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ISSN 1806-6445 edição 25 revista internacional de direitos humanos v. 14 n. 25 São Paulo Jul. 2017

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US

ISSN 1806-6445

sur.conectas.org

www.conectas.org

25

edi

o25revista internacionalde direitos humanos

v. 14 n. 25 So Paulo Jul. 2017

revista internacional de direitos humanos

CONECTAS DIREITOS HUMANOS

Caixa postal: 62633 - CEP 01214-970.

So Paulo/SP- Brasil

Contato:

Contribuies:

Esta revista publicada sob a licena

de Creative Commons Attribution-

NonCommercial-NoDerivatives 4.0

International License

Conectas @_Conectas

A Sur Revista Internacional de

Direitos Humanos, fundada em 2004

e publicada por Conectas Direitos

Humanos, aspira influenciar a agenda

global de direitos humanos, produzindo,

promovendo e divulgando pesquisas e

ideias inovadoras, principalmente do Sul

Global, na prtica de direitos humanos.

A Revista Sur serve como um espao

para compartilhar perspectivas,

principalmente do Sul Global, sobre a

agenda de direitos humanos do mundo.

um espao onde o papel do Sul Global na

formao do discurso e prtica de direitos

humanos incluindo, as suas instituies,

prioridades e impacto debatido.

A Sur Revista Internacional de

Direitos Humanos uma publicao

semestral, editada em ingls,

portugus e espanhol, disponvel

tambm em formato eletrnico.

Publicado por

DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOS JAVED NOORANI SILAS

KPANAN AYOUNG SIAKOR ASEIL ABU-BAKER RENZO ALEXANDER GARCA MICHAEL

POWER & MANSON GWANYANYA CAIO BORGES & TCHENNA FERNANDES MASO TESSA

KHAN MICHAEL T. KLARE PATRICIA ARDN & DAYSI FLORES ALEX SOROS PERFIS BEATA

TSOSIE PEA JENNIFER DOMNGUEZ JICE CLEIDE SANTIAGO DOS SANTOS IMAGENS

JASHIM SALAM & KHALED HASAN HISTRIA EM QUADRINHOS FRONT LINE DEFENDERS

ENSAIOS ALEJANDRO ANAYA MUOZ MARIO PATRN, SANTIAGO AGUIRRE ESPINOSA,

SOFA DE ROBINA, STEPHANIE BREWER & MARA LUISA AGUILAR MARLON ALBERTO

WEICHERT VINCENT PLOTON DILOGOS JUAN E. MNDEZ EXPERINCIAS IRIT TAMIR

PANORAMA INSTITUCIONAL RENATA REIS & SUSANA DE DEUS VOZES PHILIP ALSTON

v. 12 n. 21 So Paulo Ago. 2015v. 14 n. 25 So Paulo Jul. 2017

revista internacional de direitos humanos ed

io25

CONSELHO EDITORIALChristof Heyns. Universidade de Pretria | frica do SulEmilio Garca Mndez. Universidade de Buenos Aires | ArgentinaFifi Benaboud. Centro Norte-Sul do Conselho da Europa |PortugalFiona Macaulay. Universidade de Bradford | Reino UnidoFlvia Piovesan. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo | BrasilJ. Paul Martin. Universidade de Columbia | Estados UnidosKwame Karikari. Universidade de Gana | GanaMustapha Kamel Al-Sayyid. Universidade do Cairo | EgitoRoberto Garretn. Ex-Funcionrio do Alto Comissariado das Naes Unidas para os Direitos Humanos | ChileUpendra Baxi. Universidade de Warwick | Reino UnidoEDITOROscar Vilhena VieiraEDITORES EXECUTIVOSOliver Hudson. Editor de OperaesPatrick Alley. Editor convidadoMaryuri Mora Grisales. Editora assistenteNeia Limeira. Assistente EditorialCONSELHO EXECUTIVOAlbertina de Oliveira CostaCamila AsanoConrado Hbner MendesGlenda MezarobbaJuana KweitelJoo Paulo CharleauxLaura WaisbichMarcos TourinhoRafael CustdioREFERNCIASRenato BarretoCONSELHO CONSULTIVOAlejandro M. Garro. Universidade de Columbia | Estados UnidosBernardo Sorj. Universidade Federal do Rio de Janeiro / Centro Edelstein | BrasilBertrand Badie. Sciences-Po | FranaCosmas Gitta. PNUD | Estados UnidosDaniel Mato. CONICET - Universidade Nacional Tres de Febrero | ArgentinaDaniela Ikawa. Rede Internacional para os Direitos

Econmicos, Sociais e Culturais/ Universidade de Columbia | Estados UnidosEllen Chapnick. Universidade de Columbia | Estados UnidosErnesto Garzon Valds. Universidade de Mainz | AlemanhaFateh Azzam. Fundo rabe para os Direitos Humanos | LbanoGuy Haarscher. Universidade Livre de Bruxelas | BlgicaJeremy Sarkin. Universidade de Western Cape | frica do SulJoo Batista Costa Saraiva. Juizado Regional da Infncia e da Juventude de Santo ngelo/RS | BrasilJos Reinaldo de Lima Lopes. Universidade de So Paulo | BrasilJuan Amaya Castro. Universidade de Amsterdam | Pases Baixos/ Universidade para a Paz | Costa RicaLucia Dammert. Consrcio Global para a Transformao da Segurana | ChileLucia Nader. Open Society Foundations Fellow | BrasilLuigi Ferrajoli. Universidade de Roma | ItliaLuiz Eduardo Wanderley. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo | BrasilMalak El-Chichini Poppovic. Conectas Direitos Humanos | BrasilMaria Filomena Gregori. Universidade de Campinas | BrasilMaria Hermnia Tavares de Almeida. Universidade de So Paulo | BrasilMiguel Cillero. Universidade Diego Portales | ChileMudar Kassis. Universidade Birzeit | PalestinaPaul Chevigny. Universidade de Nova York | Estados UnidosPedro Paulo Poppovic. BrasilPhilip Alston. Universidade de Nova York | Estados UnidosRoberto Cullar M. Instituto Interamericano de Direitos Humanos | Costa RicaRoger Raupp Rios. Universidade Federal do Rio Grande do Sul | BrasilShepard Forman. Universidade de Nova York | Estados UnidosVctor Abramovich. Universidade de Buenos Aires | ArgentinaVictor Topanou. Universidade Nacional do Benin | BeninVinodh Jaichand. Universidade de Witwatersrand | frica do SulPROJETO GRFICOLetcia CoelhoFOTOGRAFIA DA CAPAJon Sack para Front Line DefendersCIRCULAORevista SurIMPRESSOAlphaGraphics

SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos / Associao Direitos Humanos em Rede v.1, n.1, jan.2004 So Paulo, 2004 - . Semestral ISSN 1806-6445 (Impresso) ISSN 1983-3342 (Online) Edies em Ingls, Portugus e Espanhol. 1. Direitos Humanos 2. ONU I. Associao Direitos Humanos em Rede

SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos, So Paulo, SP: Rede Universitria de Direitos Humanos, [2004-2015]SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos, So Paulo, SP: Associao Direitos Humanos em Rede, 2015-

SUR est indexada nas seguintes bases de dados: IBSS (International Bibliography of the Social Sciences); DOAJ (Directory of Open Access Journals) e SSRN (Social Science Research Network). Alm disso, Revista Sur est disponvel nas seguintes bases comerciais: EBSCO e HEINonline, ProQuest e Scopus. SUR foi qualificada como A2 na Colmbia e no Brasil (Qualis).

