3 a pintura de marinhas no brasil e na bahia a pintura de... · fascinou e fascina aos baianos....

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44 3 A PINTURA DE MARINHAS NO BRASIL E NA BAHIA A Baia de Todos os Santos, que deu nome a Bahia, em tempos de descobertas, fascinou e fascina aos baianos. Tavares (2000, p. 32) se referindo as viagens de Américo Vespucci (1451-1512) ao Brasil apresenta um relato de Francisco Adolpho de Varnhagem: [...] Vespucci alcançou terras do Brasil a 16 de Agosto de 1501 no ponto por ele denominado Cabo de São Roque. Continuou para o sul. Descobriu e batizou o Cabo de São Miguel, São Francisco e das Virgens, e no dia 1º de Novembro entrou no golfão naquele mesmo dia batizado Baía de Todos os Santos. A cidade do Salvador foi fundada e teve seu crescimento as margens desta baía. A cidade está situada à direita da entrada da Bahia de todos os Santos, na latitude de 12º55 sul, e na longitude de 38º31, oeste de Greenwich, segundo Coutinho e Veloso (1949, p. 148). Durante todo o desenvolvimento econômico, com o açúcar e demais culturas e depois com a exploração mineral, o Brasil viveu a beira-mar e a cidade do Salvador, como cidade mais antiga, cresceu a partir dele. E “apesar do seu território continental, a colônia, sem dúvida alguma, voltava-se para o Atlântico”, Bueno (2004, p. 31). Até na religiosidade o mar está presente. São diversas tradições ligadas ao mar desde a chegada dos Portugueses em solo baiano. Estas tradições sempre permearam a religiosidade popular, criando diversos cultos. Bom Jesus dos Navegantes; Festa de Yemanjá; A barquinha de Bom Jesus dos Pobres, só para indicar algumas tradições, além é claro da tradição dos Portugueses em edificar algumas igrejas com suas fachadas voltadas para o mar como a antiga Sé, a Igreja da Conceição da Praia, a da Boa Viagem, Penha e tantas outras, demonstrando como o povo baiano sempre esteve ligado ao mar. Atualmente ainda temos como resquícios a busca incansável dos baianos aos finais de semana pelas praias, buscando um momento de contemplação e descanso. Vale lembrar a longa vigência da estética romântica em boa parte do século XIX. O mar, por sua ligação entre os diversos povos, por seu caráter de força indômita e imprevisível, por sua virtude de evasão e de porta para o

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Page 1: 3 A PINTURA DE MARINHAS NO BRASIL E NA BAHIA A PINTURA DE... · fascinou e fascina aos baianos. Tavares (2000, p. 32) se referindo as viagens de Américo Vespucci (1451-1512) ao Brasil

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3 A PINTURA DE MARINHAS NO BRASIL E NA BAHIA

A Baia de Todos os Santos, que deu nome a Bahia, em tempos de descobertas,

fascinou e fascina aos baianos. Tavares (2000, p. 32) se referindo as viagens de

Américo Vespucci (1451-1512) ao Brasil apresenta um relato de Francisco Adolpho

de Varnhagem:

[...] Vespucci alcançou terras do Brasil a 16 de Agosto de 1501 no ponto por ele denominado Cabo de São Roque. Continuou para o sul. Descobriu e batizou o Cabo de São Miguel, São Francisco e das Virgens, e no dia 1º de Novembro entrou no golfão naquele mesmo dia batizado Baía de Todos os Santos.

A cidade do Salvador foi fundada e teve seu crescimento as margens desta baía. A

cidade está situada à direita da entrada da Bahia de todos os Santos, na latitude de

12º55 sul, e na longitude de 38º31, oeste de Greenwich, segundo Coutinho e Veloso

(1949, p. 148).

Durante todo o desenvolvimento econômico, com o açúcar e demais culturas e

depois com a exploração mineral, o Brasil viveu a beira-mar e a cidade do Salvador,

como cidade mais antiga, cresceu a partir dele. E “apesar do seu território

continental, a colônia, sem dúvida alguma, voltava-se para o Atlântico”, Bueno

(2004, p. 31).

Até na religiosidade o mar está presente. São diversas tradições ligadas ao mar

desde a chegada dos Portugueses em solo baiano. Estas tradições sempre

permearam a religiosidade popular, criando diversos cultos. Bom Jesus dos

Navegantes; Festa de Yemanjá; A barquinha de Bom Jesus dos Pobres, só para

indicar algumas tradições, além é claro da tradição dos Portugueses em edificar

algumas igrejas com suas fachadas voltadas para o mar como a antiga Sé, a Igreja

da Conceição da Praia, a da Boa Viagem, Penha e tantas outras, demonstrando

como o povo baiano sempre esteve ligado ao mar. Atualmente ainda temos como

resquícios a busca incansável dos baianos aos finais de semana pelas praias,

buscando um momento de contemplação e descanso.

Vale lembrar a longa vigência da estética romântica em boa parte do século XIX. O mar, por sua ligação entre os diversos povos, por seu caráter de força indômita e imprevisível, por sua virtude de evasão e de porta para o

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exotismo, por uma infinidade de outros fatores, foi sempre dos elementos prediletos do repertório do Romantismo (BUENO, 2004, p. 34).

Temos também um porto que desde a chegada dos portugueses se mostrou muito

ativo devido à exploração das riquezas brasileiras. Comercialmente, o transporte de

pessoas por instituições regulamentadas dentro da Baía de todos os Santos é

relativamente recente. Quanto as primeiras empresas a explorá-la, Coutinho (1949.

p.184) comenta sobre a iniciativa do Comendador Augusto Ferreira, em 1906, sob a

denominação de Companhia Cessionária das Docas do Porto da Bahia, para

explorar a concessão de construção e exploração do Porto de Salvador, outorgada

pelos Decretos nº 1.233 de 31 de janeiro de 1891, 3.569 de 23 de janeiro de 1900 e

5.500 de 06 de junho de 1905.

O Naturalista Charles Darwin em 29 de Fevereiro de 1836, em sua segunda

passagem por Salvador segundo Godofredo Filho1 fez o seguinte comentário:

[...] deve-se lembrar de que nós trópicos não se perde a exuberância selvática da natureza, nem mesmo nas vizinhanças das grandes cidades; pois a vegetação natural ultrapassa muitíssimo, pelos efeitos pitorescos, a obra artificial do homem. Dessa forma, somente poucos são os lugares em que o vermelho da terra faz contraste vigoroso com o manto verdural geral [...]

Os primeiros registros da pintura de paisagem na Bahia podem estar ligados a

azulejaria das igrejas. Nos painéis raros dos ex-votos da Capela mor da Igreja da

Boa Viagem em Salvador, existe um registro do tráfego marítimo no Brasil. Estes

azulejos, segundo Fernandes (2000, p. 83), um dos poucos no Brasil foram

realizados pela oficina de Bartolomeu Antunes.

Segundo Leite (1983, p. 349), antes mesmo dos pintores de Nassau, já no Séc. XVI

alguns pintores já haviam aportado em solo brasileiro citando Jean Gardien que

esteve no Brasil em 1557, entretanto não encontramos outras referências.

Em relação à historiografia consultada há certa concordância em apontar os pintores

holandeses, principalmente Franz Post2, como os primeiros a registrar em pintura

1 Godofredo Filho (in) REBOUÇAS, Diógenes (1914-1995) Salvador da Bahia de Todos os Santos no

século XIX. Pintura documental. Apresentação: Pedro Calmon. Introdução: Thales de Azevedo;

Textos; Godofredo Filho, Diógenes Rebouças: Planejamento e desenho: Emanuel Araújo; versão

para o Inglês: James Milholland. Salvador, Ba: Odebrecht, 1996. p.17.

2Pintor que Acompanhou o príncipe Mauricio de Nassau no Séc. XVII por ocasião da invasão

Holandesa. Ver artigo: Anna Maria de Lira Pontes – Do novo mundo à Holanda: A influência do Brasil

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cenas de nossa geografia, guardando para a posteridade características do Brasil

Setecentista. Embora percebamos a importância dos registros de Prost, preferimos

acompanhar o pensamento de Carlos Roberto Maciel Levy (1982. p.16)3 que recusa

a ideia dos pintores holandeses como “percussores do paisagismo brasileiro”. “[...] de

fato não me parece possível equacionar a questão de designar como paisagistas, ou

pior, percussores do paisagismo aqueles que representarem em suas obras a

paisagem [...]”. Para o autor, o início do tema no Brasil está relacionado com os

trabalhos de Leandro Joaquim (1738 – 1798), provavelmente produzidas por volta de

1790.

Figura 06: Leandro Joaquim (1738-1798). Vista da Igreja e da Praia da Glória – Rio de Janeiro,

cerca de 1790, ost, 96 X 126 cm. Fonte: Catálogo do MNBA 150 anos de pintura de marinha no Brasil. p. 23.

Embora essa discussão possa ser ampliada, não é o objetivo deste trabalho, e para

expor a recorrência do tema no Brasil precisamos levar em consideração esses

registros. Zanini (1983, p.373) indica outro artista, Boaventura Peeters, que pintou

por volta de 1640 o “Navio Holandês Fundeado ao largo da Costa brasileira”.

na Obra de Frans Post. Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), V.9. n.24, Set/out. 2008. ISSN 1518-3394. Disponível em WWW.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais. 3MNBA – Catálogo de exposição 150 anos de pintura de marinha na história da arte brasileira. MNBA.

