3 análise de mt 17,1-8

28
3 Análise de Mt 17,1-8 3.1. O texto grego de Mateus 17,1-8 e sua tradução O texto grego abaixo é o de Nestle-Aland 27ª ed. A tradução é literal e, por isso, segue os princípios de correspondência formal 1 . A segmentação do texto é feita de forma que cada frase, seja principal ou secundária, esteja em uma linha e possua apenas um verbo (explícito ou implícito). Também as unidades expressivas que desenvolvem uma função em si completa, como os vocativos, apostos e elementos individuais em elencos e numerações, são escritos cada um em uma linha 2 . v.1 Καὶ μεο᾽ ἡμέπας ἓξ 1a E depois de seis dias παπαλαμβάνει Ἰηρξῦς ςὸν Πέςπξν καὶ Ἰάκωβξν καὶ Ἰωάννην ςὸν ἀδελφὸν αὐςξῦ 1b tomou consigo Jesus a Pedro, Tiago e João, o irmão dele, καὶ ἀναφέπει αὐςξὺς εἰς ὄπξς ὑψηλὸν κας᾽ ἰδίαν. 1c e fez subir os mesmos para um alto monte, a sós. v.2 καὶ μεςεμξπφώοη ἔμππξροεν αὐςῶν, 2a E foi transfigurado diante deles, καὶ ἔλαμψεν ςὸ ππόρωπξν αὐςξῦ ὡς ὁ ἥλιξς, 2b e brilhou o rosto dele como o sol, 1 WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p. 28-30. 2 STENGER, W. Metodologia Bíblica. In: DA SILVA, C. M. D., Metodologia de Exegese Bíblica, p. 85.

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3

Anlise de Mt 17,1-8

3.1.

O texto grego de Mateus 17,1-8 e sua traduo

O texto grego abaixo o de Nestle-Aland 27 ed. A traduo literal e, por

isso, segue os princpios de correspondncia formal1. A segmentao do texto feita

de forma que cada frase, seja principal ou secundria, esteja em uma linha e possua

apenas um verbo (explcito ou implcito). Tambm as unidades expressivas que

desenvolvem uma funo em si completa, como os vocativos, apostos e elementos

individuais em elencos e numeraes, so escritos cada um em uma linha2.

v.1

1a E depois de seis dias

1b tomou consigo Jesus a Pedro, Tiago e

Joo, o irmo dele,

.

1c e fez subir os mesmos para um alto

monte, a ss.

v.2

,

2a E foi transfigurado diante deles,

,

2b e brilhou o rosto dele como o sol,

1 WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p. 28-30. 2 STENGER, W. Metodologia Bblica. In: DA SILVA, C. M. D., Metodologia de Exegese Bblica, p.

85.

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.

2c e as vestes dele se tornaram brancas

como a luz3.

v.3

3a E eis apareceu a eles Moiss e Elias

. 3b conversando com ele.

v.4

4a Tomando a palavra4 disse Pedro a

Jesus:

, 4b Senhor,

5 4c bom ns aqui estarmos,

4d se queres,

, 4e farei aqui trs tendas,

.

4f para ti uma, para6 Moiss uma e Elias

uma.

v.5

5a Ainda ele falando

,

5b eis uma nuvem luminosa sombreou a

eles

5c e eis uma voz da nuvem bradando7:

,

5d Este o meu filho, o amado,

3 Algumas tradues modernas, como a New Revised Standard Version (NRSV) e a Todays English

Version (TEV) eliminam a comparao com a luz, e trazem: as roupas dele ficaram de um branco

brilhante. OMANSON, R. L., Variantes Textuais do Novo Testamento, p. 27. 4 Traduzimos , por tomar a palavra ao invs de seu uso comum de responder, por causa da ausncia de uma pergunta precedente. Cf. . In: RUSCONI, C., Dicionrio do Grego do Novo Testamento, p. 67. 5 com acusativo mais o infinitivo, temos uma formulao declaradamente grega. GNILKA, J., El Evangelio segn San Marcos II, p. 35; nota 122. 6 A traduo do como para feita por causa do dativo. 7 Utilizamos ao traduzir , um significado particular de bradar, dizer em alta voz, ao invs de seu uso comum e dominante no NT de dizer. Cf. . In: RUSCONI, C., Op. cit. p. 284.

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5e em quem me comprazo,

. 5f escutai-o.

v.6

6a E os discpulos tendo ouvido

6b caram sobre o rosto deles

. 6c e temeram grandemente.

v.7

7a E aproximou-se Jesus

7b e tocando neles disse:

7c Levantai-vos

. 7d e no temais.

v.8

8a E tendo erguido os olhos deles

8b a ningum viram

8c seno a ele,

8d Jesus,

. 8e somente8.

Tabela 01: Segmentao do texto grego e da traduo de Mt 17,1-8.

3.2.

Crtica textual

A percope de Mateus 17,1-8 possui quinze notas no aparato crtico9. O

versculo 6 o nico versculo da percope que no apresenta nenhuma nota no

aparato crtico. A percope sofreu muitas alteraes por erros dos copistas, bem como

8 Esse trecho final (17,8cde) apresenta dificuldade de entendimento e traduo. Camacho e Mateos

comentam que a construo grega costumeiramente interpretada como pronome prolptico, ou seja, provm de uma forma aramaica. Geralmente h um artigo acompanhado o nome de

Jesus, o que no acontece aqui. Outros exemplos de omisso de artigo antes do nome de Jesus em

Mateus (1,1.16.18.21.25;14,1). CAMACHO, F; MATEOS, F., O Evangelho de Mateus, p. 198. 9 De acordo com o texto de NESTLE-ALAND, 27 edio.

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mudanas propositais a fim de harmonizar o texto com o do evangelho de Marcos e,

s vezes, com o evangelho de Lucas.

Em nossa anlise escolhemos avaliar somente as variantes do texto que so

importantes para o entendimento da influncia da apocalptica judaica sobre o

mesmo. Para a avaliao das variantes ser observado os critrios internos e

externos10

.

A terceira variante do versculo 1 a substituio de (fez subir)

presente do indicativo ativo 3 pessoa do singular de (fazer subir) por

(fez subir) atestada por apenas trs manuscritos11. Esses verbos possuem o

mesmo significado. Pelo critrio externo vemos que essa leitura da variante atestada

apenas por poucos manuscritos e um pai da igreja, Orgenes, o que nos ajuda a

identificar que essa variante no estaria no manuscrito original. Sem contar, pela

anlise interna, essa forma verbal no aparece uma nica vez no Novo Testamento e,

portanto, no parece ser uma caracterstica estilstica do autor.

A colocao de talvez deva ser uma proposta facilitadora para o

entendimento do texto, uma vez que apresenta uma leitura mais difcil,

pois um verbo que vem do sistema sacrificial12

. Sendo assim, deve permanecer a

leitura mais difcil, uma vez que parece que tanto Mateus como Marcos querem

apresentar um ambiente litrgico, isto , um encontro com Deus.

A ltima nota nesse versculo a substituio maior da expresso

(em particular, a ss) pela palavra (muito) testemunhada pelo manuscrito D

(sculo V d.C.) e por Eusbio de Cesaria (339 d.C.). Com a variante o final do

versculo ficaria: (e fez subir os

mesmos para um monte muito alto).

Externamente a variante pouco atestada e internamente uma tentativa de

harmonizao com Mt 4,8 em que aparece a expresso (um

10 WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p. 47. Cf. tambm, EGGER, W., Metodologia do

Novo Testamento, p. 49. 11 Essa variante testemunhada apenas pelos manuscritos D (sculo V d.C.) e pela famlia do

minsculo 1 (1) (sculo X-XIV d.C.) e tambm por Orgenes (253/254 d.C.). 12 O verbo tem um sentido cltico de oferecer algo, seja sacrifcios, seja vtimas (cf. Hb 7,27). Cf. . In: RUSCONI, C., Dicionrio do Grego do Novo Testamento, p. 48.