EQUIPE EDITORIAL

DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOS

SUMRIO

PERFIS

O PAPEL DA LEI NA PREVENO DA EXPLORAO

O PAPEL DO ESTADO E DA INICIATIVA PRIVADA NA EXPLORAO DOS RECURSOS NATURAIS

EXPLORAO DE RECURSOS NATURAIS E MUDANAS CLIMTICAS

O PAPEL DOS INDIVDUOS NA PROTEO DE NOSSOS RECURSOS NATURAIS

17JAVED NOORANI Riqueza alm do alcance

37ASEIL ABU-BAKER Privados de gua

57RENZO ALEXANDER GARCA Cajamarca, Colmbia

SILAS KPANAN AYOUNG SIAKOR 27

O papel da sociedade civil na reforma do setor de silvicultura da Libria

MICHAEL POWER & MANSON GWANYANYA 61 Massacre em Marikana

PATRICIA ARDN & DAYSI FLORES 109 Berta vive! Copinh continua...

71CAIO BORGES & TCHENNA FERNANDES MASO

O caso do rompimento da barragem no Rio Doce

TESSA KHAN 89Prestando contas dos danos aos direitos humanos causados por mudanas climticas

MICHAEL T. KLARE 99Nova matriz energtica transformar os estados unidos em terceiro mundo?

ALEX SOROS 119Os verdadeiros heris e heronas do movimento ambiental

BEATA TSOSIE PEA 125Eu no separo a luta da minha espiritualidade

JENNIFER DOMNGUEZ 129

Lutar pelos direitos humanos no meu pas saber que voc vai morrer, que podem te matar

IMAGENS

HISTRIA EM QUADRINHOS

EXPERINCIAS

ENSAIOS

DILOGOS

PANORAMA INSTITUCIONAL

133JICE CLEIDE SANTIAGO DOS SANTOS

Eu luto contra o racismo religioso e contra o racismo ambiental

239ENTREVISTA COMJUAN E. MNDEZ

Temos perdido o sentido do propsito de eliminar a tortura

259RENATA REIS& SUSANA DE DEUS

Mdicos sem fronteiras: A coerncia com seus princpio

138JASHIM SALAM & KHALED HASAN

O impacto das mudanas climticas nos seres humanos

156La Lucha A histria de Lucha Castro e os direitos humanos no MxicoFRONT LINE DEFENDERS

207Os crimes contra a humanidade em contextos democrticosMARLON ALBERTO WEICHERT

219La implementao das recomendaes dos rgos de tratados da ONU VINCENT PLOTON

171ALEJANDRO ANAYA MUOZRegimes internacionais de direitos humanos

189MARIO PATRN, SANTIAGO AGUIRRE ESPINOSA, SOFA DE ROBINA, STEPHANIE BREWER & MARA LUISA AGUILAR

Um exerccio novo de superviso internacional

249IRIT TAMIR El cdigo de campaa corporativa de Oxfam

267PHILIP ALSTON Direitos humanos sob ataque

VOZES

PATRICK ALLEY, GLOBAL WITNESSEditor convidado

OLIVER HUDSON, REVISTA SUREditor-chefe

H cinco anos atrs, em 26 de abril de 2012, Chut Wutty, um corajoso defensor cambojano dos direitos terra, foi morto a tiros pela polcia militar cambojana. Foi esse assassinato que levou a Global Witness a lanar uma campanha que documentasse anualmente os assassinatos em todo o mundo de defensores ambientais e do direito terra, pois Chut Wutty era um antigo colega nosso e sua morte nos aproximou da dura realidade das ameaas que muitas pessoas comuns enfrentam diariamente defendendo suas terras e seus direitos.

No transcorrer dos anos, nossos relatrios documentaram uma tendncia crescente nesses assassinatos. No entanto, sabemos que provavelmente isso seja apenas a ponta do iceberg, pois esta uma rea vastamente subnotificada. Ademais, o relatrio anual no inclui as ameaas jurdicas e fsicas e o assdio que outras milhares de pessoas enfrentam, principalmente porque so extremamente difceis de documentar. Os defensores ambientais e do direito terra so pessoas comuns que, de repente, descobrem que a terra de suas comunidades foi negociada, sem o seu conhecimento ou consentimento, para um empreendimento industrial, como uma barragem, mina, plataforma petrolfera, extrao madeireira ou monocultura agrcola. Essas operaes normalmente envolvem corrupo, o que significa que os polticos e autoridades implicados se beneficiaram pessoalmente de alguma forma e ento devem sua fidelidade no aos cidados a quem deveriam representar, mas a alguma corporao. Se o poder judicirio e os rgos responsveis pela aplicao da lei tambm

CARTA S LEITORAS E AOS LEITORES

DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOSHUMANOS

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foram comprados, as comunidades locais esto abandonadas. Os rgos estatais que so destinados a proteg-las, ao invs disso, se tornam o prprio mecanismo que as ameaa e as priva de quaisquer meios legais de reparao. Ento as comunidades fazem a nica coisa que lhes resta: elas protestam e, por se manifestarem, bloquearem estradas de acesso, inutilizarem mquinas, seus membros so ameaados, espancados e, muitas vezes, assassinados. Esses assassinatos remetem a um problema muito maior. Os recursos naturais valem muito dinheiro e, quanto mais escassos, mais as empresas querem control-los. A busca da riqueza oriunda dos recursos naturais deu origem ao colonialismo predatrio corporativo e privado exemplificado pela Companhia das ndias Orientais e pelo Congo do rei Leopoldo nos sculos XVIII e XIX e que continuou de forma semelhante desde ento, embora sob nova gesto. Atualmente, o sistema funciona de acordo com os mesmos princpios, mas em diversos aspectos fundamentais muito menos visvel. Os recursos naturais continuam a fluir inexoravelmente para os pases consumidores ricos, como antes colonialismo extrativista mas grande parte do dinheiro ganho desaparece em contas bancrias secretas detidas por uma parcela de empresas de propriedade annima com sede em parasos fiscais e jurisdies sigilosas. Somente de modo ocasional, quem sabe por meio de um vazamento de dados como os Panama Papers, os verdadeiros proprietrios dessas empresas sero identificados e a escala do saque de alguns dos pases mais pobres do mundo ser conhecida. Os artigos desta edio da Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos renem alguns estudos de caso notveis e significativos que ilustram que a explorao de recursos naturais uma das principais causas de diversas violaes de direitos humanos. A apropriao ilegal de terras, a instabilidade, a exacerbao da pobreza, a destruio e poluio de terras essenciais sobrevivncia

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das comunidades indgenas e de outras comunidades e, nos piores casos, assassinatos e guerras, so muitas vezes os resultados diretos da extrao de petrleo e minerais, de projetos de energia renovvel, da explorao de madeireiras e da agricultura industrial.