Texto de Carlos Roberto Maciel. Apresentação de Alcidio Mafra de Sousa. Introdução de Roberto da Mata. Rio de janeiro MNBA. 1982. p.16.

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Figura 07: Boaventura Peeters. Navio Holandês Fundeado ao Largo da Costa brasileira,

OSM 49 X 84. 1640. Fonte: Zanini (1983, p.373)

Embora os exemplos acima sejam pinturas, artisticamente, vários foram os registros

das nossas costas. No início, as cartas geográficas eram reproduzidas através das

gravuras, coloridas ou não. Como podemos observar nas gravuras “Ataque dos

holandeses” (1624) da Fundação Gregório de Matos e “Baía de todos os Santos”

(1638), do livro mapa da formação territorial brasileira.

Figura 08: Ataque dos Holandeses (1624).

Fonte: Tavares (2000, p.97).

Figura 09: Baía de todos os Santos

(1638). Fonte: Tavares (2000, p.101).

As marinhas produzidas no Brasil abarcam todos os tipos de gênero, de pintura

histórica a temas do cotidiano, possuindo importantes representantes em cada tema

figurado no “universo marinha”, segundo Oliveira (2009, p.19).

Seguindo o mesmo princípio, no início do Século XIX, Nicolas Antoine Taunay

produziu algumas pinturas onde o elemento histórico que protagonizava a cena era

a mesma Igreja do Outeiro. As cenas abaixo foram realizadas entre 1816 e 1822, e

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tem o mesmo enfoque do trabalho de Leandro Joaquim conforme Schwarcz (2008,

p.258).

Figura 10: Nicolas Antoine Taunay.

Vista da baia do Rio de Janeiro, 1816-1821. Fonte: Schwarcz (2008, fig. 02).

Figura 11: Nicolas Antoine Taunay. Vista do

Outeiro. Praia e Igreja da Glória. Fonte: Schwarcz (2008, p.03)

Sobre a iconografia da Igreja de Outeiro, Belluzzo (1994, p.130) chama a atenção

para o prestígio que este monumento gozava entre os artistas viajantes. A autora

ainda apresenta mais dois artistas que registraram vistas onde esse monumento era

a principal referência geográfica, são eles: Thomas Ender (1793 - 1875) com a “vista

do Rio de Janeiro” de 1817e Ludwig Czerny (1821 - 1889) com Nossa “Senhora da

Glória do Outeiro” em 1850, ambas, apresentando o mesmo monumento.

[...] dificilmente algum desenhista ou pintor poderia deixar de registra-la, pois atende tanto às expectativas do espetáculo pitoresco proporcionado pelos estímulos de paisagem irregular e surpreendente como é o melhor exemplo da ligação que se estabeleceu entre a visão panorâmica e o símbolo da religiosidade que constituí uma das motivações da subjetividade romântica. A Igreja da Glória permitiu relacionar os símbolos culturais com efeitos aéreos. (Belluzzo, 1994, p.130).

Com a Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro a pintura histórica foi

abordada por nomes de peso. Felix Émile Taunay, filho de Nicolas Taunay, utilizou

de elementos arquitetônicos para indicar geograficamente locais onde fatos

históricos de relevância histórica ocorreram, dando continuidade ao tema. Em sua

“paisagem histórica do desembarque no Largo do Paço”, Felix Émile Taunay explora

as chegadas principescas do mesmo modo que Hendrick Vroom (1566-1640) e de

Claude Vernet no século XVII.

Os desembarques no Brasil foram muito explorados com a chegada da família real e

durante o modernismo brasileiro recebeu novas leituras.

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Sobre a tela de Felix Émile Taunay Belluzzo (1994, p.125) verifica que o pintor

quase que anula a paisagem, “desidentificando a cena na região escura em que as

figuras se misturam em proveito de sensações mais profundas e indefinidas que

ainda não tem forma”. A autora completa “busca as sugestões indiretas da luz”.

Eliane Dias (2009, p. 314) chama a atenção que “[...] a cena é quase noturna

revelando novamente o interesse do paisagista pela luminosidade das diferentes

horas do dia [...]

Figura 12. Felix Émile Taunay. Paisagem Histórica de um desembarque no Largo do Paço.

OST, 76 X 117 cm. 1829. Acervo do Museu Imperial/IBPC, Petrópolis, Brasil. Fonte: Belluzzo (1994, p. 124)

Para Oliveira (2007, p. 28) Felix Taunay estava vinculado a uma pintura de caráter

histórico, contudo, podemos identificar em algumas das suas obras, a preocupação

em registrar o cotidiano como na pintura “concerto de um barco”, onde o artista

evidencia as práticas dos pescadores do Rio de Janeiro.

Figura 13: Felix Émile Taunay. Conserto de um barco. Ilha de Villegagnon. Baía da Guanabara,

OST, 68 X 136 cm, 1828. Fonte: Belluzzo (1994, p.127).

Sobre essa tela Dias (2009, p. 313) informa que a “representação do barco remete

também a outra obra de Vernet, na qual esse mesmo elemento, o barco, si sobressai

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na paisagem, no plano inferior esquerdo”. A obra que a autora se refere é “A vue du

Golfe de Naples” de 1748.

Vitor Meireles (1832-1907) e Eduardo de Martino (1838-1912) são pintores com

produção ligada ao Rio de Janeiro e representantes dos temas históricos.

Durante o XIX percebemos que a produção mais substancial foi realizada no Rio de

Janeiro, quanto à Bahia, os primeiros registros estão vinculados à representação do

porto, panoramas e vistas em diferentes técnicas, sendo gravuras, desenhos ou

pinturas, realizadas por artistas, profissionais ou amadores, em sua maioria,

estrangeiros.

Johann Moritz Rugendas (1802 – 1859) registrou aspectos da Baia de Todos os

Santos. Segundo Edelweiss (1965, p.28), este artista em 1825, foi contratado por G.

H. Langsdorff como desenhista e pintor para uma expedição no interior do Brasil.

Rugendas desenvolve pelo menos uma gravura sobre o tema marinha em terras

baianas. Edelweiss (1965, p. 07) comenta em seu texto que em 1847 Rugendas

visita a Bahia. Possivelmente neste período realiza esta gravura que retrata cena do

transporte de mercadorias.

Figura 14: Johann Moritz Rugendas. Ilha de Itaparica (litogravura pintada)

Fonte: Tavares (2000, p. 67)

Em 1839 foi Abraham Louis Buvelot que pintou “Vista das fortalezas da entrada da

Baía de Todos os Santos tomada da ponta do Farol”.

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Figura 15: Abraham Louis Bouvelot. Vista das fortalezas da entrada da Baía de Todos os

Santos tomada da ponta do Farol. OSM, Salvador, 1839, 38 X 49 cm. Fonte: Bueno (2004, p. 48).

Apesar de Bueno (2004, p.48) fazer uma pequena confusão com o nome dos fortes,

afirmando que se trata do forte de São Paulo, em destaque aparece o forte de Santa

Maria, depois, o forte de São Diogo ao pé da colina e no alto, podemos identificar a

Igreja de Santo Antonio da Barra. Esse trabalho é importante, pois durante as

primeiras décadas do século XX, quase todos os pintores ligados a EBA passaram a

registrar esses monumentos históricos em suas obras.

[...] são minguados os pintores da panorâmica de Salvador. Gravuras anônimas, litografias, como as de Victor Frond, é claro que escassearam, nem boas fotos ou mesmo desenhos como os de Landseer que também

pintou o Rio [...]. (FILHO, 1996, p. 22).

Veremos no decorrer da presente dissertação que outros artistas realizaram

registros panorâmicos da cidade do Salvador.

Pinto (2009, p.1645) discorre sobre os panoramas “virtuais” criados com as

tecnologias novas, fazendo referência a uma exposição realizada em 03 de janeiro

de 1891 que apresentava um panorama da baía e da cidade do Rio de Janeiro,

obras de Victor Meireles (1832 - 1903) e do Belga Henri Langerock (1830 – 1915).

Segundo a autora, este último veio ao Brasil como pintor viajante e registrou em

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telas, estudos de paisagens sendo muito elogiado. Estes panoramas do Rio de

Janeiro foram muito utilizados pelos pintores itinerantes no decorrer dos oitocentos,

apresentando a Europa os lugares pitorescos e exóticos do Brasil. Dias (2009, p. 29)

apresenta algumas aquarelas realizadas por Felix Emile Taunay para a produção do

panorama exposto em Paris, em 1824.

Segundo Belluzzo (1994, p. 50) no Século XIX, havia uma “profunda afinidade” com

a “visão de todo” ou de “espaço amplo”, tendo tornado na pintura, as vistas

panorâmicas, um “modelo paisagístico por excelência”. No Brasil atuaram muitos

aquarelistas Ingleses, além de artistas Franceses e alemães. Entre os Ingleses:

Maria Graham (1785 – 1842), o tenente Henry Chamberlain (1796 – 1844) e Emeric

Essex Vidal (1791 – 1861). Athayde (2008, p.25) aponta alguns pintores que

realizaram vistas ou panoramas da cidade de Salvador, entre eles William Gore

Ouseley (1797 – 1866), Emeric Essex Vidal e Edmond Patten (1845 - 1927). Estes

artistas trabalhavam principalmente com desenhos, gravuras e aquarelas.

