem dessa orientação encontra-se na jurisprudência sociológica, desenvolvida emfins do século XIX, principalmente pelos expositores da jurisprudência dos interesses,substituindo-se a preocupação formalista pelo primado dos interesses tutelados.
103
apenas a legitimidade das conclusões, mas também a validade daspremissas(...).75
O princípio da razoabilidade, consagrado num primeiro momento pelas
doutrinas constitucionalista e administrativista, e posteriormente pela Lei 9784/99
(Lei do Processo Administrativo Federal), traz para o bojo da Administração
Pública uma necessidade de motivação de seus atos, fundada num discurso
racional. A aferição da razoabilidade passa pela possibilidade de análise das
razões levadas em conta pela Administração Pública na tomada de decisão. Nesse
sentido, vislumbra-se como o modelo adotado pela Administração Pública
converge com o modelo argumentativo, acima descrito em suas principais
vertentes.
No Brasil, a motivação expressa dos atos administrativos apenas encontrou
guarida legislativa com a edição da Lei n. 9784/99, que a consagra para os atos
administrativos eminentemente decisórios. É o que se verifica da leitura do seu
dispositivo 55. Contudo, desde a promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, que exige, no inciso LV do artigo 5o., a ampla
defesa e o contraditório para os processos administrativos, pode-se afirmar que o
princípio da motivação encontra-se presente. Isso porque não se concebe o
exercício correto de tais direitos assegurados como fundamentais pela
Constituição sem que se possa ter acesso às razões que nortearam a decisão
administrativa. A não ser assim, seria fazer letra morta de um dispositivo
constitucional de maior importância.
Na doutrina portuguesa, José Carlos Vieira de Andrade assinala a
importância da motivação dos atos administrativos como propulsora de uma
postura mais responsável e ética do administrador público: para o autor, a simples
existência da obrigação de motivar, que implica um mais acentuado controle
posterior de seus atos, traz ao administrador uma preocupação maior quanto à
aceitabilidade de suas decisões. Assim é que, mormente nos casos de decisões não
concertadas, ou seja, naqueles casos em que não se observa substancialmente a
participação dos interessados, é que sobressai de importância uma mais minuciosa
motivação, condizente com o interesse público perseguido. Trata-se aqui de uma
necessidade de convencimento imposto ao administrador público, que, no
75 ANDRADE, José Carlos Vieira de. O Dever da Fundamentação Expressa de ActosAdministrativos, p. 16-17.
104
exercício da sua discricionariedade, deve mostrar à sociedade que atendeu da
melhor forma possível ao interesse público.
Aliás, mesmo nas áreas típicas de emprego do ato administrativo(...)- afundamentação é especialmente valiosa nas hipóteses em que a participação dosparticulares no procedimento (consulta, audição , concordância ou outro tipo deintervenção) não se verifica ou não se mostra eficaz, ou quando as decisõesoriginam situações de desvantagem ou de desigualdade: isto é, sempre que porqualquer motivo é mais evidente o modelo de poder-obediência.76
A necessidade de fundamentação externa uma conformação do discurso
administrativo como público, o que é de fundamental importância numa
administração que reavalia todas as suas relações público-privado, através da
constatação da necessária complementação entre ambos. A reformulação público-
privado passa ainda pela concepção neoliberal do Estado, que se transforma cada
vez mais em um Estado regulador, como que um árbitro entre os diversos
interesses em jogo.
Ainda sobre a importância da motivação expressa dos atos administrativos,
Andrade pondera que :
(...) a primeira função do imperativo de fundamentação se cumpre logo noprocedimento decisório, no momento da formação da vontade administrativa(...)Na ausência de qualquer preconceito, parece adequado reconhecer que o primeirointeresse servido pela obrigatoriedade de fundamentação, sobretudo quandocontextual, há-de ser, pela ordem natural das coisas, a correção jurídica ou aracionalidade da própria decisão administrativa. (...) A proteção através docontrole vem logicamente depois, como garantia de segunda linha dalegitimidade ou retitude da decisão. Ótimo seria, contudo, que o controle fosseapenas uma possibilidade e que a repressão não tivesse de existir, por a decisãoda Administração ter sido ponderada e, conseqüentemente –pressupõe-se - ,tomada em ordem à realização do interesse público.77
Vale frisar, como o faz o autor supra-citado, que a obrigação expressa de
motivação dos atos administrativos surge num contexto de revalorização do
direito formal, procedimental, em meio a um cenário marcado pela necessidade
premente de adequação dos atos administrativos aos conteúdos legais. Essa
revalorização do direito formal é marcada não apenas por uma necessidade
prática, mas também “(...) detecta-se a influência da tradição jurídica anglo-
saxônica, que sempre conferiu um papel próprio e relevante ao procedimento (due
process), bem como uma diferenciada mas convergente produção teórica que
76 Idem, 17-18.77 Idem, p. 72-74.
105
enfatiza as idéias de participação e de legitimação procedimental no sistema
democrático de decisões públicas”78.
Exsurge, como afirma Moreira Neto, a idéia de processo como
instrumento de legitimação, fruto da racionalidade argumentativa.79 Nesse sentido,
deve-se destacar a importância da obra de Habermas, que, ao propor um modelo
democrático procedimental como paradigma a ser seguido pelo direito, consagra a
importância das garantias formais de participação democrática nos processos de
tomada de decisão, o que se liga diretamente com a questão da motivação dos atos
do poder público. Na medida em que satisfaz, dentre outros objetivos, como os
acima notados, à exigência de transparência, a motivação traz consigo os germes
para uma administração mais participativa, abrindo à sociedade a possibilidade de
interferir, via judiciário ou espaço público, em seus atos. Por outro lado, afirma
Andrade, essa revalorização do direito formal embasou-se no sistema de direitos
fundamentais consagrados nas constituições a partir, fundamentalmente, de Peter
Häberle, em cuja concepção de status activus processualis, “(...)passou a
reconhecer-se nos direitos fundamentais materiais um “lado processual”, cuja
realização prática era condição de efetividade da respectiva proteção jurídico-
constitucional”80.
Convergiram, portanto, teoria e prática, para reconhecerem na motivação
dos atos do poder público um instrumento capaz de fornecer inúmeras
contribuições para uma praxis jurídica e social mais democrática, calcada nos
princípios da transparência, da juridicidade dos atos administrativos, da
legitimidade, da razoabilidade, da eficiência, da participação e da
consensualidade. Tais princípios não guardam entre si uma relação de
anterioridade lógica, mas se imbricam de forma extremamente complexa, muitas
vezes se fazendo sentir antes mesmo de seu reconhecimento expresso. O princípio
da motivação, embora também entre nesse jogo, parece se relacionar de uma
forma muito íntima com todos os outros, guardando um sentido peculiar para uma
administração pública mais legítima e consensualista, calcada na democraticidade
de sua atuação. Em suma, a motivação expressa das decisões administrativas,
segundo Andrade, significa “a imposição de um dever que pressupõe uma
78 Idem, p. 185-186.79 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 156.80 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. Cit, p. 189.
106
autonomia responsável: o dever de dar conta à comunidade da razão de ser dos
seus atos será o sinal de que a função administrativa integra uma modalidade
autônoma da realização do Estado de Direito material”81.
A possibilidade de um espaço público influenciar decisões político-
administrativas parece passar, pois, por um modelo administrativo baseado no
princípio da motivação de seus atos, garantidor de uma atuação responsável,
controlada e transparente. Importa, assim, numa rearticulação público-privado,
reconhecendo-se a necessidade de as decisões administrativas, enquanto decisões
públicas, serem motivadas, para colocar-se ao alcance de todos os possíveis
interessados.
