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Afro-Ásia, 27 (2002), 9-39 9 IDENTIDADE E A MIRAGEM DA ETNICIDADE A JORNADA DE MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA PARAAS AMÉRICAS 1 Paul E. Lovejoy* R eferências a etnicidade são freqüentes no estudo dos africanos es- cravizados nas Américas, mas a forma como o conceito de etnicidade é compreendido tem sido objeto de consideráveis debates e divergências. Eu defendo que reconstruções de conceituações de etnicidade oferecem a possibilidade de preencher uma lacuna metodológica no estudo da escra- vidão. A lacuna consiste na ausência de dados sobre o que aqueles escra- * Professor de História da Diáspora Africana, Universidade de York, Canadá. 1 Vide Robin Law e Paul Lovejoy, The Biography of Muhammad Gardo Baquaqua (Princeton, 2001). A pesquisa teve o apoio do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanidades do Canadá, e é parte do projeto UNESCO/York University “Nigerian” Hinterland Project. Eu gos- taria de agradecer, além de a Robin Law e sua parceria neste projeto, a diversas pessoas pela ajuda que prestaram: Cheryl I. Lemaitre por fazer a busca de referências jornalísticas e por seus comentários sobre os primeiros esboços; Catherine Hanchett pelo generoso auxílio relativamente à história do Central College, e por permitir-me consultar a sua obra, ainda não publicada, sobre o Colégio e os anos que Baquaqua’s passou lá; Catherine Barber, historiadora de Cortland County, por referências jornalísticas; Silvia Hunold Lara, por compartilhar sua pesquisa preliminar e pelo empréstimo dos negativos de duas gravuras de Baquaqua; Manolo Florentino, Alberto da Costa e Silva e Tufy Cairus, por seu auxílio no Rio de Janeiro, e no Brasil em geral, e a João Reis e Marcus Carvalho, pelas informações sobre Pernambuco. Ibrahim Hamza deu sugestões muito úteis com relação às culturas hauçá e muçulmana. Allan Austin foi quem primeiro me chamou a atenção para Baquaqua: vide Allan Austin (ed.), African Muslims in Ante-Bellum America: A Sourcebook (New York e Londres, 1984), 585-654 (doravante, Austin, African Muslims: Sourcebook). Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas no Departamento de História da Universidade do Texas, em 11 de fevereiro de 2000, no Centro Gilder Lerhman para o Estudo da Escravidão, Resistência e Abolição, Universidade de Yale, 16 de fevereiro de 2000, no Centro de Estudos Africanos, Universidade de Rutgers, 24 de fevereiro de 2000; e na conferência “Liberté, identité, integration et servitude,” Universidade de Al Akhawayn, Ifrane, Marrocos, 29-30 de junho de 2000. Tradução: Raul Oliveira. Revisão da tradução: Valdemir Zamparoni.

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  • Afro-sia, 27 (2002), 9-39 9

    IDENTIDADE E A MIRAGEM DA ETNICIDADEA JORNADA DE MAHOMMAH GARDO BAQUAQUA

    PARA AS AMRICAS1

    Paul E. Lovejoy*

    Referncias a etnicidade so freqentes no estudo dos africanos es-cravizados nas Amricas, mas a forma como o conceito de etnicidade compreendido tem sido objeto de considerveis debates e divergncias.Eu defendo que reconstrues de conceituaes de etnicidade oferecem apossibilidade de preencher uma lacuna metodolgica no estudo da escra-vido. A lacuna consiste na ausncia de dados sobre o que aqueles escra-

    * Professor de Histria da Dispora Africana, Universidade de York, Canad.1 Vide Robin Law e Paul Lovejoy, The Biography of Muhammad Gardo Baquaqua (Princeton,

    2001). A pesquisa teve o apoio do Conselho de Pesquisa em Cincias Sociais e Humanidades doCanad, e parte do projeto UNESCO/York University Nigerian Hinterland Project. Eu gos-taria de agradecer, alm de a Robin Law e sua parceria neste projeto, a diversas pessoas pelaajuda que prestaram: Cheryl I. Lemaitre por fazer a busca de referncias jornalsticas e por seuscomentrios sobre os primeiros esboos; Catherine Hanchett pelo generoso auxlio relativamente histria do Central College, e por permitir-me consultar a sua obra, ainda no publicada, sobreo Colgio e os anos que Baquaquas passou l; Catherine Barber, historiadora de Cortland County,por referncias jornalsticas; Silvia Hunold Lara, por compartilhar sua pesquisa preliminar epelo emprstimo dos negativos de duas gravuras de Baquaqua; Manolo Florentino, Alberto daCosta e Silva e Tufy Cairus, por seu auxlio no Rio de Janeiro, e no Brasil em geral, e a Joo Reise Marcus Carvalho, pelas informaes sobre Pernambuco. Ibrahim Hamza deu sugestes muitoteis com relao s culturas hau e muulmana. Allan Austin foi quem primeiro me chamou aateno para Baquaqua: vide Allan Austin (ed.), African Muslims in Ante-Bellum America: ASourcebook (New York e Londres, 1984), 585-654 (doravante, Austin, African Muslims:Sourcebook). Verses anteriores deste trabalho foram apresentadas no Departamento de Histriada Universidade do Texas, em 11 de fevereiro de 2000, no Centro Gilder Lerhman para o Estudoda Escravido, Resistncia e Abolio, Universidade de Yale, 16 de fevereiro de 2000, no Centrode Estudos Africanos, Universidade de Rutgers, 24 de fevereiro de 2000; e na conferncia Libert,identit, integration et servitude, Universidade de Al Akhawayn, Ifrane, Marrocos, 29-30 dejunho de 2000. Traduo: Raul Oliveira. Reviso da traduo: Valdemir Zamparoni.

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    vos pensavam e em que eles acreditavam. Por esta razo, a interes-sante narrativa de Mahommah Gardo Baquaqua reveste-se de especi-al importncia, tendo em vista a sua odissia incomum, de algum es-cravizado na frica ocidental, aparentemente entre o incio e meadosdos anos 1840, e transportado para o Brasil por volta de 1845, alcanan-do sua liberdade na cidade de Nova Iorque em 1847.2 A biografia deBaquaqua foi originalmente publicada em 1854, em Detroit, Michigan(EUA), e consiste em 65 pginas impressas, com o poema Prece dosOprimidos (do poeta afro-americano James Whitfield) como apndi-ce.3 quase certo que o poema de Whitfield tenha sido escolhido por-que captava os pensamentos de Baquaqua: quando o radiante sol daliberdade / brilhar sobre todo pas desptico, E toda a humanidade, livreda escravido, adorar as maravilhas de vossa mo. A busca de Baquaquapor liberdade, a primeira palavra que ele diz ter aprendido em ingls,conduz-nos por um caminho de mltiplas identidades, no qual a etnicidadeinforma a discusso sobre a situao de Baquaqua, mas, apesar disto,no explica a progressiva individualizao de sua identidade, e a corres-pondente alienao que isto implica. A etnicidade revela-se como umasrie de chapus, cujo uso lhe prescrito. Como um mecanismo deauto-identificao, a etnicidade surge como uma miragem, a disfarar oindivduo que est sob os chapus.

    Baquaqua no diz nada, explicitamente, sobre a forma como elese identificava a si mesmo em termos tnicos ou em relao ao seu lugarde origem. No obstante, materiais biogrficos implicitamente do pis-tas sobre o indivduo, dizendo-nos, assim, em teoria, como cada pessoainteragia na esfera social e, por conseguinte, como cada um era identifi-cado e como cada um percebia-se a si mesmo em diferentes situaes.Portanto, para mim, a etnicidade no importante em si, ou por si s,mas sim porque ela fornece uma chave metodolgica para a reconstru-

    2 Samuel Moore, Biography of Mahommah G. Baquaqua. A Native of Zoogoo, in theInterior of Africa (A Convert to Christianity,) with a Description of that Part of theWorld; including the Manners and Customs of the Inhabitants (Detroit: Geo. E. Pomeroy& Co., 1854). Doravante, far-se- referncia ao livro como a Biografia de Baquaqua.

    3 James Whitfield, America, and Other Poems (Buffalo, 1853), 61-63. Sobre a contribui-o de Whitfield para a literatura afro-americana, vide Joan R. Sherman, James M.Whitfield: Poet and Emigrationist: A Voice of Protest and Despair, Journal of NegroHistory, 56, 1972, 173.

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    Foto 1 Mahommah G. Baquaqua (1850), frontispcio, A. T. Foss and EdwardMathews, Facts for Baptist Churches, Utica, 1850.

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    o de padres mais gerais de histria, do que permite a histria isoladade uma pessoa.

    Quando seu livro foi publicado, Baquaqua tinha, possivelmente,trinta anos, um homem ainda jovem, com uma diversidade de experinciasincomum para a maioria das pessoas em qualquer poca, porm indicativadas situaes possveis com que se defrontavam os africanos escravizadosque haviam sido conduzidos fora ao longo das rotas que levavam aomundo desconhecido da escravido racializada nas Amricas. quaseinimaginvel que um homem de trinta anos, que tinha experimentado aescravizao e a migrao forada para as Amricas, tenha deixado umrelato autobiogrfico to vvido. Baquaqua foi, primeiro, para o Brasil,antes de buscar a liberdade em Nova Iorque, e depois refgio no Haiti,onde permaneceria por dois anos. Ele converteu-se ao cristianismo em1848. Durante quase trs anos (1850-53), freqentou o Central College,em McGrawville, Estado de Nova Iorque, onde, depois de mudar-se parao Canad Oeste (Ontrio), ele tomou as providncias visando a publica-o de sua histria, em Detroit, em 1854. Viajou para Liverpool em janei-ro de 1855, e a ltima notcia que temos dele data de 1857, na Gr-Bretanha,aguardando os resultados dos esforos de seus amigos missionrios paralevantar fundos, a fim de mand-lo de volta para a frica.