Belluzzo indica os irmãos ingleses Barker, sendo Robert Barker “o inventor,

enquanto pintura ilusionista, circular e continua, tornando-se fenômeno popular

durante o século XIX”. Dias (2009, p. 254) cita um artigo londrino publicado no The

Art Journal, em 1857, onde Aston Barker, filho de Robert Barker elucida o assunto: A

ideia teria partido de uma conversa informal de Robert com sua filha, enquanto

passeavam, na qual ele teria revelado seu desejo de colocar em prática a construção

de uma paisagem circular, a partir de um ponto alto da cidade, da qual a vista total

da paisagem pudesse ser visualizada. Convencido dessa possibilidade, seu pai teria

iniciado os primeiros desenhos para compor a paisagem a partir de um ponto alto de

Edimburgo.

O primeiro panorama ainda segundo Dias (2009, p. 255) foi exibido em 1788 (vista

de Edimburgo), em Edimburgo, seguido do de Londres (sala do Haymarker), no

verão de 1789; seguido dos de Leicester Square (Londres, 1792), Constantinopla

(1802), Malta (1810 e 1812) e o de Waterloo (1819).

Além dos panoramas da cidade, havia os panoramas das frotas navais, estes já

praticados desde o fim do século XVIII e estando mais próximos dos quadros de

batalhas navais e da exibição do poderio militar. Belluzzo (1994, p. 52).

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Não podemos afirmar que as “vistas” realizadas em Salvador foram desenvolvidas a

fim de serem incorporadas em “panoramas virtuais”, apenas indicamos como

representação pictórica aliada à temática marinha para conhecimento do leitor.

Figura 16: Eduard Hildebrant. Panorama da Bahia. Aquarela, 13 X 73,2 cm.

Fonte: Belluzzo (1994, p.54).

Figura 17: Friederich Salathé. (gravura atribuída) Panorama da Cidade de São Salvador, 1830 c.

Água-tinta colorida com aquarela e óleo, 16 X 98,5 cm. Fonte: Belluzzo (1994, p.56 – 57).

Belluzzo (1994, p.13) destaca o “prestígio da aquarela junto aos artistas Ingleses do

XIX, além destes estarem vinculados às atividades diplomáticas, ou a marinha”. A

autora informa que os registros (desenhos e aquarelas) preliminares poderiam ser

destinados a versões posteriores ou detalhados nas litogravuras.

Em publicação do Banco da Bahia Investimentos4, Max Guedes apresenta um

caderno do Tenente Robert Pearce, feitos entre 1819-1820, tempo em que servia,

segundo o autor, na Corveta Favorite em viagem pelo mundo. Neste caderno

existem 10 vistas da Bahia do início do XIX, inclusive um panorama da cidade vista a

partir do mar.

Segundo Guedes (1992, p. 04), os antigos povos navegadores do mediterrâneo,

utilizavam em suas viagens o registro das distâncias entre os portos, os ventos,

perigos usuais, sondas, dados fundamentais, além de panoramas dos locais que

abrigavam portos. Estes registros eram feitos com a intenção de fixar aspectos da

4 GUEDES, Max Justo. 1927. Aquarelas feitas durante a viagem ao Brasil da H.S. Favorite. Imagens

de Robert Pearce; introdução e análise das aquarelas de Max Justo Guedes – Rio de Janeiro:

Kosmos Editora: Banco da Bahia Investimentos. 1991.

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geografia para que outros marinheiros reconhecessem as proximidades de

determinados portos. É nesse sentido que as aquarelas de Robert Pearce foram

realizadas. Aqui poderíamos entrar em uma discussão sobre os limites da pintura de

paisagem e da pintura de marinha, contudo a historiografia apresenta diversos

exemplos de pinturas consideradas marinhas que privilegiam as características da

cidade ou de um monumento histórico e a nossa intenção não é chegar a uma

conclusão sobre esse assunto, apenas apresentamos esses registros que dão

continuidade a tradição do Século XIX em registrar os panoramas.

As obras de Robert Pearce podem ter sido desenvolvidas pensando nos panoramas,

“tão em moda na Europa” segundo Dias (2009, p. 26) ou simplesmente para

servirem de registro geográfico do porto da Bahia. A autora continua [...] o

espetáculo do panorama transmitia informações sociais e política do recém-

independente Brasil.

Até a descoberta destas aquarelas, estávamos considerando como primeiras

pinturas de marinhas na Bahia àquelas ligadas a gravuras, contudo a sorte nos

favoreceu em encontrar esses trabalhos. O caderno de Robert Pearce possuem

aquarelas dos portos de Montevidéu, Recife e litoral da Bahia.

Entre elas: “A Favorite aterra ao sul dos ilhéus”, “Entrada da Barra do Rio de

Contas”, “Vista da Costa da Bahia nas proximidades de Camamu”, “Saveiro

navegando em frente à Praia da Barra” e “Vista da entrada da Baía de Todos os

Santos”.

No final do caderno de Robert Pearce existe um grande panorama da cidade de

Salvador vista da Baia de Todos os Santos que abaixo apresento em cinco recortes

seguidos dos comentários do oficial Inglês.

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Figura 18. Robert Pearce. Primeira parte do panorama. Vista da cidade do salvador a

partir da Barra da Baia de todos os Santos. Fonte: Guedes (1991)

Na extrema direita, o forte de Santa Maria; seguindo-se a Igreja de Santo Antônio da

Barra (erroneamente denominada Nossa Senhora da Gratia), e por trás da

exuberante vegetação da encosta vê-se o casario da ladeira da Barra. No extremo

esquerdo, apenas esboçado, veleja o saveiro.

Figura 19. Robert Pearce. Segunda parte do panorama.

Abrangendo o final da ladeira da Barra e a Igreja de Nossa Senhora da Vitória; neste

trecho situa-se hoje o iate Clube da Bahia. Pearce chama a atenção para a

residência de Mister Nicholson e do Consul Inglês, ambos no elegante Corredor da

Vitória. No mar veleja uma canoa baiana com duas velas de pena.

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Figura 20. Robert Pearce. Terceira parte do panorama na proximidade do Passeio Público.

No extremo esquerdo vê-se a Igreja dos Aflitos, em cuja vizinhança principia a

ladeira da Gamboa que leva ao Forte de Mesmo nome, situado na marinha; junto a

este, a pitoresca Gamboa de Baixo, com o Porto das vacas.

Figura 21. Robert Pearce. Quarta parte do panorama.

Na marinha, o notável solar do Unhão com sua capela e trapiche. No alto, a partir da

esquerda, o Teatro São João, construído pouco antes da passagem de Pearce e por

ele denominado Ópera, o Mosteiro de São Bento e o convento de Santa Teresa. No

mar, um saveiro visto pela popa.

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Figura 22. Robert Pearce. Final do Panorama.

Junto à marinha, avista-se a Igreja de nossa Senhora da Conceição da Praia,

seguindo-se o Arsenal da marinha, com um grande barco em construção na carreira,

a sequencia de armazéns e escritórios do comercio baiano. Em primeiro plano e no

extremo esquerdo, o Forte de São Marcelo, ou do mar, com numerosos navios

fundeados próximos a ele. No alto da esquerda para a direita, vê-se a Igreja dos

Jesuítas (atual sé Catedral), o Palácio Episcopal, a Sé Velha, a Misericórdia e o

Palácio do Governador. Dois saveiros estão velejando.

Avancine (2007, p.143) comenta que o tema geográfico foi e permanece por longo

tempo o caminho, por excelência, definidor nacional e é dentro desta ótica que a

pintura de paisagem vem cumprir seu papel de auxiliar da geografia, da historia e da

literatura na construção do imaginário nacional.

Embora à Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro evidenciasse a

pintura histórica e a retratística como afirmou Zanini (1983, p.403) A pintura de

paisagem já era ensinada dentro da instituição.

Pereira (2001, p.80) nos informe que nos estatutos da AIBA, em 1831, já havia a

recomendação de desenvolver a pintura de paisagem diretamente da natureza. A

autora ainda esclarece que a Academia teve os seguintes professores: Nicolas-

Antoine Taunay (1816 – 1821), Féliz-Émile Taunay (1824 – 1851), Augusto Müller

(1851 – 1860), Agostinho José da Motta (1860 – 1878), João Zeferino da Costa

(1878 a julho 1881), Leôncio da Costa Vieira (1881 – 1882), George Grimm (1882 –

1884), Victor Meirelles (interino em 1884), Zeferino da Costa (interino em 1885),

Rodolpho Amoedo (1889 – 1890), Antônio Parreiras (1890).

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[...] a produção artística correspondente ao segundo reinado é caracterizada por alguns traços distintivos. Em primeiro lugar, o interesse e a proteção pessoal do Imperador D. Pedro II, Monarca que construiu a imagem pública de político liberal e intelectual, amante das ciências e das artes. Em segundo lugar as artes em geral – a música, a literatura e, sobretudo as artes plásticas vão desempenhar o papel político de construção do imaginário da nova nação, buscando tema nacional dentro de um modelo de historia celebrativa dos fatos e homens relevantes a sua

sobrevivência, ou constitutivos de sua formação ética peculiar (PEREIRA,

1998, p.55).