O PAPEL DA LEI NA PREVENO DA EXPLORAO O Afeganisto possui diversas leis e regulamentaes supostamente para proteger sua vasta riqueza mineral, recursos que a coalizo internacional que est tentando trazer paz para o pas alardeia como sua salvao. Contudo, Javed Noorani (Afeganisto), apresenta uma conjuntura perturbadora sobre o que a explorao de recursos naturais significa em um contexto de corrupo, instabilidade e governana dbil. Seu estudo de caso descreve como apesar de um quadro jurdico teoricamente forte no pas polticos corruptos, senhores da guerra e insurgentes talibs esto com a boca na botija mineral, enriquecendo, financiando suas guerras e saqueando o Estado. Silas Siakor (Libria) oferece uma narrativa convincente sobre os danos causados pela explorao ilegal dos recursos naturais no pas. O autor detalha como a sociedade civil da Libria se uniu para exigir o aprimoramento do quadro jurdico, especificamente em relao ao setor madeireiro, para ajudar a garantir que as graves violaes de direitos humanos infligidas na populao local no voltem a acontecer. Foi a organizao de Silas, juntamente com a Global Witness, que trabalhou para documentar, expor e advogar contra o comrcio de madeira para a compra de armas do (ento) presidente Charles Taylor, que resultou em sanes das Naes Unidas (ONU) contra a madeira liberiana. O PAPEL DO ESTADO E DA INICIATIVA PRIVADA NA EXPLORAO DOS RECURSOS NATURAIS

Aseil Abu-Baker (EUA) descreve como, para alm da fora militar e da construo do muro da Cisjordnia, Israel exerce

CARTA S LEITORAS E AOS LEITORES

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o controle derradeiro dos territrios ocupados por meio da empresa estatal de gua Mekorot usando a gua como uma arma de poder, que atinge o mago dos direitos das pessoas. Ordens militares, um acordo injusto de partilha da gua e um regime discriminatrio de planejamento e concesses criam e mantm um abrangente sistema de controle sobre os recursos hdricos, garantindo que os palestinos sejam proibidos de exercer direitos soberanos sobre seus recursos hdricos. Aseil vai um pouco mais longe e expe como Israel criou de fato um sistema de apartheid da gua. Da mesma forma, Renzo Alexander Garca (Colmbia) oferece uma sucinta viso geral do recente e altamente inovador referendo popular no municpio de Cajamarca, Colmbia. Apesar de a populao local demonstrar de forma esmagadora que no quer a presena de mineradoras na sua regio, o governo da Colmbia est ameaando anular uma deciso democrtica, ainda que o mtodo para chegar a ela seja protegido pela Constituio colombiana. As consequncias devastadoras da ganncia e da negligncia corporativa e estatal so detalhadas na contribuio de Michael Power e Manson Gwanyanya (frica do Sul). Eles apresentam detalhes arrepiantes sobre as circunstncias que levaram ao massacre policial de trinta e quatro mineiros em Marikana, na provncia do noroeste da frica do Sul. Finalmente, Caio Borges (Brasil) e Tchenna Fernandes Maso (Brasil) discutem como a destruio da bacia do Rio Doce com o rompimento da barragem de rejeitos de minerao da empresa Samarco, em 2015, um caso emblemtico da tensa relao entre assegurar direitos humanos, dentro de padres internacionais, e a ao das empresas, sobretudo transnacionais em pases do Sul Global.

EXPLORAO DE RECURSOS NATURAIS E MUDANAS CLIMTICAS Os acontecimentos em Marikana, frica do Sul, e Mariana, Brasil, ilustram com uma clareza devastadora as consequncias

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imediatas da explorao dos recursos naturais. No entanto, o efeito da explorao de recursos naturais sobre o clima normalmente esquecido. Tessa Khan (Bangladesh/Austrlia) no somente mostra que a mudana climtica um dos mais poderosos, na realidade apocalpticos, causadores das violaes de direitos humanos, como tambm destaca a necessidade de responsabilizar aqueles que no conseguem diminuir as emisses de carbono. Tessa lista numerosos exemplos de processos judiciais movidos contra empresas e governos que os obrigam a agir. O artigo de Michael Klare (Estados Unidos) nos demonstra a necessidade de responsabilizar os governos. As empresas petrolferas so especialistas em usar seu poder de lobby e se envolver em corrupo direta para evitar ou enfraquecer as regulamentaes financeiras e ambientais no Sul Global, e agora esto empregando as mesmas tticas nos EUA e no Canad, como parte do crescimento vertiginoso do fracking, assim como fizeram em todo o Sul Global. Enquanto isso, na tentativa de ilustrar que as mudanas climticas j esto tendo um impacto bastante real nas vidas dos indivduos, esta edio da revista apresenta o trabalho de dois fotgrafos Jashim Salam e Khaled Hasan (Bangladesh). Suas lindas ainda que assombrosas fotografias mostram como duas comunidades no delta do Ganges esto se adaptando a uma nova realidade medida que as mudanas climticas causam estragos em suas vidas cotidianas. O PAPEL DOS INDIVDUOS NA PROTEO DE NOSSOS RECURSOS NATURAIS o indivduo que deve estar no centro de qualquer discusso sobre a explorao de recursos naturais. No somente os direitos humanos desses indivduos so sistematicamente violados pela explorao dos recursos naturais, como tambm so eles que se opem ao Estado e s empresas privadas, muitas vezes colocando suas vidas em risco enquanto fazem isso. A vida e a trajetria de Berta Cceres uma das principais defensoras de direitos

CARTA S LEITORAS E AOS LEITORES

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humanos da atualidade so celebradas de modo eloquente por Patricia Ardn e Daysi Flores. Longe de silenci-la, o assassinato de Berta em 2015 impulsionou seu trabalho para a esfera global. Seu legado serve de inspirao para os movimentos sociais liderados pelas comunidades em todo o mundo e para o papel de liderana desempenhado pelas mulheres nestes movimentos. O filantropo Alex Soros (EUA), escreve um artigo de opinio sobre o papel fundamental desempenhado pelos defensores de direitos humanos e ambientais e a responsabilidade que as pessoas com recursos tm em apoiar suas atividades. A Sur 25 tambm traz o perfil de trs mulheres que lutam pelos direitos humanos e ambientais, inspiradas por suas crenas religiosas e originrias de comunidades impactadas em grande medida pela explorao de recursos naturais (desmatamento, extrativismo, monocultura, etc.). Beata Tsosie Pea (EUA), Jennifer Domnguez (Guatemala) e Jice Cleide Santiago dos Santos (Brasil) foram trs participantes da conferncia ecumnica F no clima que aconteceu no Rio de Janeiro em maio de 2017. O objetivo do encontro foi discutir as mudanas climticas e fortalecer uma rede de defesa de direitos.