    O que restou de sua correspondncia, assim como a sua biografia,reflete o seu firme propsito de retornar sua terra natal.4 Ele tentoujuntar-se Misso Mendi, em Serra Leoa em 1853-54, e, em 1857, ain-da estava contatando a Misso Livre Batista Americana, em busca deauxlio. O registro diz: Mahommah, o africano educado neste pas [Es-tados Unidos], agora na Inglaterra, expressando o seu desejo de retornare trabalhar entre seus compatriotas, mas a deciso de estabelecer a mis-so foi adiada por um ano e, aparentemente, tal misso nunca foi envia-da.5 Baquaqua some de vista depois disto.

    4 Baquaqua para George Whipple, McGrawville, 8 de outubro de 1853 (Arquivos da Associ-ao Missionria Americana American, N 81362, Centro de Pesquisas Amistad, Univer-sidade de Tulane, New Orleans). Eu gostaria de agradecer a Kwabena Akurang-Parry porsua ajuda em localizar esta correspondncia, que est publicada em Law e Lovejoy,Biography of Baquaqua, apndice 3.

    5 [Nova Iorque] Free Mission Record, fevereiro de 1857, 13, que discute a reunio doConselho da Sociedade da Misso Livre Batista Americana. Eu gostaria de agradecer aSilvia Hunold Lara por esta referncia.

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    Mapa 1 Rota de Baquaqua da frica para as Amricas e Inglaterra

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    O relato de Baquaqua serve como exemplo de como uma biogra-fia pode informar a nossa compreenso da dispora africana, e de comoindivduos encaixavam-se na histria da escravido transatlntica.6 Nesteensaio, eu investigo identidade ao longo da rota escravista, da fricapara as Amricas, usando o perfil pessoal de Baquaqua como um meiode penetrar no, freqentemente impenetrvel, silncio dos escravizados.Os detalhes da biografia abrem a possibilidade de submeter os estereti-pos tnicos, os signos atribudos de identidade e o historicismo da tradioe da memria ao escrutnio de uma rigorosa metodologia. At que ponto aetnicidade era essencialista, existindo independentemente dos indivduos eresistindo s mudanas de circunstncia e de situao? Qual era a relaoentre o indivduo e a coletividade, sob o jugo da escravido racializada?Conduzir uma tal pesquisa biogrfica difcil, porque os dados normal-mente encontram-se muito dispersos, mas, no caso de Baquaqua, existeuma quantidade considervel de informaes disponveis.

    Ao examinar questes de etnicidade, e da maneira como elas serefletiram na vida de Mahommah Gardo Baquaqua, fica claro que suaidentidade esteve entrelaada com os detalhes pessoais de sua vida, mastambm que a etnicidade era pouco mais do que uma miragem, quedisfarava os fatores que haviam conduzido sua escravizao e venda.A histria de vida de Baquaqua revela muito sobre a maneira como, pelomenos a este homem em particular, foi atribuda uma srie de identida-des que tinham relao com seu status, no curso de sua vida. No espaode uma dcada, ele conseguiu cair na escravido em Borgu, sobreviver marcha forada em direo costa e terrvel Passagem do Meio, expe-rimentar um brutal encarceramento em Pernambuco e um duro trata-mento no mar, mas ele sobreviveu. Mesmo o isolamento do perodo pas-sado no Haiti e o racismo do Estado de Nova Iorque no conseguiramquebrant-lo. No pode haver uma evidncia mais forte de que este ho-mem manteve uma imagem de si mesmo que pde resistir violncia, humilhao e aos esforos de desenraizamento. Sua identidade, no con-texto da escravido, manteve-se em transformao, apresentando o ho-

    6 Paul E. Lovejoy, Biography as Source Material: Towards a Biographical Archive ofEnslaved Africans, in Robin Law (ed.), Source Material for Studying the Slave Tradeand the African Diaspora (Stirling, 1997), 119-40.

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    mem em diferentes aspectos para diferentes situaes. Em seu nome eem sua memria, contudo, existem traos de um indivduo que conser-vou uma forte identificao com a frica e com a sua terra natal. Ascontradies e lutas que so reveladas em sua histria so caractersti-cas de muitos daqueles que foram escravizados, especialmente porqueBaquaqua no conseguiu estabelecer conexes com uma comunidade deescravos nas Amricas, e s alcanou a condio de membro de umacomunidade quando se associou aos abolicionistas norte-americanos,especificamente os da Sociedade da Misso Libre Batista Americana,com a sua rede no Estado de Nova Iorque, na Pensilvnia e no CanadOeste.

    Muitas das narrativas de escravizados dessa era provm de escra-vos do sexo masculino, e o relato de Baquaqua no constitui uma exce-o. Na verdade, havia uma predominncia de homens entre os escra-vos, especialmente entre os muulmanos escravizados.7 EmboraBaquaqua no esteja includo na compilao de depoimentos da era es-cravista feita por Philip Curtin, sua histria harmoniza-se com o temadominante na coletnea de Curtin, a qual inteiramente masculina epredominantemente muulmana.8 De forma similar, o material biogrfi-co de Allan Austin sobre escravos muulmanos na Amrica consiste,inteiramente, de dados sobre indivduos do sexo masculino.9 MichaelGomez discute exemplos de mulheres muulmanas na Amrica do Nor-te, mas tambm observa que quase todos os muulmanos escravizadoseram homens.10 Tambm Sylviane Diouf observou que os africanos es-cravizados procedentes de reas muulmanas eram, em sua maioria,

    7 Sobre a composio de gnero e faixa etria na populao escrava deportada no sculoXIX, vide David Eltis e Stanley Engerman, Fluctuations in Sex and Age Ratios in theTransatlantic Slave Trade, 1663-1864, Economic History Review, 46 (1993), 308-23;e a anlise atualizada de David Eltis, Stephen D. Behrendt, David Richardson e HerbertS. Klein, The Trans-Atlantic Slave Trade: A Database on CD-ROM (Nova Iorque,1999).

    8 Todas as dez biografias na publicao de Curtin (Africa Remembered: Narratives by WestAfricans from the Era of the Slave Trade [Madison, 1967]) so de homens; a metade muulmana, um deles era livre. Logicamente, a compilao no se pretende representa-tiva do trfico de escravos. Contudo, esta coletnea representativa da predominnciade homens nos relatos que se conservaram. De mais a mais, os muulmanos estorepresentados desproporcionalmente sua real quantidade.

    9 Austin, African Muslims: Sourcebook.10 Michael Gomez, Exchanging Our Country Marks: The Transformation of African

    Identities in the Colonial and Antebellum South (Chapel Hill, 1998), 59-87.

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    homens.11 Esses estudos confirmam a minha prpria concluso, de quea maioria esmagadora dos africanos escravizados do Sudo central, in-cluindo Borgu, eram homens, a maioria dos quais foi para a Bahia noincio do sculo XIX.12 A jornada de Baquaqua encaixava-se neste pa-dro mais amplo, embora ele tenha ido para Pernambuco, e no para aBahia, e tenha seguido uma rota para a costa que o conduziu muito maispara oeste do que a maioria dos muulmanos escravizados do Sudocentral que acabaram chegando ao Brasil. A rota mais comum era atra-vs de Oyo, para Porto Novo ou Lagos.13

    Reconhecidamente, a odissia de Baquaqua foi incomum, levan-do-o de Borgu, no interior da frica ocidental, atravs do Daom, paraPernambuco, Rio de Janeiro, Cidade de Nova Iorque, Haiti, Estado deNova Iorque, Canad Oeste e Inglaterra. No foram muitos os africanosescravizados que alcanaram a Amrica, partindo de Borgu, e a rotaseguida por Baquaqua, na direo sul, para o Daom, no era muitopercorrida, nem mesmo pelos relativamente poucos que, efetivamente,se viram a bordo de navios rumo s Amricas. O que ressalta de umainvestigao da vida de Baquaqua uma imagem de etnicidade que tinhapouca importncia para ele, em sua auto-identificao, ou, pelo menos,em sua experincia pessoal, embora um sentido de origem tnica tenhapermanecido, quase que certamente, fixado em sua memria. Suas con-vices religiosas parecem ter ficado toldadas, como sugerido em suaconverso ao cristianismo, exceto pela conservao do seu nome muul-mano. No h nada de incompatvel com o estabelecimento e a manuten-o de uma dupla personalidade em matria de religio, e Baquaquahavia, anteriormente, demonstrado no apreciar os requisitos da ortodo-xia. Ele no havia sido um bom aluno, no apenas porque teve de estudarsob o severo controle de seu irmo mais velho, mas tambm porque gos-tava de beber, o que veio a ser a causa de sua queda e escravizao.

    11 Sylviane A. Diouf utiliza dados da vida de Baquaqua em seu estudo dos muulmanosescravizados nas Amricas; vide: Servants of Allah: African Muslims Enslaved in theAmericas (New York, 1998), 42-45, 53, 203.

    12 Lovejoy, Jihad e Escravido: As Origens dos Escravos Muulmanos de Bahia, Topoi,1 (2000), que atualiza Background to Rebellion: The Origins of Muslim Slaves inBahia, in Paul E. Lovejoy e Nicholas Rogers (eds.), Unfree Labour in the Developmentof the Atlantic World (Londres, 1994), 151-82.

