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3 A teologia de Barth a respeito da necessária co- humanidade Para a última parte da pesquisa, utilizaremos para a abordagem teológica a reflexão feita pelo teólogo Karl Barth a respeito do que denomina “co- humanidade”. Apresenta o teólogo, como proposta à vida humana vivida legitimamente, a experiência de existir “com” e “junto” a outros seres humanos, fundamentado na vida e postura de Jesus Cristo. Supondo que há uma semelhança entre a humanidade de Jesus Cristo e a nossa humanidade, Karl Barth aponta a coexistência e a co-humanidade concreta como a “forma fundamental” da condição humana 1 . Uma existência isolada, destaca o teólogo, separada da relação com os outros seres humanos, não acontece de modo realmente humano. Por isso afirma: “O homem nega a sua humanidade quando rejeita ou se isola do próximo e nisto consiste o pecado” 2 . Vive em pecado e desumanamente, aquele que vive separado de Deus e dos outros seres humanos 3 . Para Karl Barth, sem o próximo o ser humano desonra-se como humano, deturpa o caráter de imagem de Deus e afasta-se do modelo de humanidade que é Jesus Cristo 4 . Por isso, a reflexão barthiana propõe uma antropologia teológica que acentue a importância do que ele chama de “co-humanidade solidária”, algo próprio do ser humano, tal como criado por Deus e tal como se manifesta na vida e postura de Jesus Cristo. 3.1 Deus não é um Deus solitário O Deus do evangelho não é um Deus solitário, que seja recluso em si mesmo. Nas palavras de Karl Barth, “não é um Deus absoluto”. É verdade, defende o teólogo, não tem a seu lado ninguém que lhe seja igual e pelo qual fosse limitado e 1 BARTH, K. Dogmatique. III/2, Geneve: Labor et Fides, 1961, p. 240. In: RÚBIO. A. G., Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulinas, 1989, p 367. 2 Ibid. 3 Ibid. 4 BARTH, K. Dogmatique. op.cit., p. 264. In: RÚBIO, A. G. Unidade na Pluralidade. op.cit., p 369.

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Page 1: 3 A teologia de Barth a respeito da necessária co- humanidade · humanidade”. Apresenta o teólogo, como proposta à vida humana vivida legitimamente, a experiência de existir

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A teologia de Barth a respeito da necessária co-

humanidade

Para a última parte da pesquisa, utilizaremos para a abordagem teológica a

reflexão feita pelo teólogo Karl Barth a respeito do que denomina “co-

humanidade”. Apresenta o teólogo, como proposta à vida humana vivida

legitimamente, a experiência de existir “com” e “junto” a outros seres humanos,

fundamentado na vida e postura de Jesus Cristo. Supondo que há uma semelhança

entre a humanidade de Jesus Cristo e a nossa humanidade, Karl Barth aponta a

coexistência e a co-humanidade concreta como a “forma fundamental” da

condição humana1. Uma existência isolada, destaca o teólogo, separada da relação

com os outros seres humanos, não acontece de modo realmente humano. Por isso

afirma: “O homem nega a sua humanidade quando rejeita ou se isola do próximo

e nisto consiste o pecado”2. Vive em pecado e desumanamente, aquele que vive

separado de Deus e dos outros seres humanos3. Para Karl Barth, sem o próximo o

ser humano desonra-se como humano, deturpa o caráter de imagem de Deus e

afasta-se do modelo de humanidade que é Jesus Cristo4. Por isso, a reflexão

barthiana propõe uma antropologia teológica que acentue a importância do que ele

chama de “co-humanidade solidária”, algo próprio do ser humano, tal como

criado por Deus e tal como se manifesta na vida e postura de Jesus Cristo.

3.1

Deus não é um Deus solitário

O Deus do evangelho não é um Deus solitário, que seja recluso em si mesmo. Nas

palavras de Karl Barth, “não é um Deus absoluto”. É verdade, defende o teólogo,

não tem a seu lado ninguém que lhe seja igual e pelo qual fosse limitado e

1 BARTH, K. Dogmatique. III/2, Geneve: Labor et Fides, 1961, p. 240. In: RÚBIO. A. G., Unidade na Pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São Paulo: Paulinas, 1989, p 367. 2 Ibid. 3 Ibid. 4 BARTH, K. Dogmatique. op.cit., p. 264. In: RÚBIO, A. G. Unidade na Pluralidade. op.cit., p 369.

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condicionado. No entanto, nem por isso Deus é prisioneiro de sua própria

majestade. O Deus do evangelho é um Deus que se compadece por sua criação.5

É um Deus que se difere totalmente da idéia que fazemos de nossos “deuses”

humanos. É o Deus que chama Abraão, conduz um povo miserável através do

deserto, recusa, por séculos inteiros, deixar-se desconcertar pela infidelidade e

desobediência desse povo, aceita se tornar um humilde recém-nascido no estábulo

de Belém e morrer no Gólgota.6

Deus, como em si mesmo, é o Uno, na unidade de sua vida como Pai, Filho e

Espírito Santo. Assim, em relação à realidade dele distinta, Ele é livre, de jure e

de facto, para ser Deus não ao lado do ser humano, porém igualmente não só

acima dele, mas sim junto a ele, com ele e, sobretudo, a favor dele: não só como

seu senhor, mas também como seu pai, seu irmão, seu amigo7 – e isto não em

detrimento ou abandono do seu ser divino, mas em confirmação do mesmo.8

5 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 13. Segundo também o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, o Deus da Bíblia é um Deus próximo, de comunhão e de compromisso com o ser humano. A presença ativa de Deus no meio de seu povo faz parte das mais antigas e persistentes promessas bíblicas. Seja no quadro da primeira aliança: “Habitarei no meio dos filhos de Israel e serei para eles Deus. E reconhecerão que eu sou Javé, seu Deus, que os tirei do país do Egito para estabelecer minha morada entre eles. Eu Javé, seu Deus” (Ex 29,45-46); seja no anúncio da nova aliança: “Junto a eles estará minha morada, serei seu Deus e eles serão meu povo. E saberão as nações que eu sou Javé, que santifico a Israel, quando meu santuário estiver para sempre no meio deles” (Ex 37, 27-28). Esta presença, muitas vezes com o matiz de habitação, isto é, de presença em lugar determinado, marca o tipo de relação que se estabelece entre Deus e o ser humano. Cf. GUTIERREZ, G. Teologia da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 158. Relembra-nos Gutiérrez também da expressão de Y. M. Congar: “A história das relações de Deus com sua criação – e muito especialmente com o ser humano – outra coisa não é que a história de uma realização cada vez mais generosa e profunda de sua presença em sua criatura”. Cf. CONGAR, Y.M. El misterio del templo. Barcelona, 1964, 33, n. 45. In: GUTIERREZ, G. Teologia da Libertação. op. cit., p. 158. 6 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 51. Ver também VIDAL, D. Religion en Karl Barth: una introduccion. Madrid, s.n., 1972, p. 197. 7 É precisamente esse Deus que está assentado no que Barth chama de lugares altíssimos que se voltou para o homem, se deu e se fez conhecer. Deus dos lugares altíssimos, adverte o teólogo, não significa que Ele não tem nada a ver conosco, que Ele não nos concerne, que Ele permanece eternamente estranho, mas, segundo a fé cristã, isto quer dizer, ao contrário, que Ele veio, desceu até nós, que se tornou nosso Deus. Conforme Barth, é o Deus que afirma e prova sua autenticidade, aquele que nossa mão não pode conter e que, precisamente por essa razão, tomou-nos pela mão; aquele que, numa palavra, é o único que merece o nome de Deus, à diferença de todas as divindades inventadas e que, radicalmente distinto de tudo o que existe, está contudo ligado a nós. Cf. BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 46. Ver também MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas contemporâneas: de Schleiermacher a Barth. Buenos Aires: Methopress Editorial, 1964, p. 269. 8 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 13.

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Mesmo sem a criação, Deus não está só. Ele não necessita dela e, ainda assim, a

ama.9 Esse amor não pode ser concebido senão dentro do absoluto da liberdade

divina. O amor de Deus consiste nisso. Sua natureza consiste em se abaixar, sua

existência se manifesta no ato de descer ao fundo do abismo. Ele, o

misericordioso que se dá à sua criatura a ponto de partilhar a sua decadência mais

profunda; é Ele o nosso Deus, o Deus altíssimo. Ele o é, não apesar disso, em

virtude de um paradoxo surpreendente, mas devido ao fato mesmo dele se abaixar

de tal forma. É nesse livre amor que ele está acima de tudo. Segundo Barth, ver

em Deus uma outra grandeza é não tê-lo compreendido.10

Nos lembra Barth um versículo que salienta esta postura divina: “Habito no alto e

santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito” (Is 57.15). É

isso que Deus realiza na história de seus efeitos. Um Deus que se achasse apenas

confrontado ao ser humano – sublime, distante, estranho, restrito a uma divindade

sem humanidade, só poderia – caso conseguisse comunicar-se com o ser humano

– ser o que Karl Barth chama de o deus de um dysangelion11, um deus julgador e

mortífero, que o ser humano deveria evitar, perante o qual seria obrigado a fugir

e o qual seria melhor não conhecer.12

O Deus que o evangelho nos apresenta, o Deus real, fundamenta o teólogo, é

sublime e humilde concomitantemente. Inclusive é sublime justamente em sua

humildade. Assim, tudo que Deus quer e faz para e com o ser humano representa

obra prestimosa e salvífica, que traz consigo alegria e paz. Por isso, é realmente o

deus do evangelion, da boa palavra para o ser humano por ser a palavra da graça.13

A teologia evangélica, explica Barth, através de seu labor, responde ao gracioso

“sim”14 de Deus, à sua auto-revelação benigna15 para com o ser humano. O

9 MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas contemporâneas. op. cit., p. 271. 10 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., pp. 50,51. 11 Disangelho, má notícia. 12 Karl Barth alega que existem teologias que de fato argumentam com tais deuses sublimes, sobre-humanos e desumanos, que necessariamente só poderão ser deuses dos mais diversos “disangelhos”. Para o teólogo, é justamente o que ele chama de o progresso deificado – e especiamente o ser humano progressista – que parece ser um deus assim. Cf. BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 13. 13 Ibid. Ver também VIDAL, D. Religion en Karl Barth: una introduccion. Madrid, s.n., 1972, p. 126. 14 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5:

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teólogo utiliza o termo “teologia evangélica” para salientar que a teologia deverá

ser evangélica e não legalista. Assim expressa: “A teologia evangélica lida com o