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HISTRIA EM QUADRINHOS

ENSAIOS

Reconhecendo a necessidade de encontrar formas alternativas de comunicao para novas audincias, a Revista Sur tem o prazer de apresentar uma trecho da novela grfica La Lucha: A Histria de Lucha Castro e os Direitos Humanos no Mxico, idealizada pela Front Line Defenders. A novela retrata os perigos do trabalho dirio de ser um defensor de direitos humanos no Mxico e contextualizada com um prefcio de Lucha Castro, em cujo importante trabalho os quadrinhos se baseiam.

Ainda em relao ao Mxico, temos a honra de apresentar duas contribuies do pas. Primeiramente, Alejandro Anaya Muoz examina o desenvolvimento dos regimes internacionais de direitos humanos, em um contexto de relaes internacionais. O texto de fundamental importncia para qualquer pessoa interessada ou estudando relaes internacionais ou direitos humanos. Um conjunto de autores (Santiago Aguirre Espinosa, Stephanie Brewer, Sofa de Robina e Mara Luisa Aguilar) do Centro de Derechos Humanos Miguel Agustn Pro Jurez (Centro Prodh) discute a maneira inovadora que o Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes, nomeado pela Comisso Interamericana de Direitos Humanos, investigou o caso dos quarenta e trs estudantes desaparecidos de Ayotzinapa e examina por que sua metodologia pode ser vista como um exemplo de boa prtica para investigaes semelhantes no futuro.

Com base em um recente relatrio que argumenta que a violncia no Mxico equivale a crimes contra a humanidade, Marlon Alberto Weichert (Brasil) faz a mesma pergunta em relao ao Brasil e violncia desproporcional infligida na populao negra. Concluindo nosso conjunto de artigos, Vincent Ploton (Frana) examina os recentes acontecimentos nos rgos de tratados da ONU, particularmente focando em como suas recomendaes podem ser mais eficazes. Vincent se baseia no sucesso das recentes inovaes realizadas pelo Comit Contra a Tortura.

CARTA S LEITORAS E AOS LEITORES

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Philip Alston (Austrlia), membro do conselho consultivo da Revista Sur e acadmico de direitos humanos de renome internacional, oferece sua opinio sobre o estado atual do movimento de direitos humanos e como este deve com urgncia reagir para manter sua relevncia.

Por fim, gostaramos de enfatizar que esta edio da Revista Sur foi possvel graas ao apoio da Fundao Ford, Instituto Clima

VOZES

A organizao Mdicos Sem Fronteiras (MSF) apareceu nas manchetes internacionais aps a sua deciso de no receber mais financiamento da Unio Europeia (UE) em 2016, com base na oposio poltica migratria da UE. Nesta edio, Susana de Deus (Portugal) e Renata Reis (Brasil) discutem o processo e a controvrsia por trs da deciso.

PANORAMA INSTITUCIONAL

Juan E. Mndez (Argentina) conversa com a Revista Sur sobre seus seis anos como relator especial da ONU sobre Tortura e outros tratamentos ou punies cruis, desumanos ou degradantes. Ele explica como suas experincias anteriores na Argentina deram base ao trabalho de sua vida, como foi nomeado relator especial e suas conquistas durante seu mandato.

A Revista Sur sempre procura incluir materiais que seus leitores possam usar na prtica. Irit Tamir (EUA) oferece excelentes sugestes sobre como construir uma campanha efetiva, tendo como base a campanha bem-sucedida da Oxfam Por trs das marcas (Behind the Brands, na denominao original em ingls), que buscou influenciar as polticas de fornecimento das dez maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo.

DILOGOS

EXPERINCIAS

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CARTA S LEITORAS E AOS LEITORES

e Sociedade, Open Society Foundations, Oak Foundation, Sigrid Rausing Trust, International Development Research Centre (IDRC) e Swedish International Development Cooperation Agency (SIDA), bem como de alguns doadores annimos. Ns tambm somos extremamente gratos s pessoas abaixo pela colaborao a esta edio: Akemi Kamimura, Ana Carolina Alfinito, Aparecida H. Soares, Bonita Meyersfeld, Bruno Huberman, Caio Borges, Celina Lagrutta, Daniella Hiche, Evandro Lisboa Freire, Felix Dodds, Fernando Campos Leza, Fernando Scir, Josua Loots, Karen Lang, Kristina Ardaga, Mara Jos Guembe, Muriel Asseraf, Renato Barreto, Sebastin Porra Schiess, Stephen Carter, Tom Lomax e Vivian Calderoni. Alm disso, agradecemos especialmente a colaborao dos autores e o trabalho rduo da equipe editorial e do conselho executivo da Revista. Por ltimo, a equipe de comunicao da Conectas merece um enorme reconhecimento por sua dedicao a esta edio. Como sempre, somos muito gratos pelo inestimvel apoio e orientao dos diretores da Conectas Direitos Humanos Juana Kweitel e Marcos Fuchs.

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DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOS

O PAPEL DA LEI NA PREVENO DA EXPLORAO

RIQUEZA ALM DO ALCANCEJaved Noorani

O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA REFORMA DO SETOR DE SILVICULTURA DA LIBRIASilas Kpanan Ayoung Siakor

O PAPEL DO ESTADO E DA INICIATIVA PRIVADA NA EXPLORAO DOS RECURSOS NATURAIS

PRIVADOS DE GUAAseil Abu-Baker

CAJAMARCA, COLMBIARenzo Alexander Garca

MASSACRE EM MARIKANAMichael Power & Manson Gwanyanya

O CASO DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM NO RIO DOCECaio Borges & Tchenna Fernandes Maso

EXPLORAO DE RECURSOS NATURAIS E MUDANAS CLIMTICAS

PRESTANDO CONTAS DOS DANOS AOS DIREITOS HUMANOS CAUSADOS POR MUDANAS CLIMTICASTessa Khan

NOVA MATRIZ ENERGTICA TRANSFORMAR OS ESTADOS UNIDOS EM TERCEIRO MUNDO?Michael T. Klare

O PAPEL DOS INDIVDUOS NA PROTEO DE NOSSOS RECURSOS NATURAIS

BERTA VIVE! COPINH CONTINUA...Patricia Ardn & Daysi Flores

OS VERDADEIROS HERIS E HERONAS DO MOVIMENTO AMBIENTALAlex Soros

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SUR 25 - v.14 n.25 17 - 26 | 2017

PALAVRAS-CHAVEMinerao | Corrupo | Afeganisto | Legislao sobre recursos naturais

RESUMO

Apesar de possuir riqueza de recursos minerais, o Afeganisto um dos pases mais pobres do mundo. Embora o pas tenha um arcabouo jurdico relativamente bem estruturado em relao minerao, raramente ele implementado adequadamente. Consequentemente, o setor saqueado por polticos corruptos e senhores locais da guerra. Neste artigo, Javed Noorani apresenta uma anlise do arcabouo legal existente. Em seguida oferece trs exemplos nos quais este arcabouo no conseguiu proteger a populao local de violaes de direitos humanos. Por ltimo, Javed sugere como a situao pode ser melhorada, por exemplo, revisando as disposies legais existentes para incluir uma maior nfase nas medidas anticorrupo e trabalhando para garantir que as consultas comunitrias sejam devidamente conduzidas.

