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DO ARRISCADO GESTO ESPECULAR: O SI-MESMO ENTRE MIRAGENS, NO ESPELHO DE ROSA ABOUT THE RISKY, SPECULAR GESTURE: THE SELF BETWEEN MIRAGES IN THE MIRROR OF ROSA Joana Luíza Muylaert de Araújo* RESUMO: Este ensaio procura debater, por meio da análise de certos procedimentos narrativos, os modos de representação mimética no conto O espelho, partindo da hipótese de que o conto de Rosa reinterpre- ta o problema das relações entre o real e a ficção, fundamentado numa concepção própria da literatura como leitura da vida, em que a diferença ressalta na forma do humor e do paradoxo, refletindo a estranha, quase indizível “coerência do mistério geral que nos envolve”. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa, Narrativa, Mímesis, Duplo. ABSTRACT: is essay aims to discuss, through the analysis of certain narrative procedures, the ways of mimetic representation in the tale O espelho. e hypothesis is that this Rosa’s story reinterprets the relation between real and fiction, based in a particular conception of literature as the act of reading life itself, in which the difference appears under the form of humor and paradox and reveals “the coherence of the general mystery that covers us all”. KEY WORDS: Guimarães Rosa, Narrative, Mimesis, e double condi- tion. * Professora de Teoria Literária do Instituto de Letras e Lingüística da Universi- dade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-graduação em Letras-Mestrado em Teoria Literária. Doutora em Teoria Literária pela UFRJ. Bolsista de Produ- tividade em Pesquisa 2 (CNPq). Email: [email protected].

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  • DO ARRISCADO GESTO ESPECULAR: O SI-MESMO ENTRE MIRAGENS, NO ESPELHO DE ROSA

    ABOUT THE RISKY, SPECULAR GESTURE: THE SELF BETWEEN MIRAGES IN THE MIRROR OF ROSA

    Joana Luza Muylaert de Arajo*

    RESUMO: Este ensaio procura debater, por meio da anlise de certos procedimentos narrativos, os modos de representao mimtica no conto O espelho, partindo da hiptese de que o conto de Rosa reinterpre-ta o problema das relaes entre o real e a fico, fundamentado numa concepo prpria da literatura como leitura da vida, em que a diferena ressalta na forma do humor e do paradoxo, refletindo a estranha, quase indizvel coerncia do mistrio geral que nos envolve. PALAVRAS-CHAVE: Guimares Rosa, Narrativa, Mmesis, Duplo.

    ABSTRACT: This essay aims to discuss, through the analysis of certain narrative procedures, the ways of mimetic representation in the tale O espelho. The hypothesis is that this Rosas story reinterprets the relation between real and fiction, based in a particular conception of literature as the act of reading life itself, in which the difference appears under the form of humor and paradox and reveals the coherence of the general mystery that covers us all.KEY WORDS: Guimares Rosa, Narrative, Mimesis, The double condi-tion.

    * Professora de Teoria Literria do Instituto de Letras e Lingstica da Universi-dade Federal de Uberlndia, Programa de Ps-graduao em Letras-Mestrado em Teoria Literria. Doutora em Teoria Literria pela UFRJ. Bolsista de Produ-tividade em Pesquisa 2 (CNPq). Email: [email protected].

  • DO ARRISCADO GESTO ESPECULAR: O SI-MESMO ENTRE MIRAGENS, NO ESPELHO DE ROSA

    V-se agora porque a esquiva sempre um erro: ela sempre inoperante, porque o real tem sempre razo.

    Clment Rosset, O real e seu duplo.

    Que o homem a sombra de um sonho, referia Pndaro, skas nar nthropos; e vinda de outras eras ... Augusto dos Anjos.

    Guimares Rosa, Aletria e hermenutica, em Tutamia (Terceiras estrias)

    Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou annimo; o mais fundo dos meus pen-samentos no entende minhas palavras; s sabemos de ns mesmos com muita confuso.

    Guimares Rosa, Se eu seria personagem, em Tutamia (Terceiras estrias)

    IntroduoA questo proposta por Guimares Rosa, no conto O espelho, no nova. Fundamenta a literatura moderna, desde os romnticos, que deram incio ao questionamento da mmesis compreendida como semelhana em relao

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    a um referente externo s palavras e s imagens que, por pressuposto, o refletem. Singular a resposta devolvida ao leitor sob a forma de simples perguntas, como as que nos prope o narrador de O espelho ao final do conto: Voc chegou a existir? Sim? Mas, ento, est irremediavelmente destruda a concepo de vivermos em agradvel acaso, sem razo nenhu-ma, num vale de bobagens?.

    Que idias, que sentimentos, sobre a vida e a literatura, essas pergun-tas encerram? Guimares Rosa, o autor, narrador-protagonista de tantas estrias, acreditava seus escritos, seus depoimentos confirmariam? na indissociabilidade da fico e do real.

    No texto que se segue, ensaio alguns argumentos em defesa dessa hiptese. Ao contrrio do que pode parecer numa primeira leitura, O espelho no mero exerccio ldico sobre o arriscado gesto especular; a traio das imagens revela antes que os olhos so a porta do engano ou que o espelho, so muitos. Estamos, ao que parece, diante da afir-mao da diferena que se interpe entre a imagem e o seu referente: se os espelhos vrios recusam por longo tempo a identificao do narra-dor consigo mesmo, porque ele, at ento, no amava: para ver a si mesmo foi preciso renunciar ao visvel na superfcie, solido narcsica. Ver a si mesmo resultou da entrega amorosa, da alegria e da confiana no outro, parte de si que se desconhece. Atravs do mesmo espelho deformador, acolhendo esse outro to diferente, que se reataram as relaes entre o fora e o dentro, inseparveis, indiscernveis. Uma certa semelhana fez-se possvel, sem a excluso ou apagamento da diferena, mas tambm sem o apagamento da realidade, que na mmesis retorna com toda a sua fora de assombro e enigma.