Isto gerou a possibilidade de mercado para artistas do final do Século XIX,

principalmente depois da Guerra do Paraguai (1865-1870)5, quando alguns pintores

passaram a retratar os feitos do exercito brasileiro fornecendo ao imaginário coletivo,

diversos heróis. Era o projeto romântico de construção da nação, segundo Pereira

(2001, p.78).

Figura 23: Vitor Meirelles. “Estudo para a batalha naval de Riachuelo”.

OST, s/d. 53 X 43 cm. Fonte: Bueno (2004, p.229).

Esta tendência reforçou a pintura histórica na Academia do Rio de Janeiro. Segundo

Ramos (2011, p.01), a guerra do Paraguai foi a responsável por “[...] ativar o gênero

5 Segundo Avancine (2006, p.359) a letargia cultural da região e mesmo do Brasil, foi acordada pela

experiência dolorosa da guerra do Paraguai e pela campanha abolicionista que retoma intensidade a partir de 1868, com a memorável peregrinação de Castro Alves.

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de pintura histórica, particularmente as pinturas de batalhas”. O autor indica que

“este gênero havia caído em desuso no interior da Academia”. Entre os pintores que

utilizaram o tema estavam Pedro Américo (1832-1903) e Victor Meireles (1832 -

1903), além de Adolpho Cirilo Carneiro (1854 - ?), José Ferras de Almeida Júnior

(1850-1899) e Rodolpho Almoedo (1857 – 1941).

No final do XIX a empresa estrangeira The Western Telegraph, agência do sistema

de comunicação por cabo submarino solicitou os serviços de um pintor para registrar

seus feitos em território baiano. Tavares (2000, p.205) comenta que a agência foi

inaugurada em 1871 e a pintura para desenvolvida para a Associação Comercial do

Estado da Bahia.

Figura 24. Eduardo De Martino. Navio da Inglaterra trazendo o cabo submarino. OST. 1873.

Fonte: Acervo da Associação Comercial da Bahia.

Nesta tela há o confronto entre o histórico, representado pelo Farol da Barra, com o

lado tecnológico que acabara de chegar a Salvador. Como nas tradições Francesas

e holandesas, os grandes feitos do Estado deveriam ser registrados e propagados,

neste caso, beneficiando aos Ingleses que desde a abertura dos Portos exploravam

o comercio baiano, (TAVARES, 2000, p.146 – 147).

Dazzi (2011, p.67) constata que a pintura de paisagem era reconhecida dentro da

Academia podendo ser comprovado pela quantidade de quadros aprovados pelos

professores, dentre estes mais paisagens que pinturas históricas.

Em 1882, segundo Santos (1989, p.171), Johann Georg Grimm (1846 – 1887) foi

contratado pela AIBA logo após uma exposição de seus trabalhos na Sociedade

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Propagadora de Belas Artes, devido ao intenso entusiasmo da imprensa. Georg

Grimm deu segmento ao estudo da pintura de paisagem formando um importante

grupo de paisagistas. Seu incentivo à pintura realizada diretamente da natureza

possibilitou que os recantos mais longínquos dos grandes centros fossem

representados.

[...] a exaltação da vegetação exuberante das matas e selvas alimentou o imaginário coletivo Europeu e consequentemente, o brasileiro, contribuindo para a produção de uma cultura visual que determinará as características da pintura de paisagem nas últimas décadas do Século XIX. Oliveira (2007, p.39)

Atualmente um grupo de pesquisadores revelaram novas informações sobre a

questão da prática da pintura ao ar livre desfazendo assim aquele pensamento que

apontava o grupo criado por Georg Grimm como o primeiro a pratica-la. Quanto à

Academia, Pereira (2001. p. 74) comenta que não era contrária a sua prática.

Dazzi (2012, p.17) informa que Zeferino da Costa dirigiu várias disciplinas na

Academia, entre elas, a de pintura de paisagem. E antes mesmo de Georg Grimm, já

levava seus alunos para pintarem fora da sala da academia, em contato direto com a

natureza.

Com a Reforma de 1890, pela qual passou a Academia de Belas Artes, novas

propostas educacionais foram adotadas. Artistas como Henrique Bernadelli (1858 –

1936), Rodolpho Amoedo (1852 – 1931), Pedro Wingärtner (1853 – 1929) e Belmiro

de Almeida (1858 – 1935) eram vistos como artistas modernos dentro da Escola

Nacional de Belas Artes segundo Dazzi (2012, p.24). Ser moderno era poder

produzir qualquer tipo de obra, em qualquer estilo, (DAZZI, 2012, p. 05).

A produção nacional entre o final do XIX e início do XX foi influenciada, também, por

pintores italianos que se transferiram para o Brasil. GULLAR, MELLO, RIBEIRO e

FARIAS (1989, p.172) citam De Angelis (1852 - 1900), Rosalbino Santoro (1865-

1915), Castagneto (1851 - 1900), Antônio Ferrigno (1863 – 1940), Alfredo Nofini

(1867 – 1944), De Servi (1871 – 1947), Gustavo Giovanni Dall’Ara (1865 – 1923) e

Beniamino Parlagreco (1856-1902) que estudou da Academia de Nápoles e que no

Brasil produziu algumas marinhas.

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Oliveira (2007 p.31) evidencia a importância de Castagneto para a produção

paisagística no Brasil. Ele comenta que após se filiar ao Grupo Grimm, acabou por

se tornar um dos representantes mais importantes da pintura de paisagem,

escolhendo a representação de marinhas.

Gustavo Giovanni Dall’Ara (1865 – 1923) frequentou a Academia de Belas Artes de

Veneza e pintou algumas marinhas esporadicamente segundo GULLAR, MELLO,

RIBEIRO e FARIAS (1989, p. 236). Sua Igreja de Nossa Senhora da Conceição, é

bem parecida com a composição adotada por Mendonça Filho nas telas sobre a

enseada de Água de meninos.

Figura 25: Gustavo Giovanni Dall’Ara. “Jurujuba, Niterói”. 1916, ost, 54,2 X 45,6cm

Fonte: GULLAR, MELLO, RIBEIRO e FARIAS (1989, p. 237).

Toda esta produção não poderia passar despercebida junto aos artistas nacionais e

provavelmente serviu de modelos aos artistas brasileiros.

A arte produzida na Bahia durante o séc. XIX “manteve certa independência em

relação ao que se passava no Rio de Janeiro” segundo Freire (1983 apud Silva, p.

224). A pintura ainda estava muito ligada às representações religiosas não

aparecendo em nossa historiografia quaisquer tentativas de uma produção

paisagística anterior à criação da Academia de Belas Artes da Bahia.

Com Academia, a arte baiana ressurge com grande mérito formando artistas de

importância nacional. A EBA do final do Séc. XIX possuía mestres incontestáveis,

professores formados sob os cânones da arte clássica romantizada, influenciados

principalmente por Miguel Navarro Y Cañizares (1834 - 1913) e João Francisco

Lopes Rodrigues (1825-1893), fundadores da Academia baiana. Oséas dos Santos

(1965, p.03) se referindo a sua formação dentro da Escola de Belas Artes da Bahia

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no final do XIX escreveu que eram utilizadas inicialmente as gravuras no estudo do

corpo humano. Elas representavam mãos, pés e outras partes do corpo humano. Em

seguida, o aluno passava ao estudo dos bustos de gesso e do nu artístico utilizando

como referência Jacques-Louis David (1748 – 1825) e Jean Auguste Dominique

Ingres (1780 – 1867), introduzidos principalmente pelo espanhol Cañizares.

Quanto ao ensino da paisagem na Bahia durante o século XIX, a única referência

que encontramos foi após a criação da Academia de Belas Artes da Bahia, em 1877.

O Arquiteto José Allione, após a Proclamação da República, propôs modificações no

programa de estudos seguidos pela Academia:

[...] haverá na Academia o curso completo subdividido em curso preparatório e curso especial. O primeiro compreendendo as aulas elementares: desenho geométrico até perspectiva; desenho de ornamento e folhagens, etc. e desenho de figuras. Estas aulas obrigatórias e seguidas por todos os alunos qualquer que seja a orientação que deseja de sua carreira. Por fim os alunos serão obrigados a fazer exame de suficiência antes de cursar aulas especiais. Quanto ao curso especial o aluno terá toda a independência – o aluno que seguisse o curso que mais lhe agradar conforme a ideia ou carreira: Arquitetura, escultura ou oficio que deles sejam dependentes como – artes mecânicas e liberais, pintura de retrato, paisagem, retocada, lytografo e etc, e em fim, a classe dos entalhadores,

modelador, canteiros etc6.

A proposta de Allioni foi acolhida e seu programa foi aprovado na sessão da

Congregação7 por todos os participantes em 22.05.1890. Dois anos depois o próprio

Allione8 manifestou a Congregação o interesse em adquirir uma máquina fotográfica,

dizendo “ser de grande utilidade para a Academia” e propondo a compra do

equipamento, ficando o mesmo encarregado da compra após aprovação da

Congregação. Um ano depois Braz do Amaral convidou a todos para ver a primeira

experiência desse equipamento9.