    13 Robin Law and Paul E. Lovejoy, Borgu and the Slave Trade, African Economic History, 28(2000).

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    A vida de BaquaquaBaquaqua nasceu em Djougou, ao que tudo indica em meados dos anos1820, em uma famlia muulmana de proeminncia local. A data do seunascimento no conhecida, mas ele certamente nasceu antes de 1830,possivelmente em 1824.14 Quando criana, em Djougou, ele freqentoua escola alcornica, comeando muito jovem. Menino ainda, ele foi apren-diz de seu tio na manufatura de agulhas, e tambm parece ter sido prepa-rado para a vida no comrcio. Adolescente, ele, aparentemente, viajoupara a vizinha Dagomba, poca uma provncia sob o domnio axanti.No final dos anos 1820 e nos anos 1830, quando Baquaqua estava cres-cendo, Djougou era uma das cidades mais importantes entre o territrioaxanti e o Califado de Sokoto, e a sua narrativa confirma o papel por eladesempenhado. Durante a longa estao da seca, grandes caravanas, com1.000 ou mais mercadores e carregadores, e um nmero equivalente dejumentos, passavam por Djougou, freqentemente permanecendo l porum curto perodo. Eles transportavam nozes de obi e ouro dos axantis, eprodutos importados da Europa, indo da Costa do Ouro em direo aleste, e retornavam com sal, natro, txteis, especiarias, produtos de couro,gado, escravos, e outras mercadorias.15 A famlia de Baquaqua tinhagrande envolvimento com este comrcio. O irmo de sua me tinha pro-priedades em Salaga, o mais importante mercado do norte do territrioaxanti.16 Os detalhes sobre o comrcio, a geografia e a sociedade islmica

    14 159) Allan Austin conclui que Baquaqua nasceu em 1830; vide African Muslims inAntebellum America: Transatlantic Stories and Spiritual Struggles (New York, 1997)(doravante, Austin, African Muslims: Transatlantic Stories). Austin aparentemente ba-seia-se em A.T. Foss e E. Mathews, Facts for Baptist Churches (Utica, 1850), 392. Em1854, Samuel Moore estimou que Baquaqua tinha cerca de 30 anos, o que parece maisconsistente com os detalhes de sua narrativa; vide Law e Lovejoy, Biography ofMahommah Gardo Baquaqua, 9.

    15 A rota era uma das mais importantes na frica ocidental no sculo XIX; vide Paul E. Lovejoy,Caravans of Kola: The Hausa Kola Trade, 1700-1900 (Zaria, 1980); Lovejoy, Polanyis Portsof Trade: Salaga and Kano in the Nineteenth Century, Canadian Journal of African Studies,16 (1982), 245-78; e Denise Brgand, Commerce caravanier et relations sociales au Bnin:Les Wangara du Borgou (Paris, 1998). Eu no utilizei o relato de Baquaqua em meu estudosobre o comrcio de obi, e nem Brgand o utilizou em seu estudo sobre os mercadores Wangarade Borgu.

    16 Para uma discusso sobre os shurfa (hau: sharifai) e outros mercadores norte-africanos emBorgu e no territrio dos haus no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, vide Lovejoy:Caravans of Kola, 58-59, 68-69, 70-71, 73 e seguintes.

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    so crveis. A famlia de Baquaqua pode ser identificada com a comuni-dade muulmana de Djougou.17

    O pai de Baquaqua era de Bergu, o que, quase certamente, refe-re-se a Nikki, a cidade mais importante em Borgu, cujo rei era reconhe-cido por vrias outras cidades, inclusive Djougou, como a capital deuma confederao frouxamente centralizada. Ele era de linhagem ra-be e havia sido um prspero mercador. Portanto, deve ter-se identifica-do com a comunidade muulmana de Borgu, que era conhecida comoWangara e, por vezes, Dendi, falando, como primeira lngua, o dialetodendi de Songhay, mas tambm sendo capaz de falar, em muitos casos, ohau, a principal lngua comercial ao longo das rotas de caravanas en-tre o Sudo central e a bacia do mdio Volta, que, nesta poca, eramdominadas pelos mercadores haus de Kano, Katsina e de outras partesdo Califado de Sokoto. A me de Mahommah era de Katsina, um centrocomercial de importncia considervel poca. O irmo dela era umprspero ferreiro, na verdade o ferreiro do rei de Djougou, e possuauma casa em Salaga, a mais importante cidade mercantil no norte doterritrio axanti, onde mercadores e produtores axantis vendiam nozesde obi s caravanas haus. Como eu demonstrei em outra ocasio, ocomrcio de obi entre o territrio axanti e o Califado de Sokoto constituauma das mais importantes redes comerciais da frica ocidental no sculoXIX.18 Os parentes de Mahommah, pelo lado materno, tinham, muito pro-vavelmente, ligaes com uma das importantes casas comerciais de Katsinae, como Heinrich Barth registrou nos anos 1850, a maioria dessas famlias

    17 A concluso de Austin, de que Djougou era uma comunidade pr-mesquitas pareceinjustificada (African Muslims: Sourcebook, 646 n 10; African Muslims: TransatlanticStories, 162). improvvel que no tenha havido mesquitas em Djougou, e o prprioBaquaqua refere-se a mesquitas, quando fala em educao islmica, e usa a palavra dendique significa mesquita para descrever a rea de oraes fora de Djougou, onde eracelebrado o final do Ramad. Em sua discusso do Ramad e da prtica religiosa muul-mana, Baquaqua fazia referncia a um lugar de culto que era um ptio grande e aprazvel,pertencente ao meu av, meu tio era o sacerdote oficiante (Biography, 598). No ficaclaro se se trata ou no de uma referncia a um terreno privado, destinado s oraes, ou mesquita central, mas teria havido outros lugares como este em Djougou poca. possvel que o av de Baquaqua, que possua o ptio aprazvel, fosse um dos imsconstantes de um lista fornecida por Zakari Dramani-Issifou, mas, infelizmente, abiografia no fornece os nomes de seu pai, seu tio ou seu av.

    18 Lovejoy, Caravans of Kola. Vide tambm Brgand, Wangara du Borgou.

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    era Wangarawa.19 Foi relatado que Baquaqua fala muito da frica e...Sonha, freqentemente, que est visitando Kachna [Katsina], acompanha-do de um bom homem branco, como ele chama os missionrios, e sendogentilmente recebido por sua me.20 A famlia e suas ligaes matrimoni-ais com uma famlia igualmente proeminente de mercadores de Nikki eDjougou revelam, sob novos aspectos, a histria desta importante rotacomercial. A probabilidade de que sua me fosse de uma famlia Wangarawa reforada por causa da conexo com a produo de embarcaes, o fatode que o seu tio tinha uma casa em Salaga, e a aliana matrimonial comuma famlia dotada de fortes credenciais islmicas.21

    Quando era um adolescente, aparentemente no incio dos anos 1840,ele se juntou a um grupo de carregadores, transportando gros para afrente de batalha, perto de Daboya, no Gonja central, a oeste de Djougou.Baquaqua seguiu o seu irmo mais velho para Daboya, onde estava abase da faco leal a Kongwura Said Nyantaki, na prolongada disputasucessria. Seu irmo estava servindo como adivinho para o rei emDaboya, uma referncia, talvez, a Nyantaki, que estava contestandoa soberania. Baquaqua e muitos outros, que haviam trazido gros parao front, foram capturados, no que parece ter sido um ataque do exrcitoaxanti, confirmado por referncias importncia das armas de fogo nocombate. Felizmente para Baquaqua, seu irmo conseguiu resgat-lo.22

    19 Heinrich Barth, Travels and Discoveries in North and Central Africa (Londres e NovaIorque, 1859), A ligao matrimonial tem paralelo com a de Abu Bakr al-Siddiq, deTimbuktu e Buna; vide Ivor Wilks (ed.), Abu Bakr al-Siddiq of Timbuktu, in Curtin,Africa Remembered, 159-60.

    20 Do Christian Contributor and Free Missionary, citado em Austin, African Muslims:Sourcebook, 50-51.

    21 Para a derivao e o uso do termo Wangara, vide Brgard, Wangara du Borgu, 18-20;Paul E. Lovejoy, The Role of the Wangara in the Economic Transformation of theCentral Sudan in the Fifteenth and Sixteenth Centuries, Journal of African History, 19(1978), 173-93; Robin Law, Central, and Eastern Wangara: An Indigenous WestAfrican Perception of the Political and Economic Geography of the Slave Coast asRecorded by Joseph Dupuis in Kumasi, 1820, History in Africa, 22 (1995), 281-305; eIvor Wilks, Consul Dupuis and Wangara: A Window on Islam in Early Nineteenth-Century Asante, Sudanic Africa, 6 (1995), 55-72.

    22 Nyantakyi tinha se tornado o yagbum com a morte de Tuluwewura Kali no incio dadcada de 1830, mas uma aliana de Gbuipe, Bole e Wa desafiou sua pretenso. Nyantakyifoi forado a retirar-se para Daboya, que ele usou como base at a sua morte em 1844.Num esforo para resolver a disputa, 1841, os axantis enviaram um exrcito para oGonja central, mas sem resultados. Outras expedies foram enviadas em 1842-44. Nosestgios finais da disputa, a resistncia em Daboya assumiu as caractersticas de umarevolta anti-axanti, mas Nyantakyi foi capturado e executado pelo exrcito axanti em1844. Para maiores detalhes, vide Ivor Wilks, Asante in the Nineteenth Century(Cambridge, 1975), 276.

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    De volta a Djougou, ele entrou para o servio de um funcionriolocal, aparentemente o chefe de Soubroukou, localizado a alguns quil-metros de Djougou, na rota de caravanas a oeste, para o Volta.23 Ele eraum servial do palcio (tkiriku), uma posio normalmente reservada aescravos e, por vezes, a criminosos que buscavam proteo.24 A identi-ficao de Baquaqua com este termo levanta questes acerca do seustatus poca. Na verdade, no mais antigo relato sobre sua origem, mencionado que ele tinha sido um escravo, o que pode ser uma refern-cia a este perodo de sua vida. O relato diz que Baquaqua fora clandes-tinamente capturado e reduzido escravido em uma tenra idade, eque, por algum tempo, ele foi mantido nesta condio na frica ociden-tal, antes de ser transportado para o Brasil.25 Talvez isto possa serentendido como uma verso deturpada da verdade; afinal de contas, eletinha sido capturado em Daboya, embora, na ocasio, tenha sido res-gatado, e se os tkiriku tinham, tecnicamente, um status servil mesmoque no fossem, necessariamente, escravos em sua origem ele havia,realmente, passado algum tempo na escravido.