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monte muito alto). O copista parece mostrar que o mesmo monte onde Jesus foi

tentado foi o monte da transfigurao13

. Sendo assim, o copista tentou tornar a leitura

mais fcil, mas o que deve prevalecer a leitura mais difcil, que a mesma

apresentada no evangelho de Marcos, em Mc 9,2, que foi a fonte de Mateus para essa

percope.

O versculo 2 apresenta duas notas importantes no aparato, sendo a primeira a

substituio do verbo (foi transfigurado) aoristo indicativo passivo

3 pessoa do singular de (transformar, transfigurar) pela expresso

(tendo sido transfigurado Jesus), onde o mesmo verbo

aparece no particpio ativo nominativo singular. Os mesmos manuscritos que

testemunham essa substituio trazem a omisso do : D (sculo V d.C.) e a siraca

Peshita (sculo V d.C.)14

.

O texto ficaria da seguinte forma:

, , (e tendo sido

transfigurado Jesus diante deles, brilhou o rosto dele como o sol). Pelo critrio

externo essa variante no se sustenta por ser pouco atestada. J pelo critrio interno, a

variante parece ter surgido pela dificuldade de se entender o passivo divino. Com

isso, deve prevalecer a leitura mais difcil, que representa uma caracterstica estilstica

do autor a fim de dizer que Deus foi o sujeito que fez a ao acontecer. Alm tambm

da leitura mais breve ser a prefervel, pois a tendncia do copista ampliar o texto do

que suprimir.

A segunda variante apresenta uma substituio maior da expresso (a

luz) pela palavra (neve), substituio esta atestada por um nmero considervel

13 A tentativa do copista talvez se deva ao fato de que o monte em Mateus parece ser muito mais

teolgico do que geogrfico e, tambm, a ligao de Jesus com o monte em Mateus tambm est

relacionada com Moiss. Cf. POITTEVIN, P; CHARPENTIER, E., Evangelio segn San Mateo. p. 6.

Para Barbaglio, a localizao em si do monte no ajuda muito para a compreenso do relato.

BARBAGLIO, G., Evangelhos I, p. 519. Para maiores informaes sobre este monte em Mateus,

conferir o Captulo 4 Aspectos teolgicos, item 4.1: O Monte como um lugar de revelao. 14 A Peshita siraca aparece entre parnteses no aparato, significando que sua leitura apresenta

pequenas divergncias ou alteraes em relao variante ou texto em apreo. Cf. WEGNER U.,

Exegese do Novo Testamento, p. 50.

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de manuscritos e verses15

. Com a substituio o texto ficaria:

. (e as vestes dele se tornaram brancas como a neve). Pela

anlise externa vemos que a variante atestada por vrios manuscritos ocidentais e,

com isso a atestao da variante no pertence ao texto alexandrino, o tipo de texto

mais confivel em questes de estilo e gramtica.

Na anlise interna percebemos que o copista procura fazer uma acomodao

com Mt 28,3 que seria provavelmente a origem dessa variante16

. Deve prevaler a

leitura mais difcil, pois a mesma parece refletir caracterstcas teolgicas e estilsticas

do autor. Teolgica pela maneira como a prpria figura de Moiss importante nesse

evangelho, ou seja, Jesus apresentado como um novo Moiss. E estilstica porque se

percebe nesse versculo a composio de um quiasma interno e, no caso proposto, o

sol no parece combinar com neve17

.

No versculo 3 temos outras duas notas no aparato crtico. A primeira nota a

substituio do verbo (apareceu) aoristo indicativo passivo 3 pessoa do

singular de (aparecer) pelo verbo (apareceram) aoristo indicativo

passivo 3 pessoa do plural testemunhada por muitos manuscritos18

. Com a variante

ficaria: (e eis que apareceram

Moiss e Elias).

Na anlise externa dessa variante vemos que o verbo no singular

testemunhado por manuscritos do texto proto-alexandrinos do sculo IV d.C.: o e

B. Assim os manuscritos mais antigos devem ser preferidos. No que tange a anlise

interna a variante parece ter surgido por um erro gramatical, ou seja, o correto

gramaticalmente o verbo ir para o plural a fim de concordar com Moiss e Elias. No

15 Essa substituio atestada nos manuscritos D (sculo V d.C.), manuscritos latinos antigos e a

Vulgata (sculo IV/V d.C.), pela verso siraca curetoniana (sculo IV d.C.) e por vrios manuscritos da verso boirica. 16 Em Mt 28,3 temos: . (E era o aspecto dele como relmpago e a veste dele branca como neve). 17 Ver mais adiante: Anlise Literria: Estrutura de Mt 17,1-8. 18 Os manuscritos que apoiam essa variante: C (sculo V d.C.) L (sculo VIII d.C.) W (sculo IV/V a.C.) famlia do minsculo 1 (1) (sculo X-XIV d.C.), o texto majoritrio () os manuscritos latinos f (sculo VI d.C.), ff1 (sculo VIII d.C.) q (sculo VI/VII d.C.), a Edio Clementina da Vulgata (1592

d.C.), a siraca Peshita (sculo V d.C.) e heracleana (sculo VII d.C.) e, Cirilo de Alexandria (444

d.C.).

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restante do Novo Testamento esse verbo aparece no singular19

, somente em At 2,3

ocorre esse verbo no plural. Sendo assim, deve permanecer a leitura mais difcil, sem

contar o fato de que esse singular parece ser um singular teolgico que marca a figura

de Moiss e Elias como um conjunto: a Torah (a lei e os profetas).

No versculo 4, a segunda variante importante, pois ela apresenta a

substituio de (farei) futuro indicativo ativo 1 pessoa do singular de

pelo verbo (faamos) subjuntivo aoristo ativo 1 pessoa do

plural testemunha por um nmero considervel de manuscritos20

. Os manuscritos

(sculo VI d.C.) e os da famlia do minsculo 1 (1) (sculo X-XIV d.C.), alm de

poucos manuscritos trazem (faremos). Com a substituio teramos:

, , (se queres, faamos aqui trs tendas,).

Na anlise externa vemos que o texto que apia Nestle-Aland melhor

testemunhado por textos alexandrinos significativos como e B (sculo IV d.C.).

Sendo que na anlise interna a variante parece querer harmonizar o relato de Mateus

com o de Marcos e Lucas que apresentam na fala de Pedro21. O texto de

Mateus com o uso de mostra uma caracterstica estilstica do evangelho em

relao maneira como Pedro tratado no mesmo. O testemunho de Pedro parece ser

confrontado com o de Deus com a utilizao de . Com isso, deve permanecer

a leitura mais difcil e aquela que entendemos no estar harmonizada com textos

paralelos, bem como a que tambm reflita caractersticas teolgicas e estilsticas do

evangelho de Mateus.

O versculo 5 apresenta uma nica nota, a inverso da expresso

(escutai-o) ficando a mesma aps a inverso (a ele escutai)

19 O verbo aparece no singular nas seguintes passagens: Mt 17,3; Mc 9,4; Lc 1,11; 22,43; 24,34; At

7,2.26.30; 13,31; 16,9; 1Co 15,5.6.7.8; 1Tm 3,16; Ap 11,19; 12,1.3. 20 Os manuscritos que atestam essa variante: o uncial C3 mediante a leitura do terceiro corretor (sculo

V d.C.), D (sculo V d.C.) L (sculo VIII a.C.) W (sculo IV/V d.C.) (sculo IX d.C.), o uncial 0281 (sculo VII/VIII d.C.), os manuscritos minsculos da famlia 1 (1) (sculo X-XIV d.C.) e da famlia 13 (13) (sculo XI-XV d.C.), 33 (sculo IX d.C.), o texto majoritrio () manuscritos latinos, siracos e a verso copta boirica. 21 OMANSON, R.L., Variantes Textuais do Novo Testamento. p. 27.