Em outra reunião de congregação10, Braz do Amaral propôs “[...] a divisão do curso

de pintura a fim de melhorar o ensino”[...], em seguida pediu para os professores

apresentarem os seus programas de curso, “pois era praxe seguida em todos os

estabelecimentos de ensino superior [...]”. Este programa deveria ser dividido

6 AHEBA/UFBA. Ata da Congregação, 22.01.1890, p.124.

7 AHEBA/UFBA. Ata da Congregação, 22.05.1890, p.125.

8 AHEBA/UFBA. Ata da Congregação, 10.08.1892, p.134.

9 AHEBA/UFBA. Ata da Congregação, 24.11.1893, p.143-144.

10 AHEBA/UFBA. Ata da Congregação, 14.02.1894 p.145, 146.

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igualmente entre os três professores do curso. Após ponderações, Oséas dos

Santos apresentou a sua proposta:

Quadro 01. Programa do curso de pintura

Estudo de desenho Professores 1ª

parte Exercícios elementares: compreendendo cópia de olhos, narizes, bocas e orelhas até meio rosto em meia sombra – cópia de sólidos em gesso, compreendendo figuras geométricas e ornatos.

Etelvina soares

2ª parte

Cópia de figuras em gesso, começando por mãos, pés, etc, até a figura inteira, ou academia, feita a lápis ou a fusain e aquarelas.

Maria Constança Lopes Rodrigues.

3ª parte

Cópia de modelo vivo a fusain. A fotografia entrará no estudo da paisagem ao ar livre para melhor orientação dos alunos sobre destinação de planos, perspectiva aérea. A congregação aprovou.

Oséas dos Santos

Presidindo a sessão, Virgílio Climaco Damásio (1838 – 1913) “[...] resolve que a

divisão do ensino do curso de desenho apresentado por Oséas dos Santos ficando

dividida em três sessões”, sendo que os professores da 1ª e 2ª sessão se

revezariam ano após ano. Oséas propôs que o professor que se encarrega do

ensino do modelo vivo e paisagens ensinaria a noite cópia de gesso. A congregação

aprovou as modificações11.

[...] Na Bahia dos anos anteriores a primeira guerra mundial, dominava, por que nele se tinham formado os mestres da época, a pintura francesa de estrutura acadêmica, com influencia impressionista e indiscutíveis reminiscências românticas [...] CALDERON (1975 p.08).

O contato com as inovações impressionistas e com a produção europeia se deu

através dos artistas baianos que foram estudar na Europa com auxílio das

subvenções do Governo, principalmente em Paris. O próprio Manoel Lopes

Rodrigues (1860 – 1917), segundo Avancine (2006, p.360) foi estudar na França

através de Dom Pedro II e apesar de ter uma obra voltada para os temas

acadêmicos romantizados, conviveu com as mudanças pictóricas. O pai de Manoel

Lopes, João Francisco Lopes Rodrigues (1825 – 1893), um dos fundadores da

Academia de Belas Artes da Bahia, apesar de não adotar a paisagem como linha

artística, também trabalhou com o tema, inclusive marinha conforme imagem abaixo.

11

Ibid.

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Figura 26: João Francisco Lopes Rodrigues. Marinha.

OST. 60X95. 1895. Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. 2001. Fig.074

Figura 27: Christian Krohg.

Atenção, entrada do porto de Bergen. 1884.

Fonte: Walther (2006, p. 475)

Esta tela de Lopes Rodrigues representa um pescador se dirigindo ao porto. Não

podemos afirmar se foi realizada na Bahia, embora as características geográficas se

assemelharem muito a cidade baixa12. Este trabalho parece estabelecer um diálogo

com a tela do dinamarquês Christian Krohg (1852 – 1925) que também estudou em

Paris no Final do século XIX.

Walther (2006, p.472) comenta que “quando chegava o Verão e terminavam as

aulas das escolas particulares de Paris, os artistas deixavam a cidade e se dirigiam

a costa da Bretanha, local muito popular para férias.

Para Simioni (2005, p. 343) [...] a viagem a Europa desempenhou desde o início um

papel estratégico: permitia que os aspirantes à carreira artística se defrontassem

com as obras e ensinamentos dos grandes mestres [...].

Na Bahia, seguindo este mesmo pensamento, alguns alunos foram estudar na

Europa, e através destas viagens de aperfeiçoamento trouxeram influências

impressionistas para Bahia.

3.1 UMA ESCOLA DE PINTURA EM “PLEIN-AIR”

Dos artistas que foram para Paris, no início do séc. XX, Presciliano foi o que mais

influenciou, permitindo que uma geração de artistas da Escola de Belas Artes

entrasse em contato com a pintura ao ar livre. Presciliano Atanagildo Silva (1883-

1965) estudou na Academia Julian entre 1905 e 1908 com os professores Julio

12

Nos referimos aos bairros que compreende o Comércio e a Calçada, em Salvador.

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Leflevre (1836 - 1911), Robert Fleury (1837-1911) e Adolpho Déchenaud (1868 -

1929), segundo Valladares (1973). Para Flexor (1991, p. 08), “[...] os mestres da

geração dos anos 1920 aos 1940 abrem uma escola de plein-air com interesses

para os efeitos de luz”.

Presciliano Silva já possui uma vasta pesquisa desenvolvida por Clarival do Prado

Valladares, apesar do mérito do trabalho. É válido ressaltar que a pesquisa valoriza

os trabalhos relacionados aos interiores de igrejas, renegando um valor secundário

aos outros temas desenvolvidos por este artista. Já Robespierre de Farias, ainda

velado pela falta de pesquisa, também possui uma vasta obra associada à pintura

em plein-air.

Figura 28: Presciliano Silva. Ancoradouro de

Concaneau. OST. 45 X 60. Sem data. Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. 2001.

Fig.101.

Figura 29: Robespierre de Farias.

Embarcações Bretanha. OSM. 33 X 41 cm. 1913.

Fonte: Galeria Paulo Darzé. Salvador. Junho 2001. Fig.112.

Entre as marinhas produzidas por Presciliano, nas primeiras décadas, estão “Praia

da Mariquita”, “Costa da Bretanha” (1907), “Barco de Pesca”, “Efeitos de Luar” e

“Cais é dos marinheiros” (1913) e “Marinha” e “Forte de Monte Serrat” de 1927.

Além de Presciliano Silva, outros artistas das duas primeiras décadas do século XX

passaram a produzir paisagens com tendências impressionistas, um impressionismo

contido pelo formalismo que a escola baiana empregava como metodologia. Entre

estes artistas, deixaram uma produção significativa Robespierre de Farias (1884-

1975) e Alberto Valença (1890-1980).

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França (1944, p. 53) chama a atenção para “as semelhanças entre Valença e

Presciliano até nas predileções e tendências místicas”. Graças à prática de pintarem

juntos sobre um mesmo tema, podemos atualmente traçar comparações entre as

obras desses artistas.

A diferença entre Presciliano e Valença é que o primeiro fazia estudos ao ar livre e

terminava a composição em estúdio, já Valença,

[...] marcava a luz no instante da pintura [...] assim como alguns impressionistas franceses, Presciliano capta o efeito geral em um esboço, ou mancha, e posteriormente desenvolve uma composição acabada em ateliê (VALLADARES, 1980, p.64).

Essa postura em realizar o esboço e, posteriormente, a obra finalizada, pode ser

vista em dois trabalhos: “Beco do mijo” e “Beco colonial – Beco do mijo”, ambas de

1918.

Do ponto de vista formal, se a base desses pintores foi a acadêmico-realista, eles já experimentariam e exemplificariam a incorporação paulatina das soluções formais provindas do impressionismo e dos movimentos pós-impressionistas. Na verdade estamos diante do fenômeno de modernização moderada da tradição acadêmica, tanto ocorrido na Europa, principalmente na França e na Itália, como entre nós por emulação (AVANCINE, 2006, p. 363).

Robespierre de Farias foi um artista com ampla produção, incluindo marinhas,

algumas produzidas na Franca, com um colorido totalmente diferente do que vinha

se desenvolvendo na Bahia até a virada do século XIX.

Apesar de Presciliano Silva e Alberto Valença terem se tornado mais conhecidos e

referenciados pela historiografia baiana, percebemos a importância de Robespierre

de Farias para a introdução do Impressionismo em solo baiano. Estes dois artistas

incentivaram os alunos da EBA, sendo prova disso a quantidade de telas pintadas

ao ar livre nas três primeiras décadas do século passado. Só para citar algumas,

podemos ver, além das telas dos artistas comentados acima, as produções de

Mendonça Filho, Jayme Hora13, Diógenes Rebouças (1914 – 1994), entre outros;

13

Segundo o jornal Diário de Notícias (25.09.1950, p. 01), José Valladares refere-se a uma exposição de Jayme Hora onde o relaciona aos mais “conceituados pintores” do período; Presciliano Silva, Alberto Valença e Mendonça Filho.

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embora Diógenes Rebouças esteja vinculado às pinturas de caráter documental, não

alcançando a plasticidade dos grandes nomes do período.

Presciliano foi o primeiro artista baiano a trabalhar com técnicas impressionistas,

técnicas estas bem aparentes em sua produção de paisagens, inclusive com telas

retratando as praias desertas da Salvador das primeiras décadas do século XX.

Tanto Presciliano como Robespierre retornaram da Franca com interesse pela

pintura ao ar livre, passando a desenvolvê-la em várias regiões de Salvador.

Apesar da rigidez do ensino instituído por Cañizares e os de Lopes Rodrigues na

academia baiana, demonstrado muito bem por Viviane Rummler da Silva (2008) os

alunos que ingressaram no início do séc. XX encontraram um ambiente menos

rígido, isto porque as transformações ocorridas com o impressionismo chegaram aos

poucos à Academia baiana.