RIQUEZA ALM DO ALCANCE

Javed Noorani

Como as atividades de minerao no Afeganisto afetam negativamente as comunidades locais

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RIQUEZA ALM DO ALCANCE

Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

1 Introduo

O Afeganisto possui algumas das geologias mais complexas e variadas do mundo. O pas possui chumbo, zinco, ferro, cromo, estanho e tungstnio, mercrio e urnio, bem como vrios tipos de elementos naturais raros. O cinturo de cobre no Afeganisto se estende por 600 km.1 2 Entre os noventa e trs tipos de metais preciosos encontrados no pas esto o ouro, prata e platina.3 Alm disso, o Afeganisto tambm possui vrios tipos de pedras preciosas e semipreciosas, incluindo esmeraldas, rubis, turquesa, kunzite e lpis-lazli.4 Apesar de tais riquezas serem uma enorme fonte potencial de receita para o pas, o Afeganisto ainda est lutando para implementar um arcabouo legal efetivo. O processo de minerao licitaes, contratos, extrao e monitoramento est envolto em mistrios. Isso permite a influncia poltica e enriquecimento pessoal das autoridades e agentes envolvidos. Consequentemente, apesar das riquezas que o Afeganisto possui, a maioria da populao vive abaixo da linha de pobreza e o Afeganisto o 167 pas mais pobre do mundo e altamente dependente de ajuda internacional.5

2 Lei da minerao e arcabouo poltico do Afeganisto

Embora os recursos naturais possam ser um recurso tentador para os pases em desenvolvimento com escassez de dinheiro a fim de obter capital de modo rpido, de suma importncia ter uma estratgia nacional inclusiva e abrangente, um arcabouo legal claro e instituies competentes para gerenciar e supervisionar esse processo.

O Afeganisto tem um arcabouo jurdico estruturado em relao ao seu setor extrativista. H tanto uma Lei de Minerais, quanto uma Lei de Hidrocarbonetos no pas6 e cada uma dessas leis acompanhada por um conjunto de regulamentaes complementares.7 Some-se a isso uma srie de documentos de polticas que abordam diversos elementos da indstria extrativa, cuja organizao est descrita abaixo.

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DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOSJAVED NOORANI

SUR 25 - v.14 n.25 17 - 26 | 2017

Este conjunto de leis, regulamentaes e polticas contm um linguajar admirvel em termos de proteo de direitos e objetivos de desenvolvimento. A Lei dos Minerais, por exemplo, tem como objetivo, entre outras coisas:

Regulamentar o desenvolvimento e uso adequado dos recursos minerais do Afeganisto; Auto-sustentabilidade econmica do Afeganisto por meio do desenvolvimento de seu setor mineral; Garantir que os recursos minerais sejam extrados e geridos de acordo com as melhores

Fonte: Poltica Nacional de Minerao, Ministrio das Minas e Petrleo, http://mom.gov.af/en/

page/3993/7664.

Poltica Nacional de Minerao

Poltica de Proteo Ambiental

Poltica social parao setor de Minerao

Poltica de acesso a dados e informaes

de Geocincias

Poltica Industrialde Minerais

Poltica de Elementos Naturais Raros e Metais

Poltica Nacionalde extrao de Carvo

Poltica de Minerao Radioativa

Poltica Nacionalde Minerao de Metais

Poltica de Minerao Artesanal e de pequena escala

Poltica de Pedras preciosas

Poltica de Materiais de Construo

Poltica de pedras de grande dimenso

Poltica de Gs Natural Comprimido

Poltica de SadeOcupacional e Segurana

Poltica de Seguranasobre o uso de Explosivos

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http://mom.gov.af/en/page/3993/7664http://mom.gov.af/en/page/3993/7664

RIQUEZA ALM DO ALCANCE

Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

prticas e experincias internacionais; Assegurar o melhor aproveitamento da extrao e processamento de minerais; Desenvolvimento sustentvel dos recursos minerais, preveno do despejo de resduos e mitigao de impactos ambientais e sociais negativos; Promover a paz e a segurana por meio do desenvolvimento de atividades sociais e econmicas nas comunidades locais de minerao.8

Apesar dessas protees no papel, a realidade no terreno muito diferente. Um recente relatrio da Integrity Watch Afghanistan (Observatrio de Integridade do Afeganisto) baseado em um estudo de caso de cinco minas no pas encontrou uma lista de problemas ao longo do processo de minerao. Os editais de licitaes normalmente foram preparados de tal forma que favoreciam o licitante vencedor e os contratos foram concedidos por fim a empresas nas quais polticos ou outros funcionrios do governo afego tm interesse, em violao da Lei de Minerais que probe que certas autoridades recebam licenas.9 O mesmo relatrio detalhou como, apesar de existirem certos requisitos legislativos e contratuais para que as empresas realizassem estudos de impacto social e ambiental antes da extrao, em nenhuma das minas investigadas isso havia sido feito. Na realidade, todos comearam a extrao antes de obter as autorizaes necessrias ou pagar as licenas e impostos exigidos. Por ltimo, o estudo constatou que os mecanismos de monitoramento e prestao de contas do Ministrio da Minerao e Petrleo no tinham sido implementados em absoluto.10

Essa falta de capacidade de traduzir a teoria na prtica significa que o Afeganisto est sendo saqueado de seus recursos naturais. Apesar do governo ter uma enorme quantidade de informaes sobre esses abusos, ele continua a proteger os interesses das empresas de minerao. Estes fatos apontam para o fato que o Afeganisto pontua muito pouco em termos de estruturas de governana para o setor de minerao. Em 2013, por exemplo, o pas foi classificado como o 49 entre 56 pases pelo Natural Resource Governance Institute (Instituto de Governana de Recursos Naturais).11

O restante deste artigo analisa vrios casos diferentes de extrao mineral no Afeganisto que do destaque aos tipos de violaes de direitos humanos enfrentados pelas comunidades locais em relao indstria extrativista no Afeganisto. O artigo termina com uma anlise das medidas a serem tomadas para melhorar a situao.