    Depois de fracassadas tentativas, nosso narrador abandona por longo tempo a investigao de si mesmo. E essa renncia, paradoxalmente, que vai lev-lo (de volta?) sua irredutvel, inimitvel singularidade.

    Retomando o fio da meada, nesse espelho no temos, moda dos mo-dernos, um questionamento da mmesis e menos ainda o desencanto com o real que da resulta. Lemos nessa narrativa uma bem humorada descons-truo das muitas formas da iluso, entre elas a iluso de que os espelhos possam refletir outra coisa que a dissonncia. O singular, o nico, a vi-venciado no sem o sentimento do trgico. Humor ao trgico associado, em Rosa quase tudo termina bem; na sua literatura, como na vida, o real tem sempre razo, o mundo no um agradvel acaso, sem razo nenhuma,

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    num vale de bobagens, nele cabe a literatura, fico carregada do senti-mento do mundo, na sua trgica alegria.

    Em outras palavras, proponho neste artigo que a narrao de O espe-lho deva ser lida como uma potica afirmativa da mmesis, porque afirma-tiva da vida a que se entrelaa.

    ...eu no via os meus olhos.

    A assuno do eu pelo eu tem, assim, como condio fundamental, a re-nncia ao duplo, o abandono do projeto de apreender o eu pelo eu em uma contraditria duplicao do nico: eis por que o xito psicolgico do auto-retrato, no pintor, implica o abandono do prprio auto-retrato; como em Vermeer, de quem um dos profundos segredos foi representar-se de costas, no clebre O Ateli.

    Clment Rosset, O real e seu duplo.

    Conta a lenda que Tirsias foi punido com a cegueira, por ter visto Pa-las Atena banhando-se num rio. Ofuscado pela beleza divina, Tirsias no conseguiu desviar o olhar. Face a face com o que nenhum homem poderia ver sem perder a si mesmo nesse olhar, Tirsias perde a viso em seus olhos, ao mesmo tempo adquirindo o dom da profecia: torna-se o mais sbio den-tre os homens, aquele que, embora cego, decifra todos os sinais vindos do cu e os deste mundo; aquele que, embora cego, apreende a realidade toda, o passado, o presente e o futuro. (SFOCLES, 1998, p. 33).

    Diz o narrador de O espelho que Tirsias [...] j havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo no se visse... (ROSA, 1985, p. 66-67). Narciso, como se sabe, por no haver correspondido ao amor que por ele sentia a ninfa Eco, foi condenado por Afrodite a intermi-nveis tentativas para aproximar-se da imagem refletida nas guas de uma fonte, imagem pela qual se apaixonara sem saber que esse outro, desconhe-cido e inacessvel, era o reflexo de si mesmo. Narciso morre, encerrado no espetculo de sua prpria imagem, o que, ao contrrio do que se costuma pensar, no significa amar excessivamente a si prprio, mas ser dominado pelo fascnio de seu duplo. Narciso morre porque, vtima de uma espcie de cegueira, foi incapaz de ver e amar a si mesmo e ao outro.1

    1 Ver, a respeito, instigante ensaio de Clment Rosset, O real e seu duplo, 1998.

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    E o que ocorre com a viso do nosso narrador/Narciso? Suposta-mente por acaso, depara com a imagem terrvel de si mesmo, refletida por dois espelhos que, combinados, oferecem-lhe um estranho e des-torcido retrato:

    Eu era moo, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ngulo propcio faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradvel ao derradeiro grau, repulsivo seno hediondo. Deu-me nusea, aquele homem, causava-me dio e susto, eriamento, espavor. E era logo descobri ... era eu, mesmo! (ROSA, 1985, p. 67).

    Movido por essa inesperada e inexplicvel revelao, inicia ento a pro-cura do eu por detrs de mim tona dos espelhos, em sua lisa, funda lmina, em seu lume frio. (ROSA, 1985, p. 67). Primeiro por curiosidade desinteressada, como se tratasse de provar uma realidade experimental, depois por uma questo de sobrevivncia fsica e psquica, o fato que a procura de um rosto interno impe-se, imperiosa, na tentativa de superar a distncia entre a hedionda imagem percebida no espelho e a mais ou menos bela figura pressuposta.

    Mas, nas vrias tentativas para transverberar o embuo, a travisagem daquela mscara, (ROSA, 1985, p. 68), o que consegue enxergar no espelho so apenas interminveis mscaras, sucedendo-se umas s outras, num movimento deceptivo, constante, sem qualquer referncia, nem dentro nem fora do espelho. Na face vazia do espelho as imagens impunham a sua lgica, a lgica da repetio de uma ausncia:

    Quem se olha no espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ningum na verdade se acha feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal esttico j aceito. Sou claro? O que se busca, ento, verificar, acertar, tra-balhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusrio, mediante sucessivas novas capas de iluso. [...] Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente no tm fim. S eles paravam imutveis, no centro do segredo. Se que de mim no zombassem, para l de uma mscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente (ROSA, 1985, p. 67-68).

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    Mas no so, ainda, esses primeiros obstculos que impediriam o prota-gonista dessa experincia de prosseguir a travessia na direo da sua vera forma. Caador de meu prprio aspecto formal (ROSA, 1985, p. 68), assim define-se o narrador porque at ento (at o momento em que, mirando-se no espelho, nada v, nem mesmo os prprios olhos) acreditava, ainda que vaci-lante, numa existncia central, pessoal, autnoma (ROSA, 1985, p. 71), num rosto que, embora continuamente desfigurado pelo tempo, permaneceria n-tegro para alm do superficialmente visvel. Como tambm parecia acreditar no transcendente, no mistrio a que ele se refere logo no incio do conto2.