Em 1907, Presciliano pinta o Farol da Barra, tema comum aos artistas paulistas,

como na tela de Benedito Calixto (1853 – 1927) “Ruínas do antigo forte colonial Vera

Cruz do Itapema”, se tornando recorrente para os artistas baianos ligados à Escola

de Belas Artes ou não.

Figura 30: Benedito Calixto. "Forte do Itapema e Outeirinhos", não datado, OST, 40 x 60 cm.

Fonte: Acervo da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto. Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos/calixt05.htm>.

Na tela de Presciliano, a pincelada é bem solta, com predomínio das cores quentes.

A direção da iluminação sugere um final de tarde bem típico do verão baiano. Quem

em Salvador não presenciou este tipo de luz e os seus efeitos mágicos?

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Figura 31: Presciliano Silva. Farol da Barra. OST. 46 X 75 cm. 1907.

Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. 2001. Fig.72.

Provavelmente esta tela deve ter causado um frisson entre os alunos da EBA tão

acostumados aos estudos de ateliê, com luz direcionada. Abriam-se novas

possibilidades para a criação plástica, e, nesse sentido, o bairro da Barra era um

destino que a população passaria a procurar com muita frequência. Sabemos que

José Joaquim Seabra, ao abrir a Avenida Sete de Setembro, ligando o centro velho

ao lado sul da cidade permitiu à população um melhor acesso para o litoral Atlântico

de Salvador.

Aqui na Bahia, durante as quatro primeiras décadas do século XX, quase todos os

pintores baianos passaram a representar paisagens à beira mar. Nestas pinturas, os

monumentos antigos da Bahia eram fixados, numa tentativa, talvez, de congelar o

processo de destruição pelo qual estes passaram. Esses monumentos

proporcionavam registros históricos, sem as pretensões daquelas pinturas históricas

tão em voga no século XIX. Estas paisagens, apesar de mais simples em suas

abordagens, pertencem e são um desdobramento da pintura histórica que, no Brasil,

já possuía uma tradição.

Nessas representações, a influência de Presciliano é inegável. Podemos observar

na tela “Porto de Concarneau”, de sua autoria, que o tema entra na composição

como exercício pictórico, mesmo exercício realizado por Robespierre na tela “Forte

de São Marcelo”.

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Figura 321: Robespierre de Farias. Forte de São Marcelo. OST. 46 X 55 cm. 1935.

Fonte: Catálogo Galeria Roberto Alban, Salvador. 2001. Fig.48.

Presciliano Silva desenvolvia suas pinturas buscando os mesmos efeitos de luz,

transpondo os ensinamentos de sua passagem em Paris para a nossa realidade.

Sua pintura do Farol da Barra, de 1907, é totalmente diferente em sua concepção

daquela difundida por Eduardo de Martino no final do século XIX.

Figura 33: Eduardo de Martino. “Lançamento do cabo submarino na Bahia”, Ost, 66 X 100 cm. Fonte: Acervo do Palácio da Aclamação. Cadastro: 009.VII.04. Foto: Anderson Marinho, 2012.

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Martino faz uma aproximação entre o Farol da Barra e a ilha de Itaparica ao fundo

para melhor exemplificar a ligação entre os dois locais, uma visão que foge

completamente da realidade local e da abordagem de Presciliano. A representação

de Presciliano apresenta uma visão realista da região.

Figura 2: Armando Pacheco. Farol da Barra. OST. 24 X 33 cm. 1944. Fonte: Catálogo Roberto Alban Galeria de Arte. Salvador. 2005. Fig.166.

Todos os monumentos à beira mar foram representados ou no crepúsculo ou no

amanhecer. Os locais representados eram de difícil acesso, e, na década de 20,

provavelmente, obrigou aqueles alunos e também professores da EBA a fazerem

programação prévia, que deveria ser realizadas nos finais de semana. Isso nos faz

pensar em grupos que seguiam pela costa de Salvador, indo em direção às

longínquas praias da cidade, a fim de desenvolverem suas pinturas, da ponta de

Humaitá ao farol de Itapoan, passando pelo forte São Marcelo, Solar do Unhão e

Porto da Barra.

A presença de tantos monumentos em Salvador permitiu abordagens diversas, e

serviram de motivos para exploração pictórica.

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Figura 353: Robespierre de Farias. “Forte de Santa

Maria”. OST. 43 X 78 cm. 1942. Fonte: Catálogo Roberto Alban Galeria de Arte.

Salvador. 2005. Fig.42.

Figura 4: Paraguassu. “Forte de Santa

Maria”. Aquarela 30 X 44 cm. 1944. Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador.

2003. Fig.160.

Podemos observar, na produção artística baiana do período, que o retrato ainda

tinha muita importância, e todos os nomes vinculados à EBA os produziram

abastecendo principalmente o mercado baiano. O rigor estabelecido para o ensino

da pintura ainda impunha os estudos anatômicos para a realização dos retratos e

das academias, além dos temas que possuíssem relevância histórica. Estes temas

históricos eram desenvolvidos utilizando como fonte a historiografia, cujos pintores

recorriam para a elaboração das suas composições, como era de práxis.

Até a década de 1930, os temas históricos ainda eram incentivados, pelo menos nos

concursos dentro da EBA. Um bom exemplo eram os temas escolhidos pela

Congregação da Escola de Belas Artes da Bahia para o Prêmio Caminhoá. Na

seleção de 1921, na qual Mendonça Filho foi premiado, os temas aprovados pela

Congregação da Escola foram “um desenho de Academia” e uma pintura histórica

com o tema “Labatut perante o Tribunal”. Em 1927, foram apresentados os temas

“Calabar” e “Zumbí”14, ambos representantes das lutas pela liberação dos escravos

e, portanto, de cunho histórico. No trabalho realizado por Mendonça para o Prêmio

Caminhoá, percebemos que o resultado está longe de ser uma pintura histórica,

sendo entendido mais como um retrato.

As discussões sobre o patrimônio cultural eram constantes no cenário brasileiro

desde a década de 1920, e, nesse sentido, o patrimônio arquitetônico, de origem

14

Segundo o AHEBA/UFBA – ATA 18/11/1927 p.189, o professor Carlos Sepúlveda pede ao diretor que “em vista do ano estar prestes a findar-se que se submeta o aluno da escola, Ismael de Barros, às provas do concurso de escultura candidato ao Prêmio Caminhoá”. O ponto escolhido para a prova de escultura foi: “um preto-homem mestiço para ter o título de Zumby”. As provas foram realizadas entre os dias 20 e 30 de dezembro.

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72

colonial, fazia parte das discussões, principalmente nos meios acadêmicos. Baltieri,

(2012, p. 80), em sua dissertação de mestrado, explica como as discussões sobre o

patrimônio ganharam força neste período. Aqui na Bahia, dentro do projeto

urbanístico iniciado por J. J. Seabra, em 1912, vários monumentos de importância

histórica foram destruídos, a exemplo da Sé Primacial destruída em 1933.

A preocupação com o antigo patrimônio, pelo qual o passado é materializado, revelava a importância desses materiais representantes de tempos remotos para a conformação da identidade nacional (BALTIERI, 2012, p. 81).

Vários foram os pintores que representaram o Farol da Barra. A quantidade de

trabalhos realizados demonstra que este era, e continua sendo, um dos locais

preferidos pelos baianos por sua importância histórica.

Figura 375: Libindo Ferraz. Farol da Barra. Aquarela. 25 X 34 cm. Sem data.

Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. 2001. Fig.85.

Outro ponto importante a ser lembrado é que o tema, como já demonstramos, era

desenvolvido no Brasil por outros pintores que registraram os monumentos

arquitetônicos à beira mar. Um bom exemplo foi o do artista Giovanni Castagneto

que pintou vistas da Igreja de Santa Luzia além do Forte de São Luís em Toulon de

1891 (OLIVEIRA, 2007, p. 75). Perceba que este motivo também aparece na obra

de Mendonça Filho e na de outros artistas ligados à Escola de Belas Artes da Bahia.

Somente na década de 1930, Mendonça Filho produziu, entre outras, as telas “Feira

de Água de meninos” que tem a Igreja da Santíssima Trindade como figura

secundária, “Igreja de São Lourenço” e “Forte de Santa Maria”.

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73

Figura 386: Robespierre de Farias. Forte de Mont’Serrat. OST. 61 X 79 cm. 1928.

Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. 2002, Fig. 48.

Os arquivos da EBA15 comentam sobre “excursões previamente traçadas tanto para

as disciplinas de Arquitetura, quanto nas de Desenho e Pintura”. Segundo os

relatórios de exercício da EBA, entre os anos de 1955 e 1960, existiam várias

excursões tanto para os alunos de Arquitetura quanto para os alunos do curso de

Pintura. Em 1955, por exemplo, os alunos do curso de Arquitetura e de Pintura

realizaram excursões para as cidades de Maragogipe, Cachoeira, Dias D’Ávila e

Barragem do Rio de Cobre16; em 1958, as cadeiras de Pintura e de Arquitetura do

Brasil foram para o Castelo Garcia D’Ávila (atual Praia do Forte) e a de Pintura (3ª,

4ª e 5ª séries) também para Cachoeira “permanecendo 7 dias”17.

No final da década de 1950, os estudantes da 1ª, 3ª e 5ª séries do curso de Pintura

excursionaram à ilha de Itaparica para pintar18.