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testemunhada por alguns manuscritos22

. Temos uma variante que surge em razo do

texto de lucano em que a expresso tambm aparece invertida.

O versculo 8, ltimo versculo de nossa percope, apresenta uma nota no

aparato que a substituio do pronome pelo artigo atestatada por alguns

manuscritos23

. O texto com a variante ficaria da seguinte forma:

. (ningum viram, seno a Jesus somente).

Pela anlise externa vemos que a variante apoiada por um nmero

considervel de manuscritos, mas esses manuscritos no apresentam uma qualidade

considervel. Uma vez que corretores e leituras divergentes so apresentadas em

manuscritos importantes (unciais C e D), bem como o restante dos mesmos no

fazem parte dos manuscritos que devem ser priorizados, os alexandrinos. Pela anlise

interna, vemos uma tentativa de facilitar a leitura do texto que aparece meio truncada

nesse versculo, portanto as leituras mais difceis devem prevalecer (lectio difficilior

potior)24

, pois a tendncia dos copistas procurar facilitar e no dificultar as leituras.

3.3.

Anlise literria

3.3.1.

Delimitao

O evangelho de Mateus est organizado por meio de narrativas e discursos

que aparecem de forma alternada. Os cinco grandes discursos que estruturam o

evangelho fez com que muitos autores o comparassem ao Pentateuco de Moiss25

.

22 C (sculo V d.C.) L (sculo VIII d.C.) W (sculo IV/V d.C.) (sculo IX d.C.), os manuscritos minsculos da famlia 13 (13) (sculo XI/XV d.C.), o texto majotitrio (), os manuscritos latinos, siracos e a verso copta do Mdio Egito. 23 Os manuscritos que apoiam essa variante: o uncial B2 mediante a leitura do segundo corretor (sculo

IV d.C.) C (sculo V d.C.), D (sculo V d.C.) que aparece entre parnteses o que indica que sua leitura

apresenta pequenas divergncias ou alteraes em relao a variante ou texto em apreo, L (sculo

VIII d.C.), os manuscritos da famlia do minsculo 1 (1) (sculo X-XIV d.C.) e, da famlia do minsculo 13 (13) (sculo XI/XV d.C.), 33 (sculo IX d.C.) e o texto majoritrio (). 24 EGGER, W., Metodologia do Novo Testamento, p. 49. 25 BACON, B. W., Introduction to the Books of the New Testament, p. 23.

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Embora haja pequenas divergncias com relao a alguns pontos da estrutura do

evangelho como um todo, em relao aos discursos h um consenso demasiado.

A confisso de Pedro realizada em Cesaria de Filipe (16,13-20) descortina

uma seo no evangelho que apresenta a inaugurao da (16,18). Essa

seo vai de 16,13 at 20,34 e tem como objetivo mostrar a ao de Jesus na

comunidade dos discpulos26

. Um discurso comunitrio em Mateus 18,1-35

apresentado como uma unidade textual a fim de tratar de problemas de diviso dentro

da comunidade, ressaltando o servio ao (irmo), isto , o perdo. Por isso

questes de disciplina so mencionadas nesse discurso27

.

Como percopes anteriores temos primeiramente Mt 16,21-23 que comea

com um caracterstico , expresso essa que repetida em Mt

4,1728

. Na percope de Mt 16,21-23 essa expresso abre a narrativa da segunda parte

da misso de Jesus. A percope tem como tema principal o primeiro anncio da

paixo (16,21-23). Segue-se uma segunda percope que tem como tema a questo de

como seguir a Jesus (16,24-28) e que, mediante o advrbio abre-se um discurso

direto conclusivo de Jesus aps a reao negativa de Pedro sobre a paixo. H

portanto, uma mudana de interlocutor de Pedro para todos os discpulos e, dessa

forma, se tira do fato um ensinamento para todos.

A delimitao da percope de Mt 17,1-8 aparentemente simples. Isso se deve

ao fato dela apresentar no versculo 1 marcas formais caractersticas do incio de uma

nova percope. Percebemos primeiramente a designao (seis dias

depois), que embora aparea como um marcador temporal vago, marca uma mudana

de tempo em relao a percope anterior.

26 Alguns autores delimitam o bloco de forma diferente como Warren Carter e Ulrich Luz: Mt 16,21-

20,34. Cf. CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p. 429 e LUZ, U. El Evangelio segn San

Mateo, p. 633. 27

OVERMAN, A. J., O Evangelho de Mateus e o Judasmo Formativo, p. 106. 28 Kmmel, por exemplo, prefere dividir o texto em duas grandes sees: depois do prlogo (1,1-4,16),

h a primeira seo da Proclamao do Reino de Deus na Galilia (4,17-16,20), segue a segunda parte

com Jesus a caminho de Jerusalm e a predio da paixo (16,21-24,46) e, por fim, segue-se a

concluso com a narrativa da paixo e o relato da ressurreio (26,1-28,20). Essa diviso feita com

base na expresso (Desde ento comeou). Cf. KMMEL, W., Introduo ao Novo Testamento, p. 123-125.

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H mudana de personagens com relao a percope anterior, ou seja, sai a

figura dos discpulos e ficam somente Pedro, Tiago e Joo junto com Jesus. Esses

mesmos discpulos vo aparecer junto com Jesus novamente no relato da orao de

Jesus no monte das Oliveiras (Mt 26,36-46). H tambm, uma mudana geogrfica,

agora eles esto sendo levados por Jesus a um alto monte.

No tocante ao trmino da percope, entendemos que o versculo 8 apresenta a

melhor proposta de trmino29

em virtude de ser o momento em que a viso termina. O

versculo 9 comea com uma cena de transio30

, ou seja, a descida da montanha

inicia um dilogo com os discpulos. Logo, esse versculo tem mais coerncia com o

que vai seguir do que com a percope da transfigurao, pois apresenta um tema

diferente: o versculo 9b traz o anncio da ressurreio do Filho do Homem, que se

liga diretamente ao anncio da paixo no versculo 1231

.

O versculo 9 apresenta uma admoestao com relao ao ocorrido na

montanha. Jesus fala aos trs que os mesmos no devem contar nada do que viram e

diz que o que aconteceu foi uma , viso. Sendo assim, os versculos 9 a 13

constituem a nossa percope posterior que inicia um dilogo dos discpulos com Jesus

a respeito da expectativa judaica do retorno de Elias. Logo, nessa percope h uma

mudana de genero literrio, ou seja, h um dilogo de instruo32

.

Esse dilogo est dividido da seguinte forma: comea com uma pergunta dos

discpulos acerca da expectativa judaica com relao ao retorno de Elias (v. 10). Esta

pergunta est marcada por um ( necessrio), que um indicador de cumprimento

dentro do evangelho de Mateus. Em seguida, vem a resposta de Jesus (v. 11 e 12)

dividida em trs partes: confirma a expectativa da vinda com palavras do Antigo

29 Em relao ao trmino da percope existem trs propostas que aparecem nos comentrios e

introdues ao Novo Testamento. A primeira a de Mateus 17,1-13 seguida por W. Kmmel, F.

Camacho e F. Mateos, I. Mazzarolo. A segunda a de Mt 17,1-9 seguida por U. Luz, . Cuvilier, G.

Barbaglio. A terceira proposta a de Mt 17,1-8 seguida por W. Carter e W. D. Davies e D. C. Allison.

A 27 edio de Nestle-Aland tambm delimita a percope conforme a terceira proposta. 30 CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p. 443. 31 LUZ, U., El Evangelio segn San Mateo, v. II, p. 659. 32 BERGER, K., Formas Literrias do Novo Testamento, p. 229.

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Testamento, interpreta as mesmas com frases prprias a luz do que realmente tinha

acontecido e, por fim, anuncia a paixo do Filho do Homem33

.