Imanuel, o Deus conosco!”16

Salienta ainda Barth que a obra de Deus é um movimento. Pois, justifica, o Deus

em que acreditamos não é um Deus morto, nem um Deus solitário, mas, sendo

inteiramente o único, não fica, entretanto, só em si mesmo, recolhido em sua

majestade divina: a obra que Ele realiza, na qual nos encontra e que nos permite

conhecê-lo, é uma ação dinâmica e viva, por natureza e para a eternidade; e para

nós que vivemos no tempo da sua graça Ele é o Deus único em suas três maneiras

de ser. E hoje, o termo pessoa evoca para nós, quase que irresistivelmente, a idéia

de uma individualidade. E, nessa acepção, ela não é muito conveniente para

exprimir o Ser de Deus Pai, o Filho e o Espírito Santo.17

Na concepção de Barth, Deus é Deus ao se estabelecer em si mesmo e por si

mesmo como Deus, ao mesmo tempo diferente e idêntico a si mesmo em sua

divindade. E desta maneira é que Ele não está só em si mesmo, porque é o Deus

trinitário18, existindo a vida em toda a sua riqueza, a ação e a comunhão em toda a

sua plenitude. Por isso afirma Barth: “Ele é o movimento e o repouso”. Afirma

ainda:

Nós podemos compreender assim tudo o que Ele é por nós: o Criador que se dá a nós em Jesus Cristo e nos une a Ele pelo Espírito Santo; é a obra de

206-227, 1927. In: BARTH, K. Dádiva e louvor: artigos selecionados. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1986, p. 110. 15 Explica Barth em sua obra Esboço de uma dogmática: “É o imenso poder de Deus que entra em jogo, sem que nós o buscássemos por coisa alguma, e que torna possível o que para nós é impossível. Trata-se de um dom de Deus, livremente concedido, e sem qualquer preparação de nossa parte, se encontramos a Deus e em nosso encontro com Ele ouvimos a sua Palavra”. Cf. BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 19. 16 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 14. 17 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 54. 18 Para Barth, a Trindade não é um mero apêndice do Evangelho, já que desde o princípio Deus se revela como Pai, Filho e Espírito Santo. Segundo o teólogo, quando nos referimos à idéia de revelação devemos começar – e não terminar, como crítica em alguns teólogos – pela doutrina do Deus Trino. Barth toma a questão da Trindade como a primeira parte de sua doutrina a respeito de Deus e adverte que quando – à luz da Sagrada Escritura – pensamos a respeito de Deus que revela a si mesmo, devemos observar três perguntas fundamentais: Quem se revela? Como se dá essa revelação? E qual o efeito desta revelação no homem? A estas três questões responde com base na Sagrada Escritura: “O Deus oculto se revela, contudo, em parte; o Pai se manifesta no Filho que o comunica através do Espírito; e destes três modos, adverte Barth, o Deus Uno e Trino se dá a conhecer.” Cf. MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas contemporâneas. op. cit., p. 270.

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sua livre graça, a super-abundância de sua plenitude. Super-abundância misericordiosa e gratuita! Deus não quer permanecer o que Ele é em si mesmo e por si mesmo; aquele cuja presença preenche a eternidade quer ser para nós.19

Toda a obra de Deus, explica Barth, não pode deixar de levar a sua marca. Se Ele

cria, se faz nascer seres que, ao contrário de seu Filho, são distintos dele, se Ele

aceita existir para eles, isso não pode ter outro significado do que o seguinte: “Ele

quer nos fazer participar de sua vida, a fim de que nos tornemos participantes da

natureza divina”(2 Pe 1.4).20

Para Barth, ao chamarmos Deus de Pai não fazemos outra coisa senão dar-lhe o

nome que Ele se dá a si mesmo em seu Filho. Em si mesmo, o ser humano não é

um filho, mas uma criatura de Deus. Essa criatura, o humano, está sob todos os

aspectos em revolta aberta contra Ele, um sem-Deus e, contudo, Deus o chama de

seu filho. Como fundamenta Karl Barth, se podemos nos auto-denominar como

seus filhos, é unicamente por causa do ato de sua livre graça, por causa de seu

aviltamento e de sua misericórdia. Apesar de nós, porque Ele é o Pai, nos dá o

poder de participar de sua vida. Assim, nós somos seus filhos em seu Filho e pelo

Espírito Santo21 e, portanto, não porque haja uma relação direta entre Deus e nós,

19 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 56. Em palestra proferida no Congresso da Associação Suíça de Ministros Reformados , em Aarau, no dia 25 de setembro de 1956, Barth afirma que a humanidade de Deus – que deve ser corretamente compreendida – deve significar o seu relacionar-se com o ser humano e o voltar-se para ele. Este Deus é o Deus que fala com o ser humano em promessa e mandamento, intervém e age em favor do ser humano, comunga com ele através de sua livre graça, na qual Ele não quer ser somente Deus, mas Deus do ser humano. Cf. BARTH, K. Die Menschlichkeit Gottes. Theologische Studien. Zollikon-Zurich, Evangelischer Verlag, 48: 1-27, 1956. In: BARTH, K. Dádiva e louvor. op. cit., pp. 389,390. 20 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 57. 21 Ao dar-nos o Seu Filho e o Seu Espírito Santo para o conhecimento de Seu Filho, Deus mostra a si mesmo como Pai. O ato de onipotência do Senhor sobre a vida e sobre a morte na revelação através do Filho no Espírito mostra não apenas a Sua onipotência, mas mostra-a como paternal, ela mostra a Paternidade de Deus. Ela demonstra, e esta demonstração é a verdade de que Deus é Pai, não somente e não antes de mais nada como nosso Pai, mas já nele próprio Pai eterno e, precisamente como tal, nosso Pai. Portanto, é importante salientar, alerta-nos Barth, não é o caso que Deus apenas tornou-se Pai, em relação à nossa existência e ao nosso mundo, pela revelação dele para nós no Filho através do Espírito. Portanto, não deve ser dito que o nome “Pai”, em lugar de Deus, seja uma transferência a Deus figurativa e que não deve ser tomada literalmente, a partir de uma relação da criatura humana, visto que a existência essencial de Deus como Deus de per si não é afetada nem caracterizada por este nome; mais ainda, afirma o teólogo, Ele está infinitamente acima de ser Pai para nós, pois de fato trata-se de algo diferente no todo. O que é figurativo e não literal é aquilo que caracterizamos e imaginamos que conhecemos como paternidade em nossa esfera de criatura humana. Figurativa e não literal é, certamente, segundo Barth, a paternidade de Deus em relação à nossa existência no mundo, como nós a conhecemos na revelação de Sua onipotência como verdade. Nós a conhecemos como verdade e dentro da esfera da criatura humana nós falamos de paternidade porque Deus é na verdade Pai já de antemão, na

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mas porque Deus nos faz participar, a partir de seu próprio movimento, de sua

natureza, de sua vida e de seu ser. 22

É assim que o bom grado e a boa vontade de Deus, o próprio mistério da sua

essência divina, o mistério da sua relação com seu Filho, contêm, de fato, a chave

da sua relação conosco; e que nele, seu Filho, podemos nos chamar seus filhos

pelo Espírito Santo, quer dizer, pelo mesmo vínculo que une o Pai e o Filho. É

nesta terceira maneira de ser de Deus, o Espírito Santo, que se acha contida nossa

vocação segundo a mesma e eternal decisão do Pai. O que Deus é e faz em seu

Filho, concerne diretamente a nós, vale para nós e nos beneficia, alega Barth,

porque Ele é não somente nosso Pai, mas também o Filho, o Deus conosco.23

3.2

A necessária auto-doação

Deus, relacionando-se com a pessoa de forma tão íntima e penetrante, quer dar a

ela algo peculiar, mas também lhe pede algo peculiar. Ele a conforta, ergue e

liberta, mas também a engaja, manda-a caminhar, usar a liberdade com a qual foi

presenteada. Este processo é descrito por Karl Barth como “comprometimento”,

uma coisa luminosa e bela, mas também severa, algo edificante, mas também

assustador pelo fato de ser um comprometimento pelo Deus do Evangelho.24

Segundo o que Karl Barth proferiu em palestra, por ocasião da Conferência Cristã

de Estudantes em Aarau, em março de 1927, a ti e a mim estão dados e são

conhecidos os mandamentos. Dessa forma, segundo as palavras que utiliza, tu e

eu o cumprimos ou não. Tu e eu somos questionados. Tu e eu respondemos de

eternidade, que tem significado, mesmo desassociada de nossa existência no mundo. Ele é o Pai eterno e o é nele próprio. É como tal que Ele é então Pai para nós e se revela a nós e é o protótipo incomparável de toda paternidade da criatura humana: “do qual toda paternidade nos céus e na terra toma o nome” (Efésios 3. 15). A declaração de que Deus é Pai em verdade, porque de eternidade à eternidade é, entretanto, equivalente com a declaração de que, no revelar a nós o Pai, Jesus Cristo é o Filho de Deus no mesmo sentido estrito, portanto, de eternidade a eternidade; e o Espírito através de Quem nós conhecemos o Filho e no Filho o Pai, novamente no mesmo sentido estrito, portanto, de eternidade a eternidade é o Espírito Santo, o próprio Deus. Cf. BARTH, K. Credo: comentários ao credo apostólico. São Paulo: Editora Cristã Novo Século, 2005, pp. 44,45. 22 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 57. 23 Ibid. pp. 57,58. 24 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., 56.

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uma forma ou de outra, em ambos os casos, com o ato da nossa existência. Tu e

eu, no momento de decisão, somos aquilo por que nos decidimos em nossa

relação com o mandamento que nos está dado e conhecido, em nosso cumprir ou

não cumprir esse mandamento.25

O fato de tu e eu e de todos nós, quer saibamos ou não, nos encontrarmos dentro

dessa situação concreta e por isso estarmos em condições de conjuntamente nos

lembrarmos e nos entendermos sobre isto, é o que é verdade para igreja e,

precisamente como tal, a verdade sumamente especial do momento da tua e da

minha decisão. Essa verdade sumamente especial está caracterizada pelo conceito

cumprir os mandamentos.26

Em artigo intitulado Cumprir os Mandamentos, publicado em 1927, Barth

apresenta o cumprimento dos mandamentos27 como reflexo daqueles que são os

aliados, eleitos e amados de Deus. Com isso declara que o mandamento exige de

nós – em última análise, como obediência28 – o amor. Este é o cumprimento da

25 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: BARTH, K Dádiva e louvor. op. cit., pp. 110,112. 26 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: Ibid., p. 110. 27 Segundo Barth, o que são os mandamentos senão justamente o próprio mandamento concreto a nos atingir? Salienta o teólogo a incondicionalidade do dever, ou seja, somente existe dever concreto, determinado em seu teor; que na decisão real sempre se trata de obediência ou desobediência frente ao mandamento bem específico que, independentemente do nosso critério, é justamente este um bem determinado que reza, segundo as próprias palavras de Barth, assim e assim. Nisso precisamente consiste a decisão: não se o mandamento quer isso ou aquilo de mim, mas se darei ouvidos ou não, se obedecerei ou não àquilo que de mim é exigido que se me apresenta em sua forma extrema mais concreta. Por isso, alega o teólogo, corresponde à natureza da questão, que a exigência dirigida ao ser humano, tal como ela se apresenta na mensagem da Bíblia ouvida e anunciada na igreja cristã, não apenas se apresenta como mandamento pura e simplesmente dado, mas também de fora a fora como mandamento concreto, ramificando-se por isso numa multiplicidade de mandamentos, nos famosos Dez Mandamentos, nos numerosos mandamentos do Sermão do Monte ou dos capítulos de exortação nas epístolas, e mesmo na fórmula mais concretada do duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo. O mandamento da Bíblia também é mandamento concreto quando é mandamento de fé e frente a este jamais se pode tratar de obediência ou fé de um modo geral, mas apenas de obediência ou desobediência concreta, fé ou incredulidade. Cf. BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: Ibid., pp. 114,115. 28 A respeito do tema obediência Barth pronuncia-se da seguinte maneira: ¨O homem foi, de fato, criado à imagem de Deus justamente para obedecê-lo e, consequentemente, para sua salvação e não para sua perdição¨. Cf. VIDAL, D. Religion en Karl Barth: una introduccion. Madrid, s.n., 1972, p. 83. Para Barth, o estudo da obediência, no que tange à vida cristã, não deve ser visto como um aspecto secundário que sirva somente como complemento ao que se refere à reconciliação, eleição, fé e esperança. A vida de obediência faz parte do combate à natureza humana, da mesma atitude de dependência total de Deus. O ser humano deve viver obedientemente em relação â Palavra de Deus que fala a seu coração mostrando-lhe seu dever em