    O rosto percebido no espelho apenas um rosto externo, feito de di-versas componentes: para aceder a um suposto centro, seria preciso sub-met-las a um bloqueio visual ou anulamento perceptivo. (ROSA, 1985, p. 68-69). Enigma de dificlima decifrao, a exigir muita pacincia, renncia e sabedoria, ver a si mesmo implica um raro desprendimento das mais ca-ras iluses, incluindo as que se devem aos nossos precrios sentidos: Os olhos, por enquanto, so porta do engano; duvide deles, dos seus, no de mim. (ROSA, 1985, p. 66).

    Prosseguindo na tentativa de desvendar o mistrio de uma realidade instvel e incerta, o narrador/protagonista exercita o olhar no vendo as variadas componentes, passageiras e enganosas, do rosto que se apresenta mais evidente, mais imediato: o elemento animal, o elemento heredit-rio, as parecenas com familiares, o que se deveria ao contgio das pai-xes, o que, em nossas caras, materializa idias e sugestes de outrem; e os efmeros interesses, sem seqncia, sem conexes nem fundura. (ROSA, 1985, p. 69-70). O resultado desse despojamento de todas as mscaras que compem o rosto externo foi a percepo aguda de um insuportvel modo de ser labirntico. Aps meses sem mirar-se em qualquer espelho, retoma a experincia que com essas palavras relata:

    Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e no me vi. No vi nada. [...] Voltei a encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu no via os meus olhos. No brilhante e polido nada, no se me espelhavam nem eles! (ROSA, 1985, p. 70).

    2 Reporto-me ao transcendente. Tudo, alis, a ponta de um mistrio. Inclusive, os fatos. Ou a ausncia deles. Duvida? Quando nada acontece, h um milagre que no estamos vendo. (ROSA, 1985, p. 65).

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    Nada obtendo com a experincia de mirar-se, face a face, no espelho, em busca de um verdadeiro, estvel eu, indaga:

    [...] no haveria em mim uma existncia central, pessoal, aut-noma? Seria eu um... des-almado? Ento, o que se me fingia de um suposto eu, no era mais que, sobre a persistncia do animal, um pouco de herana, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influncias, e tudo o mais que na imperma-nncia se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seramos no muito mais que as crianas o esprito do viver no passando de mpetos espasmdicos, relampejados entre miragens: a esperana e a memria (ROSA, 1985, p. 71).

    Mas no pra por a a investigao. Nada parece paralisar esse caador de si mesmo, nem mesmo a quase evidncia de que tudo o que percebia como os vrios eus no passassem de miragens, iluses desfeitas pelo tempo, o mgico de todas as traies. Prudncia e sabedoria vm finalmente em seu auxlio. Mais uma vez, ao que parece, tambm por acaso, revive a experin-cia de se ver refletido no espelho. So bem diferentes, porm, as sensaes que lhe provoca a imagem estranha de si mesmo percebida do outro lado. quase indizvel a alegria experimentada diante do ainda-nem-rosto, pou-co a pouco se delineando sua frente. Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasio de sofrimentos grandes, de novo me defrontei no rosto a rosto. O espelho mostrou-me. (ROSA, 1985, p. 71-72).

    Relato de uma experincia do transcendente, nas palavras de quem es-creve o conto, O espelho evoca tambm a estria de Perseu que, amparado pelos deuses, sai vitorioso de arriscada aventura contra a morte, obtendo a cabea da Medusa, uma das trs Grgonas, figuras monstruosas, represen-tadas com o rosto hediondo, o olhar feroz e os cabelos cheios de serpentes e fitas. (BRUNEL, 1997, p. 250). Alm de monstruosa, entre o humano e o bestial, a Grgona sempre representada com o rosto encarando osten-sivamente o espectador que a observa (VERNANT, 1988, p. 39), figurao que expressa o poder da deusa de transformar em pedra aquele que, por acaso, por imprudncia ou por ousadia, a vir face a face.

    Conta o mito que apenas Perseu consegue escapar do perigo de ser pe-trificado, uma vez que, para decepar a terrvel cabea, no precisou olhar

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    diretamente para a Medusa, bastando mirar o seu reflexo no espelho. Como Perseu, esse que nos conta sua experincia com os espelhos tambm ergue-se ao final vitorioso, defrontando-se no rosto a rosto, em pressuposto reflexo imediato, mas com o auxlio do espelho, que lhe mostra afinal o seu rosto, metamorfoseado em flor pelgica, de nascimento abissal [...] rosti-nho de menino, de menos-que-menino, s. S. (ROSA, 1985, p. 72). Entre a experincia narcsica de quase total desfigurao e o final feliz em que se reencontra consigo mesmo, o que teria se passado com o nosso narrador?

    O julgamento-problema: Voc chegou a existir?

    Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despo-jara-me, ao termo, at a total desfigura. E a terrvel concluso: no haveria em mim uma existncia central, pessoal, autnoma? Seria eu um ... des-almado?

    Guimares Rosa, O espelho, em Primeiras estrias.

    O desfecho, quase enigmtico, diz muito, seno o essencial, sobre a po-tica roseana. O narrador sabe do abismo, ao menos aparente, entre a hist-ria que acabou de contar e o estranho, quase inexplicvel final. Justifica-se dizendo que um mau contador, [...] pondo os bois atrs do carro e os chifres depois dos bois. (ROSA, 1985, p. 71). Mas trata-se de um recurso de retrica muito bem-sucedido, se a estria for lida na forma de uma ane-dota ou de uma adivinha, no literalmente, mas em seu supra-senso, por entre as tortas linhas do texto, conforme nos sugere o escritor no famoso conto/prefcio3.