3.4A Política Desestatizante: Surgimento das Agências Reguladoras
A rearticulação público-privado faz-se sentir no Brasil com toda a sua
força principalmente quando se trata de colocar em prática os postulados da
Reforma do Estado. Mariane Sardenberg Sussekind ressaltou como as novas
relações entre estado e sociedade trazem implicações nas fronteiras clássicas entre
o direito privado e o direito público. Exemplos dessa tendência são encontrados
nos crescentes processos de privatização do público e de publicização do
privado.82
Particularmente em relação ao processo de privatização do público cabe
frisar que “a generalização do recurso às técnicas contratuais por parte da
administração pública resulta de um processo histórico lento(...)”83, marcado
substancialmente pela participação dos administrados e por uma busca de
consenso.
A tradicional dicotomia direito público – direito privado girava em torno
da discussão do primado do interesse público sobre o privado ou vice-versa.
Porém, inserida num contexto consensualista ou concertado da administração
pública, essa distinção parece esvaziar-se profundamente: não se trata mais de
primado de um sobre o outro, senão de conciliação de um com o outro,
81 Idem, p. 399.82 SUSSEKIND, Mariane Sardenberg. “Atuação do Estado e Produção do Direito: papel dasagências reguladoras independentes”, p. 17.83 Idem, p. 20.
107
ultrapassando as barreiras da antiga dicotomia, que se perfez historicamente. A
introdução do conceito de “Estado-parceiro” ou “Estado-interlocutor” traduz uma
nova forma de atuação administrativa, que se coloca agora em relação de paridade
com a sociedade. Isso reflete “(...) uma total inovação em face da tradicional
lógica autoritária do instrumental administrativo”.84
A separação entre a política e a administração, nunca existente em sua
inteireza no Brasil, tornou-se premente para superar o gigantismo de uma
administração pública que, confundida com o governo, passava a açambarcar
todas as propostas de um novo governo, sem se desfazer das antigas. A esse
respeito, vale frisar as palavras de Visconde do Uruguai:
Não há país em que a administração esteja mais confundida com a política do queo Brasil, e onde menos tenha feito a legislação para distingui-las e separá-las .(...) Tudo ressombra política e é considerado pelo lado político. A imprensa seocupa de política; todas as discussões nas Câmaras e fora delas são políticas etêm relação com a política (...).85
A ausência de separação entre as duas esferas reflete sobremaneira o modo
como se concebe a administração pública, passando a ser “um simples e cego
instrumento da política(...)”.86 Enfraquecidos os institutos administrativos, fica
mais fácil à política sobrepujar a administração sempre que isto lhe for
conveniente. Nisto, a administração pública brasileira diferencia-se
essencialmente da francesa, que prima pela organização das instituições
administrativas, que conseguiram manter-se a despeito das revoluções que se
operaram no seio de sua sociedade. No Brasil, a cada governo oberva-se uma
modificação da postura administrativa, inteiramente subordinada aos preceitos
políticos do momento. Era preciso um modelo que, por mais legítimo, fosse mais
estável, capaz de se consolidar em meio à cambiante sociedade pluralista.
Esse modelo veio a ser o modelo do Estado regulador, que, através da
criação de entes reguladores autônomos, pretende regular as atividades de
interesse público de forma separada dos influxos políticos do momento. Cabe
frisar que no modelo intervencionista do Estado de bem estar social, incrementado
pela criação de entes da administração indireta, era de somenos importância a
atividade reguladora estatal, pois que a Administração Pública acabaria por
84 Idem, p. 20.85 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 95.86 Idem, Ibidem.
108
regular suas próprias atividades. As estatais, nas palavras de Moreira Neto,
“gozavam de relativa autonomia técnica para prestar os serviços públicos que lhes
eram delegados e, por isso, considerava-se supérfluo e redundante manter
controles estatais específicos sobre seu desempenho”. Ocorre que, conforme
ressaltou o administrativista, as empresas estatais acabavam por desenvolver uma
“(...) autonomia de fato e uma burocracia própria que as afastavam da prossecução
dos interesse públicos e acabavam servindo de instrumento de parasitismo e de
privilégios” .87
O modelo centralizador da administração pública trouxe consigo os
germes da sua própria destruição, mormente quando à centralização política
juntou-se a administrativa. Vale frisar as palavras de Visconde do Uruguai, no
sentido de que tal modelo:
(...)põe os cidadãos na dependência imediata do poder central, em negócios nosquais pode essa imediata dependência escusar-se. Um governo bem organizadonão deve governar tudo diretamente, e substituir em todo e por tudo a suainiciativa, ação e atividade a de todos. Há muitos assuntos nos quais a ação dointeresse particular ou local é mais ativa, mais pronta, mais eficaz, maiseconômica do que a do governo (...) Em lugar de fortificar o poder, enfraquece-o,tornando a sua missão cada vez mais complicada e onerosa.88
O intuito de ultrapassar todas essas dificuldades empurrou o Brasil rumo a
uma Reforma do Estado que questionou os próprios fundamentos da
administração pública: diminuindo-se suas atividades, o que se pretendeu foi uma
valorização de seus institutos, voltados agora, fundamentalmente, para o núcleo
considerado estratégico. Esse caminho, conforme assinalado, foi aberto por uma
concepção reguladora do Estado, que, segundo Marcos Juruena Villela Souto,
aumenta “a oferta e a qualidade na prestação dos serviços, criação de
oportunidades atraentes de investimento e de desenvolvimento tecnológico e
industrial, dentro de um ambiente competitivo e harmônico com as metas de
desenvolvimento social do país”.89 Segundo Alexandre Santos de Aragão,
A superação da oposição público/privado, conjugada com a “despolitização” deuma série de funções estatais, leva a o que JACQUES CHEVALLIER denominade “ruptura do monolitismo de uma Administração que evolui para a adoção de
87 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 146.88 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit., p. 442.89 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 109.
109
um modelo policêntrico, caracterizado pela coexistência de vários centros dedecisão e responsabilidade90
No Brasil, a Reforma do Estado desenvolveu-se junto à idéia de que era
necessário desestatizar. Embora não atrelada necessariamente ao paradigma
regulatório, o fato é que, no Brasil, a relação entre privatização91 e regulação é
quase que embrionária. Infelizmente, porém, o processo de privatização antecedeu
a consolidação de uma postura regulatória suficientemente aparelhada para conter
os abusos deste processo. Interesses escusos de grandes capitais distorceram o
processo desestatizante, resultando numa privatização que não colocou fim aos
problemas gerados pela falta de verbas das estatais, bem como na rede de
garantismo e clientelismo existente. As agências reguladoras surgem, diante desse
contexto, como um paliativo, pois que fazem sombra aos problemas da relação
entre o Poder Executivo e os seus dirigentes, ou entre estes e os grupos de pressão.
Em suma, pode-se dizer que o modelo regulatório foi implantado no Brasil
no bojo de um processo desestatizador92. Este teve início já no governo
Figueiredo, quando foi criado o ministério da desburocratização, que embora não
tenha alcançado resultados substantivos, abriu o caminho para a edição do
Decreto nº 91991/85, que dispôs sobre o processo de privatização de empresas sob
controle direto ou indireto do governo federal. Apenas no Governo Collor,
contudo, foi implantado o Programa Nacional de Desestatização, que visou um
processo de redução da máquina estatal e conseqüente privatização das estatais e
de concessionárias de serviços de utilidade pública.
Segue o Brasil, instrumentalizado pelo Programa Nacional de
Desestatização, rumo ao Estado-mínimo, regulador, pretensamente provedor de
serviços universais essenciais: ensino básico, saúde e segurança. Moreira Neto, 90 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 204.91 Vale frisar que o termo privatização é objeto de diversas controvérsias, centradasfundamentalmente na extensão que o conceito permite atingir. Para alguns doutrinadores, seusentido é amplo, ao passo que para outros seu sentido é restrito, referindo-se apenas à“transferência de ativos ou de ações de empresas estatais para o setor privado” (Lei 9427/97). Osentido estrito é considerado, dentre outros, por Marcos Juruena Villela Souto, para quem o termoprivatização é espécie do gênero desestatização, este, sim, amplo.