Parece que na percope a expresso , os discpulos se refere aos

doze34

, embora muitos olhem pra essa expresso como se tratando dos trs que viram

a viso35

. Diante do que foi exposto nossa pesquisa tomar como base a delimitao

do texto em 17,1-8, respeitando as nuances de estudo que o texto apresenta e,

tambm, outras delimitaes apresentadas por muitas tradues modernas36

.

3.3.2.

Estrutura de Mt 17,1-8

Com relao a estrutura de Mt 17,1-8, vemos que a percope pode ser dividida

da seguinte forma: primeiro h uma cena de abertura, depois o relato em si da

transfigurao, que interrompido por dois discursos diretos, um de Pedro e o outro

de Deus, sendo o segundo, na verdade, a explicao ou resposta do que estava

acontecendo, logo depois, h a reao dos discpulos e a de Jesus. Por fim, Jesus

aparece novamente sozinho, ou seja, da mesma forma como antes de se transfigurar.

Davies e Allison prope um arranjo quistico para o relato, o qual

reproduzimos37

:

33 LUZ, U., Op. cit. p. 659. 34 Essa a opinio de Ulrich Luz em LUZ, U., Op. cit. p. 659. 35

CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p. 444. 36 Sobre tcnicas de delimitao de texto bblico conferir as obras metodolgicas: SCHNELLE,

U., Introduo Exegese do Novo Testamento. So Paulo: Edies Loyola, 2004; DA SILVA, C.

M. D., Metodologia de Exegese Bblica. So Paulo: Paulinas, 2003; WEGNER, U., Exegese do

Novo Testamento Manual de Metodologia. So Leopoldo / So Paulo: Editora Sinodal / Editora

Paulus, 2005; EGGER, W., Metodologia do Novo Testamento. So Paulo: Edies Loyola, 1994. 37 DAVIES, W. D., ALLISON, D. C., The Gospel According to Saint Matthew, v. II, p. 684.

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Estrutura quistica da transfigurao de Mt 17,1-8

a. Introduo narrativa (1);

b. Jesus transfigurado (2-3);

c. A resposta de Pedro (4)

d. A voz divina (5)

c. Resposta dos discpulos (6)

b. Jesus fala (7)

a. Narrativa de concluso (8)

Tabela 02: Estrutura quistica da transfigurao de Mt 17,1-8

O versculo 1 de nossa percope tem a funo de ser uma abertura do cenrio

daquilo que vai se desenvolver no alto monte. Jesus aparece como o sujeito da cena

que escolhe trs discpulos especiais para um lugar especfico. Sem esse versculo

inicial ficaria difcil o entendimento do que vai acontecer, principalmente porque os

pronomes pessoais passam a substituir Pedro, Tiago e Joo.

A partir do versculo 2 e 3 temos o que podemos chamar da parte mais

importante da viso. No versculo 2, temos um paralelismo culminativo38

, isto , h

um desenvolvimento gradual do que aconteceu com Jesus em virtude da

transfigurao:

e brilhou o rosto dele como o sol

e as vestes dele se tornaram brancas como a luz.

Ao mesmo tempo nessa mesma parte do versculo 2 temos um quiasma

interno39

:

38 WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p. 91. 39 Segundo Cuvillier alguns autores procuram de todas as formas descobrir no evangelho estruturas em

quiasma. Para ele, no h como mostrar que a figura retrica do quiasma tenha sido utilizada em uma

obra antiga inteira. CUVILLIER, E. O Evangelho de So Mateus. In: MARGUERAT, D., Novo

Testamento: histria, escritura e teologia, p. 81-106; aqui p. 82.

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a e brilhou

b o rosto dele

c como o sol

b e as vestes dele

a se tornaram brancas

c como a luz.

No versculo 4 temos uma introduo ao discurso direto de Pedro que

interrompe cena da transfigurao. O discurso de Pedro, que na verdade uma

proposta, interrompido por um outro discurso, um elemento surpresa. O outro

discurso surge do meio da nuvem, o discurso direto de Deus. Com esse discurso

volta-se a descrio da viso e, mais do que isso, a voz de Deus apresenta o contedo

da viso: Este o meu Filho, o amado, em quem me comprazo e, nesse mesmo

discurso apresenta-se a soluo escutai-o. A voz divina na percope o centro do

relato.

Como continuao da viso temos no versculo 6 a reao dos discpulos por

causa do que ouviram e, como consequncia dessa reao, temos a reao de Jesus no

versculo 7, diante da atitude dos discpulos. O versculo 8 encerra o relato trazendo

um paralelismo antittico40

com o versculo 3:

v.3 Jesus em companha de Moises e Elias

v.8 Jesus sozinho

Ao mesmo tempo vemos que nesse mesmo versculo 8 temos o Jesus de

antes, o de sempre que acaba sendo um paralelismo com o Jesus dos versculos 2 e

40 Se entende como paralelismo antittico quando duas linhas ou membros apresentam sentido

equivalente em formulao antittica. Para Ulrich Luz, que considera que a percope tem como

trmino o versculo 9, o versculo 1 tem uma relao de paralelismo antittico com o versculo 9, ou

seja, Jesus sobe a montanha com os discpulos e depois Jesus desce a montanha com os discpulos. Cf.

LUZ, U., El Evangelio segn San Mateo, v. II, p. 659.

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72

3, onde Jesus descrito com o aspecto transfigurado de Jesus. Dessa forma, Mateus

expe cuidadosamente a volta as condies ordinrias41

.

3.4.

Anlise das formas

Do ponto de vista da forma e do gnero dessa percope, no podemos nos

esquecer das contribuies apresentadas por Martin Dibelius e Rudolf Bultmann a

respeito de como ela deve ser classificada42

. Certamente estamos diante de uma

material narrativo que Dibelius chamou de Mito43

, enquanto Bultmann chamou de

narrao histrica e legenda44

. Tambm, a anlise das caractersticas particulares da

percope nos permite chegar ao Sitz im Leben45

de Mt 17,1-8.

Dentre os verbos apresentados nessa percope dois se destacam em virtude do

tempo em que aparecem. So eles os verbos e . Os verbos

aparecem no indicativo aoristo passivo, ambos na 3 pessoa do singular,

41 CAMACHO, F; MATEOS, F., O Evangelho de Mateus, p. 198. 42 Os trabalhos de Dibelius e Bultmann so considerados norteadores para a anlise das formas, desde

que foram publicados, juntamente Karl Ludwig Schmidt, cuja anlise Dibelius e Bultmann se

dedicaram. Dibelius e Bultmann trabalham com abordagens diferentes. Dibelius procura reconstruir a histria da tradio sintica sobre o fundamento de sua imagem da primeira igreja e de suas

necessidades. Da o ponto de partida dele na construo dos evangelhos a pregao primitiva.

Enquanto que Bultmann procede primeiramente analisando o material da tradio e, atravs do mesmo

extrai os critrios para a descrio do gnero. Cf. SCHNELLE, U., Introduo Exegese do Novo

Testamento, p. 89-95. 43 Martin Dibelius entende mito como histrias que relatam de algum modo as atuaes especialmente

significativas dos deuses. No caso de um mito cristo seria a condio e atuao de um deus estranho

que havia tomado o nome de Jesus ou bem apresentaria epifanias do Deus cristo em uma exposio

tpica, quer dizer, celebrada no culto ou ensinada pela pregao. Nesse caso poderia se falar de mitos

de origem crist, j no caso anterior, se trataria de um mito alheio ao cristianismo que havia sido

cristianizado. Para ele, a transfigurao a criao, por parte do narrador, de um espao para o mito de Cristo na vida do Jesus terreno. DIBELIUS, M., La Historia de las Formas Evanglicas, p. 257 e 266. 44 A legenda, para Bultmann, so fragmentos narrativos da tradio que no so propriamente histrias

de milagres. Porm que no tem tampouco carter histrico, seno carter religioso e edificante. Para

ele, a narrao histria est to dominada pela legenda que s se pode tratar das duas de forma

conjunta. BULTMANN, R., Historia de la Tradicin Sinptica, p. 303 e 304. 45 O termo Sitz im Leben uma expresso do alemo que significa literalmente lugar na vida ou

lugar vivencial. Segundo Wegner o termo provm de duas palavras alemes: Sitz significa lugar ou

assento e im Leben que dizer na vida. Este termo foi bastante utilizado por Martin Dibelius e

Rudolf Bultmann e, mesmo em textos em portugus, o termo no tem sido traduzido. Cf. WEGNER,

U., Exegese do Novo Testamento. p. 171.