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lei. Amor a Deus e amor ao próximo, no qual se comprova palpavelmente – ou

não se comprova – em cada uma das nossas decisões, se de fato, através dos atos

de nossa existência em relação ao nosso próximo, amamos a Deus.29

Caso Deus não se aproximasse de nós, inclusive através de seus mandamentos,

isso não seria possível. Se Ele não nos amasse, se, portanto, não fosse justamente

amor, amor correspondido, que afinal é justamente o que o mandamento de nós

deseja, nada poderíamos fazer.30

Deus nos convida a amá-lo e ao próximo. Se precisássemos obedecer como

escravos de um destino estranho e distante, ou como órgãos de uma ordem moral

universal, sem precisar amá-lo, assim, como nos lembra Barth, como se pode

obedecer e servir perfeitamente ao Estado, por exemplo, sem amá-lo sequer um

pouco. Deus, porém, exige o amor para si e para o próximo. Seu mandamento não

deixa de exigir o nosso coração. Nas palavras de Barth expressas em seu artigo

Cumprir os Mandamentos:

Amar, entretanto, significa querer estar de alguma forma com aquele, em tudo querer estar com aquele que se ama, com a mesma naturalidade irresistível de não se poder estar a não ser consigo mesmo. Quando é que alguma de nossas decisões estaria caracterizada pelo fato de nela querermos estar com Deus assim como Ele está conosco, ou de querermos estar com nosso próximo como conosco mesmo, assim ativando a nossa eleição?31

Contudo, Barth nos conforta lembrando-nos que nossa decisão errada não está e

não estará destituída do que ele chama de certa gratidão benéfica. Explica o

teólogo que o mandamento não cessa de nos lembrar o amor, amor que não

conseguimos corresponder ou retribuir a Deus. Segundo Barth,

seu momento atual ou existencial em que está vivendo. Cf. também MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas contemporâneas. op. cit., pp. 277, 278, 287. 29 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: BARTH, K. Dádiva e louvor. op. cit., p. 119. 30 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: Ibid. 31 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: Ibid., p. 120.

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mesmo na mais profunda, viva e grande fé em Deus, jamais chegaremos a agir sequer comparavelmente ao que Ele fez a nós. Não é verdade quando se diz que em nossa consciência podemos ficar de acordo com a sua vontade. Quanto ao que nós sabemos, jamais somos justos em nossas decisões. Mas pode ser e precisa ser assim, que, como os rebeldes que em nós mesmos encontramos e vemos condenados diariamente por seu mandamento, queiramos dar um sinal, demonstrar que ao menos como tal entendemos o seu amor que nos atinge em seu mandamento; e é para isso que o seu mandamento será uma placa de orientação, “uma luz no nosso caminho” em meio à mata virgem da nossa transgressão; para tal deixaremos que um mandamento que nos condena, nos coordene. O sentido promissor dessa simetria e desse consenso em meio à ambigüidade, é a nossa santificação, nossa obediência. Quem crê agradece e com isso não estará oculto para Deus e para o próximo.32

Esse é portanto o outro aspecto referente ao cumprimento dos mandamentos, na

medida em que este se desenrola no nível inferior, no âmbito do que enxergamos

e entendemos. Salienta Barth ainda: “Graça é a justificação, mas é também a

santificação; e é vital saber que não se pode separar estes dois conceitos, mas é

preciso distingui-los. Eles se comparam a duas retas paralelas que se cruzam no

infinito. O infinito, porém, é o fim, quando Deus será tudo em tudo, a esperança, a

redenção.”33

Barth chama a nossa atenção para o fato de que a obra e a Palavra de Deus

formam uma unidade. Como já se evidencia na própria multiplicidade do

testemunho bíblico, como obra do Deus vivo, elas formam uma unidade na

abundância de suas configurações.34

Por isso, nos adverte Barth que a teologia não se restringe à exegese, à história da

igreja, à dogmática, pois nunca deixa de ser uma ética também.35 Trata-se de uma

inquietação ético-prática.36 Trata-se de uma elaboração, por parte da teologia

32 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: Ibid., p. 124. 33 BARTH, K. Das Halten ger Gebote. Zwischen den Zeiten. Munchen, Christian Kaiser Verlag, 5: 206-227, 1927. In: Ibid. 34 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 57. 35 O prólogo do pastor Emilio Castro, na própria obra de Karl Barth, Comunidad civil y comunidad

cristiana, fundamenta a questão ética para Barth. Cf. BARTH, K. Comunidad civil y comunidad

cristiana. Ediciones Tauro: Montevideo, 1966, pp. 8, 24. 36 Em termos teológicos, Barth fundamenta essa inquietação ético-prática da seguinte maneira, segundo o que podemos observar na obra intitulada Karl Barth: teólogo da liberdade, de Daniel Cornu: a Palavra de Deus, soberana e livre, é dirigida ao ser humano na ressurreição de Jesus Cristo. Consiste numa graça, e o ser humano que recebe essa Palavra reveste-se de uma nova

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evangélica, de uma determinada concepção acerca do preceito divino,

proclamando na e com a promissão divina, acerca da ação na igreja e no mundo,

embutida na obediência da fé, acerca da tarefa prática dada ao ser humano junto

com o dom da liberdade.37

Segundo Daniel Cornu, de todos os trabalhos de Barth que tangem de alguma

forma a temática política, levando em consideração tanto os artigos ocasionais

como os estudos de caráter exegético ou dogmático, o mais complexo é a obra

intitulada Comunidad civil e comunidad cristiana.38

Publicado em 1946, logo

após a guerra, este texto era, na época, a suma de sua teologia política. Barth usa

as designações “comunidade cristã” e “comunidade civil” de preferência às

designações clássicas “igreja”e “Estado”. O conceito de comunidade indica, com

efeito, que não nos deparamos propriamente com instituições, mas com homens

concretos, reunidos em uma entidade comum, para elaborar e efetuar tarefas

comuns.39

Ambas as comunidades apresentam a mesma característica de fragilidade. A

comunidade civil engloba todos os cidadãos, cristãos ou não. Não podendo,

portanto, conscientizar de modo homogêneo sua relação com Deus. Não lhe cabe

invocar a proteção de Deus para constituir a ordem que tem por tarefa estabelecer

e impor. Assim, é espiritualmente cega e ignorante, tendo de recorrer à métodos

estranhos como o poder das armas e a violência física. Falta-lhe o que constitui a

essência da comunidade cristã: a perspectiva ecumênica e a liberdade.40

dignidade. Essa dignidade, que o homem reconnhece em seus semelhantes, constitui a base de sua ética. Essa teologia da Palavra de Deus, segundo Daniel Cornu, deve ser considerada como um cristologia, já que repousa inteiramente sobre a vitória de Deus em Jesus Cristo. Cf. CORNU, D. Karl Barth: teólogo da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, p. 18. 37Explica Barth que tal inquietação ético-prática da teologia, evidentemente, não será em conformidade com as inclinações, posições e tendências prevalecentes no mundo e mesmo na igreja. Deve-se esperar, segundo o teólogo, que a teologia, com suas perguntas e respostas –precisamente nesse campo – se encontre em oposição mais ou menos expressa às opiniões e aos pareceres dos senhores pequenos e grandes, não cristãos e mesmo cristão de todo o mundo. Para o teólogo, a teologia não é inimiga do ser humano, mas tendo por tema o novo ser humano no novo cosmo, é em seu cerne um empreendimento crítico e até revolucionário a não ser que, nas palavras de Barth, sofra de paralisia espiritual. Cf. BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 76. Ver também BARTH, K. Comunidad civil y comunidad cristiana. Ediciones Tauro: Montevideo, 1966, p. 26. 38 BARTH, K. Comunidad civil y comunidad cristiana. Ediciones Tauro: Montevideo, 1966. 39 CORNU, D. Karl Barth. op. cit., p.113. 40 Ibid., p.114. Liberdade aqui compreendida como a referência que encontramos na liberdade de Jesus. Liberdade como instrumento de uma comunhão com a vida, sentido que erige a liberdade

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Já a comunidade cristã, por sua vez, é incapaz de identificar por si própria os fiéis

dos infiéis, os cristãos dos não cristãos. Segundo Barth, ainda que creia em Deus,

a Palavra e o Espírito Santo não lhe são mais acessíveis que à comunidade civil.