No sentido amplo do termo privatização, cabe frisar as palavras de Di Pietro: “é corretoafirmar que a concessão de serviços e obras públicas e os vários modos de parceria com o setorprivado constituem formas de privatizar; e que a própria desburocratização proposta para algumasatividades da Administração Pública também constitui instrumento de privatização”. Parcerias naAdministração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 20.
110
apostando no novo modelo implementado, sugere que não se trata de chegar a um
Estado mínimo, mas a um Estado melhor.93 Exsurge, portanto, a idéia de que o
Estado não deve ser um concorrente privilegiado da sociedade, cabendo-lhe
primordialmente as funções de normatização, regulação e fiscalização.
Não obstante, os acelerados processos de privatização que desde então
tiveram início, efetivaram-se de forma bastante obscura. Em vários casos, como
nas privatizações da Petrobrás Química S.A. (Petroquisa)94 e da Companhia Vale
do Rio Doce95, só para citar alguns exemplos, houve uma considerável
subavaliação de seus preços, desmoralizando todo o processo de privatização das
estatais. Ademais, a utilização, como artifício para redução da dívida interna, na
compra de estatais, de “moedas podres” – títulos públicos de baixo valor de
mercado -, trouxe um imenso descrédito para a política desestatizante. Diante
desse quadro, fazia-se urgente a criação de órgãos reguladores, alheios ao jogo
político, capazes de criar um clima de confiabilidade para a manutenção e criação
de novos investimentos. A estes órgãos caberia, doravante, a difícil tarefa de
equilibrar os interesses: por um lado, os investidores esperam um órgão
regulador96 suficientemente capacitado para garantir um retorno adequado a fim
de remunerar suas aplicações, por outro, os consumidores esperam que os serviços
sejam prestados a preços módicos e em condições adequadas. Para Isaac Benjó,
92 A desestatização, segundo SOUTO, assume sua feição mais radical com a privatização, queimplica na transmissão definitiva e permanente de propriedades e ativos públicos para o setorprivado.93 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 74.94 No caso da Petroquisa - consoante informação extraída do livro de Henrique Emanuel GomesPEDROSA, Privatizações sob a ótica do direito privado: desigualdade contratual e fiscalização –a atuação do Tribunal de Contas conseguiu evitar um rombo nos Cofres Públicos de sete milhões emeio de reais, por força de uma decisão que determinou a reavaliação daquela empresa.95 A Companhia Vale do Rio Doce foi subavaliada, segundo informação ainda de HenriqueEmanuel Gomes Pedrosa, em dois bilhões de dólares.96 Issac BENJÓ ressalta que: “na Argentina, as agências responsáveis por supervisionar e regularos serviços estatais foram mantidas no processo de privatização. Eram agências fracas e com faltade autonomia. As ofertas para aquisição compensaram, num primeiro momento, a falta de umregime regulatório claro e compreensivo (...) Havia necessidade de altos níveis de investimentospara capitalização das empresas. Ainda assim, após o processo de privatização, quase todos oscontratos foram alterados para reduzir as tarifas a serem cobradas.É ilustrativo o exemploargentino para chamar atenção de que o estabelecimento da estrutura regulatória em fase posteriorgera insegurança para os investidores. Nos casos da ENTEL e da SV, a orientação determinadapelos contratos de venda estabelecia que as tarifas seria definidas pelo governo argentino com basena inflação e na taxa de câmbio. Entretanto, a lei de conversibilidade da moeda estabeleceu que astarifas deveriam ser corrigidas com base na taxa de câmbio. Assim, a política monetária dogoverno se sobrepôs às regras preestabelecidas pelos contratos de venda”. Fundamentos deEconomia da Regulação, p. 59.
111
o estabelecimento de agências reguladoras, atualizadas com o processo deprivatização, é fator precípuo ao sucesso das concessionárias desestatizadas. Anecessidade de alívio fiscal, viabilizado pelas receitas de privatização, nãojustifica o descuido com a operacionalização imediata da regulaçãoindependente.97
Alexandre Santos de Aragão ressalta, a esse respeito, que também merece
menção “o fato de que as agências reguladoras, no momento da desestatização,
resultaram em grande monta das ‘sugestões’, às vezes bastante incisivas, de
investidores estrangeiros interessados nos serviços públicos, e de instituições
multilaterais que financiavam o processo de desestatização”.98 Decerto, conforme
aponta Moreira Neto, “os investidores são guiados não apenas pela existência de
condições econômicas favoráveis como pela existência de condições juspolíticas
que garantam a segurança jurídica das inversões”. Nesse sentido, sobressai de
importância a existência de características que garantam as agências contra as
flutuações políticas, a burocracia e a corrupção.99 Para o autor,
importante é observar(...) que a segurança jurídica (...) envolve notadamente asegurança dos investidores no contexto competitivo, uma vez que a atribuição defunções normativas, para a edição de regras claras, gerais e adequadas para odesempenho das atividades sob regulação, bem como a atribuição de funçõesparajudicativas, necessárias para a composição extrajudicial de conflitos,estimulam o clima de confiança propício para o progresso.100
Por outro lado, importa notar, como o faz Marcos Juruena Villela Souto,
que a descentralização, de um modo geral, não se distancia do dever de fiscalizar
a qualidade do serviço, envolvendo “(...)os princípios inerentes à sua gestão, já
que o usuário, legalmente equiparado a consumidor, tem direito à sua adequada e
eficaz prestação”. 101 Assim, embora a concepção reguladora do Estado não esteja
necessariamente atrelada à política de desestatização, podendo ela existir em
outros contextos, o fato é que quando estiver em curso, num país, uma política
97 BENJÓ, Isaac. Fundamentos de Economia de Regulação, p. 62.98 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 267. A este respeito, o BancoMundial, em Relatório sobre a desestatização do setor elétrico, condicionou qualquer empréstimono setor elétrico ao estabelecimento de um quadro jurídico e processos regulatórios satisfatóriospara o Banco. “Para este fim, em conjunção com outras iniciativas de âmbito econômico, o Bancoexigirá dos países que estabeleçam processos regulatórios transparentes que sejam claramenteindependentes dos fornecedores de energia e que evitem interferência governamental nasoperações cotidianas da companhia”. ( World Bank, The World Bank,s Role In The Electric PowerSector, The World Bank. Apud. Fernando Herren Aguillar. O controle social de serviços públicos.P. 234/235.)99 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 140-141.100 Idem, p. 141.101 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório, p. 111.
112
acirrada de desestatização, a existência de entes reguladores é quase que exigência
do bom andamento desse processo.
Atento às modificações advindas das diversas reformas pelas quais passou
o Estado brasileiro, Souto já destaca um sub-ramo do direito administrativo, a que
ele denomina de direito administrativo regulatório, desenvolvido principalmente a
partir do surgimento das agências reguladoras. No entanto, conforme destacou
Moreira Neto, “a regulação ainda é um conceito em construção, mas que, de tão
carregado conteúdo inovativo, já prenuncia a emergência de um novo modelo de
Estado e quiçá de uma nova concepção de Direito”.102
Porém, se a criação das agências reguladoras representou um avanço para
o processo de privatização em curso, permitindo a consideração de direitos
fundamentais dos consumidores, atuando ao lado de órgãos de defesa da livre
concorrência, como o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica,
por outro lado, a forma como tais agências foram adaptadas no direito brasileiro
engendrou uma série de discussões de cunho constitucional-administrativo,
centradas principalmente na questão da função normativa que exercem.
3.4.1.Diferentes Modelos: O Norte-Americano e o Francês
Para copiar as instituições de um país e aplicá-las a outro, no todo ou em parte, épreciso, primeiro que tudo, conhecer o seu todo e o seu jogo perfeita ecompletamente.
Visconde do Uruguai.
O modelo regulador implantado no Brasil adveio da adoção quase que
integral do modelo norte-americano, cuja experiência em agências independentes
confunde-se com a própria razão de ser de seu Direito Administrativo. O “direito
das agências”, conforme é chamado o modelo, assenta-se na idéia de que tais
agências devem ficar distanciadas dos poderes políticos do Estado, mormente do
Poder Executivo, a fim de que possam exercer de maneira “autônoma” e eficiente
suas funções, eminentemente técnicas. Aliás, as agências reguladoras surgem
quase que como corolário do princípio da especialização técnica: o entendimento
102 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 209.