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73

e respectivamente46. Com isso, no h uma meno explcita de

quem o sujeito da ao. Essa forma comumente chamada de passivo divino por

que fica subtendido que Deus o sujeito da ao47

.

Diante disso, ao utilizar o verbo no passivo divino, o texto quer

dizer que foi o prprio Deus quem transfigurou Jesus. Da mesma forma acontece com

o verbo no passivo divino que ressalta o fato de que Deus fez com que Moiss

e Elias aparecessem para Jesus, Pedro, Tiago e Joo48

.

Em Mt 17,5f temos (escutai-o) onde o verbo o primeiro de

trs imperativos que aparecem na percope. Esse verbo aparece como um imperativo

presente ativo, 2 pessoa do plural de . Ele surge como uma ordem de Deus

aos discpulos para que ouam os ensinos de Jesus. Dois outros imperativos aparecem

na boca de Jesus aps os discpulos terem se prostado quando Jesus diz em Mt

17,7cd: (levantai-vos e no temais).

O primeiro verbo est no imperativo aoristo passivo 2 pessoa do

plural. Este verbo est ligado fortemente ressurreio, basta salientar o fato de que

ele aparece em Mt 17,9 relacionado ressurreio de Jesus quando o mesmo adverte

seus discpulos:

(a ningum conteis a viso at que o Filho do homem dos mortos

seja ressuscitado)49

.

Na percope h um nmero considervel de verbos no aoristo ativo indicativo.

So verbos que aparecem nesse tempo indicando uma ao que vista como

terminada no passado50

. Os verbos: (v.2b, brilhou), (v.4a, disse),

(v.5b, sombreou), (v.5e, comprazo), (v.6b, caram),

46 A terminao caracteriza o aoristo passivo como fraco, que o que mais aparece no Novo Testamento. SWETNAM, J., Gramtica do Grego do Novo Testamento, p. 205. 47 O passivo divino era usado para evitar a pronncia do nome sagrado. Era uma forma de perfrase, ou

seja, um costume semtico usado para expressar a ao e os afetos de Deus. Cf. JEREMIAS, J.,

Teologia do Novo Testamento, p. 38-45. 48

O passivo do verbo pode anexar a pessoa envolvida por meio do dativo. MOULTON, J. H., A Grammar of The New Testament Greek, p. 58. o que acontece em Mt 17,3a (e eis apareceu a eles Moiss e Elias). 49 O verbo um dos verbos ligados ressurreio de Jesus, o outro o verbo . O verbo empregado 36 vezes em Mateus como introduo ao. Cf. BROWN, C.; COENEN, L. (Org), DITNT, v. II. p. 2076. 50 SWETNAM, J., Gramtica do Grego do Novo Testamento, p. 434.

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74

(v.7a, aproximou), (v.7b, disse) e (v.8b, viram). O nico

verbo utilizado no futuro indicativo ativo est no discurso de Pedro, em que o mesmo

diz em 17,4: (farei aqui trs tendas), indicando com isso

uma proposta futura de permanncia fixa naquele lugar51

.

O que chama a ateno no texto o uso extensivo de pronomes para substituir

Jesus, Pedro, Tiago e Joo52

. O pronome pessoal o que mais aparece: a primeira vez

se refere a Tiago, no versculo 1, ao apresentar Joo que (o

irmo dele). Outras vezes os pronomes se referem aos trs: Pedro, Tiago e Joo sendo

usado para se referir ao fato de que eles foram levados ao monte (v.1c, ),

presenciarem a transfigurao (2a, ) bem como o aparecimento de Moiss e

Elias (v.3a, ), a fala de Pedro de que era bom eles estarem ali (v.4c, ), ao

serem envoltos pela nuvem (v.5b, ), ao carem sobre seus rostos (v.6b,

), ao serem tocados por Jesus (v.7b, ) e ao erguerem os olhos no fim do

relato (v.8a, ).

Outros pronomes pessoais esto ligados pessoa de Jesus e so usados em

relao ao rosto (v.2b, ) e s vestes (v.2b, ) de Jesus, em conversa com

Moiss e Elias (v.3b, ), na fala de Pedro (v.4f, ), na voz vinda da nuvem

(v.5d, e v.5f, ) e, aps os discpulos terem abertos os olhos (v.8c,

).

Um pronome pessoal aparece uma nica vez se referindo a Pedro (v.5a,

). O pronome pessoal aparece relacionado filiao de Jesus que vem de

Deus e o pronome indefido aparece no final do relato se referindo a Moiss e

Elias que sumiram. Por fim, um pronome relativo tambm aparece ligado a Jesus

(v.5e, ).

No h dvida de que o personagem central do relato Jesus, no s pelos

pronomes que se referem a ele, mas tambm pelo fato de que seu nome aparece

51 Ver o Captulo 4 deste trabalho, item 4.4 A morada dos seres celestiais: as tendas. 52 Sempre no NT, que nomes prprios so igualados, indivduos distintos esto em vista. Em Mt 17,1

so apresentados Pedro, Tiago e Joo. Mas ao mesmo tempo os mesmos aparecem unidos por um

artigo ( ). Esse artigo solitrio procura conceituar um grupo coerente e contextualmente definido. WALLACE, D., The Basics of New

Testament Syntax, p. 123.

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75

quatro vezes na narrativa. Dos trs que acompanham Jesus na subida tambm fica

claro que Pedro se destaca (principalmente por causa de seu discurso direto

introduzido no meio do relato), pois seu nome aparece duas vezes, o que enfatiza o

seu papel de porta-voz dos outros conforme o evangelho de Mateus de uma forma

geral parece deixar claro53

.

No versculo 4 da percope h uma introduo ao discurso de direto por parte

de Pedro composta de sete palavras: .

Esse tipo de introduo uma caracterstica estilstica do evangelho de Mateus.

Mateus trabalha discursos diretos longussimos contendo de cinco a sete palavras. H

casos especficos ligados pessoa de Pedro em que ele o sujeito da resposta.

o caso de Mt 17,4 onde Pedro entra na discusso (tomando a palavra) a fim

de expressar sua opinio diante da revelao na transfigurao de Jesus, cujo contexto

so os anncios da Paixo. H ainda outras introdues ao discurso direto em que

Pedro o sujeito da ao54

e, umas delas est antes do primeiro anncio da paixo

onde Pedro toma a palavra para testemunhar a Jesus quem ele era, isto , a confisso

petrina em Mt 16,16: (E respondendo a ele

Pedro disse:). Neste evangelho fora Jesus, somente Pedro o sujeito de respostas to

grandes iniciadas com um discurso direto longo.

Uma revelao auditiva acontece no centro do relato: a voz do cu do

versculo 5d e 5e. Essa voz idntica voz do cu do batismo em Mateus

, (Este o meu filho, o amado, em

quem me comprazo). S h uma nica diferena, ou melhor, o acrscimo de

(ouvi a ele) que parece ser uma aluso a Dt 18,15 que no fim do versculo a

Septuaginta diz (ouvireis a ele)55.