3 Cobre

A Aynak, uma mina de alto nvel de cobre, uma das diversas minas no Afeganisto para as quais empresas privadas receberam direitos extrativos. Esta licena foi firmada com uma joint venture chinesa, China Metalurgical Group Corporation e Jiangxi Copper chamada MCCJCLJCL Aynak Minerals em maio de 2008.12 Ao contrrio das

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DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOSJAVED NOORANI

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Diretrizes da Poltica Nacional de Minerao,13 o governo ofereceu uma mina de cobre sem realizar uma consulta preliminar sobre as comunidades que vivem na regio, seus meios de subsistncia, posse de terra, estruturas sociais ou economia e meio ambiente da regio. Embora o ento Ministro das Minas e Petrleo, Ibrahim Adel, tenha visitado as comunidades locais e feito inmeras promessas, as interaes foram mais enganosas do que qualquer consulta bem-intencionada com habitantes locais.14

As mulheres so especialmente afetadas pelas atividades de minerao devido presena da Polcia de Proteo da Aynak, uma unidade do Ministrio do Interior que fornece segurana empresa. As mulheres j tinham acesso limitado aos espaos pblicos antes do incio das atividades de extrao. No entanto, novos desdobramentos nos locais de minerao restringiram ainda mais o movimento das mulheres, j que as foras de segurana, destacadas para proteger a mina, as assediam. Consequentemente, elas so obrigadas a ficar dentro dos recintos de suas casas.15

Algumas comunidades em Aynak afirmam que herdaram a terra de seus antepassados, e o cl nmade Kuchi reivindica o direito terra de pastagem da rea ao redor. Existem vrias reivindicaes de posse comunitria de terra. Por exemplo, um dos representantes da comunidade de Aynak explicou que a vila principal que agora se situa na rea reservada para as operaes de minerao recebeu este nome em homenagem ao meu bisav, Adam.16 Vrios moradores locais confirmaram isso, afirmando que a terra em Aynak pertence aos bisnetos de Adam. No entanto, as propriedades das pessoas foram apreendidas sem compensao e, com exceo de duas pessoas, a comunidade foi deslocada contra sua vontade e perdeu seus meios de subsistncia.17 O estado tem jogado completamente a favor da empresa privada, protegendo os interesses privados e, por sua vez, privando seus prprios cidados de seus meios de subsistncia, tornando-os cada vez mais vulnerveis.

4 Cromita

O governo concedeu a licena de extrao da mina de cromita de Kohi Safi em Parwan a uma empresa afeg chamada Hewad Brothers Company.18 A empresa no tinha experincia prvia em minerao. 50% da empresa pertence a um poderoso senhor da guerra, conhecido por sequestros, apropriao ilcita de terras e assassinatos de pessoas inocentes.19 Novamente, o governo no consultou nenhuma das comunidades locais, nem realizou nenhum estudo antes de abrir o concurso para a licitao. A licitao continha fases claras de explorao e extrao definidas. No entanto, homens e funcionrios armados da empresa entraram na rea dois dias aps a licitao ter sido firmada e comearam a extrair a cromita em completa violao dos termos acordados.20

O distrito em que a cromita est sendo extrada possui quarenta e dois mil habitantes.21 A operao de minerao ocorre apenas a vinte metros das aldeias de Gahah Khile e Nouman Khile em Kohi Safi. Mais uma vez, a chegada de pessoas alheias ao local incluindo milcias armadas afetou desproporcionalmente a locomoo das mulheres na comunidade. Ficou mais difcil para

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RIQUEZA ALM DO ALCANCE

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elas fazerem os trabalhos que estavam habituadas, participarem de eventos sociais, irem ao posto de sade e as meninas no vo mais escola tudo isso por medo da violncia.22

Alm disso, os habitantes ao redor da mina tambm vivenciaram conflitos violentos devido ao comportamento irresponsvel da empresa, que levou a morte de dezenas de habitantes locais. Por exemplo, em 2012 a empresa recrutou guardas de uma aldeia chamada Naza Dara. No entanto, a extrao estava acontecendo em outra aldeia, Jala Qala.23 Os moradores de Jala Qala se sentiram descriminados. Os ancios de Jala Qala disseram empresa que eles deveriam ser empregados como guardas porque so os que so afetados pela minerao.24 Por fim, a Hewad Brothers Company entregou a segurana aos moradores de Jala Qala. Dois meses depois, seis ex-guardas de Naza Dara foram mortos em um ato de violncia planejado.25 Os ancios de Naza Dara suspeitam que essas pessoas foram mortas por moradores de Jala Qala que, anteriormente tinham protestado contra a empresa e solicitaram emprego como guardas. Dois meses depois, Mullah Salam e Mullah Kabir, dois clrigos de Jala Qala foram assassinados.26 Aps esses eventos, a Hewad Brothers Company desarmou a populao local com a ajuda da polcia local e trouxe quarenta homens armados para proteger a mina.27 No entanto, a empresa manteve alguns ancios da comunidade em sua folha de pagamento para gerenciar a comunidade e desencorajar as pessoas de protestarem contra a empresa. Isso levou a uma suspeita maior e semeou ainda mais fragmentao entre as comunidades locais.28

Os guardas particulares da empresa ameaaram pessoas locais a no se pronunciar publicamente contra a empresa. Os habitantes locais se sentiram vulnerveis e recorreram a insurgentes, incluindo o Talib, para buscar justia e proteo, forando, por fim, a empresa a sair da regio. As duas comunidades esto sujeitas agora a um conflito violento, uma consequncia direta da minerao irresponsvel na rea.

5 Lpis-lazli

At 1979, o governo extraiu anualmente cerca de quatro toneladas de lpis-lazli de uma mina no distrito de Keran-wa-Menjan, em Badakhshan, e recebeu bons lucros, mantendo o controle sobre o fornecimento e preo do mineral. A extrao de lpis-lazli foi estimada em cerca de 50 milhes de dlares em receitas anuais at que comerciantes chineses comearam a comprar a pedra.29 A extrao de lpis-lazli aumentou dez vezes e o comrcio atingiu 500 milhes de dlares por ano.30 No entanto, durante os regimes comunistas na dcada de 1980, quando houve um conflito generalizado no Afeganisto e o distrito de Keran-wa-Menjan no era seguro, Ahmad Shah Masood, um comandante jihadista, extraiu lpis-lazli para juntar dinheiro para continuar a guerra contra o Estado.31

Desde a sua morte, os comandantes da milcia leais ao grupo jihadista Northern Alliance (Aliana do Norte), com uma base forte no norte do pas, continuaram a extrair lpis-lazli e embolsar o dinheiro. O comandante jihadista Abdul Malik um dos homens que continuadamente controlou as minas de lpis-lazli, exceto por um breve perodo em que