113
é o de que, em determinados assuntos, a técnica deve preponderar sobre os
instáveis processos políticos, sob pena de comprometimento do próprio serviço
público prestado.
Ocorre que os Estados Unidos, bem como a Inglaterra, países de tradição
anglo-saxônica, vivenciaram experiências administrativas extremamente distintas
da brasileira, bastando observar a parca importância naqueles países do princípio,
consagrado desde a Revolução Francesa, da separação dos poderes, como seria de
se esperar de países com tradição de self-government. Decerto, nesses países, a
forma encontrada para diminuir a força da autoridade consistiu em distribuir o uso
das forças por diferentes funcionários, “dando a cada um todo o poder necessário
para levar a efeito o que a lei lhe incumbe”103.
A Inglaterra, a despeito da centralização política, não conheceu uma
centralização administrativa, o que era suprido por uma unidade oriunda da
semelhança dos elementos sociais. A presença daquilo que Visconde do Uruguai
chamou de “espírito nacional” assegurava o necessário respeito à lei e aos
“sentimentos do justo e do dever”104.
A organização das municipalidades na Inglaterra e nos Estados Unidos descansasobre a idéia, à qual se deu a maior expansão, de que cada um é o melhorapreciador do que lhe diz respeito, e está mais em estado de prover as suasnecessidades particulares.105
Nos Estados Unidos da América, cujo legado do auto-governo foi
diretamente herdado da Inglaterra, a feição da administração pública é
eminentemente descentralizadora. Ali, “o poder administrativo está quase todo
encerrado na municipalidade e distribuído por muitas mãos”.106
Entretanto, foi principalmente no período do New Deal, sob o comando de
Roosevelt, que proliferaram as agências reguladoras. Somente nessa época é que a
regulação norte-americana alcançou sua maturidade, a partir do questionamento
que se levantou sobre a efetividade do postulado liberal clássico da auto-
regulação, considerando as crises de instabilidade e de recessão do período entre-
guerras. Entendeu-se necessário garantir “um redobrado cuidado para proteger as
103 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit., p. 468-469104 Idem, p. 472.105 Idem, p. 472.106 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 489.
114
economias dos aliados de novos colapsos”.107 Assim, a economia norte-americana
respondia às crises bélicas e econômicas valendo-se das agências administrativas
independentes do poder político, ou seja, fazendo uso de uma intervenção
econômica leve.
No entanto, cabe salientar que nos países de tradição anglo-saxônica,
existe uma tradição muito forte e bastante respeitada de separação entre a
administração e a política, que aqui se desconhece. Isso permitiu àquelas
sociedades de participarem da administração sem imiscuirem-se na política. A
respeito do modelo norte-americano, vale novamente destacar as contribuições do
Visconde do Uruguai:
As autoridades administrativas não se prevalecem da sua independência parainvadirem a órbita política em que gira o governo (...) Lá estão a eleição, atribuna, a imprensa e um poderoso espírito público para conter e corrigir osdesmandos governamentais.108
Em suma, o modelo do auto-governo norte-americano recorreu, para fazer
face às crises que se instalavam em meados do século XX, a um terceiro agente,
“homeostásico”, “capaz de impor uma regra que recupere e mantenha o
equilíbrio(...)”.109 Este o modelo das agencies norte-americanas, há muito
consolidado naquele país.
As mesmas crises por que passaram os Estados Unidos da América
também assombraram as economias dos países continentais. Porém, adotando
solução radicalmente diversa para as crises, os países europeus implementaram
uma política econômica de cunho fortemente interventivo, sob a égide dos
Estados de Bem-Estar Social e Socialista. Assim, preferiram desempenhar
diretamente atividades econômicas, ou, quando muito, criar agências
administrativas dependentes do poder político para o desempenho das atividades
econômicas críticas.
Nessa esteira é que se deve entender a Administração Pública brasileira,
que encontra na França o berço de suas instituições. Decerto, o modelo francês
não se assenta no self-government, mas ao contrário, caracteriza-se por ser
essencialmente “uniforme, preventivo e centralizador”.110
107 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 82.108 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 474.109 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 77.110 URUGUAI, Visconde do. Op. Cit, p. 503.
115
No entanto, cumpre frisar que o fenômeno das agências reguladoras
também despontou na França, embora com características peculiares ao seu
sistema administrativo. Sob a denominação de “autoridades administrativas
independentes”, tais entidades possuem ali três características primordiais: o fato
de integrarem a administração, o exercício de função de autoridade e um estatuto
de independência, o seu grande traço diferencial.
Antes disso porém, deve-se salientar que a França conheceu um amplo
processo de estatização ao longo do século XX, quando o intervencionismo
econômico mostrou-se mais forte. As primeiras nacionalizações efetuaram-se já
em 1936, através da estatização do Banque de France, das indústrias de
armamento e de estradas de ferro. Contudo, as nacionalizações mais importantes
ocorreram no período da Libération – período da desocupação nazista, daí
libération-, quando foram estatizados os setores-chave da economia: o gás, a
eletricidade e o carvão. No domínio financeiro e no domínio dos transportes
também se verificou o fenômeno. No ano de 1982, segundo Jean-Bernard Auby,
mais estatizações foram implementadas, desta feita em cinco importantes
sociedades industriais: “la Compagnie générale d’électricité, Saint-Gobain,
Pechiney-Ugine-Kuhlmann, Rhône-Poulenc et Thomson-Brandt. Elles portèrent
ensuite sur la plupart des banques non nationalisées à la Libération(…)”111
O reverso desse processo ocorreria a partir do governo eleito em 1986,
quando tiveram início as privatizações. Nesse sentido, uma Lei de habilitação de
julho daquele ano autorizou as desestatizações por parte do Governo em uma série
de empresas públicas. Inaugurou-se, portanto, o modelo que iria consolidar a
importância das autoridades administrativas independentes, como forma de
preservar um papel fundamental ao Estado.
Cumpre ressaltar, junto com autores como G. Giraudi e M. S. Righetini,
ambos citados por Moreira Neto, que, ao contrário dos países de cultura anglo-
saxônica, em que as funções dos órgãos reguladores surgiram da iniciativa dos
próprios agentes dos setores regulados, nas cultura jurídicas de herança
continental européia, a iniciativa de cometimento dessas funções a tais entes
originou-se no próprio Estado.112
111 AUBY, Jean-Bernard. “Les interventions de la puissance publique en matière économique”.112 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório, p. 135.
116
Assim é que, conquanto exerçam elevado grau de autonomia, as
autoridades administrativas independentes integram diretamente o poder
executivo central, servindo como uma forma de auto-limitação deste.113 Decerto,
elas vinculam-se diretamente ao ministério do setor que regulam, embora não se
sujeitem ao controle hierárquico. Dentro da esfera administrativa, as “autoridades”
constituem uma categoria jurídica específica, permitindo ao Estado, segundo
Olivier Dugrip114, conservar, no seio da administração, suas responsabilidades.
Na base da criação dessas autoridades encontra-se o cuidado com a
proteção dos cidadãos e dos administrados, tanto é que elas se instituem nos
domínios relativos às liberdades públicas: na informação e comunicação, na
regulação da economia de mercado e na relação administração-administrados,
através da instituição do mediador.
A elevada importância de suas atribuições confere-lhes amplo poder
normativo e autoridade moral perante o setor concernido, o que lhes permite
sensibilizar a opinião pública através da informação de irregularidades constadas.
Esta tarefa possui, aliás, um importante instrumento: a redação de um relatório
anual prestando conta de suas atividades, que beneficia a sua mais ampla difusão
pelas vias oficiais.