    Se confirmada a hiptese proposta na introduo desse artigo, o fio de Ariadne que conduz o protagonista na busca de si mesmo, de seu ros-to, de um rosto, de um ainda-nem-rosto a confiana no sentido dessa busca. De uma presumvel simples pergunta: Voc chegou a existir?, fez-se um conto. E se escrever no impor uma forma de expresso a uma matria vivida, mas um processo, uma passagem de vida que atravessa o vivvel e o vivido, como quer Deleuze, podemos pensar os relatos de Rosa como indissociveis de suas experincias, sentimentos e valores, sua

    3 Aletria e hermenutica. In: Tutamia (Terceiras estrias). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1979. p. 3-12.

    DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: Crtica e clnica. Trad. Peter Pl Pelbart. So Paulo: Ed. 3, 1997. p. 11-16.

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    escrita inseparvel de suas leituras, seus narradores inseparveis de seus personagens. Nesse sentido, ainda, que podemos falar que talvez no haja melhor terico que o prprio escritor, as narrativas seriam teorias/leituras cifradas, e vice-versa, tudo pode muito bem se tratar de modos retricos de se escrever a vida, no exatamente sobre a vida. Mas, antes de tentar resolver o problema do desfecho, abriremos um parntese para a pergunta, nada simples, a respeito da existncia. Tudo indica, dissemos acima, que ela a razo de ser do conto.

    Em conhecido ensaio sobre a questo do real, Ducrot analisa a ambigi-dade daquilo que se costuma denominar o referente. Por um lado, o refe-rente deve ser exterior ao discurso, constituindo um mundo ou um objeto com realidade prpria e distinta do enunciado que pretende descrev-lo; por outro, esse mesmo referente, sendo chamado pelo discurso, fica desse modo nele inscrito, adquirindo existncia, para os sujeitos em relao, ape-nas atravs do prprio discurso. A conseqncia uma incmoda indistin-o sempre ameaando, no domnio do discurso, a oposio entre aquilo que falamos (o referente) e o que dizemos dele. A dicotomia implica o risco da indistino e com esta ltima surge o problema do equvoco entre pala-vras e coisas, entre sentido e referente.

    Mas a referncia percebida como um problema vincula-se a uma con-cepo particular do referente, baseada na idia de que ele constitudo por seres individuais (aquilo que Aristteles chamava de substncias) com exis-tncia autnoma em relao s palavras. Esta noo, afirma Ducrot, talvez seja pertinente quando se trata de verificar e definir as condies de verda-de dos enunciados: estamos, neste caso, no domnio da lgica, comanda-da pela preocupao de fundamentar juzos de verdade. (DUCROT, 198, p. 37). No entanto, para contornar a oposio entre o referente, enquanto exterior ao discurso e o sentido, enquanto interior ao discurso, preciso recorrer a uma concepo global e totalizante da referncia.

    Dentro dessa outra perspectiva, desloca-se o problema, que passa a con-sistir no mais em saber se um discurso verdadeiro ou no (ou dito em outras palavras: se as palavras referem-se adequadamente s coisas que des-crevem), mas em verificar o modo como o referente descrito. Neste caso, aquilo de que se fala, isto , o referente, no propriamente o ser descrito pela expresso referencial, mas esse ser tal como descrito, aquilo que apa-rece na descrio. (DUCROT, 198, p. 3; o grifo do autor). E o que aparece na descrio no so os seres individuais ou substncias, mas

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    as personagens criadas dentro do discurso. (DUCROT, 198, p. 3). No se confundindo com o que se costuma chamar de objeto real, o referente ento o objeto do discurso, ou ainda, o sentido que se atribui ao objeto. pergunta: qual o referente de um dado discurso? substitui-se outra: qual a pretenso de referncia por parte do discurso? A noo de referente adquire, deste ponto de vista, o sentido de mundo construdo, tornando-se inadequada a abordagem dos problemas da referncia a partir de um conhecimento prvio da realidade, ou mesmo de um modo mais geral, a partir de um conhecimento prvio do universo eventualmente imaginrio, ao qual o discurso faz aluso. (DUCROT, 198, p. 37).

    Compreendida como produo discursiva, a natureza do referente no deve ser confundida com o que se chama objeto real (DUCROT, 198, p. 3), o que tornaria irrelevante a pergunta acerca da existncia, para alm do discurso, dos seres ou objetos nomeados na parte dita referencial do enunciado (DUCROT, 198, p. 3); no excluindo entre esses seres ou objetos a prpria vida humana.

    Mas, para o narrador de O espelho, exatamente essa a pergunta que fundamenta sua narrativa, que lhe confere sentido. Para uma questo que envolve a existncia, os sentimentos e suas muitas implicaes ticas, se que se pode falar de uma resposta, teramos uma resposta lacunar e eva-siva, na forma de outra enigmtica interrogao. Nessa, como sempre nas estrias de Rosa, no existe o ponto final; no reencontro do homem com o menino h ainda mais espanto, tanto mais desconhecimento quanto mais comoo, amor e alegria. O final feliz no dispensa riscos, a lgica em jogo a do paradoxo que nos constitui, nossos textos e nossas vidas. A literatura no mero jogo de palavras, a vida no apenas um agradvel acaso; am-bas, intrincados enigmas que esperam ser decifrados. Leia-se ao final:

    Ser este nosso desengono e mundo o plano interseco de planos onde se completam de fazer as almas? [...] Sim? Mas, ento, est irremedia-velmente destruda a concepo de vivermos em agradvel acaso, sem razo nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinio, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da cincia, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados, Sim? (ROSA, 1985, p. 72).

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    A literatura de Rosa nos leva, pois, de volta ao real. Ao real e seu no-senso, ao real e seu humor, ao real e suas tragdias.