Todavia, nos lembra o teólogo, a relação entre as duas comunidades tem também

um lado positivo: os elementos constitutivos da comunidade civil pertencem

igualmente à comunidade cristã. Esta possui também uma ordem legal, um direito

“eclesiástico”, e a exemplo da comunidade civil possui suas respectivas

autoridades.41

Assim, Karl Barth destaca que cabe à comunidade cristã compreender a

necessidade da comunidade civil. Para Barth, destinada a proteger o homem

contra o caos, a comunidade civil pertence ao “tempo da graça” concedido por

Deus. A comunidade cristã vive sob o abrigo da comunidade civil, como um

círculo menor inscrito no interior de outro mais amplo. Por isso a comunidade

cristã reconhece na existência do Estado o efeito de uma determinação divina, um

instrumento da graça de Deus. Assim, a comunidade civil partilha com a

comunidade cristã sua origem e seu centro.42

Dentro desta relação, declara Barth que é essencial que a igreja permaneça fiel à

sua missão: anunciar a soberania de Jesus Cristo e a esperança no futuro Reino de

Deus. Deve contentar-se em ser o círculo menor, inscrito no interior do Reino de

Jesus Cristo. Pois é precisamente ao executar fielmente sua tarefa particular que a

comunidade cristã participa da tarefa da comunidade civil. Realizando essa missão

cristã em toda a sua plenitude. Conforme as palavras de Paulo XI: “O homem encontra uma verdadeira liberdade renovada na morte e na ressurreição de Jesus, abandonando-se a Deus que o liberta.” Cf. Octagesima adveniens, n. 47. In: GUTIERREZ, G. Beber no próprio poço: itinerário espiritual de um povo. Petrópolis: Vozes, 1987, p.104. Em sentido semelhante expressou também D. Bonhoeffer: “Na linguagem da Bíblia, a liberdade não é algo que o homem possui para ele mesmo, mas sim algo que está em função dos demais. Não é uma posse, uma presença ou um objeto, mas uma relação e nada mais.” Conforme Bonhoeffer, a liberdade é uma relação entre duas pessoas, por isso, ser livre significa “ser livre para o outro”, uma vez que o outro me liga a ele. Nas palavras de Bonhoeffer, “somente em relação com o outro é que sou livre”. Cf. BONHOEFFER, D. Creation and Fall. Nova York, 1966, p. 37. In: GUTIERREZ, G. Beber no próprio poço. op. cit., pp.104,105. 41 CORNU, D. Karl Barth. op. cit., pp. 114,115. 42 Ibid., p. 115.

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dentro do círculo mais vasto da comunidade civil, os cristãos são também

responsáveis pela estabilidade da sociedade.43

3.3

A indispensabilidade do servir

Defende Barth, que o labor teológico também é serviço. Explica o teólogo:

Servir, definido de modo geral, é uma forma de querer, de atuar e de agir na qual a pessoa não procede em defesa da própria causa nem segue a seus próprios planos, mas na qual age com vistas à causa de outrem, de acordo com as necessidades deste.44

A liberdade do nosso agir se acha limitada e definida pela liberdade do outro.

Seria um agir honroso, justamente porque a pessoa que age não procura a própria

honra, mas sim a do outro. O trabalho do teólogo, segundo Karl Barth, é essa

ação de serviço – seja ela oração, seja estudo, seja ambas as coisas

simultaneamente.45

Consoante ao evangelho, alerta-nos Barth, é necessário que o teólogo se torne

apenas o último, o servidor, o serviçal e, portanto, o diácono de todos. O teólogo

será, segundo a alegação de Barth, o serviçal da sublime majestade da palavra

divina46, a qual, afinal, é o próprio Deus que fala em seu agir.47

Servir a Deus e aos seres humanos, na concepção de Karl Barth, é o sentido, o

horizonte e o telos do labor teológico.48 Assim, não será nenhuma gnose a pairar

43 Ibid., p. 115. 44 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 116. 45 Ibid. 46 Destaca Barth, fazendo referência a esse caráter de serviço do trabalho teológico, que tal trabalho não poderá ser realizado em função de si mesmo, tal qual “arte por amor à arte”. Insiste o teólogo que aquele que de fato se ocupa com a teologia possui consciência que essa tentação está presente continuamente e jamais cessa. A teologia, defende Barth, especialmente em sua modalidade de dogmática, é uma ciência caracterizada por um peculiar fascínio, já que clama irresistivelmente por uma arquitetura intelectual e, portanto, por beleza. O pesquisar dos conteúdos teológicos, tanto os mais claros como os mais obscuros, é uma atividade empolgante, inclusive do ponto de vista puramente humano. Segundo Barth, é um empreendimento tão fascinante que poderá nos fazer esquecer com muita facilidade a seguinte pergunta: “Para que serve tudo isso?”. Cf. Ibid., p. 117. 47Ibid., p. 116. 48De igual forma defende também Gustavo Gutiérrez. Segundo Gutiérrez, servir a Deus e aos seres

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no espaço, que poderia servir unicamente ao prazer intelectual e estético do

teólogo. Todo o labor teológico, mesmo que venha a ter o mais brilhante

desempenho, deverá, se não quiser se tornar estéril, ter por alvo último e essencial

a palavra de Deus não somente sendo estudada, contemplada e meditada, sob este

ou aquele aspecto, mas que se torne objeto de seu serviço, ou seja, de sua

diaconia.49

Assim, lança Barth o seu olhar para o que chama de a condição básica que

confronta a teologia a partir de seu objeto; que a partir dele deve ser aceita e que

pelo seu poder libertador deve ser cumprida, e assim formula a seguinte tese: o

trabalho teológico só será obra boa onde puder ser realizado em amor e onde de

fato for decididamente realizado em amor.50

Conclui então o teólogo:

“Só o amor é que conta. Mas ele conta realmente. Ele edifica, como dizem as palavras confortadoras de Paulo; e mais: o amor jamais acaba. Ele permanece, junto com a fé e a esperança ( e como “o maior destes”), mesmo que todas as outras coisas venham a passar. O mesmo Paulo, contudo, também advertiu que o conhecimento como tal, o conhecimento in abstrato, o esforço e o labor teológicos em si não edificam, mas ensoberbecem – e mais: que ele, o apóstolo, mesmo que fosse capaz de falar a mais adequada linguagem humana, ou até a linguagem dos anjos, mas se não tivesse amor, não passaria de um gongo a soar e de um chocalho a retinir. Reconheceu que, mesmo sendo capaz de anunciar mensagem profética, mesmo sendo sabedor de todos os mistérios, e mesmo possuindo e usufruindo todo o conhecimento, sem amor não seria nada, absolutamente nada.51

Karl Barth, assim, no que se refere ao amor – segundo ele mesmo declara – aceita

tanto a advertência quanto o conforto. E dessa forma pronuncia: “O labor

teológico destituído de amor – mesmo que fosse acompanhado de oração séria, de

estudo esmerado e de serviço zeloso – não passaria de mísero combate simulado,

humanos, o amor e os gestos para com Deus e o próximo tratam-se dos frutos do Espírito expressos em nós e necessários em todo cristão, reprodutores do labor teológico ou não. Cf. GUTIERREZ, G. Beber no próprio poço. op. cit., p. 103. 49 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., pp. 117,118. 50 Ibid., p. 123. 51 Ibid.

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de mero trilhamento de palha”.52 Insiste ainda o teólogo: “Tal labor só será válido

se mantiver o dever de ser iniciado, prosseguido e levado a cabo como boa obra

ao se receber e pôr em prática a dádiva livre do amor”.53

No que tange à temática do amor, Barth utiliza a peculiaridade do amor de Deus

como referência. Lembra-nos que o que distingue a potência de Deus de sua

fraqueza, o que a eleva acima de todos os outros poderes e o que a opõe

vitoriosamente à “força em si”, é que ela é potência do direito decorrente do amor

que Ele fez brilhar em Jesus Cristo. Em conseqüência, a potência de Deus contém,

qualifica e delimita todo o domínio do possível e domina absolutamente o

conjunto do real. 54

Afirma o teólogo que a potência de Deus é a do direito porque ela é a onipotência

de Deus, o Pai.55 Lembra-nos então do vínculo que une o Pai e o Filho, da vida de

Deus que, longe de ser solidão, é, ao contrário, movimento, mudança, comunhão

íntima. Portanto, a onipotência de Deus é, conforme o direito, a potência daquele

que, em si mesmo, é o amor. Tudo o que ameaça o amor – a solidão e a afirmação

de si mesmo – constitui uma injustiça e permanece sem poder real, pois Deus os

renega. O que Deus aprova é a ordem conforme a que reina nele mesmo entre o

Pai, o Filho e o Espírito Santo. A potência de Deus é uma potência de ordem. A

potência de Deus é boa, santa, justa, misericordiosa e paciente. Para Barth, o que

distingue essencialmente a potência de Deus da impotência é que aquela é a do

Deus trinitário. E essa potência é a do amor, que foi iluminado e revelado

livremente em Jesus Cristo. 56

52 Ibid., p. 124. 53 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 124. 54 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 59 55 A esse respeito encontramos uma exposição bastante didática de Karl Barth em sua obra intitulada Credo. Segundo o teólogo, precisamos ter em mente de modo absolutamente claro que o conceito “Todo-Poderoso” recebe sua luz do conceito “Pai” e não vice-versa. E isso, apesar dele ser indubitavelmente revelação de Deus, e, portanto, um ato da divina onipotência através do qual Deus faz-se conhecido ao homem como Pai; embora nós, indubitavelmente, conheçamos Deus o Pai na manifestação de Sua onipotência. Mas um ato, e esse um ato da divina onipotência é a revelação da Paternidade de Deus. A onipotência de Deus não é algum poder que nós possamos estar inclinados a levar em consideração como onipotência. É o poder do Pai que não torna o próprio poder conhecido por nós como onipotência in abstracto, mas apenas como onipotência do Pai, quer dizer, do Pai que se revela a Si Próprio para nós. Cf. BARTH, K. Credo. op. cit., pp. 39,40. 56 BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., pp. 63,64.

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3.4

O eros teológico

Segundo o teólogo, o amor, compreendido puramente como eros57

, pode ser

também a mesma paixão em sua modalidade intelectual. Seria o impulso pelo qual

o conhecer humano é levado em direção a seus objetos, pelo qual os procura

alcançar a fim de unir-se com eles, de incorporá-los a si, de assim apoderar-se

deles e os dominar, de assim usufruí-los.58

No entanto, reconhece o teólogo, sem eros não poderá haver labor teológico,

assim como por certo ele é também um movimento do intelecto humano e, em seu

substrato físico, também um movimento humano vital. Pelo que toca o objeto

ambicionado pelo ser humano por causa de sua auto-afirmação e auto-realização,

o eros teológico, que Barth denomina como o eros teológico-científico, em sua

avaliação sempre tem oscilado. Explica o teólogo:

Poderá visar preponderantemente – talvez até de forma exclusiva – a Deus ou preponderantemente o ser humano. O sujeito cognoscente poderá estar interessado primordialmente em Deus ou primordialmente no ser humano. Poderá querer desvendar, dominar e desfrutar, e neste sentido conhecer, antes de mais nada a Deus ou antes de mais nada o ser humano.59

Lembra-nos Barth que enquanto na teologia da Antiguidade e da Idade Média o

eros científico manifestou-se mais na primeira modalidade, a teocêntrica, na

teologia posterior revelou-se, de maneira geral, mais na segunda, a

antropocêntrica: ambas não deixam de ter seu fundamento no próprio objeto da

teologia, já que esta de fato tem Deus e o ser humano por assunto. Mas o que não

poderia acontecer a partir desse objeto, alerta-nos Barth, é que haja a separação,

57 Barth entende eros como uma espécie de “amor”, como um poderoso cobiçar, uma intensa paixão, um grande impulso, uma grandíssima ambição pela qual uma criatura busca sua auto-afirmação, sua auto-satisfação, sua auto-realização e auto-consumação na relação com um outro. Seria o que em suas palavras assim define: aproximar-se do outro, conquistá-lo para si, apropriar-se e apoderar-se dele de forma tão inequívoca e definitiva quanto possível. Cf. BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 124. 58 Ibid. 59 Ibid.