À guisa de conclusão, pode-se afirmar que, a par das diferenças entre os
modelos assinalados, algumas características principais das agências reguladoras
podem ser sintetizadas, como o faz Aragão: a independência de que são dotadas
nada mais é que uma autonomia reforçada em relação à Administração central;
“(...) a restrição ao poder de exoneração dos dirigentes dos órgãos ou entidades
independentes de regulação não compromete o poder de direção do Governo,
sendo este compreendido nos termos das respectivas leis criadoras(...)” ; “(...)
todas elas concentram poderes fiscalizatórios, sancionatórios, compõem conflitos
e editam regulamentos(...)”; finalmente, “(...) os amplos poderes regulamentares
são admitidos desde que a lei fixe os standards em que deverão se
desenvolver”.115
113 Alexandre Santos de Aragão ressalta que na França, paradoxalmente, o fato de tais entes nãoterem personalidade jurídica confere-lhes, por si só, certa autonomia, eis que, pelo dogma da tutelavigente naquele país, não há logicamente como uma pessoa jurídica da administração indireta nãose submeter a um forte e absorvente controle ministerial.114 DUGRIP, Olivier. “Autorités Administratives Indépendantes”.115 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 261.
117
Apesar dos benefícios que poderiam resultar de uma adoção, no Brasil, de
uma postura moderada, conciliando mecanismos das “autoridades administrativas
independentes”, que conferem um amplo poder normativo a uma atuação mais
comprometida das autoridades públicas, com os instrumentos mais liberais das
agências norte-americanas, como a separação mais rígida entre a administração e
o governo, o fato é que o direito administrativo brasileiro optou integralmente
pelo modelo mais liberal, representado pelas agencies norte-americanas. Assim,
uma vez excluídas dos quadros governamentais, as agências reguladoras
brasileiras ficam “livres” para implementar as suas atividades, cuja moldura mais
geral restou delineada pela esfera político-administrativa do Ministério
competente. Na esteira de Celso Antônio Bandeira de Mello, as agências,
conquanto devam permanecer afastadas do jogo político, deveriam dotar-se de
mecanismos de maior comprometimento dos seus dirigentes, ressaltando-se, a
título de exemplo, a previsão de um mandato fixo apenas em relação ao
governante que os tenha nomeado.
Ainda que se entenda ser o modelo de auto-governo o mais eficaz, o fato é que
os modelos precisam ser adaptados às tradições existentes, e, nesse sentido, a
administração brasileira ainda se encontra num modelo muito incipiente de
regulação.
3.4.2As Agências Reguladoras Brasileiras
No Brasil, apenas a partir da década de noventa é que se começa a assistir
à proliferação dessas entidades, há muito desenvolvida em outros países. Inseridas
no contexto de desestatização, empreendem uma releitura de diversos institutos
administrativistas, ajustando-os às mais modernas leis de regulação da economia.
Contudo, as agências reguladoras não são novidade no direito
administrativo brasileiro. A novidade, segundo Moreira Neto, “(...)está no
ressurgimento da importância dessas entidades, rebatizadas (...)de agências
reguladoras, para desempenharem autarquicamente essas funções na disciplina de
118
certos serviços, cuja execução vem sendo transferida de empresas estatais para
empresas privadas”.116
O caminho para as agências reguladoras no Brasil já havia sido aberto com
a criação de diversas “(...) autarquias de regime especial a cujos dirigentes a lei
restringia o poder de exoneração do Chefe do Poder Executivo ao estabelecer a
sua nomeação por mandato determinado(...)”, como fora o antigo Instituto de
Aposentadoria e Pensões dos Industriários, criado em 1960. Contudo, à época, o
Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional essa autonomia reforçada,
por considerar violadora do poder de direção do Presidente da República sobre
toda a Administração Pública. 117 Por outro lado, outras entidades foram dotadas
de funções reguladoras, como o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central
do Brasil, o Instituto do Alcóol e do Açúcar, a Comissão de Valores Mobiliários,
dentre outras. Contudo, vale frisar que nenhuma destas entidades detinha o perfil
de independência frente ao Chefe do Poder Executivo.
Decerto, as agências reguladoras caracterizam-se não só pela existência de
poderes regulatórios, como também pela autonomia reforçada de que gozam, e
nisso reside a sua especificidade em relação às demais autarquias. Cumpre
ressaltar que a sua natureza jurídica de autarquia é essencial para conciliar a
atuação imperativa do Estado no exercício da regulação com a flexibilidade
negocial, conseguida através de uma ampliação de sua autonomia administrativa,
financeira e política.118
Com a Lei de Concessões (Lei n. 8987/95), publicada no início do
primeiro mandato do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso,
materializou-se a postura reguladora do Poder Público, conforme preceitua o
artigo 174 da Constituição da República de 1988. Na esteira do fenômeno
globalizado do surgimento das agências reguladoras, aquela Lei previu a criação
das autarquias reguladoras, com o objetivo de criar condições favoráveis ao
processo de concessão dos serviços públicos, visando ainda proteger o
116 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 145.117 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 264.118 Segundo Alexandre Santos de Aragão, nada impede que uma agência reguladora, além daautonomia finalística, oriunda da lei que a instituiu, venha a gozar de uma ainda maior autonomiagerencial através da qualificação como agências executivas e subseqüente celebração de contratode gestão, isso quando a lei não preveja a celebração de contrato de gestão independentemente daprévia qualificação como agência executiva A autonomia especial das agências executivaspermite-lhes elevar os valores-limites das dispensas de licitação previstos nos incisos I e II doartigo 24 da Lei nº 8666/93. Agências Reguladoras, p. 377.
119
consumidor de eventuais falhas na prestação desses serviços. Este o sentido do
artigo 30, parágrafo único, da Lei:
Parágrafo único. A fiscalização do serviço será feita por intermédio de órgãotécnico do poder concedente ou por entidade com ele conveniada, e,periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar, por comissãocomposta de representantes do poder concedente, da concessionária e dosusuários.
Nesse sentido, José Maria Machado Gomes assevera:
(...)surgem as agências reguladoras, a quem compete permanentemente a tarefade fiscalizar, supervisionar e gerenciar o concessionário, para que este preste umserviço público com eficiência, qualidade, a preços competitivos, em umambiente de regras claras e críveis119.
Cabe lembrar que inexiste lei que trate genericamente das agências
reguladoras. Elas têm surgido por leis esparsas, especificamente elaboradas para a
sua criação, sendo certo que a única lei genérica é a Lei 9986 de 18 de julho de
2000, referente à gestão dos recursos humanos das agências. Outrossim, cumpre
frisar que esta lei está sendo objeto de exame de liminar em ação declaratória de
inconstitucionalidade, por estipular para as agências o regime do emprego
público, o qual é incompatível com o exercício de atividades típicas de Estado.
A falta de uma sistematização legislativa dificulta a consolidação da
matéria, além de criar um clima de instabilidade e incerteza maléficos para a
sociedade brasileira. A despeito dessa ausência de normatização geral, as
principais características das agências reguladoras podem ser depreendidas da
leitura do artigo 8o, §2o da Lei n. 9472 de 16 de julho de 1997, criadora da
Agência Nacional de Telecomunicações, certamente a mais bem elaborada em
matéria de agências. Esse dispositivo prevê que “a natureza da autarquia especial
conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de
subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e
autonomia financeira”.
As agências reguladoras, autarquias especiais instituídas por lei específica
para regularem determinado setor, trazem como principal característica a
independência, que se manifesta em vários aspectos. 120 Assim é que, segundo
119 GOMES, José Maria Machado. Op. Cit, parte introdutória.120 A designação das agências reguladoras como autarquias especiais justifica-se diante de umprocesso que vinha engessando as atividades autárquicas, decorrente de um exacerbado controledos meios de sua atuação. O fenômeno, chamado por Venancio Filho de “desautarquização das
120
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as agências reguladoras são dotadas de
independência política dos gestores, traduzida num mandato fixo e estável;
independência técnica decisional, no sentido de que suas decisões são apolíticas;
independência normativa, “necessária para o exercício de competência reguladora
dos setores de atividades de interesse público a seu cargo”121; e independência
gerencial orçamentária e financeira, possibilitada pelo estabelecimento de fonte de
recursos próprios.