    E nada mais frgil do que a faculdade humana de admitir a reali-dade, de aceitar sem reservas a imperiosa prerrogativa do real, nos diz Clment Rosset (1998, p. 11). Frgil por algumas razes: porque o real nico, insubstituvel, porque insubstituvel finito, logo sua morte inevitvel. As astcias para tentar se esquivar do real so inmeras. Dentre elas, Rosset destaca trs: a iluso oracular, a iluso metafsica e a iluso psicolgica. O homem pode acreditar-se eterno ao imaginar o seu duplo. Clment Rosset menciona um estudo de Otto Rank, em que este relaciona o homem e seu duplo ao ancestral medo da morte. Sem refutar propriamente essa relao, Rosset aponta para uma outra componente implicada na questo. Nas suas palavras, o que angustia o sujeito, muito mais do que a sua morte prxima, antes de tudo a sua no-realidade, a sua no-existncia (1998, p. 78).

    Essa exatamente a questo de Rosa no relato da experincia com o espelho. Obcecado pelo encontro de si consigo mesmo, o persona-gem/narrador retorna sempre ao espelho, que no entanto lhe devolve to-somente aquilo que todo espelho pode oferecer: no o que seria o eu propriamente, mas o outro, o estranho, o seu inverso. E como ltima conseqncia desse obstinado retorno ao espelho, suspeita, aterroriza-do, que o que se me fingia de um suposto eu (ROSA, 1985, p. 72), talvez no fosse coisa alguma, nada.

    No se pode saber ao certo quanto tempo se passou entre a terrvel concluso e o feliz reencontro consigo mesmo. A respeito diz, vagamente o narrador, antecipando o final de seu captulo, que se trata de sucessos muito de ordem ntima, de carter assaz esquisito. Experincias que s po-dem mesmo ser contadas por tortas linhas, repletas de evasivas, reticncias, interrogaes. Abandonando toda sorte de investigao, renunciando a apreenso de si mesmo na superfcie dos espelhos, nosso narrador, final-mente, enxergou o que sempre fora possvel mas ele no sabia: viu-se nico e diferente de tudo, diferente do que imaginava ser, viu-se algum, quase nada, o tnue comeo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em dbil cintilao, radincia. (ROSA, 1985, p. 71). O que nesse espelho se reflete apenas uma ausncia, o bastante para sustentar a vida e suas estrias.

  • Do arriscado gesto especular: o si-mesmo entre miragens, no espelho de Rosa 323

    A literatura e a lgica dos bons sentimentos

    Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual no existem palavras.

    Guimares Rosa

    Podemos dizer, com algum acerto, que a literatura de Guimares Rosa situa-se no cruzamento da moderna narrativa, com os problemas que lhe so especficos, e das formas tradicionais de narrar que se fa-zem aqui presentes. Temos um narrador que escreve como se estivesse conversando muito vontade com algum que ele chama de senhor e recente amigo; esse narrador conta ao seu ouvinte uma experincia, por suposto, compartilhada.

    Prxima dos relatos orais annimos, a narrativa escrita, nesse caso, deve preencher uma das funes prprias das antigas narrativas: a troca de ex-perincias com o objetivo de extrair lies. Com a autoridade de quem al-canou uma especial sabedoria, obtida com o progressivo alijamento [...] de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra. (ROSA, 1985, p. 72), esse narrador parece colher o que narra nas prprias vivncias e delas extrai uma lio a ser transmitida como advertncia ou conselho para um ouvinte disposto a ouvir e interessado em aprender. Aqui, a sabe-doria de quem mais experiente ainda no teria perdido legitimidade, e nessa sabedoria adquirida com a vida que se fundamenta a autoridade de quem conta estrias. Porque tem algo a dizer sobre si mesmo, que tam-bm sobre o outro que o escuta, pode estabelecer uma relao muito prxi-ma com o leitor/ouvinte, relao pautada pelo compromisso e interesse em preservar o que narrado, matria retirada da prtica da vida, experincia pertinente a ambos, no momento presente da enunciao narrativa, aos que os antecederam e aos que ainda viro.

    A palavra, nessa estria, estaria, portanto, com um homem experiente, com o sujeito da experincia que est sendo relatada. Estrias com espelhos; estrias, contudo, nada simples, vazadas em discurso nada transparente de um narrador sagaz e astuto e, mais ainda, conhecedor das possveis rplicas do leitor/interlocutor, baseadas num saber do qual ele desconfia. Assim, j no incio de seu relato, lana-lhe uma pergunta: O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idia do que seja na verdade um espelho? (ROSA, 1985, p. 65). Mas de que saber est falando o narrador

  • Joana Luza Muylaert de Arajo 324

    quando se refere ao seu estudioso interlocutor, companheiro no amor da cincia, ou aos mtodos cientficos de investigao, que emprega na tenta-tiva de autoconhecimento.

    A ironia muito clara, no h qualquer mtodo objetivo, qualquer cincia positiva, capazes de compreender fenmenos to sutis, como o ver a si mesmo na superfcie dos espelhos. Num jogo de perguntas e respostas capciosas, o narrador desconstri, um a um, preconceitos e crenas, em supostos saberes disfarados. Refuta falsas premissas, frgeis argumentos, seus e de seu suposto interlocutor, como na passagem a seguir:

    Fixemo-nos no concreto. O espelho, so muitos, captando-lhe as feies; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor cr-se com aspecto prprio e prati-camente imudado, do qual lhe do imagem fiel. Mas que espelho? H-os bons e maus, os que favorecem e os que detraem; e os que so apenas honestos, pois no. E onde situar o nvel e ponto desta honestidade ou fi-dedignidade? Como que o senhor, eu, os restantes prximos, somos, no visvel? O senhor dir: as fotografias o comprovam. Respondo: que, alm de prevalecerem para as lentes das mquinas objees anlogas, seus resulta-dos apiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconogrficos os ndices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um aps outro, os retratos sempre sero entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, porque vivemos, de modo incorrigvel, distrados das coisas mais importantes (ROSA, 1985, p. 65).