    Baquaqua, aparentemente, foi escravizado em Yarakeou (Zaracho),uma aldeia a oeste de Soubroukou, por razes que ele mesmo o con-fessa foram a sua prpria imprudncia, ao furtar de camponeses lo-cais, e o seu gosto pela bebida.26 Diversamente de sua experincia ante-rior em Gonja, desta vez ele no foi resgatado mas, em vez disto, foitraficado para o sul, ao longo de uma rota obscura, para o Daom e o seuporto, Uid (Whydah). Baquaqua diz que viajou em direo ao sul du-rante a estao da seca, permanecendo no Daom por um curto perodo,o que sugere que ele pode ter atingido a costa no final de janeiro, ou noincio de fevereiro.27 O bloqueio britnico anti-trfico tornava imposs-vel embarcar escravos em Uid, e assim eles foram transportados ao

    23 O ttulo do chefe do Soubroukou massasawa. Baquaqua refere-se ao massa-sa-bacomo o termo comum para reis, mas, na verdade, este era um ttulo especfico; da, anossa identificao da corte onde Baquaqua serviu como guarda-costas, e perto da qualele foi logrado e escravizado. Ns devemos esta informao a Alfa Houssanni Djarra eSani Alaza de Djougou; vide Law e Lovejoy, Introduction.

    24 Vide a discusso em Law e Lovejoy, Introduction.25 Foss and Mathews, Facts for Baptist Churches, 392.26 Law and Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, 35.27 Ibid, 36-37.

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    longo das lagunas, ou para leste, para Porto Novo ou Badagry, ou paraoeste, para Agou, onde as lagunas se abrem para o mar.28 provvelque Baquaqua tenha sido embarcado para oeste, atravs de Agou, por-que a laguna a leste de Uid no era, normalmente, navegvel durante aestao da seca, e Baquaqua afirma que viajou por gua. Segundo Duncan,escrevendo sobre o comrcio em Uid, em 4 de maro de 1845, prova-velmente apenas uma semana ou duas depois de Baquaqua ter sido em-barcado l,

    Pode ser interessante, para aqueles pouco familiarizados com oembarque de escravos, saber alguma coisa sobre a maneira comoisto feito. Quando um embarque de escravos est prestes aacontecer, os escravos so trazidos para fora, como na sua sadacostumeira para tomar ar, talvez de dez a vinte numa corrente,que presa ao pescoo de cada indivduo, a uma distncia decerca de uma jarda um do outro. Desta maneira, eles so postosem marcha numa fila nica, em direo praia, sem fazer idiado seu destino, sobre o qual eles, de resto, parecem um tantoindiferentes, mesmo quando vm a sab-lo. Todas as canoasso requisitadas. A pequena pea de tecido de algodo, atada silhargas do escravo, retirada, e o grupo em cada corrente conduzido, um aps o outro, at uma fogueira previamente ace-sa na praia. Aqui, ferros de marcar so aquecidos, e, quandoum ferro est suficientemente quente, ele mergulhado rapida-mente em azeite de dend, para impedir que fique grudado [sic] carne. Ele, ento, aplicado s costelas ou s ancas, e svezes at mesmo ao peito. Cada traficante de escravos usa a suaprpria marca, de modo que, quando o navio chega ao seu des-tino, pode-se facilmente verificar a quem pertenciam aquelesque morreram. Eles, ento, so empurrados para dentro de umacanoa, e obrigados a sentar-se no fundo, onde so arrumados da

    28 Robin Law, The Port of Ouidah in the Atlantic Community, 17th to 19th Centuries(History of the Atlantic System, 1580-1830, Hamburg, August 1999); e Law, TheEvolution of the Brazilian Community in Ouidah, Slavery and Abolition (a ser publi-cado). Segundo Forbes, atravs das lagunas, os escravos podem ser embarcados, ou emPorto Novo, &c., para o leste, ou Popoe, &c., para oeste, com muito maior segurana;vide British Parliamentary Papers, Correspondence relating to the Slave Trade 1849-50, Class B, inclosure 10 in no.9: Lieutenant Forbes, 5 de novembro 1849.

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    forma mais compacta possvel, at que a canoa chegue ao navio.Ento, eles so levados a bordo, e novamente postos na corren-te, at alcanarem seu destino, onde so entregues aos seusfuturos senhores ou aos agentes destes.29

    Duncan acompanhou os embarques de escravos ao longo da la-guna, de Ouind a Agou, l chegando em 5 de maro de 1845. EmAgou, tudo era azfama e agitao entre os traficantes de escravos.Eles haviam, bem tarde, na noite anterior, embarcado quinhentos escra-vos no curto espao de uma hora, embora a arrebentao seja sempremuito forte na costa. Infelizmente, dois dos escravos se afogaram du-rante o embarque. A inteno tinha sido a de embarcar seiscentos es-cravos....30 Neste caso, entretanto, o vapor Hydra, da Marinha Real,chegou e capturou o navio negreiro, levando os escravos libertados paraSerra Leoa. Este bem poderia ter sido o destino de Baquaqua, se suatransferncia para a costa tivesse sido adiada uma semana ou duas, emalgum ponto da rota. Ele tinha estado em Efau por vrias semanas, e,se ele estava no nico navio conhecido que partiu do Golfo do Benimrumo a Pernambuco naquele ano, ele teria deixado Agou no final defevereiro, para chegar ao Brasil em 30 de maro.31

    29 at mesmo possvel que ele estivesse em uma das canoas observadas por John Duncanem 18 de fevereiro de 1845, e, se no foi este o caso, o relato de Duncan certamentedescreve as condies sob as quais Baquaqua teria viajado, quase que simultaneamente;vide Duncan, Travels in Western Africa (Londres, 1847), vol. I, 142-43. Para umadiscusso, vide, vide Law e Lovejoy, Introduction.

    30 Duncan, Travels in Western Africa, vol. I, 143.31 A identificao do navio de Baquaqua com aquele que chegou a Macaro, Pernambuco, em 30 de

    maro de 1845, hipottica, j que foi feita por eliminao. Este o nico desembarque registra-do neste perodo, para o qual a provenincia africana no informada, sendo todos os demaisespecificados como oriundos de Angola ou de outros locais. Alm disto, a identificao dependeda presuno de que no houve outros desembarques, no registrados. Contudo, h um detalhecorroborativo: Baquaqua diz que ele foi levado para uma fazenda; e isto consistente com orelatrio consular, que registra que, como o navio tinha chegado inesperadamente, os escravosforam, inicialmente, escondidos nos engenhos adjacentes. Vide Cnsul H. Augustus Cowperpara o Conde de Abderdeen, Pernambuco, 2 de maro de 1846, in Correspondence on the SlaveTrade with Foreign Powers (Class B), 1 January - 31 December 1845 (1846) 290; anexo, 293. Onavio consta da base de dados de Du Bois (No. 3592), listado na categoria no especificado,no do Golfo do Benim (Eltis et al., Atlantic Slave Trade Database. Duncan tambm registroua partida de um navio de Agou em 4 de maro de 1845, mas este no pode ter sido o navio deBaquaqua, porque foi capturado pelos britnicos; vide Travels in Western Africa, I, 142. Oproblema com esta interpretao que o relato de Baquaqua sugere que o local de desembarqueera mais perto de Recife do que Macaro, localizado bem mais ao norte. Para uma discusso, videLaw e Lovejoy, Introduction.

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    No Brasil, ele foi, inicialmente, vendido para um padeiro que viviafora do Recife, aparentemente em Olinda. Segundo seu prprio depoimen-to, Baquaqua viveu sob condies muito duras por quase dois anos. Eletentou o suicdio, jogando-se no rio, observando a condio da mar, esta-belecendo, com isto, a localizao da cidade na costa, aparentemente pr-xima ao Recife. Por causa de embriaguez, absentesmo e, pelo menos,uma tentativa de fuga, ele foi, finalmente, vendido para fora de Pernambuco,para o Rio de Janeiro, algo no incomum, em se tratando de um escravocom seus antecedentes. Finalmente, ele foi vendido para Clemente Jos daCosta, um capito de navio e co-proprietrio do navio Lembrana.32

    Foto 2 - New York City Hall, onde Baquaqua se apresentou na Corte. Ilustraode 1838, in Pheleps Stokes Collection, N.Y. Public Library, also in CharlesLockwood, Manhattan moves uptown: an illustrated history, Boston, 1976, 2.

    32 Para o relato de Baquaqua sobre sua vida em Pernambuco e no Rio de Janeiro nos anos1840, vide Biography, 44-51. Vide tambm Mary C. Karasch, Slave Life in Rio deJaneiro, 1808-1850 (Princeton, 1987); Marcus J.M. de Carvalho, Os Caminhos doRio: Negros Canoeiros no Recife na Primeira Metade do Sculo XIX, Afro-sia, 19-20(1997), 75-93; e Carvalho, Liberdade: Rotinas e Rupturas do Escravismo, Recife,1822-1850 (Recife, 1998).