A natureza jurídica de autarquia, ainda que de regime especial, faz jus à
função que exercem tais agências reguladoras. Decerto, as autarquias foram
criadas para exercerem funções típicas do Estado, como o são as funções de
regulação, de fiscalização, de sanção de serviços públicos. Vale notar, contudo,
que tem havido um alargamento notável no campo de atuação dessas agências,
jungidas inicialmente à regular serviços públicos, e que agora passam a regular
também atividades econômicas. Tal é o caso da ANP- Agência Nacional do
Petróleo e de outras tantas que vêm surgindo em curto espaço de tempo.
A independência das agências reguladoras deve ser vista como uma
autonomia reforçada, que se lhe confere para evitar influências políticas
indevidas, bem como para possibilitar uma atuação técnica especializada. A
designação de autarquias especiais bem denota essa peculiaridade, o que se faz
premente diante de um quadro institucional marcado por um enfraquecimento
generalizado das instituições autárquicas enquanto instâncias decisórias, pois que
fortemente influenciadas e pressionadas pelos grupos de interesses políticos
dominantes.
Cabe frisar que essa autonomia das agências reguladoras não as retira por
completo de qualquer tipo de controle administrativo, pois que, como entes
integrantes da administração indireta, sujeitam-se ao controle ministerial, ainda
que este controle não seja exercido de forma tutelar ou hierárquica. O fato é que a
referida “independência”, ou melhor, autonomia reforçada, não tem o condão de
transformar tais agências em verdadeiras entidades que pairam sobre o Estado. O
atendimento às políticas públicas definidas pelo ministério correspondente é a
autarquias”, gerou o cuidado na denominação, eis que, justamente, o que se visava ressaltar comela era sua autonomia reforçada, chamada atecnicamente de independência. FILHO, Venâncio. AIntervenção do Estado no Domínio Econômico- O Direito Público Econômico no Brasil. Apud.ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 273.121 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo., p. 148.
121
razão de ser de sua atuação, não se concebendo nenhuma autonomia que não seja
a necessária para o atendimento de seus preceitos fundamentais. Aliás, a própria
Reforma Administrativa de 1967, concretizada no Decreto-Lei n. 200/67, previa,
no seu artigo 4°., parágrafo único que “as entidades compreendidas na
administração indireta vinculam-se ao ministério em cuja área de competência
estiver enquadrada sua principal atividade”. Assim é que a independência que se
lhe concede via lei deve ser entendida em face do Chefe do Poder Executivo e não
do Poder Executivo em si.
Outrossim, com relação à previsão de mandato fixo, estabelecido como
necessário para a independência das agências, cabe ressaltar as críticas trazidas
por Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem tal previsão viola princípio
constitucional que assegura a temporariedade dos mandatos.122 Decerto, o
mandato fixo permite uma espécie de “burla eleitoral” que consiste na escolha,
pelo Presidente da República, de um dirigente que terá um mandato ultrapassando
o do seu sucessor. Ou seja, através desta previsão, um Presidente da República,
democraticamente eleito, pode ter as suas ações “engessadas” por força de
dirigente nomeado pelo presidente anterior, e que influenciará decisivamente na
condução da política do país.
Atento a esta situação Celso Antônio Bandeira de Mello propõe que o
mandato do dirigente das agências seja fixo dentro do mandato do Presidente da
República que o tenha nomeado, isto é, que a vedação da exoneração ad nutum só
valha efetivamente para aquele que o nomeou. Parece que é uma solução bastante
razoável para os conflitos que porventura venham a surgir neste sentido.
3.4.3.O Debate sobre a Função Normativa dos Entes ReguladoresIndependentes no Brasil
O aumento das funções normativas do Poder Executivo já era um processo
em curso antes mesmo do surgimento das agências reguladoras independentes,
desde que a necessidade de individualização da atuação estatal se fez sentir de
122 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Aliás, tal parece tersido a postura do ainda presidente da república Fernando Henrique Cardoso, que, perto de perderas eleições, nomeou dirigente da ANATEL, por mandato de cinco anos, ou seja, mandato queultrapassará o do próximo presidente, Luís Inácio Lula da Silva.
122
forma mais intensa. De fato, a complexidade, a pluralidade e o tecnicismo das
matérias que deveriam ser reguladas tornaram insuficiente o modelo que
centralizava no Poder Legislativo o monopólio da edição das leis.123 Nessa esteira,
o surgimento de ordenamentos setoriais refletiu a necessidade de especialização
não apenas das matérias a serem reguladas, mas também de suas fontes.
A instituição das agências reguladoras como forma de tornar mais eficiente
a regulação de determinado setor reflete essa necessidade de delegação normativa.
Daí porque a atribuição fundamental das agências reguladoras, como bem
demonstra o próprio nome que as designa, encerra-se em sua função reguladora.
Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão expõe que
a necessidade de descentralização normativa, principalmente de natureza técnica,é a razão de ser das entidades reguladoras independentes, ao que podemosacrescer o fato de a competência normativa, abstrata ou concreta, integrar opróprio conceito de regulação.124
Em que pese essa constatação, a delegação normativa conferida às
agências reguladoras pelas respectivas leis criadoras125 é exatamente o aspecto
que mais tem gerado críticas, que apontam, de forma geral, para a existência de
um eventual deficit democrático. Este originar-se-ia, segundo os críticos, de uma
falta de legitimidade política das agências, cujos dirigentes, nomeados e não
eleitos, implementariam normativamente as políticas públicas traçadas para o
setor.
Nesse sentido, Lúcia Valle Figueiredo e Maria Sylvia Zanella Di Pietro,
restringem a esfera de normatização das agências, argumentando que:
(...) mesmo para as que têm fundamento constitucional, a competência reguladoratem que se limitar aos chamados regulamentos administrativos ou deorganização, só podendo dizer respeito às relações entre os particulares que estãoem situação de sujeição especial ao Estado. No caso da ANATEL e da ANP asmatérias que podem ser por elas reguladas são exclusivamente as que dizemrespeito aos respectivos contratos de concessão, observados os parâmetros eprincípios estabelecidos em lei.126
123 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 66 – 67.124 Idem, P. 380.125 Cumpre frisar que, especificamente nos casos da ANATEL e da ANP, é a própria constituiçãoque prevê a função normativa de tais entes.126 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão,permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 158.
123
Decerto, o aparecimento dessas agências independentes faz florescer um
debate sobre a constitucionalidade da função normativa que lhes é conferida, o
que parece ser solucionado através de uma redefinição dos princípios da
legalidade e da separação de poderes.