    Desautorizados os mtodos e saberes conhecidos, o que fazer? Desa-pegar-se de tudo o que se supunha saber, exercitar o olhar para no ver no espelho o que o hbito cristalizou em imagens. Quando finalmente viu a si mesmo, o narrador j amava j aprendendo , isto seja, a conformidade e a alegria. (ROSA, 1985, p. 72).

    Retomando a questo lanada acima, sobre o saber/no saber suspen-sos, colocados em xeque quando o assunto srio, quando da vida e seus mistrios que se trata, recorro a outros textos de Rosa, nos quais aponta, no sem provocao e humor, o que considera uma literatura que resulta da sabedoria e do amor, em oposio a uma literatura que se nutre da lgica, positiva e racional, desde que Aristteles a fundou.

    Comecemos com a conhecida e muito citada entrevista a Gnter Lorenz, em que Guimares Rosa manifesta uma potica apoiada nos sentimentos

  • Do arriscado gesto especular: o si-mesmo entre miragens, no espelho de Rosa 325

    de amor e justia, uma potica da realidade inacreditvel e ilgica, uma potica, j podemos dizer, do paradoxo:

    [...] Por isso tambm espero uma literatura to ilgica como a minha, que transforme o cosmo num serto no qual a nica realidade seja o inacreditvel. A lgica, prezado amigo, a fora com a qual o homem algum dia haver de se matar. Apenas superando a lgica que se pode pensar com justia. Pense nisto: o amor sempre ilgico, mas cada crime cometido segundo as leis da lgica (ROSA, 1983, p. 93).

    Poeta/ alquimista, feiticeiro da palavra, o escritor, para escrever, precisa de sangue do corao (ROSA, 1983, p. 85), e muito pouco, ou quase nada, do crebro. Deve, ainda, ser um descobridor de caminhos no percorridos, assumindo os riscos de quem se aventura em desconhecidos atalhos. Deve apostar na possibilidade de outras, diversas lgicas, imprevistas, inventa-das. Colombo deve ter sido sempre ilgico, ou ento no teria descoberto a Amrica, diz Guimares Rosa, associando a atividade de escrever com as invenes e as grandes descobertas (ROSA, 1983, p. 76).

    Descobridor, temerrio, apaixonado e generoso, o escritor deve fazer de sua linguagem a arma com a qual defende a dignidade do homem. (ROSA, 1983, p. 87).

    Em outras palavras, para Guimares Rosa, o escritor deve ser o que ele escreve (grifo meu). Pela relao que o homem estabelece com o idioma, podem-se conhecer os seus sentimentos, os valores que defende. O idioma o espelho da alma, no os olhos. No cabendo sofismas, quando se trata da legtima literatura, a que nasce da vida e deve ser a voz do corao, uma outra, bem diversa, relao com o real e com a verdade que est em jogo. Encontrar as palavras sinceras, que devem ser o espelho da alma, exige um trabalho de depurao das impurezas da linguagem cotidiana (ROSA, 1983, p. 81); encontrar as palavras sinceras encontrar o seu sen-tido original, encontrar o homem, pois a palavra, mais do que expressar o que o homem sente e pensa, faz significar a humanidade: a palavra o prprio homem, nela que o homem, condenado a representar a prpria humanidade, aquilo que lhe substancial, constri uma imagem de si mes-mo e do outro.

    A experincia da sinceridade leva, assim, experincia do paradoxo: ser sincero descobrir-se um mistrio, um estranho a si mesmo. Paradoxal-

  • Joana Luza Muylaert de Arajo 326

    mente, essa mesma condio contraditria, irredutvel s lgicas explica-es, que torna possvel ao homem inventar o seu destino, inveno a partir do que a vida lhe concedeu; trata-se de afirmar as circunstncias a favor da dignidade, da justia e do bem, transformando o que poderia cristalizar-se em destino adverso as fatalidades em necessidade vital, sempre confor-me a lgica dos bons sentimentos.

    Referncias igualmente importantes, que auxiliam na compreenso da potica roseana inseparvel de uma tica da justia, do amor e da sabedo-ria, so os contos/prefcios de Tutamia, eles tambm uma espcie de po-tica do escritor. Comentarei aqui, rapidamente, algumas passagens de dois deles: Aletria e Hermenutica e Ns, os temulentos. No primeiro, temos explcita a defesa dos paradoxos e das contradies que provocam o riso e o espanto, possibilitando ao mesmo tempo a intuio do aparentemente incompreensvel, do aparentemente absurdo, do inconcebvel: por isso, a estria, como a anedota, deve encerrar ineditismo e no-senso. O humor na estria serve para desestabilizar as relaes lgicas que orientam nosso modo habitual de pensar e de sentir propondo-nos realidade superior e dimenses para mgicos novos sistemas de pensamento. (ROSA, 1979, p. 3). Em Ns, os temulentos, temos a engraadssima estria de Chico, o bbado heri, que tenta, aos trancos e barrancos, cumprir a simples e roti-neira ao de retornar para casa. O narrador no tece comentrios sobre o humor e o paradoxo, como em Aletria e Hermenutica; mas identifica-se com prpria personagem (o ttulo um indcio), para quem o conflito essencial e drama talvez nico residia na corriqueira problemtica quo-tidiana, a qual tentava, sempre que possvel, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar em bar. (ROSA, 1979, p. 101). Tambm, nesse caso, o humor funciona para refletir a coerncia do mistrio geral, que nos envolve e cria, o supra-senso da vida (ROSA, 1979, p. ).