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    33 Clemente Jos da Costa um nome comum, e ele, at agora, no foi identificado,embora o Lembrana fosse, provavelmente, registrado no porto de Rio Grande (comu-nicao pessoal, Alberto da Costa e Silva). Antonio Jos da Rocha Pereira foi identifi-cado atravs de um inventrio aberto em 1871. Ao morrer, Antonio Jos tinha libertadotrs de seus escravos, que tinham atingido cinqenta anos de idade. Ele deixou o restantede seus escravos para suas trs filhas, o que foi contestado por sua esposa, Maria RosaLeite Pereira, e seu filho, Jos Maria Fernandes. (Gostaria de agradecer a ManoloFlorentino por esta referncia.)

    34 Um anncio para passageiros foi publicado no Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), em 17 deabril de 1847, instruindo os interessados a buscarem informaes no primeiro andar do n 93 daRua Direita. Eu gostaria de agradecer a Manolo Florentino por ter encontrado esta referncia aoLembrana. O navio chegou a Nova Iorque, aparentemente, em 27 de junho, aps uma viagemde 66 dias, de acordo com o New York Daily Tribune, 28 de junho de 1847. Em Nova Iorque, aJ.L. Phipps and Co. negociou com o carregamento de caf.

    35 National Anti-Slavery Standard, 29 de julho 1847. Vide, tambm, o relato do prprio Baquaqua(Biography, 52-56).

    Baquaqua passou, ento, a servir a bordo do navio, juntamente comoutro escravo, Jos da Rocha, que pertencia ao scio do Capito Costa,Antonio Jos Rocha Pereira,33 em duas viagens para o sul do Brasil,embarcando carne seca para transportar para o Rio de Janeiro. Essasviagens, aparentemente, datam do final de 1846 e incio de 1847. A via-gem seguinte de Baquaqua foi a sua passagem para a liberdade. Em 24de abril, o Lembrana, levando um carregamento de caf, zarpou paraNova Iorque, l chegando 66 dias depois, em 27 de junho.34

    Incitado por abolicionistas locais, e aulado por severos castigosfsicos, Baquaqua, junto com seu compatriota, pulou do navio, em buscada liberdade, que ele descreve de maneira to tocante em seu relatoautobiogrfico. O caso dos dois homens, agora identificados como bra-sileiros, atraiu a ateno da imprensa local em Nova Iorque. Um tercei-ro escravo, Maria da Costa, que cuidava da esposa do capito e do bebdesta, foi inicialmente envolvida pela oferta de liberdade, mas decidiuvoltar ao navio, ou por espontnea vontade, ou sob intimidao pararetornar. Baquaqua e Rocha foram postos na priso; no lhes seria fcilconservar sua liberdade.35 Seus amigos abolicionistas preencheram ummandado de habeas corpus e, em 22 de julho, o caso foi submetido aoJuiz Charles P. Daly, da Corte Distrital de Nova Iorque. Infelizmente,para os dois homens, Daly decretou que eles eram membros da tripula-o do navio e, por conseguinte, deveriam retornar, nos termos do trata-do de reciprocidade entre o Brasil e os Estados Unidos, concernente

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    desero de tripulaes de navios.36 O seu status de escravos no foium fator que pesou na deciso. Sua identificao como tripulao foiconfirmada em uma segunda deciso judicial.37 Na opinio do Juiz HenryP. Edwards, Daly estava correto em seu julgamento, e ele, por conse-guinte, deliberou por devolver os dois homens custdia do capito donavio. Esta deciso, por sua vez, seria objeto de apelao, mas, antesque um outro juiz pudesse ocupar-se do caso, Baquaqua e Rocha desa-pareceram milagrosamente da priso na Eldridge Street, na noite de 9de agosto. O carcereiro admitiu que havia cado no sono e deixado aschaves da cela sobre sua escrivaninha.38 No se sabe se o carcereirocompadeceu-se ou no de Baquaqua e de seu companheiro de fuga,mas o fato que os dois homens conseguiram chegar a Boston, passan-do por Springfield. Quatro semanas depois, Baquaqua e Rocha partirampara o Haiti, o pas onde os negros eram livres.39 Jos da Rocha,posteriormente, adotou o nome de David, mas Baquaqua recuperou oseu nome africano.40

    Considerando que Baquaqua no falava o crioulo haitiano, eleno pde encontrar muitas pessoas com quem conversar em Porto Prn-cipe.41 Portanto, ele experimentou alguma dificuldade em se manter, tra-balhando, por algum tempo, para um afro-americano que no o tratava

    36 National Anti-Slavery Standard, 15 de julho de 1847. Para a sentena de Daly, nosentido de que os fugitivos deveriam retornar ao navio, vide ibid., 22 de julho de 1847.Posteriormente, um segundo juiz, John W. Edmonds, e depois um terceiro, Henry P.Edwards, envolveram-se com o caso. Em 8 de agosto, Edwards reafirmou a decisoanterior, de que os fugitivos eram membros da tripulao do Lembrana e, portanto,estavam sujeitos conveno Brasil-Estados Unidos que obrigava os marinheiros aretornar aos seus navios.

    37 National Anti-Slavery Standard, 29 de julho 1847.38 New York Daily Tribune, 10 de agosto de 1847, e National Anti-Slavery Standard, 12 de agos-

    to de 1847.39 O New York Daily Tribune, 23 de agosto de 1847, citando a Gazette de Springfield, Mass.,

    informa que os homens haviam chegado cidade alguns dias depois, pela estrada de ferrosubterrnea, e prosseguiram na mesma rota, na manh seguinte, em seu caminho rumo terrada liberdade. O mistrio de como eles haviam escapado foi explicado pela alegao de queessa estrada passa diretamente por sob a priso em Nova Iorque, e que os prprios escravospassaram para baixo, atravs de um alapo de pedra, embarcando em um dos peculiares carrosque transitam regularmente por esta misteriosa estrada.

    40 Baquaqua faz referncia a um companheiro de infortnio, antes de ser admitido na Misso Batis-ta; vide Biography, 58.

    41 Ibid, 57-58.42 Sobre o perodo no Haiti, vide Foss e Mathews, Facts for Baptist Churches, 389-93; e Baquaqua,

    Biography, 57-60, e a discusso em Law e Lovejoy, Introduction.

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    muito bem, ou, pelo menos, Baquaqua pensava assim.42 Baquaqua, maisuma vez, entregou-se bebida, pelo menos at que o Reverendo WilliamL. Judd, da Sociedade da Misso Livre Batista Americana, interessou-se por ele. Ele se mudou para a residncia de Judd, e rapidamente ga-nhou o afeto deste, de sua esposa, da irm desta, e dos outros mission-rios. Em 1848, Baquaqua converteu-se e foi batizado.43

    A situao poltica do Haiti, enquanto Baquaqua l esteve, eramuito instvel; Faustin Soulouque subiu ao poder em 1847, esmagou aoposio, em 1848, com muito derramamento de sangue, invadiu o terri-trio espanhol vizinho na ilha de Hispaniola, reivindicando ser um liber-tador, declarou-se imperador em 1849, e contava com um contingente depolcia secreta para governar o pas.44 Havia um risco considervel deque Baquaqua, sendo um homem jovem, fosse recrutado para o exrcitohaitiano, e por isto, no final de 1849, ele retornou a Nova Iorque com aesposa de Judd e a irm desta, acompanhando-as para o norte do Estado,primeiro para Albany, depois para Milford, a cidade natal das duas ir-ms. De l, ele visitou Meredeth, no Condado de Delaware, em meio sMisses Livres, para ver se elas iriam assumir a tarefa de educar-me,quando elas, ao mesmo tempo, concordaram em faz-lo, estabelecendocontato para ele no New York Central College, em MacGrawville. Eletambm visitou outras cidades, onde abolicionistas eram cidados proe-minentes. A viagem de Baquaqua pela rede batista da Livre Vontadeapresentou-o a abolicionistas em Syracuse, Utica, e vrias pequenas ci-

    43 A converso de Baquaqua descrita pelo Reverendo Judd no Christian Contributor and FreeMissionary, citado em Baquaqua, Biography, 50-51; e Foss e Mathews, Facts for Baptist Churches,393. A Sociedade da Misso Livre Batista Americana era um produto do Movimento Batista da LivreVontade, que rompera com a Igreja Batista principal por causa da questo da abolio, somente vol-tando a unir-se organizao de origem em 1870. De acordo com a Review of the Operations of theAmerican Baptist Free Mission Society (Bristol, 1851), publicada por Edward Mathews, um presbterona Sociedade, que tinha sido impelido a deixar o Kentucky e havia se refugiado em Bristol, Inglater-ra, a Sociedade da Misso Livre Batista Americana fora fundada em 1843 e, subseqentemente,fundou sua misso no Haiti, e iniciou um trabalho missionrio entre escravos fugitivos no Canad,tendo, tambm, fundado o New York Central College. A Sociedade contava com o apoio de vriasigrejas abolicionistas, mas, de uma maneira especial, dos Batistas da Livre Vontade.

    44 James G. Leyburn, The Haitian People (New Haven, 1966), 91-93.45 Para detalhes sobre as viagens de Baquaqua no Estado de Nova Iorque, vide Law e Lovejoy,

    Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, 59-65. Observe que as cidades visitadas por Baquaquapodem ser encontradas em qualquer mapa rodovirio do Estado de Nova Iorque. McGrawvillemudou seu nome para McGraw nos anos 1890, quando a cidade de McGraw separou-se da muni-cipalidade circundante. (Eu gostaria de agradecer a Donald Wright por esta informao).

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    dades. Ele permaneceu no Estado de Nova Iorque durante quatro anos.45

    No Central College,46 Baquaqua matriculou-se no departamentoprimrio, mas estava destinado a uma carreira de missionrio na frica.Enquanto ele esteve l, o Central College cresceu at abrigar 200 estu-dantes, metade dos quais eram mulheres. Havia pelo menos dez negros,incluindo Baquaqua, algum com o sobrenome de Senegal, e Joseph

    Foto 3 - New York Central College, McGrawville, N.Y. (1848-61). New YorkCentral College Collection, Cortland County Historical Society, Cortland, N.Y.