15

Arquivos da Universidade da Bahia – EBA, 1954-1955, Volume II, p.383.

16 AHEBA/ UFBA. Envelope 27. Relatórios da Diretoria dos anos de 1955, p.01.

17 AHEBA/ UFBA. Envelope 27. Relatórios da Diretoria dos anos de 1957, p.03.

18 AHEBA/ UFBA. Envelope 27. Relatórios da Diretoria dos anos de 1958, p.12.

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74

Figura 7: Robespierre de Farias. Marinha.

OSM. 22 X 34 cm. 1919. Fonte: Catálogo Roberto Alban Galeria de Arte.

Salvador. 2006. Fig.08.

Figura 40: Robespierre de Farias. Marinha.

OSM. 33 X 41. 1958. Fonte: Catálogo Roberto Alban Galeria de Arte.

Salvador. 2006. Fig.74.

O trabalho acima, do lado esquerdo, de Robespierre foi realizado em 1919 e é uma

das muitas representações realizadas nas praias de Salvador. Na década de 1950,

este artista ainda trabalhava com a temática marinha, como demonstra seu trabalho

de 1958 acima, do lado direito. O tema persistiu em suas representações até o final

da sua vida.

Todos os artistas ligados a essa corrente de pintura eram pintores formados nos

padrões acadêmicos, em sua maioria, excelentes retratistas, contudo, enveredando

por outros caminhos. Em alguns trabalhos de Presciliano, as excitações causadas

pelas cores nos deixam inebriados com seus efeitos. É o caso da paisagem de

Presciliano abaixo que não conseguimos identificar a data. Por seu colorido e efeitos

óticos, aproximamos este trabalho ao Ancoradouro de Concarneau que é uma tela

realizada na França. Acreditamos que deva ser uma tela da primeira década, pois há

uma atmosfera muito parecida entre os dois trabalhos.

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75

Figura 418: Presciliano Silva. Paisagem. OST. 33X46 cm. Sem data. Fonte: Catálogo Paulo Darzé. Junho 2000. Fig. 119.

Sobre a técnica empregada, ao observar melhor este trabalho, concluímos que

Presciliano devia preparar um fundo com um tom cinza amarelado ou alaranjado que

facilitaria a harmonização das cores no momento da sua execução. Não é um

devaneio, pois, havia este mesmo processo no desenvolvimento dos seus retratos

dentro da Academia, bastar observar alguns retratos inacabados deste período para

perceber o que apontamos. Era uma forma de conseguir uma atmosfera total dentro

do plano pictórico. Esta cor de fundo permanece fragmentada no final do trabalho,

funcionando opticamente no resultado da pintura.

Comparando as telas “Interior de São Francisco com crucificado” (1933) de autoria

de Presciliano Silva com a tela “Convento de São Francisco19” (1931) de Mendonça

Filho, podemos notar as diferenças nas abordagens escolhidas com este tema.

19

A tela foi vendida em sua primeira exposição para Gerhard Meyer.

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76

Figura 429: Presciliano Silva. “Interior do Convento de São Francisco com o crucificado”. OST,

0,50 X 0,60 cm, 1933. Fonte: Valladares (1972, p. 130).

Ambas as telas foram produzidas na sala do capítulo do Convento de São Francisco,

e enquanto a tela de Presciliano possui uma iluminação quente, amarelada, com

fatura impressionista, a tela de Mendonça Filho tem uma iluminação azulada, com

desenho mais seguro e tratamento pictórico mais realista. Notem o tratamento que o

artista deu à rotunda de vidro que cobre o pequeno santo no móvel à esquerda do

observador.

Figura 4310: Mendonça Filho. “Interior do Convento do São Francisco”. OST, 1931.

Fonte: Acervo da Família.

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A iluminação escolhida por Mendonça Filho é mais tranquila, não tão incisiva, talvez

realizada em um dia mais nebuloso. Sabemos através de comentários da família do

artista que os dois produziram outras telas no convento e que Presciliano

necessitava de várias sessões para terminar a sua obra, enquanto Mendonça Filho

tinha uma forma de pintar mais impulsiva. Contudo, nesse trabalho há uma

preocupação com a composição e com os detalhes que não poderia ter sido

realizada em uma única sessão.

As telas não foram desenvolvidas no mesmo período, haja vista a disposição dos

móveis bem como a substituição do crucificado. Os trabalhos desenvolvidos sobre

um mesmo motivo reforçam, mais uma vez, a formação de um grupo de artistas que

se reunia e explorava suas concepções individuais a partir de um mesmo motivo.

A pintura de Mendonça Filho percorre outro caminho. Sua orientação não se deu

através de Manoel Lopes e nem de Presciliano Silva, que durante a sua formação

estava no Rio de Janeiro, e mesmo ao retornar em 1917, passou a trabalhar na

grande encomenda para decorar o Salão Nobre do Palácio da Aclamação,

residência dos governadores do Estado da Bahia.

A formação artística de Mendonça Filho se deve, em grande parte, a Pasquale de

Chirico que vinha de outra corrente da arte, ligada, principalmente, à Academia de

Nápoles, com tradição nas pinturas de marinhas e portos, algo com influência dos

Macchiaolis e reminiscência da Escola Veneziana.

Como demonstramos, no Brasil, havia diversos pintores estrangeiros com produção

significativa nas duas primeiras décadas do século XX. Pasquale Celommi

(06.01.1851- 09.09.1928), por exemplo, deixou-nos, aqui na Bahia, provavelmente

adquiridos pela família de Miguel Francisco de Moraes20, dois quadros que ainda se

encontram no acervo do Palácio da Aclamação. São exemplos do Verismo Italiano.

Os trabalhos de Celommi, realizados a partir de 1900, apresentam lavadeiras,

marisqueiras, pescadores a trabalhar, temas utilizados por Mendonça Filho em sua

20

Dono do Palacete dos Moraes, residência que antecedeu o Palácio da Aclamação, adquirido pelo Governador João Ferreira de Araújo Pinho em 1911.

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78

produção posterior.

A pintura mais antiga de Mendonça Filho que encontramos foi justamente uma

marinha realizada em 1920. Nesta época, Mendonça Filho tinha 25 anos. É um

trabalho simples, quase uma impressão, parecendo que o artista escolheu um dia de

tempo fechado, em que o mar agitado castiga a praia. Há uma solidão quase gélida,

quebrada apenas pela frágil construção.

Figura 44: Mendonça Filho. Marinha Amaralina. OSM. 16X24 cm. 1920.

Fonte: Galeria Paulo Darzé. Salvador. Junho 2001. Fig.15.

Ao observarmos a produção de Mendonça percebemos que suas marinhas podem

ser enquadradas em três categorias: paisagem histórica, série de barcos encalhados

e pintura do cotidiano dos pescadores.

Não podemos separá-las por época, pois a produção mistura-se, contudo, podemos

entender que, ainda na Europa, a produção de Mendonça Filho concentrava-se nos

retratos e em algumas paisagens. Ao retornar à Bahia, passa a trabalhar mais com

as marinhas, seja no registro do cotidiano dos pescadores ou nos registros dos

barcos encalhados.

Quanto aos barcos encalhados, podemos comparar os registros feitos por Mendonça

Filho na Bahia aos de Castagneto no Rio de Janeiro. Há uma relação entre as obras

de Castagneto e as de Mendonça Filho, principalmente no que se refere à

representação de barcos encalhados na praia e que Oliveira (2007, p. 67) chama de

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“barco ao seco”. O tema relaciona diretamente os dois artistas, principalmente

naquelas pinturas produzidas por Mendonça Filho na Ilha de Itaparica21. O motivo

dos barcos encalhados na praia aparece na produção de Mendonça Filho entre 1930

e 1960.

Figura 45: Mendonça Filho. Mar Grande, 50 X

58 cm. 1943. Fonte: Acervo MCR Galeria. Disponível em:

<http://www.mcrgaleria.com.br/mcr/displayimage.php?album=32&pos=0>.

Figura 46: Mendonça Filho. Duro mar, 87 X 130

cm. Década de 1943. Fonte: Catálogo FMCCP, p. 23.

Provavelmente, as duas telas indicadas acima foram desenvolvidas na mesma

época. Notem como o barco da primeira composição se repete na segunda e até

mesmo as características geográficas são semelhantes.

Como já apresentamos, no impressionismo era bem comum a vários artistas

representarem cenas do cotidiano dos pescadores, e os barcos encalhados

aparecem nesse contexto. Oliveira (2007, p. 87) comenta que Gustave Courbet e

Claude Monet merecem destaque “[...] na representação de motivos similares, já que

o motivo de barco pousado na areia da praia foi retratado pelos mesmos durante o

século XIX”.

No Brasil, os barcos encalhados também foram representados durante o século XIX,

a exemplo de Thomas Ender (1793-1875), citado por Bueno (2004, p. 144), Benedito

Calixto (1853-1927), Henri Nicola Vinet (1817-1876) e Antônio Parreira (1860-1937)

21

Avancine (2006, p. 363) evidencia a série de paisagens praieiras de Mendonça Filho em Itaparica, e segundo o autor “[...] se conectavam como um subgênero paisagístico das marinhas. Mas com a diferença que o que era ressaltado era a amplidão de horizontes e céus e a relação entre beira da praia e o mar”.

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(OLIVEIRA, 2007, p. 88).