A voz vinda do cu ecoa quatro passagens veterotestamentrias. A primeira

em Isaas 42,1 que fala do servo sofredor, sendo que o (servo) em Isaas se

53

H muitos autores que interrogam sobre o papel de Pedro no Evangelho de Mateus, pois veem que

no h uma uniformidade na apresentao do mesmo. Cf. JEREMIAS, J., Teologia do Novo

Testamento, p. 307. Jeremias fala de uma justaposio de tradies conflitantes. 54 Pedro inicia um discurso direto longussimo tambm em Mt 14,28; 15,15; e 26,33. 55 O evangelho de Mateus segue Marcos ao utilizar a expresso como aparece, ou seja, . J o evangelho de Lucas traz uma verso mais helenizada e prxima da LXX ao trazer . GUNDRY, R. H., The Use of the Old Testament in St Matthew, p. 36 e 37.

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76

transforma em (filho) em Mateus; tambm o (escolhido) de Isaas

torna-se (amado). O Salmo 2,7 que fala do rei tambm fica implcito por

causa da expresso (meu filho), que tambm pode ser uma meno a Israel

em Ex 4,22-23 que chamado de meu filho. O amado pode derivar da histria de

Abrao quando oferece Isaque em Gnesis 22,2 que diz

(teu amado filho)56.

H um advrbio usado por Mateus que caracteriza a reao dos discpulos

diante do acontecido, o advrbio . Em Mt 17,6 diz o texto que os discpulos

. (e temeram grandemente). Esse adjetivo s aparece fora

desse evangelho quatro vezes: em Marcos 16,4; em Lc 18,23; em At 6,7 e Ap 16,21.

Em Mateus, ele aparece sete vezes e em todas h uma relao direta com uma

revelao de Jesus57

.

O advrbio se torna ento algo tpico de Mateus e que caracteriza experincias

humanas interiores58

provocadas por um fato exterior, ou seja, fora da pessoa que

sofre a experincia. Parece que dentre os que aparecem no evangelho, o de Mateus

26,21-22 seja o mais expressivo dos , versculos esses em que Jesus diz que

um deles o trairia.

Destaca-se tambm nessa percope uma expresso especial utilizada por

Mateus, a qual tambm muito utilizada por Marcos, a expresso . Essa

expresso pode ser traduzida como: particularmente, pessoalmente, parte, a ss,

intimamente, reservadamente, especialmente. Essa expresso pouco usado por

Lucas e Paulo59

. Em Mateus ela aparece nas seguintes passagens: em Mt 14,13 antes

da multiplicao dos pes, bem como aps a multiplicao dos pes em Mt 14,23.

Novamente ela aparece em Mt 17,19 quando Jesus est com seus discpulos e

estes lhe fazem uma pergunta. No anncio da paixo em Mt 20,17-19 e por fim, no

discurso escatolgico em Mt 24,3. Logo, pede um lugar especial para um

56

CARTER, W., O Evangelho de So Mateus, p. 145. 57 O advrbio em Mateus aparece em: 2,10; 17,6.23; 18,31; 19,25; 26,22; 27,54. 58 O advrbio ressalta uma forte emoo seja de alegria ou de tristeza. No snscrito spndale

significa palpita. Cf. . In: RUSCONI, C., Dicionrio do Grego do Novo Testamento. p. 446. 59 No evangelho de Lucas ela aparece em: 9,10; 10,23. Em Atos em: 23,19. Em Paulo aparece em: Gl

2,2.

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77

grupo de pessoas especiais e o que acontece em Mt 17,1 onde Jesus chama um

grupo especial e .

O relato da transfigurao apresenta um gnero visionrio, preocupado com

descries de aspectos e figuras60

. Por isso a preocupao com a descrio do aspecto

de Jesus conforme aparece em Mt 17,2b e 2c:

, . (e brilhou o rosto

dele como o sol, e as vestes dele se tornaram brancas como a luz). Com essa

descrio percebe-se a ligao dessa percope com o relato da ressurreio por causa

do aspecto do anjo descrito em Mt 28,3:

. (e era o aspecto dele como relmpago e a veste

dele branca como a neve.).

A transfigurao um relato de epifania, isto , so narrativas em que o

milagre acontece diretamente com a pessoa do taumaturgo61

. A percope um relato

composto de vises e audies cujo objetivo principal esclarecer a identidade

messinica de Jesus. Essa identidade dada atravs de um acontecimento revelador62

.

Com relao ao Sitz im Leben dessa percope, podemos entend-la como uma

percope que surge em razo da questo da legitimidade da autoridade de Jesus como

mestre e guia da comunidade mateana63

. A percope segue de perto a confisso

petrina (16,16), que nesse Evangelho ganha um destaque maior. Mateus ressalta com

veemncia a percepo da autoridade de Jesus e os problemas que a cercavam.

Perguntas precisavam ser respondidas como: Por que obedecer aos ensinamentos de

Jesus conforme apresentados no contexto da comunidade mateana? Por que eles so

obrigatrios ou superiores a outros ensinamentos fora dos limites da igreja?64

A narrativa da transfigurao quer salientar a autoridade de Jesus, a

interpretao dele pelo judasmo mateano, bem como tratar de riscos que corriam os

que rejeitassem sua autoridade. Tudo isso luz do intenso conflito refletido nesse

60 BERGER, K., Formas Literrias do Novo Testamento, p. 203. 61 Definio dada com base nos critrios de G. Theissen em que nas epifanias o centro do relato o

taumaturgo. THEISSEN, G., O Jesus Histrico, p. 316 e 320. 62 BERGER, K., Formas Literrias do Novo Testamento, p. 258. 63 Idem. p. 258 e 350. 64 OVERMAN, J. A., Igreja e Comunidade em Crise, p. 277.

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78

evangelho entre a comunidade mateana e os escribas e fariseus. Esse grupo, tambm

chamado de judasmo formativo, lanava algumas dvidas compreensveis sobre os

judeus e o judasmo mateano, de tal forma que pelo tom com que essa rivalidade

tratada no evangelho parece que a comunidade mateana estava perdendo adeptos65

.

Logo, o Jesus deste evangelho o Jesus de Mateus, ou seja, se apresenta uma

descrio de Jesus e o que ele significa para a sua igreja (a comunidade mateana) e a

situao difcil em que ela se encontra no final do sculo I d.C. na Palestina. No

captulo 16 de Mateus comea as experincias com os discpulos a caminho da

paixo, por isso a narrativa da transfigurao se apresenta como uma antecipao da

ressurreio, quem Jesus realmente para a comunidade mateana66

.

3.5.

Anlise redacional

3.5.1.

Aspectos redacionais do evangelho de Mateus

A atividade redacional do evangelho de Mateus perceptvel pela forma como

ele utilizou os materiais que tinha em mos. Esses materias foram agrupados segundo

um objetivo especfico que permeia toda a sua obra. Fato este exemplificado pelos

discursos que formam blocos temticos e, que so encerrados pela mesma frmula

(e aconteceu que

concluindo Jesus este discurso), que aparece de maneira praticamente semelhante em

Mt 7,28; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1.

65 OVERMAN, J. A., Igreja e Comunidade em Crise , p. 23. 66

A colocao do relato da transfigurao depois do anncio da paixo e morte do Filho do homem

para Barbaglio, um estratagema pedaggico importante para mostrar aos leitores o verdadeiro

alcance da paixo de Cristo e antecipar a sua glria. BARBAGLIO, G., Evangelhos (I), p. 265.

Monasterio destaca que dentre as caractersticas literrias do evangelho, Mateus sugere uma

antecipao do que mais tarde ir acontecer. Mostrando com isso o quanto o evangelho est bem

construdo e pressupe que seu texto vai ser lido na ordem colocada. MONASTERIO, R. A.;

CARMONA, A. R, Evangelios Sinopticos y Hechos de los Apostoles, p. 199.

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79

Numa leitura atenta de Mateus, Marcos e Lucas vemos que estes tm

materiais comuns, o que conferiu aos trs a denominao de Evangelhos Sinticos67

.

Sendo que os materiais comuns apresentam diferenas e alteraes, o que deixa claro

uma inteno teolgica e literria prpria. Com isso se v que os evangelistas no

eram meros compiladores, mas eram redatores com plena capacidade de interferir na

tradio que tinham em mos68

.