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a licitao para a extrao de lpis-lazli foi concedida Lajwardin Company, apoiada por Zalmay Mojadaddi, ex-governador de Badakhshan.32 Lajwardin Company prometeu extrair o mineral e gerar receitas de modo legal para o Estado e controlar a minerao ilegal. Este acordo ameaou os interesses monetrios da mfia do lpis-lazli tanto em Cabul quanto na provncia de Badakhshan. Como consequncia, ocorreu um conflito sobre o controle da mina de lpis-lazli entre Zalmay Mojadaddi e o Comandante Malik, que apoiado por funcionrios de alto escalo do governo em Cabul e grupos insurgentes locais para os quais ele pagou milhes de dlares por ano em troca de proteo.33

O conflito entre Malik e Mojadadi levou a morte de dezenas de homens armados de ambos os lados. Hoje em dia, Abdul Malik j controla completamente a mina.34 Depois de diversas tentativas de resolver o conflito, os ancios locais, funcionrios do governo e senhores da guerra conseguiram encontrar um acordo com algum tipo de frmula de compartilhamento, onde sete pessoas dividem os rendimentos da mina.35 Atualmente, a receita gerada a partir das minas de lpis-lazli se esvaece no mercado paralelo, sendo parte coletada por insurgentes para continuar a guerra contra o governo. A localidade de Keran-wa-Menjan, onde esto localizadas as minas de lpis-lazli, tem uma populao de mais de oito mil pessoas e continua sendo um dos distritos mais pobres do pas.36

6 Carvo

O Afeganisto possui diversas reservas de carvo espalhadas por todo o pas.37 As reservas de carvo no norte e oeste do Afeganisto foram exploradas, algumas vezes com licenas, mas tambm diversas vezes de forma ilegal por poderosos senhores da guerra, parlamentares e outras pessoas com conexes polticas. De acordo com uma lista de minas ilegais em todo o pas, existem mais de trezentas e cinquenta minas ilegais de extrao de carvo em dois distritos de Samangan.38 O autor visitou pessoalmente a regio de Dan-e-Toor, na provncia de Samangan, onde encontrou cerca de uma centena de tneis para a extrao de carvo operados de forma ilegal. Um alto funcionrio do Ministrio das Minas e Petrleo tambm admitiu que cinco deputados estavam operando 892 tneis de carvo e extraindo ilegalmente milhares de toneladas de carvo diariamente, mas pagando muito pouco ao governo.39 Existem tambm reservas de carvo nas provncias de Sar-i-pul, Takhar e Bamiyan que esto sendo exploradas ilegalmente e fornecendo matria prima a carvoarias ou sendo exportadas.

Outro membro do parlamento, eleito pela provncia de Herat, est operando duas minas de carvo por meio de sua empresa, uma em Herat e outra em Western Garmak no distrito de Samangan. Ele teria extrado mais de um milho de toneladas por ano, exportando a maior parte para pases vizinhos.40 Este poltico ao que tudo indica no paga licenas ou impostos. 41 Os habitantes locais se queixaram aos ancios locais, ao governo do distrito e polcia, mas, em vez de auxiliar, essas instituies protegeram a empresa e pressionaram as comunidades locais a permitir uma operao de minerao tranquila.42

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RIQUEZA ALM DO ALCANCE

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7 Olhando para o futuro

Apesar desta realidade um tanto sombria, existem vrias aes que poderiam melhorar enormemente o setor extrativo no Afeganisto.

O Ministrio das Minas e do Petrleo deve liderar essas mudanas, garantindo uma viso a longo prazo que no se foque no ganho financeiro a curto prazo. De modo urgente, a Lei de Minerais deve ser revisada e ter maior foco em medidas de combate corrupo, em particular, por meio da recentralizao do sistema de licenas, cuja descentralizao tem sido um dos principais contribuintes para o aumento da corrupo. Alm disso, sanes mais rigorosas precisam ser definidas e aplicadas de forma mais ativa para desencorajar os operadores de infringirem a lei. O processo de licitao tambm deve ser melhorado ele precisa ser coordenado por uma equipe de especialistas de acordo com padres mais rigorosos de transparncia e prestao de contas.

O Ministrio das Finanas e o Ministrio de Minas e Petrleo devem criar um mecanismo conjunto para garantir que as receitas a serem pagas pelas empresas de minerao sejam coletadas de forma regular, efetiva e transparente.

Em relao a questes sociais e ambientais, o Acordo de Desenvolvimento Comunitrio deve ser implementado pela empresa mineradora sem omisses, conforme exigido pela lei. Esse tipo de consulta a nica maneira de garantir que uma comunidade esteja empoderada e informada. Da mesma forma, a Agncia Nacional de Proteo Ambiental deve gerenciar de forma independente o processo de elaborao do Relatrio de Impacto Ambiental e Social e insistir que as empresas produzam o relatrio antes que as licenas de minerao sejam emitidas.

Conforme visto acima, as atividades de minerao tm um impacto desproporcional nas mulheres. Consequentemente, o Ministrio dos Assuntos das Mulheres deve realizar uma avaliao independente para entender melhor como mitigar o impacto negativo da minerao nas mulheres e garantir que uma abordagem baseada em gnero seja incorporada em todas polticas e leis de minerao.

A sociedade civil afeg precisa continuar desenvolvendo o seu conhecimento sobre a governana dos recursos naturais, a fim de se equipar melhor para o advocacy, tanto em escala nacional como internacional.

Por fim, a comunidade de doadores internacionais precisa trabalhar com o governo afego para garantir que melhorias sejam feitas no setor, por exemplo, fornecendo apoio financeiro para desenvolver estratgias aprimoradas de governana e tambm para atividades de capacitao para garantir a implementao adequada destas estratgias revisadas.

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1 Geology of Afghanistan, British Geological

Survey, acesso em 25 mai. 2017, https://www.

bgs.ac.uk/AfghanMinerals/geology.htm; Ferrous

metal, BGS, acesso em 25 mai. 2017, https://www.

bgs.ac.uk/afghanMinerals/femetals.htm.

2 Other Metals, BGS, acesso em 25 mai. 2017, https://

www.bgs.ac.uk/afghanMinerals/othermetals.htm.

3 Geology of Afghanistan, acesso em 25 mai. 2017.

4 Minerals in Afghanistan, BGS, acesso em 25

mai. 2017, https://www.bgs.ac.uk/afghanminerals/

docs/Gemstones_A4.pdf.

5 Jonathan Gregson, The Worlds Richest and

Poorest Countries. Global Finance, 13 fev. 2017,

https://www.gfmag.com/global-data/economic-

data/worlds-richest-and-poorest-countries.

6 Veja Minerals Law, Islamic Republic of

Afghanistan, Ministry of Justice, 16 ago. 2014,

acesso em 25 mai. 2017, http://mom.gov.af/

Content/files/Afghanistan-%20Minerals%20Law-

19-May-2015%20English.pdf; and Hydrocarbons

Law, Islamic Republic of Afghanistan, mar. 2014,

acesso em 25 mai. 2017, http://mom.gov.af/

Content/files/Hydrocarbons_Law_2009-(Unofficial_

English_Translation_dated_March_2014)-Final.pdf.