Para Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a questão da função reguladora
conferida às agências é resolvida em termos de uma adequada compreensão da
relação do princípio da legalidade com outros princípios, como o da eficiência127/128. De fato, o modelo trazido pelas agências implica, por força da autonomia
reforçada que lhes é assegurada, “uma ostensiva delegação de poderes, uns
quase-legislativos, uns quase-judiciais e outros quase-regulamentares”. 129
A possibilidade de uma delegação instrumental insere-se, assim, na
competência do Estado como agente normativo e regulador da atividade
econômica, em nome do princípio da eficiência. Segundo o autor, “é impossível
exigir-se eficiência da Administração sem dar-lhe competência para alocar fins
específicos e encontrar meios correspondentes”130. Contudo, segundo Ferraz
Júnior, a delegação às agências reguladoras, implementada mediante lei, e
fundamentada no princípio da eficiência e num novo conceito de legalidade,
decorrente de uma mutação constitucional, deve obedecer a alguns parâmetros,
sinteticamente trazidos à colação:
127 Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “a eficiência cria para a Administração umaresponsabilidade que não se reduz nem ao risco administrativo, nem à igualdade perante osencargos públicos, mas antes as incorpora em nome da obrigação imposta ao Poder Público, aoexercer funções reguladoras no mercado, de evitar assimetrias de informação que funcionem comoum incentivo para o comportamento oportunista dos agentes privados, levando o mercado a umadisfunção”. Op. Cit, p. 151128 Vale lembrar que Robert Alexy opõe-se à concepção de princípios absolutos: para ele, “(...)opróprio conceito de princípio exclui a possibilidade de existência de princípios absolutos. Nunca éuma determinação. O conceito de princípio absoluto é em si contraditório, já que importaria numadeterminação e afastaria a utilização da ponderação de princípios. Diante de uma colisão, oprincípio absoluto sempre teria precedência e seria, inclusive, uma impropriedade falar de colisão(...)” GEREMBERG, Alice Leal Wolf. Op. Cit, p. 30-31.129 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit., p. 143. Para Alexandre Santos de Aragão, “(...)asimples qualificação como ‘quasi’ traz implícita a confissão de que as classificações conhecidasnão são mais aplicáveis sem problemas e ‘quasi’ é uma cobertura que damos para aliviar nossaconfusão da mesma forma que poderíamos usar uma colcha para cobrir uma cama desarrumada”.Nesse sentido, o autor ressalta que a concepção originária dos Estados Unidos da América e osistema do Common Law praticamente desconheciam a função administrativa, daí a já mencionadautilização da nomenclatura de função “quase-judicial” e “quase-legislativa” das agênciasreguladoras, para o que, na realidade, não era nada mais do que, respectivamente, a funçãoprocessual e regulamentar da Administração Pública. (...) As outroras chamadas funções “quase-judiciais” e “quase-legislativas” das agências reguladoras são espécie da função administrativalato sensu(...). Agências Reguladoras, p. 231-2.
124
1- uma política regulatória eficiente deve procurar preservar uma
distribuição de rendas politicamente ótima(...);
2- políticas que reduzem a riqueza total disponível para a
redistribuição devem, em princípio, ser evitadas na medida em
que reduzem a recompensa política (interesse público) do ato
regulatório (...);
3- regras orientadoras das análises que conduzem a uma ação
reguladora devem ser previamente conhecidas (...);
4- os atos regulatórios devem ser tomados por autoridade dotada
de mandato fixo (para minimizar a pressão de interesses(...);
5- por sua (tradicional) impermeabilidade institucional, o Poder
Judiciário deve ser levado a decidir sobre o mérito das
regulações;
6- a eficiência é pressuposto tanto de atos vinculados quanto de
discricionários, estando o agente da regulação obrigado a
afinar suas decisões com os objetivos políticos setoriais
prescritos em lei (legalidade em sentido de legitimação);
7- a participação do usuário dos serviços e atividades regulados
no controle das atividades deve estar prevista(...)131
Alexandre de Moraes, por sua vez, recorre a uma concepção mais flexível
do princípio da separação dos poderes132, esboçado por Aristóteles e sistematizado
por Montesquieu. O autor utiliza-se de uma moderna concepção do princípio para
afirmar que, através dele “(...) mantém-se a centralização governamental nos
Poderes Políticos – Executivo e Legislativo -, que deverão fixar os preceitos
básicos, as metas e finalidades da Administração Pública, porém exige maior
descentralização administrativa, para a consecução desses objetivos”133. Como às
130 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Op. Cit, p. 152.131 Idem.132 Diogo de Figueiredo Moreira Neto acentua que o prinçipio da separação de poderes éessencialmente histórico, devendo a sua interpretação, por isso, obedecer às circunstânciaspolíticas de cada Estado e em cada época. Nesse sentido, ressalta que “esses institutos podem edevem ser considerados como uma nova e criativa manifestação contemporânea aperfeiçoadora doclássico princípio”.Direito Regulatório, p. 150.133 MORAES, Alexandre de. “Agências Reguladoras”, p. 743. Augustín Gordillo, destacando anecessidade da entidade reguladora ser apartada do Poder Concedente e do serviço públicoregulado, considera-a mesmo “(...)uma imposição do princípio atualizado da divisão dos poderes edos sistema de freios e contra-pesos acolhidos pela Constituição(...)”.GORDILLO, Audustín.Tratado de Derecho Administrativo. Apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. AgênciasReguladoras. P. 376.
125
agências reguladoras cabem as tarefas de fiscalização e gerenciamento - que
tradicionalmente pertenciam à administração direta, enquanto cedente dos
serviços públicos por meio de concessões ou permissões -, devem, para o
desempenho dessas atividades, expedir uma regulação específica do setor
regulado. Para Moreira Neto,
(...) essa competência normativa atribuída às agências reguladoras é a chave deuma desejada atuação célere e flexível para a solução, em abstrato e em concreto,de questões em que predomine a escolha técnica, distanciada e isolada dasdisputas partidarizadas e dos complexos debates congressuais em quepreponderam as escolhas abstratas político-administrativas, que são a arena deação dos Parlamentos, e que depois se prolongam nas escolhas administrativasdiscricionárias concretas e abstratas, que prevalecem na ação dos órgãosburocráticos da Administração direta.134
Também Alexandre Santos de Aragão recorre a um novo enfoque dado ao
princípio da separação dos poderes para justificar o poder normativo das agências
reguladoras, afirmando que “(...) a complexidade e a autonomia das competências
conferidas às agências reguladoras em nada contraria a divisão de funções
estabelecida pelas constituições contemporâneas e os valores do Estado de Direito
que, afinal, constituem o principal parâmetro da admissibilidade ou não do
exercício de distintas funções pelo mesmo órgão ou entidade pública”.135 Ou seja,
desde que a acumulação de funções respeite os postulados do Estado de Direito,
essa acumulação mostrar-se-á constitucional. Nesse sentido, ressalta o mesmo
autor que
(...)as competências complexas das quais as agências reguladoras independentessão dotadas fortalecem o Estado de Direito, vez que, ao retirar do emaranhadodas lutas políticas a regulação de importantes atividades sociais e econômicas,atenuando a concentração de poderes na Administração Pública central,alcançam, com melhor proveito, o escopo maior – não meramente formal – daseparação de poderes.136
Na tentativa de conferir constitucionalidade à função normativa das
agências, Aragão cita ainda Gunther Teubner, para quem a unidade e identidade
134 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo, p. 162.135 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 375. Para o autor, o próprioconceito de autonomia de um ente está atrelado, em alguma medida, ao poder de editar suaspróprias regras de conduta. Ela pode exprimir um determinado grau de autoridade e independênciareconhecida a uma pessoa jurídica, mas qual seja este grau não pode ser determinadoaprioristicamente.136 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 375-376.
126
de um sistema deriva da característica fundamental de auto-referencialidade de
suas operações e processos:
Isso significa que só por referência a si próprios podem os sistemas continuar aorganizar-se e reproduzir-se como tais, como sistemas distintos do respectivomeio envolvente. São as próprias operações sistêmicas que, numa dinâmicacircular produzem os seus elementos, as suas estruturas e processos, os seuslimites, e a sua unidade essencial. (...) É sob esta perspectiva que o podernormativo das agências reguladoras, com seu dinamismo, independência,especialização técnica e valorização das soluções consensuais, deve servalorizada como um importante instrumento de intercomunicação do sistemajurídico com os demais subsistemas sociais envolventes (econômico, familiar,cultural, científico, religioso etc.)137
Aragão ressalta que, na verdade, a extensão do poder normativo das
agências reguladoras depende do setor por elas regulado. Assim é que, em se
tratando de agências reguladoras de serviços públicos, o poder normativo abrange
as relações entre as delegatárias e entre estas e os usuários-consumidores.