    Reafirmando a proposta de que a narrao de O espelho deva ser lida como uma potica afirmativa da mmesis, busquei nos outros textos aqui interpretados a dico bem humorada, a argumentao refinada pelo recurso ao paradoxo, a narrativa saborosa de um saber to antigo quanto inesperado, o raro e singularssimo modo rosiano de conceber o velho tema das relaes entre a vida e a literatura, entre o real e a fico, entre o real e as imagens. Para que afinal existem os paradoxos, seno para expressar o transcendente, a ponta de um mistrio, um milagre que no estamos vendo?

  • Do arriscado gesto especular: o si-mesmo entre miragens, no espelho de Rosa 327

    O espelho, o real e a mmesis possvel

    Reporto-me ao transcendente. Tudo, alis, a ponta de um mistrio. Inclusive, os fatos. Ou a ausncia deles. Duvida? Quando nada acontece, h um milagre que no estamos vendo.

    Guimares Rosa

    5 Para discutir a noo de mimesis, apoiei-me no estudo de Luiz Costa Lima (1980), Mi-mesis e modernidade. Em linhas gerais, Costa Lima reafirma o que denomina de centrali-dade da mimesis para o pensamento ocidental. Isto posto, prope uma leitura inversa s interpretaes tradicionais que, privilegiando a semelhana, identificam-na a imitao, reflexo, espelho. Sua hiptese ler o produto mimtico pelo avesso, assim privilegiando o sema naturalmente posto na posio subordinada, a diferena sustenta a leitura que apresenta a respeito da literatura de Jorge Luis Borges. Costa Lima nos fala da articulao, em Borges, da antiphysis com a idia de jogo e da mimesis com eros. O que seria a anti-physis? Em suas palavras, no h um questionamento da mimesis que no seja ao mesmo tempo um questionamento da physis. Em Borges, antiphysis significa ausncia de corres-pondncia, perda de lastro com o real. Em outras palavras, o questionamento radical de Borges atinge simultaneamente a realidade e a literatura que a mimetiza. Mas, a leitura que nos prope Costa Lima no exclui, contudo, a centralidade da mimesis. Segundo o crtico, a antiphysis borgiana supe uma cena oculta, um ponto cego no iluminado pela previsi-bilidade autoral. Em Borges, a fico pensada como antiphysis porque a vida tomada como experincia de pesadelo. A fico tramada neste contexto se quer anteparo sim, mas anteparo contra a vida, faz-se vida simulada, inveno da vida impossvel [...] Esta fico no remete, sequer como instncia mediatizada, a formas de existncia, mas sim a um en-caixe de fices, livros dentro de livros, comentrios ficcionais a textos tambm ficcionais, onde figuras muitas vezes reais, autores e amigos, remetem a dilogos ficcionais e relatos ficcionais fingem-se relatos do real. Em Borges, a vida uma experincia de pesadelo e a literatura, uma experincia do horror. Em outras palavras, a antiphysis borgiana , ela tambm, mimtica, porque, entre outros problemas no menos relevantes, sua literatura, ao recusar a realidade, traz de volta esse mesmo real, ponto de partida indesejvel do qual o autor pretendera se esquivar. Em outra passagem, Costa Lima nos fala de uma impieda-de borgiana face ao amor. Em seus contos, como O inverossmil impostor Tom Castro, Borges aproxima o xito da mimesis ao desejo de ter o efeito da mimesis (grifo meu). Mas, Tom Castro uma fraude, uma impostura. Com o seu fracasso em parecer-se com o filho amado da Lady Tichborne, Borges reafirma, mais uma vez, o fracasso da mime-sis. E o que resta contar, quando o desejo e o amor se ausentam, so melanclicos jogos com espelhos e labirintos; a literatura movendo-se no seu centro, como um infinito caleidoscpio de textos, na clausura do espao propriamente literrio. O contrrio se passa com a literatura de Rosa, mimesis que incorpora a diferena na forma do humor e do paradoxo, refletindo a vida e suas estranhezas. Em Rosa, a vida uma experincia sensvel e apaixonada e a literatura que a mimetiza, uma experincia mgica, ao mes-mo tempo burlesca e sublime.

  • Joana Luza Muylaert de Arajo 328

    Pois temos ento um conto sobre o tema do duplo e todas as suas con-venes: esto presentes os espelhos, as imagens deformadas, o ssia, a face vazia do espelho que finalmente nada reflete. Mas quem nos conta essa his-tria, parece distante dos sentimentos de horror e das angstias do passado. A figura do romntico dilacerado entre o original e suas sombras reaparece, sim, mas na pena da galhofa (sem as tintas da melancolia) de um irnico narrador, que se diz racional e positivo; que, ao iniciar sua histria, con-forme afirmamos acima, dirige-se ao leitor/interlocutor silencioso como aquele que sabe e estuda; mas em cujo saber, na verdade, ele mesmo (nar-rador) no confia.

    E se, conforme demonstra a fala inicial do narrador, um dado saber questionado (o saber supostamente pronto de um discurso cientfico fe-chado em si mesmo) permanece, por outro lado, a indagao sobre quem que sabe, afinal de contas, nessa estria toda. Pois ao longo da narrao no apenas uma cincia positivista obsoleta que desacreditada, todo co-nhecimento alcanado a partir dos sentidos, da experincia mais imediata ou dos hbitos (adquiridos em famlia, nas relaes sociais, nos precon-ceitos enraizados na cultura), vai passo a passo sendo desconstrudo pelo discurso crtico, fino, polido e bem humorado do escritor. O assunto, em vrias passagens, parece artificialmente grave: quando a dico cientfica a que recorre o narrador revela-se vazia; e a expresso em dissonncia com sentidos no explicitados, apagados pelo comum correr cotidiano, expe as fragilidades, o vcuo das frases feitas, do lugar comum, de tudo o que parece, a todos, familiar e conhecido.