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oscilação e vacilação entre as duas realidades que se evidencia na história do eros

teológico.60

Assim, o teólogo que se permitir ser conduzido e impelido pelo eros científico,

costuma ser levado a vaguear, segundo Barth, de forma consideravelmente

estranha, pois o eros científico, quando atuante no campo da teologia, costuma

trocar e confundir constantemente o assunto da mesma com outros assuntos.

Desse modo, destaca Barth, é pela própria natureza deste eros que, quando ele

constitui o motivo do labor teológico, nem Deus será amado e conhecido por

causa de Deus, nem o ser humano por causa do ser humano. Antes, tanto Deus

quanto o ser humano serão amados e conhecidos no interesse mais autêntico e

profundo do sujeito teologizante e, portanto, em seu amor por si mesmo.61

Sob nenhuma hipótese Barth admite que esse tipo de amor seja idêntico àquele

que faz o labor teológico ser uma boa obra e sem o qual tal labor certamente não

poderá vir a ser nem a permanecer uma boa obra. Questiona então o teólogo:

“Poderíamos afirmar, com referência ao eros, que ele, por obra do Espírito Santo

que nos foi dado, seria derramado em nossos corações, que o eros nos “edifica”,

que “jamais acaba”, que nada nos poderia separar dele?” A resposta de Barth,

evidentemente, é negativa. Segundo ele, colocar tal eros no mesmo plano da fé e

da esperança, afirmar que o eros permanecerá tanto quanto a fé e a esperança,

seria loucura, seria uma cegueira ou a insolência de passar por cima de tudo que

Paulo, e com ele o Novo Testamento todo, disseram e pretenderam através dos

termos usados para definir o amor.62

3.5

O amor sugerido por Barth

60 Ibid. 61 Ibid., pp. 124,125. 62 Ibid., p. 125.

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Como fundamenta Karl Barth, através de Jesus Cristo, Deus, em pessoa, está

presente em sua obra e é precisamente o sujeito dela. Ele age na liberdade de seu

amor. As palavras liberdade e amor são convenientes para o teólogo, quando se

trata de caracterizar o que Deus faz e o que Ele é. Segundo Barth, Deus é amor e

Deus é liberdade, por isso, dele devemos aprender sobre um e outra. Deus é

aquele que ama na liberdade. E como tal se manifesta na obra da criação, da

aliança e da redenção através de sua auto-entrega e auto-manifestação.63 E aqui,

alega o teólogo, é que vemos em que consiste o amor: nessa necessidade do outro

como tal, o Deus único deixando de ser só para se unir totalmente à pessoa do

outro. Tal é o amor, o livre amor de Deus.64

Destaca Barth, que a palavra que o Novo Testamento usa para definir o amor é

ágape. Do contexto em que esse termo aparece se depreende de forma inequívoca

que ele designa um movimento que transcorre na direção exatamente oposta à do

eros. Para Barth, é verdade que o amor, no sentido de ágape, também é procura

total de um outro, mas somente isso tem em comum com o amor no sentido estrito

de eros.65

Entretanto, trata-se de uma procura cuja origem, a pessoa que ama jamais

compreenderá como impulso próprio, mas sempre como uma liberdade que lhe foi

dada, portanto, algo que originalmente lhe é estranha, uma liberdade totalmente

nova para o outro. Ela, por si mesma, não precisaria amar o outro e nem o faria;

mas, por receber a permissão de amá-lo, o ama. Por ser livre para ele, ama a ele,

portanto não ama de forma indefinida, vaga e dispersa, mas de forma concentrada.

E, precisamente por ser livre para ele, ela não o procura por necessitar dele para si

mesma, como meio de sua auto-afirmação e auto-realização.66

A pessoa que ama, argumenta Barth, só procura o outro justamente por causa dele

mesmo.67 Assim, ela não o quer conquistar e ter para si, a fim de usufruí-lo, de

63 VIDAL, D. Religion en Karl Barth. op. cit., p. 125. 64 Cf. BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 50. 65 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 125. 66 Ibid. 67 Como nos lembra Joachim Jeremias, fundamentado biblicamente, em Mc 12, 28-34, Jesus mesmo designa o amor para com o próximo, ao lado do amor para com Deus como o maior mandamento. Jesus supera a versão negativa que se contentava em não causar ao próximo nenhum

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fruir o poder que tem sobre ele. Dessa forma, de modo algum ela interfere na

liberdade do outro. Ao respeitar também a liberdade dele, ela é totalmente livre

para ele. Ela o ama gratuitamente, ou seja, nada quer dele, não quer ser gratificada

por ele – ela apenas quer estar aí para ele, só quer entregar-se, dar-se, presentear-

se a ele, assim como a ela própria foi dada a possibilidade de poder amá-lo.68

Ainda que o amor, no sentido de ágape, também seja um procurar, não é nenhum

procurar interesseiro, mas, segundo nos rememora Barth, mais bem aventurado é

dar do que receber. O amor ágape seria um procurar soberano do outro. Soberano

justamente por não visar a soberania de quem ama, mas sim daquele que é amado.

Assim, alega Barth, o amor ágape – utilizando novamente as palavras de Paulo –

é paciente e benigno, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz

inconvenientemente, não procura seus interesses, regozija-se com a verdade, tudo

sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.69 Ágape, ultrapassando toda espécie de

saber teimoso e apodíctico, ultrapassando toda espécie de contendas, é um tender

pura e simplesmente positivo que visa o outro.70

Por isso Barth faz a seguinte pergunta: “Será que não faria bem às demais ciências

se o motivo dominante de seu trabalho, em vez de ser o eros, também fosse o

ágape?”71 Para o trabalho teológico, a primazia do ágape é de importância vital e

imprescindível, defende o teólogo. No entanto, nos adverte:

É verdade que também o labor teológico não poderá suprimir e fazer desaparecer, sem mais nem menos, aquele interesse do sujeito humano cognoscente, aquele impulso pelo qual o sujeito se deixa levar ao encontro

prejuízo e propõe a versão positiva estimulando as pessoas a darem provas de amor. O modelo de amor para com o próximo é Deus na sua grande misericórdia: “Sede misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36). Cf. JEREMIAS, J. Teologia do Novo

Testamento: a pregação de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1977, pp. 321, 322. 68 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., pp. 125,126. 69 Além de Paulo, em 1Co 13, encontramos ainda outras passagens relativas ao amor, demonstrando que o mesmo expressa-se não somente por sentimentos e palavras, mas também por atos: na capacidade para o dom (Mt 5,42), na disposição para o serviço (Mc 10, 42-45 e Lc 22, 24-27), em atos de amor de toda sorte (Mt 25, 31-46, onde se repete quatro vezes a enumeração das seis obras mais importantes de amor), na disponibilidade de perdoar ao irmão e sobretudo na grande marca desse amor: seu caráter ilimitado. O amor deve ser dado não só aos iguais socialmente, mas prioritariamente aos pobres (Lc 14, 12-14), com os quais Jesus se identifica como irmãos (Mt 25, 40), mas também não só aos que são simpáticos, como, de igual forma, aos inimigos (Mt 5, 44 e Lc 6, 27s). Cf. JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. op. cit., p. 323. 70 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 126. 71 Ibid.

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do objeto a ser conhecido, tendo por intenção a exaltação própria. Para ele, porém, o eros não poderá ser o motivo dominante, e sim apenas um motivo posto a serviço.72 Nele, o ardente desejo de apoderar-se do objeto só poderá ter, em todos os sentidos, o sentido de uma primeira e inevitável arrancada em direção ao objeto: uma tentativa que deverá aceitar colocar em segundo plano em conformidade com seu objeto, no relacionamento com aquilo que ousa buscar, dando lugar a uma tentativa totalmente diferente, para não só ser purificada e controlada por esta, mas para ser transformada e integrada nela.73

O labor teológico não acaba com o eros como tal, mas acabará – e precisa acabar

– com sua posição dominante. O amor que nele prevalece só poderá ser o amor

ágape, que se torna atuante a partir do objeto a ser conhecido em confronto com o

sujeito humano e seu eros, sendo introduzida por esse objeto de forma nova e

como fator estranho.74

Salienta Barth, que o assunto ou o objeto do labor teológico é um só. Seu objeto é

o Deus uno e verdadeiro; não em sua aseidade e independência, mas em sua união

com o ser humano uno e verdadeiro; e o ser humano uno e verdadeiro igualmente

não em sua independência, mas em sua união com o Deus uno e verdadeiro.75

O assunto do labor teológico deve ser Jesus Cristo e a história da consumação da

aliança entre Deus e o ser humano, a história na qual aconteceu – e aconteceu de

forma única, de uma vez por todas, excluindo quaisquer tentativas de ultrapassar

este evento – que o grande Deus, na liberdade que lhe é originariamente própria,

se prestou e entregou para ser o Deus do pequeno ser humano76, mas na qual

72É interessante observar a reflexão de Leonardo Boff a respeito do eros, em sua obra intitulada O

destino do homem e do mundo. Segundo Leonardo, o eros revela a transcendência do homem sobre si mesmo e sua abertura para a alteridade pessoal. Essa abertura é sacramento de uma transcendência ainda mais profunda do homem que suspira pelo Absoluto e pelo Divino. O eros dá conta da riqueza e da pobreza humana: da riqueza de poder doar-se no fecundo encontro de duas vidas; da pobreza, por outro lado, de quem suspira ser repletado e acolher o dom do outro. Segundo Leonardo, a vivência da dimensão do eros, no dar e receber amor, permite ao homem vislumbrar o que significa a graça de Deus. Lembra-nos o teólogo que o poder dar e receber é dom, visto que, não está em nosso poder conquistar o amor e estabelecer o encontro, já que vivemos na gratuidade do dom. Cf. BOFF, L. O destino do homem e do mundo: ensaio sobre a vocação humana. Petrópolis: Vozes, 1982, p. 136. 73 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 126. 74 Ibid. 75 Ibid. 76 Barth rememora-nos que o Deus que a fé cristã confessa não é, à maneira dos “deuses deste mundo”, um ser que se encontra ou se inventa, uma divindade que se oferece aos homens ao término de seus esforços. Deus não é o coroamento, seja ele o mais perfeito que for, de uma procura que pudéssemos iniciar sem mais nada e alcançar por nós mesmos. Cf. BARTH, K.