Com relao dependncia literria69

, atualmente os pesquisadores aceitam

de forma bastante ampla a tese de que o evangelho de Mateus teve como fontes

principais o evangelho de Marcos e a Fonte Q, chamada de teoria das duas fontes70

.

Alm disso, Mateus utilizou fontes particulares (M), as quais no se encontram nem

em Marcos e nem em Lucas. O texto mateano, portanto, uma releitura de tradies

judaico-crists mais antigas que culminou na elaborao de um texto do final do

sculo I d.C.71

3.5.2.

Aspectos redacionais de Mt 17,1-8

Uma vez identificada a fonte do relato, Mc 9,2-8, necessrio fazer uma

comparao sintica, isto , identificar onde o evangelho de Mateus copia fielmente a

67

Em 1776, um alemo chamado J. J. Griesbach publicou uma obra denominada Synopsis

evangeliorum (Sinopse dos Evangelhos) onde pela primeira vez esses evangelhos receberam essa

designao. 68 WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p. 124. 69 Desde o sculo XVIII, estimulado pela busca do Jesus histrico, a questo da dependncia literria

dos sinticos passou a ser estudada de uma forma diferente, ou seja, no dogmtica. Ainda hoje, as

teorias explicativas se dividem em duas categorias: a derivao de um modelo comum (hiptese de um

evangelho primitivo, hiptese dos fragmentos e, hiptese da tradio oral) e o estabelecimento de uma

genealogia entre os sinticos (modelo de utilizao e modelo de duas fontes). MARGUERAT, D.

(Org.)., Novo Testamento: histria, escritura e teologia, p. 20-28. 70 Para Zunstein, embora a teoria das duas fontes seja uma hiptese, ela apresenta duas vantagens: a

primeira que apesar de seus limites ela hoje a explicao mais simples e satisfatria e, segundo, tem

um valor considervel na prtica da comparao sintica. ZUNSTEIN, J., Mateo el telogo, p. 15. Essa

teoria resultante do modelo de utilizao e foi desenvolvido no fim do sculo XIX (C.H. Weisse,

1838; H. J. Holtzmann, 1863; P. Wernle, 1899). MARGUERAT, D. (Org.)., Novo Testamento:

histria, escritura e teologia, p. 25. 71 Sobre sua utilizao do evangelho de Marcos, Kmmel comenta: Basicamente, Mateus transformou

o relato de Marcos, mediante recursos disseminados c e acol, e que incluem resumos e

reformulaes, mas, sobretudo, mediante a insero de material muito abundante. Cf. KMMEL,

W.G. Introduo ao Novo Testamento. p.127.

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80

sua fonte sem modific-la, tambm importante procurar por acrscimos que se

adaptam melhor situao da comunidade mateana. Outra questo procurar as

supresses onde h a omisso de um elemento marcano e, por ltimo a troca, onde o

evangelho de Mateus muda um elemento que no parece se encaixar com seus

propsitos.

Para tanto, utilizamos uma legenda que est inserida na tabela abaixo. As

palavras e expresses em negrito indicam coincidncias literais entre Mateus e

Marcos, as que esto em itlico referem-se ao uso de sinnimos ou modificaes de

tempos verbais, sem alterao de sentido, enquanto que o que est sublinhado so os

acrscimos de Mateus em Marcos e, por fim, os colchetes so as omisses de Mateus

em relao a Marcos.

3.5.2.1.

Comparao sintica

Mateus 17,1-8 Marcos 9,2-8

1

.

2 ,

,

.

3

.

4

, ,

,

.

5

,

, .

2

[]

[]

[].

,

3 []

[,

].

4 []

[ ] [ ].

5 []

, ,

[] ,

.

6 [ ,

].

7 [] ,

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81

6

.

7

.

8

.

,

.

8 [ ]

[ ] [

].

1 E depois de seis dias tomou consigo Jesus, a

Pedro, Tiago e Joo, o irmo dele, e fez subir os

mesmos para um monte alto, a ss.

2 E foi transfigurado diante deles e brilhou o

rosto dele como o sol e as vestes dele se

tornaram brancas como a luz.

3 E eis apareceu a eles Moiss e Elias

conversando com ele.

4 Tomando a Palavra Pedro disse a Jesus:

Senhor, bom ns aqui estarmos, se queres,

farei aqui trs tendas, para ti uma, para Moiss

uma e Elias uma.

5 Ainda ele falando eis uma nuvem luminosa

sombreou a eles e eis uma voz da nuvem

bradando: Este o meu filho, o amado, em

quem me comprazo, escutai-o.

6 E os discpulos tendo ouvido caram sobre o

rosto deles e temeram grandemente.

7 E aproximou-se Jesus e tocando neles disse:

levantai-vos e no temais.

8 E tendo erguido os olhos deles a ningum

viram seno a ele, Jesus, somente.

1 E depois de seis dias tomou consigo Jesus a

Pedro, [a] Tiago e [a] Joo e fez subir os

mesmos para um monte alto a ss, [sozinhos].

E foi transfigurado diante deles,

3 E as vestes deles se tornaram [brilhantes

muito] brancas [tais como lavandeiro sobre a

terra no pode assim branquear].

4 E apareceu a eles Elias [e] Moiss, [e estavam]

conversando [com Jesus].

5 E tomando a palavra Pedro diz a Jesus:

Mestre, bom ns aqui estarmos, [e] faamos

trs tendas, para ti uma, para Moiss uma e

para Elias uma.

6 [Pois no sabia o que responder, porque

apavorados tinham ficado].

7 [E apareceu] uma nuvem sombreando a eles, e

[houve] uma voz da nuvem: Este o meu filho,

o amado, ouvi a ele.

8 [E de repente tendo olhado em volta no mais]

a ningum viram [mas] Jesus somente [com

eles].

Tabela 03: Comparao Sintica

A primeira constatao que temos que o texto do evangelho de Mateus

maior do que o do evangelho de Marcos: em Mateus h 143 palavras enquanto que

em Marcos h 121 palavras72

. Esse aumento se deve ao fato de Mateus reelaborar o

72 Para Wegner o que acontece na maior parte das vezes justamente o contrrio. As caractersticas

redacionais tanto de Mateus como de Lucas, de acordo com estatsticas, so mais de omitir partes de

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82

seu relato sublinhando seu alcance apocalptico. Mateus tambm tem a tendncia de

homogenizar quando Marcos abrupto.

Temos praticamente a mesma abertura no versculo 1. Mateus utiliza a mesma

designao temporal (e seis dias depois). Os mesmos

personagens aparecem acompanhando Jesus, sendo que Mateus omite dois artigos

que acompanham o nome de Tiago e Joo. Da mesma forma que omite a

expresso (o irmo dele). Preserva-se tambm os mesmos

verbos e que so utilizados no mesmo tempo. O lugar

para onde os discpulos so levados tambm aparece de forma idntica um

(monte alto). Por fim, no final do versculo 1 h a omisso, por parte de

Mateus, da palavra (sozinhos) de Marcos.

No versculo 2 de Mateus temos (e foi

transfigurado diante deles) parte esta que o relato mateano copia fielmente de sua

fonte. O verbo permanece no mesmo tempo, o que indica que Mateus

preserva o passivo divino de Marcos. Mas a descrio do que acontece com Jesus por

Marcos parece no ter sido muito convincente para Mateus, ou seja, a imagem do

lavandeiro () para enfatizar o quanto a roupa de Jesus se tornou branca

substituda por Mateus.

Em Mateus no s as vestes, mas o rosto de Jesus so transfigurados. Por isso

, (brilhou o rosto dele como o sol) e

. (e as vestes dele se tornaram brancas

como a luz). Dessa forma o texto mateano comea a ser transformado em um relato

cada vez mais similar as vises celestes da apocalptica judaica como as que

aparecem no livro de Daniel73

.