    46 O Central College fechou suas portas em 1861, primordialmente porque seu benfeitorfoi falncia, situao a que a instituio acadmica no pde sobreviver. Para umahistria do Central College, vide Seymour B. Dunn, The Early Academies of CortlandCounty, Cortland County Chronicles, I (1957), 71-76; Albert Hazen Wright (ed.),Cornells Three Precursors: I. New York Central College (Studies in History No. 23,Pre-Cornell and Early Cornell VIII, Ithaca, 1960); e Catherine M. Hanchett, Dedicatedto Equality and Brotherhood: New York Central College, C.P. Grosvenor, and GerritSmith (trabalho apresentado na Madison County Historical Society, Oneida, NY, 16 defevereiro de 1989).

    47 Para referncias aos estudantes que frequentaram o Central College, vide C. M. Hanchett, NewYork Central College Students (Cortland County Historical Society, 1997). Vide, tambm, Catherine

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    M. Hanchett, After McGrawville: The Later Careers of Some African American Studentsfrom New York Central College (trabalho apresentado Cortland County HistoricalSociety, 26 de fevereiro de 1992);

    48 Para uma discusso sobre a conexo canadense, vide Slavery and Memory in an Islamic Society:Whose Audience? Which Audience? trabalho de minha autoria, apresentado na confernciaHistorians and their Audiences: Mobilizing History for the Millenium, York University, To-ronto, 13-15 de abril de 2000.

    49 Moore era um unitarista da Irlanda, que se estabeleceu em Ypsilanti, Michigan; vide The UnitarianMinisters of Ireland and American Slavery, The Liberator, 12 de maio de 1848; Samuel Moore,A Protest, in The Liberator, 29 de fevereiro de 1856; e Samuel Moore para William LloydGarrison, The Liberator, 4 de dezembro de 1857. O escrivo era W. David King. Esta informa-o est contida na cpia da biografia que me foi mostrada por Silvia Hunold Lara, e que estdepositada na Biblioteca Pblica de Detroit. A informao est escrita mo na capa, como sepode ver na ilustrao em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua.

    50 Baquaqua para George Whipple, McGrawville, 8 de outubro de 1853, e Baquaqua para Thomson,McGrawville, 26 de outubro de 1853 e 29 de janeiro de 1854 (Amistad Collection, Arquivos daAssociao Missionria Americana, Universidade de Tulane, New Orleans), reproduzido emLaw e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apndice 3.

    51 Christopher Fyfe, A History of Sierra Leone (London, 1962), 222-23, 246, 285.52 O Conselho Diretivo da Sociedade da Misso Livre Batista Americana decidiu, em fevereiro de

    1857 que era aconselhvel esperar at o prximo encontro de aniversrio, antes de dar incio aotrabalho; vide [New York] Free Mission Record, fevereiro de 1857, 13.

    Purvis, Robert Purvis e James Forten, filhos de famlias negras proemi-nentes da Filadlfia.47 No final de janeiro de 1854, ele deixou McGrawvilleindo para o Canad Oeste, embora no se saiba exatamente onde.48 Noobstante, ele tirou documentos de naturalizao, tornando-se, com isto,um sdito britnico, e, de algum modo, conseguiu fazer contato comSamuel Downing Moore, em Detroit, encomendou uma gravura, feitapor J. G. Darby a partir de um daguerretipo de Sutton, e publicou olivro em agosto. O livro foi registrado no cartrio do escrivo da CorteDistrital, Distrito de Michigan (EUA), em 21 de agosto de 1854.49

    Baquaqua tinha uma ambio preponderante de retornar suaterra natal, e tentou repetidamente encontrar meios de realiz-la. Elerecorreu Misso Mendi, que havia levado os membros sobreviventesdo Amistad de volta para Serra Leoa em 1841.50 A combatente misso,um produto da Associao Missionria Americana, teve seu contingentereforado no incio dos anos 1850, mas, aparentemente, no incluiuBaquaqua.51 Ele recorreu Sociedade da Misso Livre Batista Ameri-cana, em 1857, mas, aparentemente, nenhuma misso foi aprovada, porcarncia de fundos.52 No sabemos o que aconteceu com Baquaqua de-pois de 1857. Sabemos que ele esteve na Inglaterra, talvez em visita ao

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    Professor Allen e sua esposa. Sua preocupao principal foi sempre sualiberdade, o que cada vez mais se refletia em sentimentos abolicionistas.Ele foi para o Haiti porque se tratava de um pas onde os negros eramlivres. O que restou de sua correspondncia revela uma obsesso peloretorno frica, embora ele, realisticamente, observe que poderia noconseguir chegar l, e que poderia ter de permanecer no Canad ou naGr-Bretanha, mas, certamente, no nos Estados Unidos. Em 1854, de-pois de ter deixado os Estados Unidos, ele, no obstante, publicou seurelato autobiogrfico em Detroit, adquirindo, com isto, mais uma identi-dade como autor abolicionista, um homem de letras canadenses, que, atagora, no havia logrado reconhecimento.

    Mas como sabemos que Baquaqua veio de Djougou, e que os even-tos por ele narrados realmente aconteceram?53 Robin Law e eu fomos paraDjougou, levando a biografia, que era desconhecida l, a fim de examinartermos, identificar lugares e tambm para compreender as vrias descri-es, contidas no relato de Baquaqua, da vida na frica ocidental. Com oauxlio de vrias autoridades locais, incluindo Albarka Soulleymane, AlfaHoussane Djarra e Sani Alaza, ns identificamos vrios distritos de Djougou,a aldeia onde Baquaqua provavelmente trabalhou como servial do palcio,e vrios termos e lugares em Dendi, que so mencionados no texto.54

    Talvez a mais poderosa pea de informao seja o significado donome do meio de Baquaqua, Gardo, ou, mais exatamente, tanto em dendiquanto em hau, Gado, que o nome dado criana nascida logo emseguida a gmeos. Sem explicar o significado do nome, Baquaqua, defato, afirma ter nascido depois de sua me ter dado luz gmeos, quemorreram na infncia.55 A conservao desse nome revela a importnciado parentesco na histria de vida de Baquaqua, confirmando a memriade relacionamentos que um dia existiram. Assim como seu primeiro nomerevela sua progressiva associao com a memria de sua educaoislmica, seu segundo nome conecta-o sua famlia, e especialmente 53 Richard Brent Turner, por exemplo, conclui erroneamente que Baquaqua nasceu no

    norte de Gana; vide Islam in the African-American Experience (Bloomington, 1997),41.

    54 Entrevistas feitas em 7 de abril de 1999.55 Mahommah foi o que nasceu em seguida a gmeos (Biography, 26). Gostaramos de agrade-

    cer a Obare Bagodo pela informao sobre o uso do termo Gado como nome em Borgu. Sobreseu uso em hau, vide G. P. Bargery, A Hausa-English Dictionary and English-HausaVocabulary (Londres, 1934), 341.

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    sua me, que mencionada por diversas vezes, em afetuosa lembrana.Seu sobrenome, contudo, um mistrio. Como Baquaqua registra

    em seu vocabulrio, ba- um prefixo comum em Borgu, como no ttuloBa-Parakpe, um funcionrio em Djougou e Parakou, pelo menos, queservia de intermedirio entre as cortes e essas cidades e a comunidade deWangara. Havia tambm um ttulo de Borgu, yan kwakwa, que era ofuncionrio responsvel pela superviso dos caravanarais, e esta podeser uma derivao possvel, mas no se sabe se este ttulo era usado emDjougou.56 O nome que ele d para seu ttulo em Soubroukou o deChe-re-coo, ou seja, tkiriku, que era, normalmente, uma posio servilem Borgu, mas tambm podia incluir criminosos tentando escapar dajustia, alistando-se, para isto, como serviais do palcio.57 Portanto, seBaquaqua era, realmente, um tkiriku, isto provavelmente significa, ouque ele foi escravizado e deixou de explicar tal condio em seu texto, ouento que ele foi admitido no servio por outros motivos, que tambmno foram explicados. De qualquer maneira, o uso do termo no pareceestar de acordo com a sua alegao de ser um homem livre e, certamente,levanta a possibilidade de que existam outros detalhes que ele optou porsuprimir.

    O nome Baquaqua tambm soa como hau, a lngua de sua mee de seu tio. O prefixo ba- comum nas formas singulares de muitostermos que denotam lugar de origem, tais como Bakano, Bakatsini,Bazazzau ou Bazamfara (algum de Kano, Katsina, Zaria ou Zamfara,respectivamente), ou etnia, tais como Bahaushe, Bayaraba ou Baagali(para hau, iorub ou agalawa), mas kwakwa ou kwakwa no serefere a nenhum lugar, nem a uma designao tnica conhecida. Perma-nece um significado oculto no nome de Baquaqua, o que, por si s, indicativo da dificuldade em se avaliar identidades.

    Consideremos a identidade que revelada na biografia. Primei-ro, o vocabulrio fornecido por Baquaqua, em seu livro, dendi, que era

    56 Kuba, Wasangari und Wangara, 336; e Musa Baba Idris, The Role of the Wangara inthe Formation of the Trading Diaspora in Borgu, Conference on Manding Studies,SOAS, Londres, 1972.

    57 Jacques Lombard, Structures de type feodal en Afrique noire. Etude des dynamismes interneset des relations sociales chez les Bariba du Dahomey (Paris, 1965), 112; Yves Person, Zugu,ville musulmane, Fonds Person, Bibliothque de Centre du Recherches Africaines, Paris.