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também o pequeno ser humano se prestou e entregou, na liberdade que para tanto

lhe foi dada por Deus, para ser o ser humano do grande Deus.77 O objeto do

conhecimento teológico é o evento de tal aliança e, dentro dele, o perfeito amor

que une o ser humano a Deus e Deus ao ser humano.78

O eros, em uma outra forma ou escala, poderá ser pressuposto em qualquer

pessoa, o ágape, porém, não poderá ser pressuposto em ninguém. O ágape só

poderá ser recebido e posto em prática como presente – por quem quer que seja,

teólogo ou não, em qualquer época ou lugar – em Cristo Jesus, nosso Senhor,

afirma Karl Barth (Rm 8.39).79 O amor ágape está onde o Senhor Jesus estiver,

agir e falar, e o conhecimento teológico só poderá acontecer, em maior ou menor

escala, naquele amor, e assim ser uma boa obra.80

Em Cristo, no qual a aliança entre Deus e o ser humano foi consumada, o amor

permanece, mesmo que os teólogos surjam e desapareçam, mesmo que no âmbito

da teologia se alternem períodos de claridade como outros de escuridão. Em

outras palavras, metaforicamente, Karl Barth anuncia: “É que o sol, mesmo oculto

por detrás das nuvens ou, antes, vitorioso acima delas, é e permanece o sol

fulgente”.81 Saber do perfeito amor como conditio sine qua non da verdadeira

teologia em todos os casos –mesmo que só consigamos suspirar por Ele – será

Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 43. Ver também VIDAL, D. Religion en Karl Barth. op. cit., p. 83. A esse respeito afirma ainda Barth; conforme a obra Corrientes teológicas contemporâneas,

de Hugh Ross Mackintosh: ¨Não podemos vencer o pecado mediante um entusiasmo moral, senão somente quando foi pronunciada a grave e criadora palavra perdão e pronunciada através do Senhor. Assim, somente isto põe fim ao intuito de construir uma vida cristã sobre ideais que pretendam ocupar o lugar do perdão de Deus¨. Longe de estabelecer a necessidade de cumprimentos morais como critérios únicos para a relação com Deus, Barth afirma que ninguém pode negar o profundo contraste entre a justiça de Deus e a injustiça dos homens. Seu ponto de partida é a justificação pela fé, ou seja, que esteja claro que a justiça e a misericórdia de Deus – e assim se dará a justa relação com Deus – é o começo de tudo, e não uma meta que o ser humano deve alcançar mediante um esforço interminável que torna necessário ser empreendido de novo a cada instante. Segundo Barth, o homem consciente em relação a Deus é aquele cuja consciência e vontade foram vivificadas e fortalecidas ao reconhecer que seus pecados foram perdoados em nome de Jesus. Salienta Barth a absoluta dependência do homem em relação a Deus, algo incomparável com qualquer esforço ético ou preceitos morais que pudessem ser feitos pelo ser humano através de um esforço meticuloso para imitar Jesus. Cf. MACKINTOSH, H. R. Corrientes

teológicas contemporâneas. op. cit., pp. 277, 278, 287. 77 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., pp. 126, 127. 78 Ibid., p. 127. 79 Ibid., p. 128. 80 Ibid. Ver também a respeito da primazia do amor ágape sobre o eros em BOFF, L. O destino do

homem e do mundo: ensaio sobre a vocação humana. Petrópolis: Vozes, 1982, pp. 136,137,156,157. 81 BARTH, K. Introdução à teologia evangélica. op. cit., p. 128.

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melhor do que não saber dele. E é essa, na concepção de Barth, a finalidade do

labor teológico, chegarmos a saber de tal amor.82

Martin Buber também nos auxilia nesse ponto. Lembra-nos, por exemplo, do

sentimento de Jesus. Segundo o que nos apresenta em sua obra Eu-Tu, o

sentimento de Jesus para com o possesso é diferente do sentimento para com o

discípulo amado; mas o amor é um. Os sentimentos, fundamenta Buber, nós os

possuímos, o amor acontece. Os sentimentos, segundo ele, residem no homem,

mas o homem habita em seu amor. Considera tal coisa não como simples

metáfora, mas como pura realidade. Buber salienta que o amor não está ligado ao

Eu de tal modo que o Tu fosse considerado um conteúdo, um objeto: o amor se

realiza entre o Eu e o Tu.83

Segundo Buber, aquele que desconhece que o amor se realiza entre o Eu e o Tu,

não conhece o amor, mesmo que atribua ao amor os sentimentos que vivencie,

experimente, perceba e exprima. Aquele que habita e contempla no amor,

vislumbra os homens destacados de emaranhados confusos e indiscerníveis,

vislumbra-os bons e maus, sábios e tolos, belos e feios, uns após outros tornam-se

para ele atuais, tornam-se Tu, isto é, tornam-se, segundo as palavras de Buber,

seres desprendidos, livres, únicos, encontrando cada um face-a-face. A

exclusividade ressurge sempre de um modo maravilhoso; e assim ele pode então

agir, ajudar, curar, educar, elevar etc. Amor, na concepção de Buber, é

responsabilidade de um Eu para com um Tu: nisto consiste a igualdade daqueles

que amam.84

3.6

Jesus como referência humana e divina

Barth apresenta Jesus Cristo como o homem em quem o próprio Deus se fez

visível e tornou-se ação sobre a terra; Jesus Cristo, o objetivo da história de Israel,

82 Ibid. 83 BUBER. M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979, p.17. 84 Ibid.

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em quem a igreja começa e termina, chave da revelação, da redenção e da nova

criação.85 Toda a obra de Deus está contida nessa única e mesma pessoa. Assim,

nos lembra Barth: “Falar de Deus, segundo a Sagrada Escritura, é necessariamente

falar de Jesus Cristo”.86

Segundo Barth, Jesus é o homem voltado para o próximo e, diferentemente dos

outros homens, é a imagem de Deus como nenhum homem saberia ser. Somente

ele é o Filho de Deus, de maneira que só a sua humanidade pode ser descrita

como um “eu” procedente inteiramente de um “tu” que lhe faz face e é

inteiramente voltado em sua direção.87

Em Jesus Cristo, o oculto, o eterno e incompreensível Deus tomou forma visível.

Em Jesus, o Todo-Poderoso está poderoso em um acontecimento terrestre bem

definido e particular.88 Aqui, o próprio criador tornou-se criatura e, por

conseguinte, realidade objetiva. Aqui, no seu Filho, na revelação de seu Nome e

Palavra, o Deus Uno mostrou-se, Ele próprio, como diferenciado nele mesmo, de

forma que nós podemos ouvi-lo, de forma que nós podemos dizer “Tu” para Ele

como para um de nós mesmos.89

É a revelação em sentido estrito e literal, lembra-nos Barth, que a Escritura quer

dizer quando dá testemunho de Jesus Cristo. E o sentido desta revelação torna-se,

de fato, mais estrita quando é acrescentado que em Jesus o abismo foi

transposto90, que em Jesus, nesta e com esta revelação, nossa reconciliação é

concluída, que este Jesus Cristo é Deus para nós, e para nós a sua encarnação,

85 VIDAL, D. Religion en Karl Barth. op. cit., p. 197. 86 Cf. BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 49. Ver também H. R. MACKINTOSH. Corrientes teológicas contemporâneas. op. cit., p. 268. 87 BARTH, K. Dogmatique. III/2, Geneve: Labor et Fides, 1961, p. 240. 88 MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas contemporâneas. op. cit., p. 268. 89 BARTH, K. Credo. op. cit., p. 73. 90 Barth utiliza o termo abismo alegando que nós homens estamos submersos por uma vida de corrupção e relatividade, vivendo em um mundo separado de Deus pela linha divisória da morte. Segundo ele, vivemos em uma esfera totalmente separada de Deus, que somente através de sua graça é possível transpô-la. Assim dá-se a Boa Nova, que é precisamente a superação desse abismo, a superação da distância que ele denomina como o “lá” e o “aqui”, salvando-nos através de Jesus Cristo, o único caminho que pode levar o homem a Deus. Cf. MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas contemporâneas. op. cit., p. 272.

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para nós a sua existência como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, para nós

tudo o que mais tarde é dito dele desde o seu nascimento até o seu retorno final.91

As palavras de Barth evidenciam que a existência humana é ligada à

temporalidade, ao pecado e à morte. O conjunto de suas atividades, inclusive suas

atividades religiosas, são aquelas de uma criatura pecadora. Entre o homem e

Deus, nos ressalta Barth, a diferença qualitativa é infinita, por isso o homem não

pode atingir Deus por si mesmo. A relação não se estabelece senão pela revelação

de Deus em Jesus Cristo, e esta toca o mundo sem penetrá-lo, ou seja, Deus,

mesmo comunicado não é jamais possuído: sempre objeto de esperança, sempre a

vir, sua presença é a cada instante um futuro eterno.92

Barth salienta a diferença entre Jesus e os outros seres humanos. Qualifica essa

diferença como fundamental93, pois em virtude de sua própria existência nenhum

outro ser humano está aqui especificamente voltado para o próximo. Nenhuma

outra pessoa é a Palavra de Deus endereçada ao ser humano, ninguém além de

Jesus foi enviado, mandado e qualificado para existir e agir no lugar dos outros,

ninguém tem o poder de intervir e de se sacrificar pela humanidade, de dar sua

vida para restituir a vida de outras pessoas.94

O homem comum, seja qual for sua importância, seja qual for sua capacidade de

realização a favor do próximo, não é seu próprio salvador nem o salvador de

qualquer um de seus semelhantes. Somente o homem Jesus o é, pois tais

características fazem parte de sua competência original. A humanidade de Jesus

consiste em ser para o homem.95

91 BARTH, K. Credo. op. cit., p. 73,74. O Deus desconhecido e inacessível se coloca a nosso alcance descendo até nós através de Jesus Cristo. Cf. MACKINTOSH, H. R. Corrientes teológicas

contemporâneas. op. cit., p. 272. 92CORNU, D. Karl Barth. op. cit., p. 18. 93Através de Jesus, nos lembra Daniel Vidal, comentador da obra de Karl Barth, deu-se a auto-manifestação de Deus, o ato mediante o qual o homem, por meio da graça, foi reconciliado com Deus. A Revelação, nesse sentido, pressupõe o fato de que o homem jamais poderia ajudar a si mesmo. VIDAL, D. Religion en Karl Barth. op. cit., pp. 82,83. 94BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 240. 95Ibid. A esse respeito nos auxilia também Gustavo Gutiérrez. Segundo Gutiérrez, Jesus nos oferece o exemplo da liberdade como traço distintivo de uma vida posta a serviço dos semelhantes. Isto é expresso – e adquire o seu sentido mais profundo – na forma como Jesus assume a entrega de sua vida, segundo o que podemos conferir em João 10,18: “Ninguém me tira a vida; sou eu quem a entrega”. Como sustenta Gutiérrez, trata-se da atitude de alguém que toma suas decisões