No versculo 3, Mateus acrescenta uma interjeio, (eis), no incio da

cena que descreve a conversa de duas figuras proeminentes da tradio judaica com

Marcos do que acrescentar. O trabalho redacional foi mais intenso no material narrativo do que na

tradio sobre os ditos de Jesus. WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, p. 128. 73 A maneira como esses versculos descrevem a transfigurao e a reao dos discpulos depois

assemelham-se a relatos danilicos (Dn 10,1.5.6.9.10). Ver captulo 4 deste trabalho, ponto 4.6 Jesus

transfigurado diante deles.

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83

Jesus: Moiss e Elias. Essa interjeio acrescentada inmeras vezes ao texto de

Marcos, tanto por Mateus como por Lucas, e na maioria das vezes conforme aparece

em Mt 17,3a, isto , 74. Mais uma vez o texto mateano preserva o passivo

divino de Marcos, ao preservar o verbo .

Com Jesus aparecem dois importantes personagens da histria bblica, sendo

que em Marcos eles surgem na seguinte ordem (Elias e

Moiss), enquanto que Mateus prefere inverter essa ordem trazendo

(Moiss e Elias) reforando com isso a proximidade de Jesus com Moiss, ao

mesmo tempo que parece refletir o fato de que Marcos apresenta um tipo de leitura

apocalptica que no se encaixaria na proposta mateana para os seus leitores. Ainda

no versculo 3, Mateus omite o verbo que acompanha o verbo talvez

por entender o mesmo como desnecessrio. E por fim, prefere finalizar o versculo

com (com ele) ao invs de (com Jesus).

No versculo 4, o texto de Mateus omite o (e) inicial, tal omisso

caracterstica de Mateus e Lucas em virtude do grande nmero de usados por

Marcos75

, muitas vezes Mateus e Lucas o substituem por (mas), o que no o caso

aqui. Outra modificao tambm caracterstica de Mateus e Lucas que aparece nesse

versculo a modificao do presente histrico para o aoristo do verbo . Em

Mateus temos o verbo no aoristo indicativo ativo na 3 pessoa do singular

(disse), enquanto em Marcos o verbo est no presente indicativo ativo 3 pessoa do

singular (diz). J o verbo preservado por Mateus da mesma

forma.

Na fala de Pedro, que interrompe a cena da transfigurao, aparecem duas

modificaes significativas. A primeira o uso que Mateus faz do vocativo

(Senhor) em lugar de (Mestre) utilizado por Marcos. Embora o uso da palavra

seja relativamente frequente em Mateus, quem se dirige a Jesus usando no

74 PORTER, S. (Ed.), Handbook to Exegesis of the New Testament, p. 256. 75 A conjuno umas das conjunes mais importantes do Novo Testamento. De acordo com Egger ela aparece 9.164 vezes. EGGER. W., Metodologia do Novo Testamento, p. 77. Por aparecer de

forma excessiva em Marcos com o fim de ligar percopes, Mateus e Lucas a omitem. Assim como

algumas tradues a fazem.

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evangelho so sempre pessoas que tm com ele uma relao positiva, ou seja, os que

buscam ajuda, os discpulos e outros que sero.76

.

O evangelho de Mateus possui certa resistncia ao termo . Isso se

verifica no em relao funo do de ensinar, pois existem passagens no

evangelho em que se espera que os discpulos sejam mestres (Mt 5,19; Mt 20,28).

Mas sua viso negativa do termo se refere ao ttulo . No toa que o termo

aparece nesse evangelho nos lbios de Judas na paixo em Mateus 26,25.49. Fora

isto, o mesmo aparece no captulo 23,7.8 como admoestao aos discpulos que no

se deixassem nomear dessa forma. Para Mateus, ser chamado equivale forma

como liderana judaica de seu ambiente se autodenominava, ou seja, uma

referncia sintetizada aos escribas e fariseus. Deve-se evitar o ttulo em virtude desses

gostarem de serem saudados dessa forma77

.

A segunda modificao em relao ao verbo que em Marcos est no

aoristo ativo subjuntivo 1 pessoa do plural (faamos). Mateus modifica

o tempo para (farei) futuro ativo indicativo 1 pessoa do singular fazendo

com que Pedro assuma a responsabilidade sozinho das trs tendas. Tal mudana

refora o papel de Pedro como o porta-voz dos discpulos ou seu representante.

A omisso mais caracterstica de Mateus em relao a sua fonte a retirada de

todo o versculo 6 do evangelho de Marcos que traz: ,

. (pois no sabia o que responder, pois tinham ficado

apavorados). Ao retirar esse trecho Mateus desenvolve uma narrao totalmente nova

e positiva para os discpulos78

.

O versculo 5 de Mateus apresenta acrscimos, modificaes e omisses

importantes. Isso ressalta o fato desse trecho ser o ponto central para o relato de

Mateus, enquanto que Marcos e Lucas trabalham a voz vinda da nuvem como

elemento de finalizao do relato. Mateus acrescenta que o discurso de Pedro

continuava no momento em que a nuvem os envolve, (ainda

76 Ver, por exemplo: Mt 8,2.6.21.25; 9,28; 14,28.30; 15,22. GNILKA, J., Teologa del Nuevo

Testamento, p. 201. 77 OVERMAN, J.A., O Evangelho de Mateus e o Judasmo Formativo. p. 56. 78 LUZ, U., El Evangelio segn San Mateo, v.II, p. 660.

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ele falando) e, ento Mateus mais uma vez utiliza a interjeio para introduzir a

chegada da nuvem.

Por causa disso o verbo que em Marcos aparece como particpio

presente ativo nominativo feminino singular, , em Mateus o mesmo

verbo teve que ser alterado para , isto , aoristo ativo indicativo. O

substantivo (voz) precedido em Mateus pela expresso (e eis). A

voz vinda da nuvem em Mateus corresponde exatamente voz batismal de Mt 3,17.

Mas, por fim, h o acrscimo de (ouvi a ele) que parece ser uma

aluso a Dt 18,15.

Os versculos 6 e 7 de Mateus so acrscimos de Mateus que do narrativa

um carter mais voltado para literatura apocalptica judaica. O versculo 6 tem uma

linguagem de relatos de vises, bem como o versculo 7 introduz uma fala

encorajadora de Jesus queles que tinham presenciado o acontecimento. O acrscimo

mostra como Mateus adicionou novos ditos de Jesus s tradies marcanas, com o

objetivo de elaborar sua prpria tradio.79

Em relao aos acrscimos de uma forma geral, temos claramente um

conjunto de palavras que parecem ser fruto de uma redao mateana, pois as mesmas

aparecem em outras partes do evangelho. Como exemplo de palavras podemos citar:

o verbo que aparece vrias vezes em Mateus como imperativo presente mdio

2 pessoa do plural, (temais)80. E o advrbio tambm muito

utilizado no evangelho.

O fato de o versculo da percope posterior, Mt 17,9-13 classificar o que

aconteceu de 1-8 como (viso), reflete uma previso de Mateus da possvel

confuso que a verso de Marcos provocaria. Dessa forma, Mateus sugere que os

discpulos tiveram uma viso, quando Jesus, Moiss e Elias surgiram diante deles, e

Jesus se apresentou claramente como o maior dos trs81

.

Em face do que foi exposto neste captulo, podemos perceber que a percope

estudada tem uma forte relao com a apocalptica judaica, seja por herdar alguns

79 STANTON, G., A Gospel for a New People, p. 333. 80 aparece em Mateus em: Mt 10,28 duas vezes; 10,31; 14,27; 17,7 e 28,5. 81 OVERMANN, J.A., Igreja e Comunidade em Crise. p. 276.

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elementos de Marcos, seja pelas omisses, modificaes e acrscimos que faz ao

texto marcano. O prprio gnero literrio visionrio da percope, preocupado com

descries de aspectos e figuras, e o fato de o relato ser uma epifania, nos apontam

para a constatao de que os aspectos teolgicos podem ser suscitados com as lentes

da apocalptica judaica.

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