Atenderá, portanto, à execução dos objetivos legais e das finalidades traçadas por
órgão central de fixação das políticas públicas do setor. No caso das agências
reguladoras da exploração privada de bens e atividades monopolizadas,
(...)como o proprietário do bem monopolizado ou titular exclusivo da atividademonopolizada é o próprio Estado, pode estabelecer as condições contratuais que,dentro do que a lei permitir, melhor lhe convenham. Ao longo da execução docontrato, também se impõe a atuação regulatória do Poder Público integrando einterpretando cláusulas contratuais. 138
Na regulação das atividades privadas de interesse geral, o poder público
limita-se à expedição de normas que digam respeito aos interesses primários a
serem atendidos. Aqui, as agências reguladoras têm, em relação às autorizações,
amplo poder de normatização ao longo do desenvolvimento das atividades
autorizadas, conformando-as permanentemente aos objetivos políticos para o
setor.139
Cumpre notar que a delegação normativa atribuída às agências reguladoras
insere-se naquilo que Moreira Neto chama de deslegalização, admitida como tal
na própria Constituição da República.140 Assim é que a Emenda Constitucional nº
137 ARAGÃO, Alexandre Santos de. “O Poder Normativo das Agências Reguladoras”, p. 7.138 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras, p. 391.139 Idem, p. 396.140 Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO, adotando os ensinamentos de García de Enterría,distingue esse tipo de atividade normativa da regulamentação da lei e da delegação legislativa.
127
8, de 15 de agosto de 1995, prevê a existência de um órgão regulador autônomo
para exercer funções normativas sobre os serviços de telecomunicações (artigo 21,
XI), e a Emenda Constitucional nº 9, de 9 de novembro de 1995, prevê a criação
de um órgão regulador autônomo para exercer funções normativas sobre o
monopólio do petróleo da União (artigo 177, §2º, III). Essas duas agências
reguladoras têm, portanto, sede constitucional, estando as suas atribuições
reguladoras ali garantidas.
O fenômeno da deslegalização pode ser melhor entendido recorrendo-se à
clássica distinção feita por Eduardo García de Enterría entre delegação receptícia,
delegação remissiva e deslegalização, todas espécies do gênero delegação
legislativa.141
A delegação receptícia, segundo seus ensinamentos, consiste na
transferência ao Poder Executivo do poder de produzir normas, com força de lei,
desde que dentro de um quadro limitado e de tempo determinado, ambos fixados
no ato da delegação. Trata-se, no direito pátrio, das leis delegadas, admitidas nos
artigos 59, IV, e 68 da Constituição de 1988. Por sua vez, a delegação remissiva
significa a remessa, feita pela lei, a um ato normativo ulterior, elaborado pela
Administração, sem força de lei, dentro do quadro por ela traçado. Esta instituição
corresponde, no direito brasileiro, ao poder regulamentar atribuído ao chefe do
Poder Executivo. Finalmente, a deslegalização consiste na retirada, pelo
legislador, de determinadas matérias do domínio da lei, passando a ser tratada por
ato normativo inferior.
A deslegalização é ainda tratada por Marcos Juruena Villela Souto, nos
seguintes termos:
(...) é a existência de matérias sob domínio da lei e outras que podem ser tratadasem atos inferiores; a deslegalização (que abre portas à regulação normativa) éprecioso instrumento nesse mister, sem negar vigência ao princípio da legalidade.(...) Ainda que os limites e condições impostos à edição de regulamentosautônomos se apliquem integralmente às normas regulatórias, não há que seconfundir ambas as espécies de atos normativos; o regulamento, autônomo ounão, é emanado de autoridade política, sem compromisso de neutralidade; anorma regulatória traça conceitos técnicos, despidos de valoração política (quedeve estar contida na norma a ser implementada); deve ser equidistante dosinteresses em jogo, resultando de uma ponderação entre os custos e os benefícios
141 A classificação de Eduardo García de Enterría foi retirada do livro de Diogo de FigueiredoMoreira Neto, Direito Regulatório, no qual ele traça a distinção de forma exemplar.
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envolvidos (daí dever ser necessariamente motivada, editada, preferencialmente,por agente independente) (...)142
Parece, portanto, que a questão sobre a função normativa das agências
resolve-se com o conceito de deslegalização, que transfere às agências o poder de
editar normas sobre determinadas matérias, nas quais prepondere a
“discricionariedade técnica”: as agências têm liberdade na regulamentação de
assuntos que, por sua natureza eminentemente técnica, - entendida esta na acepção
de não-política - devem ficar a cargo de especialistas e não de grupos de interesses
políticos. Na realidade, não há verdadeira discricionariedade na
“discricionariedade técnica”, pois esta não abrange os conceitos de conveniência
e oportunidade, ou seja, de mérito. É uma escolha guiada preponderantemente
pelo princípio da eficiência. Na formulação da política pública, o Ministério
competente fixa os parâmetros que devem ser seguidos pela agência do setor,
assim como o legislativo fixa o quadro geral através de standards. Cabe à agência
concretizar ambos os aspectos, para o que se lhe é conferido o poder normativo,
no sentido de discrionariedade técnica. Não há margem de escolha que fuja à
eficiência, logo não há discricionariedade na escolha dos meios necessários à
implementação da política pública perseguida.
Em suma, deslegalizada a matéria, a produção normativa operada pela
agência reguladora em nada se confunde com as normas regulamentares
expedidas pelo Poder Executivo, e muito menos com as normas emanadas do
Poder Legislativo.143
Com isso, esvazia-se o argumento do deficit democrático das agências,
baseado na assertiva de que pessoas não legitimadas eleitoralmente acabavam por
normatizar determinado setor através da delegação normativa. A necessidade
imperiosa de eficiência traz a possibilidade, como assinalado acima, de uma
regulação do setor concernido através de conceitos técnicos, e, para tanto, a
existência de uma autonomia reforçada afigura-se essencial.
Contudo, Alexandre Santos de Aragão critica a observação estrita e isolada
do conteúdo técnico na normatização efetuada pelas agências, afirmando que:
o elevado conteúdo técnico das múltiplas funções das agências reguladoras nãolhes retira o conteúdo político. A tentativa de legitimá-las por uma suposta
142 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Op. Cit, p. 48-51.143 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 127.
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característica exclusivamente técnica das suas competências acaba levando aorisco de não serem enfrentados os verdadeiros problemas das sua legitimaçãodemocrática.144
Tais aspectos serão melhor abordados no capítulo seguinte, quando o
princípio da participação nas agências permitirá melhor equacionar a questão da
legitimidade.
Neste ponto, é preciso assinalar que o modelo implantado com os entes
reguladores independentes, que traduz a vontade de separar as esferas política e
administrativa145, traz um corte no conceito de legitimidade, dividindo-a em dois
planos distintos: no plano da legitimação política, calcada na representação
democrática e na eficiência política, e, no plano da legitimação administrativa,
que, nas palavras de Moreira Neto, “se atinge pela participação democrática e pela
eficiência técnica no equacionamento administrativo e na aplicação da solução
reguladora específica ao setor”.146
Vale frisar que o argumento democrático é o que mais tem sido levantado
em favor das agências reguladoras, pois que as legislações que as instituíram
previram mecanismos de participação popular, que podem ser utilizados para
aumentar a legitimidade de suas decisões. Assim é que, pela consensualidade e
participação nas audiências públicas e em coletas de opinião, pode-se conceber
um modelo regulador inserido nas novas exigências democráticas, fruto de uma
sociedade auto-reflexiva e pluralista. Nesse sentido, sublinhe-se as palavras de
Moreira Neto:
(...)o núcleo juspolítico da administração reguladora está indisputadamente nademocratização do processo de tomada de decisão administrativa a ser adotadonos setores econômicos e sociais em que a politização da decisão carece desentido e em que, distintamente, a consensualidade produz resultados maiscéleres, mais justos e menos onerosos.147
Este é, em linhas gerais, o contexto no qual se inserem as agências
reguladoras brasileiras, influenciadas pelo novo paradigma da Administração
Pública, que busca conciliar os interesses públicos, privados e das empresas. Por
força da inserção de tais entidades em um “Estado Democrático de Direito”, é de
144 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras. P. 449.145 Tal como queria, desde o século XIX, Paulino José Soares de Souza, o Visconde do Uruguai.146 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 155.147 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório, p. 178.