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É fato, nos lembra Barth, que a humanidade de Jesus, quer dizer, sua co-

humanidade, não é, com efeito, ao acaso, mas, ao contrário, é procedente da

vontade de Deus. Afirma ainda o teólogo: “É verdade que Jesus é a imagem de

Deus precisamente porque sua humanidade traz consigo o caráter de sua co-

humanidade”. 96

Assim, para Barth, nós não devemos nos limitar a constatar que Jesus é o homem

para os outros homens, nós devemos nos perguntar a respeito do ser humano em si

mesmo. Em que medida, por exemplo, o ser humano é o ser em favor do qual o

homem Jesus interveio por seu sofrimento e seu triunfo. Já que através da

existência de Jesus se revela e se manifesta ao ser humano a aliança de Deus, o

que, portanto, o faz como uma criatura de Deus, um ser capaz de se tornar um

aliado de Deus?97

Barth adverte que com a expressão “aliado de Deus” não quer ele dizer que o ser

humano tenha algum mérito em função do qual poderia reivindicar ser aliado de

Deus e se beneficiar da obra de Jesus. Para Barth, a criatura não tem nenhum

direito desta espécie em sua condição de criatura. Contudo, em função da

insondável graça de Deus, é acolhido e recebido por Ele. Assim, na co-

humanidade de Jesus, Deus manifesta que livremente decidiu fazer do homem o

objeto de seu amor.98

E este Deus tão incompreensivelmente misericordioso é também o criador do ser

humano e de cada estrutura criada. Assim, fundamenta Barth, a humanidade do

homem não saberia ser totalmente estranha à graça de Deus, mas, ao contrário,

deve existir uma certa intimidade com ela.99

sem pressões exteriores e que o faz por amor aos outros. Jesus posiciona-se através da livre determinação de entregar sua vida em solidariedade para com os que se encontram sob o jugo do poder da morte. Cf. GUTIERREZ, G. Beber no próprio poço. op. cit., pp. 103,104. 96 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 240. 97 Ibid. 98 Ibid. Ver também VIDAL, D. Religion en Karl Bart. op. cit., p. 126. 99 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 242.

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A expressão que Barth utiliza, o “aliado de Deus”, não visa salientar alguma

faculdade humana que permitiria ao ser humano entrar na aliança de Deus, de se

tornar o parceiro de Deus. Se assim o é, deve-se ao fato de Deus mesmo fazer dele

seu parceiro, de chamá-lo à sua aliança, e porque Deus mesmo lhe permite existir

para este fim. Em virtude de sua insondável graça Deus100 se liga ao ser humano e

o chama para tomar suas responsabilidades.101

Deus age assim porque a natureza humana não saberia ser simplesmente estranha

ou oposta a esta graça, mas possui, segundo a definição de Barth, uma certa

afinidade com ela. Para Barth, se Deus na sua graça, escolheu precisamente o

homem Jesus para restaurar e defender sua honra no cosmos, é a prova que aos

olhos de Deus a condição da criatura humana é, não inadequada e inutilizável,

mas que ela se presta, ao contrário, a um tal serviço.102

Dessa forma, alega Barth, nós não temos, portanto, que descobrir uma capacidade

que o homem deveria atualizar, mas em discernir o dado que – para seu criador –

deixa o ser humano suscetível de ser um aliado que responde ao que Deus espera

dele.103

Barth pergunta sobre a forma fundamental da humanidade. Questiona sobre em

que medida a natureza humana corresponde ao fato de que o homem está

destinado a ser o aliado de Deus. O teólogo mesmo responde a estas questões

salientando como critério fundamental a humanidade de Jesus. Apesar de toda a

distância existente entre a humanidade e Jesus, existe um elemento comum, uma

semelhança104 entre sua humanidade e a nossa.105 12. O que não se enquadra nessa

semelhança não vive ainda como humano, poderíamos até chamar inumano.106

100 Para Barth, confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo significa dizer que Deus é o Deus da graça. Por isso afirma que nós não podemos provocar a comunhão com Ele, pois nós não a criamos e não criaremos jamais. Segundo o teólogo, assim como nós não fizemos por merecer que Ele seja nosso Deus, não podemos ter nenhuma pretensão de fazer valer nenhum direito sobre Ele. É Deus, em sua bondade totalmente gratuita, em sua liberdade soberana, que desejou ser o Deus do homem, nosso Deus. Cf. BARTH, K. Esboço de uma dogmática. op. cit., p. 17. 101 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 242. 102 Ibid. 103 Ibid. 104 A respeito da semelhança existente entre Jesus e os seres humanos Leonardo Boff expressa-se de modo bastante didático. Fundamenta essa semelhança primeiramente através Deus. Segundo ele, “Deus é amor, amor em plenitude originária e eterna. Por isso é um amor sem origem de

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Para Barth, ainda não se discerniu corretamente o que consiste a humanidade em

todo o lugar onde se atribui ao homem uma existência abstrata, algo que Barth

denomina de uma existência separada da existência de seu próximo. O teólogo

considera tal concepção como um erro fundamental, pois trata de ver o homem em

si e por si, ou seja, sem o próximo.107

O teólogo nos lembra sobre o grande desafio de todo cristão: superar a tentação da

fé sozinho; o que ele chama de a “fé por mim próprio”. Alerta-nos que somente no

“Corpo de Cristo” conseguimos ter tudo isso. Em suas palavras,

somente no meio daqueles que estão instituídos como meus irmãos e irmãs pelo fato de que eles têm escutado e ouvem a Palavra de Deus junto comigo, que eles testemunham a Palavra de Deus para mim, e da parte deles, desejam e devem ter o meu testemunho para a Palavra de Deus: na igreja.108

Na igreja, sustenta Barth, um deve servir ao outro “segundo a medida de fé que

Deus repartiu a cada um” (Romanos 12.3); na igreja que é sempre uma vez mais

persuadida a uma nova confissão de seu nome Jesus Cristo, nosso Senhor. Este

nos diz que é somente junto e com, e em responsabilidade para com o nosso

outrem e origem de todo outro. Esse amor se comunica, sai de si, se entrega sem reservas. Ao entregar-se em plenitude, surge o Verbo como expressão absoluta do Mistério do Amor. O Mistério do Amor se chama Pai e sua expressão absoluta Filho. Deus dá a si mesmo e no gesto de dar é Pai. O que surge desta doação é o Filho. No Filho a verdade, a bondade, a beleza e toda a riqueza infinita de ser do Pai se extrojeta, expressa e concretiza. Aqui tudo é infinito e eterno. No Filho o Pai expressa também toda a riqueza, a beleza, a bondade, a verdade finitas e temporais que podem ser criadas. O Pai se espelha em toda a criação. Porque tudo foi criado no Filho, tudo também começa a espelhar o Filho. Assim todas as coisas da criação, o mínimo ato que começou a vibrar, a pequenina célula que começou a pulsar, o infinitamente grande do macrocosmos, o infinitamente pequeno do microcosmos e o infinitamente complexo do espírito trazem traços do Pai e do Filho. Todas as coisas possuem uma característica paternal e filial. Todos são filhos e filhas, irmãos e irmãs junto com o Irmão maior, o Filho eterno. Dentre todos os seres filiais há uma espécie que é, por excelência, a imagem do Pai e do Filho: é a espécie homem com seus inumeráveis indivíduos pessoais, cada um espelhando a seu modo o Pai e o Filho.” Cf. BOFF, L. Encarnação: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Petrópolis: Vozes, 1988, pp. 17,18. 105 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 243. 106 Ibid., p. 244. 107 Ibid., p. 245. A esse respeito, nos auxilia também Martin Buber. Para Buber não existe o Eu em si, mas apenas o eu da fórmula Eu-Tu. Quando o homem diz eu, ele quer dizer um dos dois pelo menos. E o Tu ao qual ele se refere está presente quando ele pronuncia Eu. O homem se torna Eu somente na relação com o Tu. O face-a-face revela um ao outro. Cf. BUBER. M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979, pp.10,32. 108 BARTH, K. Credo. op. cit., p. 90.

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próximo, que nós realmente conseguimos ficar diante de Deus e reivindicar a

nossa pessoa na visão de Deus.109

O homem, nos lembra o teólogo, não é feito para ser sozinho, mas para existir

com seu próximo. Para Barth, aquele que não leva em consideração, desde o

início, que o homem tem um próximo, torna-se completamente cego em relação à

realidade humana. Toda imagem que se possa fazer do homem que não satisfaça

essa exigência nada tem a ver com o ser humano tal qual ele realmente é, alega

Barth.110

Barth vê o homem tal como ele aparece à luz do homem Jesus: à luz do fato de

que Jesus é por ele e o ser humano, de igual forma, também pode ser por seu

próximo – já que não há somente diferenças entre Jesus e os seres humanos, mas

também semelhanças.111

Um homem sem o próximo; ou que seria, por natureza, oposto ao seu próximo; ou

simplesmente neutro; ou para o qual a existência do próximo teria uma

importância secundária112; um tal homem, afirma Barth, seria um ser radicalmente

estranho ao homem Jesus e este não poderia em nenhum caso ser seu salvador.113

É evidente que Jesus é o salvador do pecador, ou seja, do homem que renega sua

humanidade se comportando como se não tivesse nem Deus nem próximo,

apresentando-se, de fato, como um ser inumano. No entanto, tal postura não faz

109 Ibid., pp. 90, 91. 110 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 245. De maneira semelhante posiciona-se também Martin Buber: O Eu se realiza na relação com o Tu; é tornando-me Eu que digo Tu. Por isso, alega Martin Buber, toda vida é encontro. Para Martin Buber, a relação com o Tu é imediata. Entre o Eu e o Tu não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia. Entre Eu e Tu não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação e todo meio é obstáculo. Assim, somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro. Cf. BUBER. M. Eu e Tu. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979, p.13. 111 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 245. Ver também BOFF, L. Encarnação. op. cit., pp. 17,18. 112 Conforme também Gustavo Gutiérrez, o homem que concebe a existência do outro como indiferente ou secundária, de fato, nada tem em comum com Jesus. Concebendo cada homem como templo vivo de Deus, alega Gutiérrez que encontramos a Deus no encontro com os homens, no compromisso com o devir histórico da humanidade. O Antigo Testamento é claro sobre a estreita relação existente entre Deus e o próximo. Essa relação, sustenta Gutiérrez, é o próprio Deus da Bíblia. Desprezar o próximo (Prov. 14,21), explorar o operário etc., consistem em ofensas a Deus. Cf. GUTIERREZ, G. Teologia da Libertação. op. cit., pp. 162,163. 113 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 245.