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    a lngua da comunidade Wangara de Borgu, mas ele tambm teria co-nhecido a lngua do campesinato, o gurma, talvez tambm o baatonu, alngua local no Borgu central.58 Apesar de no ter sido um bom alunoquando criana, ele, evidentemente, aprendeu algo do rabe, embora nomuito bem, se as trs palavras em uma de suas cartas remanescentes servi-rem como prova de sua fluncia. As palavras no foram escritas por umamo treinada. Baquaqua, aparentemente, estava tentando escreverbismillah al-rahman, mas s conseguiu um truncado bismillah al-ra[hman], com a parte entre colchetes omitida.59 No obstante, ele tinhaalguma facilidade para lnguas, tendo at mesmo aprendido algum fon(efau) no Daom, e comeado a aprender o portugus a bordo do navio.

    O que teria sido de Baquaqua se ele no tivesse sido resgatado emDaboya, quando jovem? Neste caso, quase certo que a escravizaoteria implicado em sua ida para o territrio axanti. improvvel que eletivesse sido vendido para o trfico atlntico, embora, no final dos anos1840, alguns escravos do sexo masculino tenham sido comprados naCosta do Ouro pelos holandeses, para recrutamento no exrcito colonialna Indonsia.60 Se Baquaqua no tivesse sido resgatado, o exrcito con-quistador axanti, provavelmente, o teria levado para o territrio axanti,onde ele teria sido identificado como um ndonko, um escravo originriodo norte, em territrio axanti e na sociedade ac, mais ampla, distinto deum escravo de origem ac.61 Porque Baquaqua foi resgatado, evitou-seesse destino, o qual, era, contudo, uma possibilidade real.

    Sua escravizao fora de Djougou redefiniu, novamente, a suaidentidade. No sul, ele teria sido chamado de bariba, um termo comum

    58 Baatonu (pl. baatombu) o nome nativo para o povo de Borgu, embora, estritamentefalando, Djougou estivesse a oeste das possesses Borgu, mas, no obstante, pagandotributo a Nikki. Bargawa (povo de Borgu) o nome hau para o povo e a regio, enquantoBariba o termo ioruba e daomeano; para um sumrio desses termos, vide Law e Lovejoy,Borgu and the Atlantic Slave Trade.

    59 Cartas datadas, McGrawville, 28 de outubro de 1853; e 29 de janeiro de 1854 (Arquivos AMA,Centro de Pesquisas Amistad, Tulane); e reproduzidas em Law e Lovejoy, Biography ofMahommah Gardo Baquaqua, apndice 3.

    60 Entre 1836 e 1842, os holandeses compraram 2.035 homens jovens, dos quais 1.985 foramenviados para as ndias Orientais, e 50 para as ndias Ocidentais, para serem treinados comosoldados. Outros 455 escravos foram comprados entre 1858 e 1862, para serem embarcadospara a sia. Vide Joseph R. La Torre, Wealth Surpasses Everything: An Economic History ofAsante (Tese de Ph.D., University of California at Berkeley, 1978), 415.

    61 Sobre escravido axanti, vide Akosua Adoma Perbi, A History of Indigenous Slavery in Ghanafrom the 15th to the 19th Centuries (Tese de Ph.D., University of Ghana, 1997).

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    entre os iorubas e no Daom, aplicvel ao povo de Borgu. Parece claro,a partir de sua descrio, que havia alguma inteno de mant-lo noDaom, como um dos seus compatriotas, Woru, havia sido mantido emUid. De mais a mais, havia outros muulmanos escravizados no Daom,tais como aqueles recrutados pelo forte francs em Uid.62 Os muulma-nos desta regio eram chamados de mals e, se a religio de Baquaquafosse reconhecida, ele poderia tambm ter sido descrito por este termo.63

    Tais escravos eram comuns na Bahia, o destino mais freqente para aspessoas do Golfo do Benim no sculo XIX. Entretanto, desde a Revoltados Mals na Bahia, em 1835, escravos muulmanos no eram maisdesejados,64 e talvez tenha sido esta a razo por que o navio de Baquaquafoi para Pernambuco, em vez de ir para a Bahia, embora no seja poss-vel determinar se havia outros muulmanos a bordo. Contudo, ser reco-nhecido como mal ainda no era desejvel, e assim, a identidade muul-mana de Baquaqua pode muito bem ter sido suprimida.65

    No Rio de Janeiro, a identidade de Baquaqua ficou ligada do seusenhor. Seu nome, Jos da Costa, fornecia uma tal ligao, como aconte-cia com Maria da Costa e Jos da Rocha, cujos nomes, de forma similar,indicavam os seus respectivos donos, Clemente Jos da Costa e seu scioAntonio Jos da Rocha Pereira. Baquaqua tinha comeado a aprender oportugus durante a travessia do Atlntico, e certamente aprendeu a falara lngua fluentemente durante os seus difceis dias em Pernambuco. Umentendimento, pelo menos nominal, do catolicismo tinha sido imposto aesses escravos, o que tambm est implicado nos nomes que foram atribu-dos a esses indivduos. Na poca, Baquaqua era tanto um escravo perten-cente ao capito do navio, como tambm um membro da tripulao, eassim, ele foi identificado, em Nova Iorque, como brasileiro.66 Ele, pro-vavelmente, pensava em si mesmo como um muulmano, a despeito da

    62 Law e Lovejoy, Borgu and the Atlantic Slave Trade.63 Para uma discusso sobre os mals, vide Pierre Verger, Trade Relations between the Bight of

    Benin and Bahia 17th 19th Century (Ibadan, 1976).64 Joo Jos Reis, Slave Rebellion in Brazil: The Muslim Uprising of 1835 in Bahia (Baltimore,

    trad. Arthur Brakel, 1993).65 Sobre a subseqente represso aos muulmanos, vide Rosemairie Quiring-Zoche, Glaubenskampf

    oder Machtkampf? Der Aufstand der Mal von Bahia nach einer islamischen Quelle, SudanicAfrica, 6 (1995), 115-24.

    66 National Anti-Slavery Standard, 2 de setembro de 1847.

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    introduo f crist.Como o seu relato deixa claro, a Baquaqua foram atribudas outras

    identidades aps a sua fuga da priso em Nova Iorque. Como um fugitivo,ele desapareceu misteriosamente, indo para o Haiti, mas, nos tempos dif-ceis que passou l, ele era claramente um forasteiro, algum que no con-seguia entender o crioulo haitiano. Ele viveu no Haiti por dois anos, con-vertendo-se ao cristianismo, e ento voltou para os Estados Unidos, paratornar-se um estudante e um abolicionista.67 Ele foi registrado pelo censode 1850, nos Estados Unidos, como um estudante de vinte anos de idade,do Central College.68 Embora ele confessasse que a lngua inglesa, paramim, tem sido muito difcil de entender e de falar, ele dominava o inglsnum grau considervel, como sugerem as suas cartas.69 A biografia per-tence, claramente, ao gnero abolicionista e tem um foco missionrio, masno se sabe se Baquaqua era suficientemente convincente, para seus ben-feitores, com um candidato adequado ao trabalho missionrio. Ele noparece ter atingido a frica atravs de canais missionrios, pelo menosno em 1857.70 Ele no aparece em nenhuma das misses na frica oci-dental, no final dos anos 1850 e incio dos anos 1860.

    A histria de vida de Baquaqua fornece elementos acerca do im-pacto psicolgico da jornada ao longo das rotas escravistas sobre umjovem homem adulto, cuja conscincia que vai se modificando desua prpria situao est documentada num nvel que raro se encon-trar. O sentido que Baquaqua tem de si mesmo, enquanto pessoa, e a suarelao com uma comunidade mais ampla podem, tambm, ser decifra-dos at certo ponto, como o podem as vises que os outros tinham dele.Neste caso particular, os detalhes fticos tornam possvel situar a identi-ficao tnica num contexto histrico especfico. A identidade deBaquaqua era, na verdade, situacional e particular. Enquanto fatores

    67 Ele tambm afirma, na biografia, que no era cristo antes de sua converso no Haiti,mas isto pode refletir a atitude de muitos protestantes radicais, de que o catolicismo no o real cristianismo. Certamente, em Pernambuco, ele tinha de comparecer a precesregulares, conduzidas por seu amo, e tambm foi exposto aos rudimentos do catolicis-mo.

    68 Ele foi registrado em Cortlandville, que inclua McGrawville.69 Carta de 8 de outubro de 1853 (Arquivos AMA, Centro de Pesquisas Amistad, Tulane), reprodu-

    zida em Law e Lovejoy, Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apndice 3.70 [New York] Free Mission Record, fevereiro de 1857, 13.

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    tnicos, religiosos e outros influenciaram o seu sentido de identidade e oseu relacionamento com sua comunidade, ele tambm veio a se identifi-car com a dispora e com a busca do retorno sua terra natal. Estabiografia mostra que a identificao tnica e religiosa s faz sentido numcontexto histrico, e no em forma isolada e essencialstica.

    Metodologicamente, a abordagem biogrfica revelada na histriade vida de Mahommah Gardo Baquaqua sugere que informaes isoladase dispersas podem vir a ser reunidas, formando a carne sobre os ossos nusdas identidades das vtimas da escravido.71 A histria de vida de Baquaquarevela muitas camadas de identificao, que ficam se deslocando ao seremreinterpretadas em diferentes contextos. Em um nvel, esto as lnguas queele conhecia, comeando com o dendi, o rabe, provavelmente o hau e opila-pila (a lngua do campesinato local), e um conhecimento superficialdo fon. Ele certamente identificava-se como muulmano e como um habi-tante de Borgu, na verdade, especificamente de Djougou. Mas ele tambmpensava em Katsina como um lugar de origem, porque sua me e a famliadesta eram de l. Suas conexes mercantis, com sua estrutura corporativae suas implicaes de classe, refletiram-se na sua educao precoce, aindaque fracassada, e nas oportunidades que lhe foram oferecidas atravs dasligaes de seus pais. Sua identidade, como revelada nas fontes dispon-veis, estava ligada sua idade, ocupao, gnero, famlia, classe, religioe lngua. Sua reduo ao status de escravo no alterou, inicialmente, a suaidentidade, embora, como indica o seu primeiro cativeiro, os indivduospossam ocultar suas identidades na esperana de alcanar a liberdade,como fez Baquaqua quando seu irmo fingiu no o conhecer, mas, noobstante, arranjou o seu resgate.