    O narrador tambm parece nada saber, depois de aprender a no ver, no aprende nada, no v mais nada: medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma mendrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosai-cos, e francamente cavernoso, como uma esponja. (ROSA, 1985, p. 70).

    Sim, so para se ter medo, os espelhos, j havia nos prevenido o nar-rador. Entre a imagem refletida e aquilo a que se refere a imagem pode acontecer o que j se sabe, mas nunca se espera: a diferena radical. O espe-lho, de repente, nada reflete. A figura transforma-se at a total desfigura. (ROSA, 1985, p. 67; 71). Sem representao possvel, onde se ancorar?

    Cansado da experincia que no chegava a lugar nenhum, a nenhum rosto interno, desiste temporariamente o narrador e abandona por uns tempos a investigao. Tempos depois, dirige o olhar inadvertidamente

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    para um espelho e esse lhe mostra de novo o seu rosto, porm no o rosto que o outro no caso o seu interlocutor lhe atribui. No o sujeito que v sua imagem passivamente refletida, ou sua imagem buscada. O espelho no reflete, antes mostra a esse sujeito um ainda-nem-rosto quase deli-neado, apenas (ROSA, 1985, p. 72).

    O sujeito no constri sozinho sua prpria imagem nem tampouco sua imagem lhe devolvida pelo outro, por aquele com quem est falando. A afir-mao da transcendncia, colocada no incio do conto, retorna (existiria algo que transcende as construes imaginrias dos homens); mas depois de quase constatada a impossibilidade de representao dessa mesma trans-cendncia, s restam ao narrador humildes perguntas. Afinal, em lugar de uma existncia central, estvel, surgiu um esboo de rosto, contornos, tra-os delineando-se, fragmentos sem nitidez nem inteireza.

    A diferena que se interps entre a imagem e seu referente inviabiliza a sntese desejada ou uma presumvel harmonia prvia. A diferena resiste, enquanto diferena, quase irredutvel: um quase rosto surge em lugar da suposta imagem coesa do incio. Mas se o espelho do conto recusa a iden-tidade, por outro lado no a desfigura por completo. Uma reconstituio do rosto ainda possvel. O espelho continua refletindo, para alm de si mesmo, um referente construdo simultaneamente ao andamento da pr-pria narrao.

    Mmesis que no apenas incorpora a diferena como tambm a expli-cita, o espelho de Rosa no se reduz a confirmar o que j sabemos que falaciosa toda identificao especular, que so falsas, porque ilusrias, as correspondncias entre as coisas do mundo e suas vrias representaes. Nessa mmesis, h divergncias do suposto modelo com suas cpias, o personagem naufraga no poucas vezes na tentativa de estabelecer veros-similhanas, elos, pontes entre o real e o que supe real. So dissonncias, porm, da terceira margem admitida, em amoroso, bem humorado e alegre entendimento. Porque a vida amorosamente sentida, no estamos nesse mundo por acaso e tudo afinal faz sentido. H uma coerncia do mistrio geral, que nos envolve e cria, revelada pelo humour e pelo paradoxo, toque e timbre novos refletindo realidade superior, propondo-nos dimenses para mgicos novos sistemas de pensamento.

    A vida nesse espelho mimetizada, no maneira dos modernos/ro-mnticos melanclicos, nem ao modo dos modernos/contemporneos, para quem a vida, como a literatura, so jogos com o acaso, labirintos

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    textuais infinitos. A vida no um vale de bobagens, a literatura no um jogo apenas. A vida nesse espelho mimetizada, segundo o singular, nico modo rosiano de contar estrias contendo suas contraditrias margens da alegria e dos mais trgicos acontecimentos. Como na vida, a literatura surpreende, onde e quando menos se espera. O espelho de Rosa nos pro-pe um novo/mgico problema (que no apenas da ordem da literatura, tambm de natureza tica e por que no? do campo da lgica) com o seu imprevisvel desfecho.

    O racional e positivo narrador do incio torna-se ao final um amo-roso menino, como aquele do primeiro conto do livro, que, depois do re-pentino desaparecimento do peru Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num timo, da gente as mais belas coisas se roubavam. (ROSA, 1985, p. 10) , reencontra a alegria avistando o primeiro vagalume. Como o menino de Os cimos que, longe de casa, triste pela lembrana da me que adoecera, volta a sorrir ao ouvir do tio a boa notcia: a me estava bem, sarada!. Retornando casa, o Menino se sentia para fora do caos pr-inicial, feito o desenglobar-se de uma nebulosa. Ao tio que lhe dissera: Chegamos, afinal!, responde: Ah, no. Ainda no... [...] Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida. (ROSA, 1985, p. 158-160).

    Incio, meio e fim de um conjunto de estrias, temos os trs contos, trs meninos, trs modos de viver e narrar a experincia do reencontro com uma certa verdade, verdade que implica o real e a fico, a vida enfim amo-rosamente acolhida como estranha, trgica alegria.

    Verso e reverso de uma superfcie sem profundidade, no por acaso, O espelho se situa exatamente na metade do conjunto dos vinte e um contos de Primeiras Estrias. Dcima primeira narrativa remetendo para as dez primeiras e para as dez ltimas do livro, refletindo em sua superfcie discursiva as outras estrias. Nesse espelho que recusa os habituais reco-nhecimentos, as esperadas identificaes, cabem, por isso mesmo, as trs margens da vida, da literatura e do mistrio que as atravessa.

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    Recebido em 26 de novembro de 2007Aceito em 27 de fevereiro de 2008