Essa escolha de um elemento característico e a gestualidade utilizada na pintura

podem ligar a obra de Mendonça à de Castagneto. Oliveira (2007, p. 95) constatou

“[...] que a série barcos ao seco é a mais ampla série na produção de Castagneto”.

Assim como Castagneto, Mendonça Filho explorou motivo parecido durante quase

30 anos. Se há uma diferença nesse motivo explorado pelos dois artistas é a

característica geográfica de Santos e da ilha de Itaparica.

Caberia dar-lhes um título geral a essa prodigiosa série do Mar Grande. Motivo central – o barco em repouso, o barco em bordejo, o barco em concerto, o barco em preparo. Sempre o barco e o barqueiro, à volta das cordoalhas e velames, como os motivos do encalhe. Imperativos do tempo fora. Prática do refúgio cotidiano. Intervenções de Alcatroagem contra os gusanos, a que os praieiros chamam busames. Isso ou aquilo há sempre um sentido, uma intenção, uma causa, na postura eventual dos barcos de Mendonça [...] Mendonça realiza em verdade, a infinita poesia dos barcos, rodeados em suas telas pelo fugor da natureza marinha. É o revelador das nossas enseadas. O grande marinhista

22.

Sobre a não temporalidade das séries “barcos ao seco” de Castagneto, Oliveira

(2007, p. 99) comenta “como percebemos, plasticamente as composições são muito

similares: mesmo que nas feituras estejam dispersas no tempo, a poética que os

envolve as uni de maneira inexorável”.

A produção das pinturas com temas cotidianos era muito comum a todos os

itinerantes do grupo Grimm de pintura em plean air da qual Castagneto fazia parte.

Oliveira (2007, p. 100) diz que “é possível verificar a similaridade dos motivos nas

obras dos alunos de Grimm, nos primeiros anos, pois estes viajavam em grupo ao

mesmo local para pintar”. O autor continua: as motivações de Castagneto para a

produção da série é entendida por três caminhos: lirismo, exercício técnico e o

mercado.

[...] observamos nas suas pinturas e nos discursos dos jornais da época que a preocupação do pintor é continuar suas pesquisas sobre a representação da vida cotidiana na praia (Santos), ou a beira-rio (São Paulo). O dia-a-dia das lavadeiras e dos pequenos barcos é o motivo de inspiração para o artista. (OLIVEIRA, 2007, p.121)..

Veja que aqui Oliveira traz referências das obras de Castagneto que parecem

ajustar-se à produção de Mendonça Filho. Em suas obras, o retrato do cotidiano está 22

A Tarde (06.10.1943, p.03).

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presente, e, em alguns momentos, os temas relacionados à pintura marinha se

misturam em seus trabalhos: elementos históricos, os barcos encalhados e o

cotidiano dos pescadores ou mestres dos saveiros, como na tela “Água de meninos”

da década de 1940.

Analisando as representações do corriqueiro na obra de Castagneto e Almeida

Junior, Oliveira (2007, p. 121) indica que, no caso de Castagneto, a figura humana

não existe, exceções feitas a raríssimas obras – e o foco do artista são os barcos

que, indiretamente, acusam a existência humana, mais precisamente do pescador,

que em algum momento pode aparecer, pegar o barco e entrar no mar.

Além de Mendonça Filho, Alberto Valença e Diógenes Rebouças representaram

embarcações encalhadas na areia, como no exemplo abaixo:

Figura 47: Alberto Valença. Marinha. OSM. 16 X 30 cm. Sem data.

Fonte: Catálogo Roberto Alban. Salvador. 2001. Fig.103.

A prática da pintura de paisagem foi iniciada pelos dois pintores, Presciliano e

Valença, nas primeiras décadas do século XX (AVANCINE, 2006, p. 360), todavia, é

preciso ampliar as pesquisas sobre a pintura baiana, pois, o nome de Robespierre

de Farias ainda não foi suficientemente pesquisado. Quem tentar desvelar as

lacunas da pintura de paisagem baiana perceberá que este artista tem um

importante papel, inclusive no tratamento pictórico que dava a algumas de suas

obras, revelando um artista que estava longe das propostas clássicas, incorporando

uma paleta de cores saturadas a qual evidenciava um tratamento moderno,

principalmente em trabalhos realizados durante sua estadia na Europa.

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Flexor (1991) escreveu sobre Alberto Valença:

[...] pinta com pinceladas pequenas, visíveis, como os impressionistas, mas seu objetivo não é, como eles, fazer a luz vibrar pela justaposição ou contraste de cores sem relação entre si. A textura é suave e aveludada, dando igual densidade a todos os planos e fazendo com que as formas e cores pareçam superpor-se sem descontinuidade [...].

Oliveira (2007, p. 124) informa que a crítica de arte do séc. XIX possibilitou-nos, por

exemplo, adentrarmos em questionamentos e valores da produção artística

europeia, demonstrando como a natureza e o gênero de paisagem tomaram-se um

dia principais meios para a realização das experimentações técnicas dos artistas.

O mesmo autor informa que são dois tipos básicos de pintura de marinha: registro de

eventos importantes (marinhas históricas) e cotidiano praiano. Em relação ao

cotidiano praiano representado na Bahia, podemos dividir esta produção em quatro

categorias: acidentes geográficos; barcos encalhados; praias e recifes; e pescadores

trabalhando, todas contempladas na produção artística de Mendonça Filho.

As pinturas desenvolvidas por Mendonça Filho, realizadas na Ilha de Itaparica,

principalmente em Mar Grande, valorizam aquelas praias com grande quantidade de

corais ou pedras. Acreditamos que essa escolha deu-se em virtude da procura dos

espelhos formados pelas poças de água. Vimos anteriormente que, na história da

pintura de marinhas, os artistas valorizavam os efeitos atmosféricos óticos, além do

seu rebatimento nas águas, então, estas poças ou barreiras de corais permitiam que

o mar ficasse espelhado, favorecendo este referido rebatimento.

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Figura 11: Mendonça Filho. Marinha. OST. 35 X 40 cm. Sem data.

Fonte: Catálogo Roberto Alban Galeria de Arte. Salvador. 2005. Fig.41.

Mar e céu foram produzidos com o mesmo tom. O céu ocupa grande parte nesta tela

de um azul acinzentado. Suaves pinceladas cortam o horizonte no primeiro terço

inferior e apenas o pronúncio simples dos gestos em siena constroem os corais ou

bancos de arreia, simples barreiras criadas para quebrar a ressonância do céu.

Vejamos outro exemplo:

Figura 49: Mendonça Filho. Marinha, Mar-Grande. OSM 100 X 70 cm. Fonte: Catálogo Roberto Alban Galeria de Arte. Salvador. 2006. Fig. 75.

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Na tela acima, fica evidente que o que o artista estava procurando com o reflexo do

céu e como esse efeito se comportava na plasticidade da praia rasa, permitindo que

os múltiplos efeitos se somassem à diversidade de elementos representados.

Acreditamos que o grande foco das marinhas de Mendonça era representar os

efeitos atmosféricos. Ao observar o conjunto de suas marinhas, percebemos o azul

profundo do verão e os céus crepusculares do outono. Em alguns momentos, o céu

apresenta cores que nós, baianos, presenciamos entre os meses de maio e junho,

ao descortinar os belvederes de Salvador, dos Aflitos à Praça Municipal, no Santo

Antônio ou em Humaitá. Quem, na Bahia, por um momento, não ficou fascinado com

os efeitos do céu de fim de tarde? A Bahia é esse eterno contemplar e a

sensibilidade dos nossos artistas percebeu o potencial plástico destas

representações.

Embora esse pensamento persista em muitos trabalhos de Mendonça, há também

aquelas obras em que os recifes estão todos livres das águas, como na tela “Duro

Mar” e “Mar Grande”, sendo esta última oferecida em 1943 a Diógenes Rebouças23.

Estes dois exemplos valorizam as texturas criadas pelas rochas apresentadas na

maré vazia. A maré sempre será levada em consideração pelo artista que deveria

acompanhá-las de perto para poder aproveitar por mais tempo a maré vazia para

poder pintar.

Outro tema recorrente dentro das suas marinhas são composições em que

aparecem pequenos barcos, ao longe, na vastidão do mar, pontos que prenunciam a

chegada de algum grupo de pescadores, quebrando o silêncio da pintura. É o caso

da pintura intitulada “Marinha – Amanhecer” do MAB.

Há aqui um fato importante a ser levado em consideração: a proximidade do artista

com a comunidade pesqueira de Mar Grande. Percebemos, em seus retratos,

principalmente, que alguns de seus amigos foram representados. Sabemos que, na

Ilha de Itaparica, as famílias de pescadores também conheciam as técnicas da

construção naval, muito bem apontado pelo pesquisador Levi Smashevisk em seu

23

Catálogo Roberto Alban, 2002, p.07.

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livro “Graminho - A alma do saveiro”. Mendonça conhecia de perto os diferentes

formatos e utilidades destas embarcações, e este conhecimento se faz presente nas

suas representações.

A pintura ao vivo, diretamente da natureza, exigia uma disciplina no olhar e uma

destreza na aplicação das tintas, visando registrar os efeitos da luz, e, na Bahia, as

experimentações com a técnica impressionista foram utilizadas por um grande

número de artistas. Mendonça Filho é um bom exemplo de artista que, ao fazer a

viagem de aperfeiçoamento, retorna com qualidades pictóricas totalmente diferentes

daquelas que realizara.