    Quando Baquaqua foi escravizado uma segunda vez, ele no ti-nha motivos para acreditar que no seria, mais uma vez, resgatado. Suanarrativa nos possibilita acompanhar a transformao da viso que eletinha de sua situao e, com isto, do seu sentido de identidade. Ele regis-tra o momento em que desistiu da esperana de vir a ser resgatado. Men-ciona o ltimo compatriota que reconheceu. Ns o seguimos de um donopara outro, ao longo das rotas escravistas da frica, atravs do Atlnti-

    71 Lovejoy, Biography as Source Material.

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    co, e do nordeste do Brasil para o Rio de Janeiro. Durante esta tristejornada, ns o vemos despido de sua identidade como um ser social, nasformas que foram enfatizadas por Orlando Patterson.72 Ainda em Per-nambuco, ele fazia parte de uma minoria entre os escravos que haviamsido trazidos da frica, porque a maioria deles tinha vindo de Angola, eno do Golfo do Benin. Sob este aspecto, Pernambuco era diferente daBahia, que tirava quase todos os seus escravos recm-importados doGolfo do Benin, e onde os muulmanos, tais como Baquaqua, eram co-nhecidos como mals, mas cuja atratividade havia desaparecido com aRevolta de 1835.73 No caso de Baquaqua no seria incomum que elepudesse ter sido identificado como mina, ou mesmo jeje, conside-rando a sua chegada, vindo do Golfo do Benin e, embora os minas cons-titussem uma minoria distinta em Pernambuco, e, na verdade, tambmem Salvador e no Rio de Janeiro, minas eram encontrados em quantida-des desproporcionais entre os escravos envolvidos com o comrcio derua, especialmente o de gneros alimentcios. Baquaqua pode ter sidoposto a servio de um padeiro por causa dos esteretipos sobre a perciacomercial dos escravos procedentes do Golfo do Benim. De qualquermodo, Baquaqua foi posto a vender po a varejo, uma vez que ele sabiacontar at cem, em portugus, podendo, assim, trocar o dinheiro.

    Baquaqua sofreu uma transformao que refletia a condio dosescravos nas Amricas, na qual a auto-identificao e a identificaopela classe dominante dos senhores de escravos fica, com freqncia,obscurecida nas fontes. Por conseguinte, nem sempre fcil distinguirentre esteretipos, autopercepo e falhas de comunicao. Embora asdesignaes Borgu, Bariba e Barba fossem conhecidas nas Am-ricas, este no era um rtulo tnico comum, e mais provvel que eletivesse sido identificado como mina, pelas razes acima indicadas. Napoca em que estava no Rio, o principal distintivo que ele usava era o deseu senhor, que lhe forneceu um verniz nominal portugus, e, de fato,catlico, como Jos da Costa, embora ele, mais tarde, diga que, nessapoca, ele no era um cristo. Ele, provavelmente, j tinha o nome deJos, mas no o sobrenome da Costa, e quase certamente no era conhe-

    72 Orlando Patterson, Slavery and Social Death: A Comparative Study (Cambridge, Mass.,1982).

    73 Reis, Muslim Uprising; Lovejoy, Jihad e Escravido.

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    cido pelo nome de Mahommah Gardo Baquaqua, que revelava suasorigens muulmana e africana.

    Como o seu nome portugus indica, Jos da Costa tinha sido ex-posto ao cristianismo, mas alega ter se convertido apenas em 1848. Eleabandonou o seu nome brasileiro no Haiti, se no antes, em Nova Iorque,mas certo que as primeiras referncias a ele, feitas em cartas do Reve-rendo Judd, da sua esposa e da irm desta, mencionam apenas o seunome muulmano, Mahommah. A partir de outubro de 1847, pelo me-nos, ele passou a ser conhecido como Mahommah Gardo Baquaqua,mesmo quando se apresentava como cristo, assinando suas cartas comum seu irmo em Cristo.74 Quando chegou, pela primeira vez, aMcGrawville, ele estava vestido como um muulmano, de acordo comuma notcia na Gazette local.75

    Esta fascinante histria de um homem jovem, suportando os hor-rores das rotas escravistas para as Amricas, e, no entanto escapando daescravido, como um fugitivo nos Estados Unidos e no Haiti, levantaquestes acerca dos estudos de identidade e etnicidade. Enquanto as v-rias identificaes, que inevitavelmente surgiram, podem, por vezes, serconceituadas como formas de etnicidade, a impresso preponderante quese tem a partir das experincias de Baquaqua a do seu emergente indi-vidualismo. Rtulos tnicos, distines de classe, convices religiosas,e outros meios de auto-identificao e de identificao grupal tinhamimportncia, mas talvez importem mais para os historiadores, como pis-tas na reconstruo da histria, do que para indivduos como Baquaqua,enredados na escravido racializada nas Amricas. Nos dez anos quetranscorreram, desde sua escravizao em uma aldeia fora de Djougou,em 1845, no corao da frica ocidental, at sua emigrao para o Ca-nad Oeste e a publicao do seu relato em 1854, este notvel jovememerge como um indivduo distinto, na verdade nico, com uma perso-

    74 Mahommah G. Baquaqua, McGrawville, N.Y., 26 de outubro de 1853 (Arquivos doAMA, Amistad Research Center, Tulane University), reproduzida em Law e Lovejoy,Biography of Mahommah Gardo Baquaqua, apndice 3.

    75 De acordo com o McGrawville Express (28 de maro de 1850), Baquaqua trajava uma tnicabranca e foi considerado como um africano de lngua rabe que tinha vindo do Egito; citadoem Catherine M. Hanchett, Charles Lewis Reason, 1818-1893: The Nations First Black Pro-fessor (trabalho apresentado na Unitarian-Universalist Church, Cortland, 19 de janeiro de 1986).

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    nalidade que sobreviveu experincia da escravido transatlntica atra-vs da perseverana e de uma considervel parcela de sorte.

    Concluso: a miragem da identidadeEm seu contexto histrico e cultural mais amplo, o relato de Baquaqua noscapacita a uma apreciao mais plena da morte social e do novo desper-tar espiritual que os escravizados podiam experimentar no curso de suamigrao transatlntica. O seu nome muulmano, que Baquaqua conser-vou enquanto cristo, reconfirmou a sua conscincia de seus antecedentesreligiosos e sociais, e sua insistncia em conservar o seu uso pode tercontribudo para o seu fracasso em convencer os crculos missionrios ainclu-lo nos planos de evangelizao da frica. Seu segundo nome, Gardo,ou, mais propriamente, Gado, e a relao com seus irmos, refletiam umaidentidade no aparente para os outros, mas que, no obstante, ligava-o memria de sua famlia, e assim mantinha o seu sentido de identidade emtermos de parentesco. Contudo, parece haver muita coisa oculta no relatode Baquaqua, inclusive outros detalhes sobre sua escravizao, ou a buscapor proteo, como sugere a descrio que ele faz, de si mesmo, comotkiriku, e o status servil que o uso deste ttulo implica. Tratou-se de ummal-entendido, ou de alguma outra confuso?

    De que forma Baquaqua conciliou a sua situao instvel sob ojugo da escravido e a busca da liberdade? O que pode ser aprendido, apartir da diversidade de fontes, incluindo sua autobiografia publicada,sobre a imagem que ele tinha de si mesmo, e como esta se transformou?Sua determinao em retornar frica, onde sua identidade parece terestado centrada, evidente. Se ele tivesse ido para Serra Leoa, teriapermanecido l? No est excluda a possibilidade que ele enxergasseuma misso para Serra Leoa como um degrau intermedirio. A possibi-lidade levanta a questo de quo provvel teria sido que Baquaqua sou-besse que, entre a populao de refugiados de Serra Leoa, havia umasubstancial comunidade muulmana de escravos libertos, alguns dos quaiseram realmente de Borgu, e muitos da terra dos haus, at mesmo deKatsina, a terra natal de sua me. Eu sugeriria que isto seria possvel, eat mesmo provvel, considerando a rede missionria e o fluxo de infor-

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    maes dentro dos seus circuitos. A sua identidade muulmana aindaambivalente, mas a conservao de seu nome, o seu desejo de voltar paracasa, e, na verdade, a sua histria, por si s, demonstram uma determi-nao em preservar a memria de tradies sociais, culturais e religio-sas, mesmo na ausncia de uma comunidade na qual elas pudessem en-contrar esteio. Em uma das cartas que se conservaram, ele escreveu umanica frase em rabe, o bismillah, no que parece ter sido um grito soli-trio, revelando, talvez, uma identidade que confundia a sua salvao daescravido com o cristianismo e seus mentores, mesmo que ele conser-vasse ambguas ligaes com a sua formao muulmana. No se sabese ele foi capaz de resolver esta aparente contradio entre sua heranacultural e religiosa e a afiliao a uma comunidade, por um lado, e aprogressiva individualizao que lhe foi imposta no ambiente crioulodas Amricas, por outro. Baquaqua desaparece dos registros histricosem 1857 e, a no ser que pesquisas adicionais consigam trazer luz maisinformaes sobre a sua interessante estada, pode no ser possvel pene-trar mais fundo nas vrias identidades reveladas pela odissia deste ho-mem singular.