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com que esse homem deixe de ser humano. Assim, também ele existe – o homem

pecador que renega sua humanidade, que dá as costas para seu próximo – sob a

luz da humanidade de Jesus.114

Este homem, de fato, age contra sua humanidade. No entanto, seu isolamento, sua

oposição em relação ao próximo, sua neutralidade no que diz respeito a seu

semelhante ou a pouca importância que lhe concede, ou seja, sua inumanidade,

fazem, apesar de tudo, parte de sua humanidade; seria o que Barth chama de “uma

possibilidade da natureza que recebeu de seu criador”.115

Na sua natureza criada, mesmo que a renegue, continua existindo sob à luz da

humanidade de Jesus. Essa luz o ilumina, evidenciando sua postura pecadora de

isolamento, agindo não somente contra Deus e o próximo em função de sua

inumanidade, mas também contra ele mesmo.116 No entanto, essa mesma luz não

cessa de ligá-lo ao seu único salvador.117

Concebe Barth como pecado uma postura que conduz o ser humano a sair do

caminho que lhe foi indicado.118 Quando o homem peca, explica Barth, Deus não

deixa de ser Deus e, de igual forma, o homem não deixa de ser homem.119 Por isso

114 Ibid. 115 Ibid. 116 Como rememora-nos Gustavo Gutiérrez, o homem é destinado à total comunhão com Deus e à mais completa fraternidade com os outros homens (1Jo 4,7-8). Isto é o que Cristo veio nos revelar. Salvar-se é alcançar a plenitude do amor, é entrar no circuito de caridade que une as pessoas trinitárias; é buscar amar como Deus ama. O caminho que conduz à essa plenitude não pode ser outro que o do próprio amor, o da participação nessa caridade, o de aceitar, explícita ou implicitamente, dizer com o Espírito: “Abbá Pai” (Gl 4,6). Aceitação que é o fundamento último de toda fraternidade entre os homens. Assim, o pecado é a recusa ao amor, à comunhão e à fraternidade, isto é, a recusa ao próprio sentido da existência humana. Abster-se de servir, como sustenta Gutiérrez, já é negar-se a amar, omitir uma ação em favor de outro demonstra-se tão culpável como repeli-lo expressamente. Gutiérrez relembra-nos ainda do texto de São João: “Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14). Cf. GUTIERREZ, G. Teologia da Libertação. op. cit., p. 166. 117 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., pp. 245, 246. 118 Ibid., p. 246. 119 Também em sua obra intitulada Credo, Karl Barth afirma o mesmo. Segundo ele, aquele que crê em Deus permanece sob os mandamentos de Deus. No entanto, ainda que tal ser humano resista a eles, que transgrida-os, que falhe em dar honra a Deus e que não consiga manter-se defronte a Ele, isso será indiferente. Ainda que o faça, esta pessoa permanecerá sob os comandos de Deus, que em sua total insensatez e iniqüidade, é chamado por Deus, prisioneiro de Deus, que precisa repetidamente empreender um novo começo com os comandos de Deus e retornar a eles. Relembra-nos ainda que os seres humanos não têm pontos de partida e nenhumas metas nas quais pudessem, independentemente, isto é, por si próprios, conhecerem a vontade de Deus. Cf. BARTH, K. Credo. op. cit., p. 36.

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afirma: “O ser humano, pecando, não suscita nenhuma nova criação, não é capaz

de gerar nenhuma mudança à natureza que recebeu, pode somente desonrá-la e

desonrar a si mesmo”.120

Dessa forma, pode somente se expor a um perigo extremo. Contudo, alega Barth,

o fato de continuar possuindo no homem Jesus seu único salvador se torna a prova

de que não cessou de ser um homem, um ser associado a Jesus. O fato de que

Jesus interveio igualmente em favor também dele, de sua ovelha perdida,

demonstra que na verdade não a tem por perdida, mas que a considera como

fazedora de parte de seu rebanho.121

3.7

O aspecto relacional do Filho

Observemos agora, para corroborar com o que expusemos acima, a reflexão a

respeito da filiação de Jesus e o aspecto relacional implícito em seu ser, através

da exposição de Joseph Ratzinger, em sua obra intitulada Introdução ao

Cristianismo.122 Como ressalta Ratzinger, no Evangelho de João Jesus afirma a

respeito de si próprio: “O Filho não pode fazer nada por si mesmo” (João

5.19,30). Trata-se do despojamento extremo do Filho, demonstrando que nada

possui de próprio, pois sendo Filho só pode atuar a partir daquele que o faz ser o

que é. Assim fica claro que o termo Filho é um termo relacional. Chamando o

Senhor de Filho, João lhe dá um nome que remete para além, pois usa um termo

que exprime em sua essência relacionamento.123

João, assim, coloca sua cristologia no contexto da idéia de relação.124

Aparentemente existe uma contradição entre a passagem citada acima e a seguinte

afirmação do mesmo Cristo, segundo João: “Eu e o Pai somos um” (João 10.30). 120 BARTH, K. Dogmatique. op. cit., p. 246. 121 Ibid. 122RATZINGER, J. Introdução ao Cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico com um novo ensaio introdutório. São Paulo: Loyola, 2005. 123Ibid., p.138. 124Segundo Ratzinger, fórmulas como esta que citamos realçam esse aspecto, uma vez que exprimem apenas aquilo que a palavra Filho quer dizer, ou seja, a relatividade implicada por esse termo. Cf. Ibid.

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Todavia, lembra-nos Ratzinger, quem examinar a passagem com mais atenção há

de reconhecer imediatamente que as duas afirmações se completam e se

condicionam mutuamente. Quando Jesus é chamado de Filho e tornado “relativo”

em vista do Pai, a cristologia se realiza em forma de afirmação relacional em que

Cristo aparece como aquele que é totalmente religado ao Pai; justamente por não

estar em si, mas está nele, sendo continuamente um com Ele.125

A importância dessa realidade não se restringe à cristologia, pois contribui

também para o esclarecimento do sentido e do valor da própria condição de ser

cristão, conforme se pode verificar quando João estende estes pensamentos aos

cristãos que vêm de Cristo. Observamos então que Ratzinger recorre à cristologia

para mostrar o que é ser cristão, demonstrando que a existência cristã, segundo o

próprio Cristo, é colocada sob a categoria de relação. Para Joseph Ratzinger, a

afirmação “Eu e o Pai somos um” deve ser lida sob a ótica da súplica: “Para que

eles sejam um como nós somos um” (João 17. 11-22).126

Em sua condição de Filho, e enquanto Filho, o Filho não é absolutamente nada

por si e, por isso mesmo, é totalmente um com o Pai; não sendo nada fora do Pai e

não se afirmando como nada próprio que seja exclusivamente ele, não

contrapondo nada ao Pai que seja exclusivamente seu, não reservando nenhum

espaço ao próprio eu; o Filho é totalmente igual ao Pai. Como afirma Ratzinger, a

lógica é contundente: se não há nada em que ele seja apenas ele, nenhuma

particularidade delimitada sua, então ele coincide com aquele, e é Um com Ele. A

palavra Filho quer exprimir precisamente essa totalidade da inter-relação. Para

João, Filho quer dizer ser a partir de outro. Com esse termo ele define, portanto, o

ser desse homem como um ser que vem de outro e é dirigido aos outros, um ser

que está totalmente aberto para os dois lados e que não conhece nenhum espaço

restrito ao próprio eu.127

Assim, se por um lado fica evidente que o ser de Jesus enquanto ser do Cristo é

um ser totalmente aberto, ou seja, um ser “a partir de” e “dirigido para”, que

125Ibid. 126Ibid., pp.138,139 127Ibid., p.139.

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nunca se apega a si mesmo nem jamais se baseia só em si próprio, então está

claro, por outro lado, que esse ser é pura relação e, como pura relação, é pura

unidade. O que se afirma nessas palavras sobre Cristo explica, conforme vimos,

também a existência cristã. Lembra-nos então Ratzinger que ser cristão significa,

segundo o texto de João, ser como o Filho, tornar-se Filho, e isso quer dizer: não

persistir para si e em si, e sim viver totalmente aberto na relação “a partir de” e na

“direção para”.128 Em função desses aspectos afirma então Ratzinger: “Isso vale

também para o cristão enquanto cristão. Mas essas afirmações também o fazem

dar-se conta de como está longe de ser realmente cristão”.129

Ratzinger cita ainda – em sua exposição a respeito de Jesus – Karl Barth, o

teólogo protestante que estamos utilizado neste capítulo: “Não existe nenhuma

humanidade neutra de Jesus”. Baseado em Barth, Ratzinger afirma que os quatro

evangelistas não possuíam nenhum interesse naquilo em que Jesus pudesse ter

sido ou ter feito fora de sua função e no cumprimento dela. Lembra-nos ele, que

mesmo quando dizem em seus relatos que Jesus sentiu fome e sede, que comeu e

bebeu, que ficou cansado e que descansou e dormiu, que amou, que ficou triste,

que ficou zangado e até chorou, eles falam de circunstâncias em que nunca se

manifesta uma personalidade autônoma em relação à sua obra, com intenções,

inclinações e afetos que lhe fossem próprios. O seu ser como homem é a sua

própria obra.130

Em outras palavras, a afirmação decisiva da fé sobre Jesus está na unidade

inseparável das palavras “Jesus Cristo”, em que se esconde a experiência da

identidade de existência e missão.131 Nesse sentido, afirma Ratzinger – agora

128Ibid. De igual forma também salienta Leonardo Boff em sua obra intitulada Encarnação: a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Segundo Leonardo, assim como para Ratzinger, dentre todos os cristãos, há alguém de fato especial, alguém que Deus predestinou para ser sua imagem total na criação, a revelação absoluta do Pai e do Filho na história: Jesus de Nazaré. O Filho eterno quis unir-se a ele para que pudesse amar a Deus fora de Deus, assim como Deus ama, amando não para si, mas para o outro. O Filho optou por ser infinito, permanecendo finito, para que pudesse ser Deus no mundo sem deixar de ser criatura. O Filho, expressão eterna e infinita do Pai, quis encarnar-se em Jesus de Nazaré, expressão temporal e finita do Pai e do Filho. Esta vontade de encarnação e de comunicação para fora e para dentro do tempo, na direção do outro, constitui eternamente o homem Jesus de Nazaré, a forma de amar do Deus Pai e Filho. Cf. BOFF, L. Encarnação. op. cit., pp. 18,19. 129 RATZINGER. J. Introdução ao Cristianismo. op. cit., p.139. 130 BARTH, K. Kirchliche Dogmatik III, 2, Zurique, 1948, p. 66-69. In: Ibid., p. 153. 131 Segundo Ratzinger, entender Jesus Cristo como Cristo significa, na realidade, estar convencido

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pautado em H. U. von Balthasar – se pode falar realmente de uma “cristologia

funcional”: todo o ser de Jesus é função por nós.132

de que ele se encerrou a si próprio em sua palavra. Não se trata – como no caso de todos nós – de um eu que externa palavras, mas que ele se identificou com a sua palavra de tal maneira que o eu e a Palavras não se distinguem: ele é Palavra. Da mesma maneira, afirma Ratzinger, podemos dizer que para a fé a sua obra nada mais é do que um fundir-se com essa obra; ele se faz e se dá; a sua obra é a doação de si mesmo. Cf. Ibid., pp.153,155,156. 132BALTHAZAR, H. U. von. Zwei Glaubensweisen: Verbo caro. Einsiedeln, 1960, pp. 11-72. In: Ibid., p.153.

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