7 Mining Regulations, Ministry of Mines and

Petroleum, 14 fev. 2010, acesso em 25 mai.

2017 http://mom.gov.af/Content/files/Mining_

Regulations.pdf; e Hydrocarbons Regulations,

MoMP, 13 abril 2014, acesso em 25 mai. 2017,

http://mom.gov.af/Content/files/Hydrocarbons_

Regulations_2009-(Unofficial_English_Translation_

dated-April-13_2014).pdf.

8 Minerals Law, 16 ago. 2014.

9 Ibid, artigo 16(2).

10 J. Noorani, The Plunderers of Hope? Political

Economy of Five Major Mines in Afghanistan.

Integrity Watch Afghanistan, 2015, acesso em

25 mai. 2017, https://iwaweb.org/wp-content/

uploads/2015/12/The-Plunderers-of-Hope.pdf, 2-3.

11 The 2013 Resource Governance Index,

Natural Resource Governance Institute, 5

mai. 2013, acesso em 25 mai. 2017, https://

resourcegovernance.org/sites/default/fi les/

rgi_2013-webreport.pdf.

12 Aynak Mining Contract, MoMP, 8 abril,

2008, acesso em 25 mai. 2017, http://mom.gov.

af/Content/files/MCC%20Afghan%20Gover%20

Aynak%20Copper%20Contract%20English.pdf.

13 Veja, por exemplo National Mining Policy,

Islamic Republic of Afghanistan, Ministry of Mines,

Guidelines 13.3, 2012, acesso em 25 mai. 2017,

http://mom.gov.af/Content/files/Policies/English/

English_National_Mining_Policy.pdf.

14 Aynak A Concession for Change, IWA, 2013,

acesso em 25 mai. 2017, https://iwaweb.org/wp-

content/uploads/2014/12/aynak_a_concession_

for_change_english.pdf

15 Entrevista com um ancio local da vila de Davo

que faz fronteira com a mina de extrao de cobre

de Aynak, 8 fev. 2013.

16 Aynak A Concession for Change, 2013.

17 Ibid.

18 Entrevista com um funcionrio pblico

de alto escalo do ministrio das minas e do

petrleo, 10 fev. 2012.

19 Entrevista com um comerciante de minerais

prximo que trabalhou de perto com Haji Almas,

12 nov. 2016.

20 Noorani, The Plunderers of Hope?, 2015.

21 Entrevista com um ativista local que buscou

manter anonimato.

22 Entrevista com Molem Gul Nabi, um ancio

local, 10 dez. 2016.

23 Ibid.

24 Entrevista com Malik, 10 dez. 2014.

25 Entrevista com um ancio local que buscou

anonimato, 10 jan. 2015.

26 Entrevista com Molem Gul Nabi, 10 dez. 2016.

27 Noorani, The Plunderers of Hope?, 2015.

28 Entrevista com um ancio local que no quis

NOTAS

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https://www.bgs.ac.uk/AfghanMinerals/geology.htmhttps://www.bgs.ac.uk/AfghanMinerals/geology.htmhttps://www.bgs.ac.uk/afghanMinerals/femetals.htmhttps://www.bgs.ac.uk/afghanMinerals/femetals.htmhttps://www.bgs.ac.uk/afghanMinerals/othermetals.htmhttps://www.bgs.ac.uk/afghanMinerals/othermetals.htmhttps://www.bgs.ac.uk/afghanminerals/docs/Gemstones_A4.pdfhttps://www.bgs.ac.uk/afghanminerals/docs/Gemstones_A4.pdfhttps://www.gfmag.com/global-data/economic-data/worlds-richest-and-poorest-countrieshttps://www.gfmag.com/global-data/economic-data/worlds-richest-and-poorest-countrieshttp://mom.gov.af/Content/files/Afghanistan-%20Minerals%20Law-19-May-2015%20English.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/Afghanistan-%20Minerals%20Law-19-May-2015%20English.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/Afghanistan-%20Minerals%20Law-19-May-2015%20English.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/Hydrocarbons_Law_2009-(Unofficial_English_Translation_dated_March_20http://mom.gov.af/Content/files/Hydrocarbons_Law_2009-(Unofficial_English_Translation_dated_March_20http://mom.gov.af/Content/files/Hydrocarbons_Law_2009-(Unofficial_English_Translation_dated_March_20http://mom.gov.af/Content/files/Mining_Regulations.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/Mining_Regulations.pdfhttps://goo.gl/rqhVPuhttps://goo.gl/rqhVPuhttps://goo.gl/rqhVPuhttps://iwaweb.org/wp-content/uploads/2015/12/The-Plunderers-of-Hope.pdf, 2-3https://iwaweb.org/wp-content/uploads/2015/12/The-Plunderers-of-Hope.pdf, 2-3https://goo.gl/Y9gDzehttps://goo.gl/Y9gDzehttps://goo.gl/Y9gDzehttp://mom.gov.af/Content/files/MCC%20Afghan%20Gover%20Aynak%20Copper%20Contract%20English.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/MCC%20Afghan%20Gover%20Aynak%20Copper%20Contract%20English.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/MCC%20Afghan%20Gover%20Aynak%20Copper%20Contract%20English.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/Policies/English/English_National_Mining_Policy.pdfhttp://mom.gov.af/Content/files/Policies/English/English_National_Mining_Policy.pdfhttps://iwaweb.org/wp-content/uploads/2014/12/aynak_a_concession_for_change_english.pdfhttps://iwaweb.org/wp-content/uploads/2014/12/aynak_a_concession_for_change_english.pdfhttps://iwaweb.org/wp-content/uploads/2014/12/aynak_a_concession_for_change_english.pdf

RIQUEZA ALM DO ALCANCE

Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

ser identificado, 23 nov. 2015.

29 Entrevista com um comerciante local, 7 out. 2015.

30 Relatrio ainda no publicado do autor sobre

as minas de lpis-lazli em 2016.

31 Entrevista com Hadyatullah Hakimi comerciante

de lpis-lazli em Badakhshan, 10 ago. 2014.

32 Kuran Wa Munjan District Badakshan

Province, Afghan Bios, 2011, acesso em 25 mai.

2017, https://goo.gl/tp4dsM.

33 Entrevista com um comerciante de lpis-lazli

de Badakhshan, 10 jan. 2016.

34 Op-cit entrevista com um comerciante local

que no quis ser identificado, 11 dez. 2015.

35 Entrevista com um comerciante de lpis-lazli

de Cabul, 15 mar. 2015.

36 Badakhshan A Socio-Economic and

Demographic Profile, UNFPA, 2003, acesso em 25

mai. 2007, http://afghanag.ucdavis.edu/country-

info/Province-agriculture-profiles/unfr-reports/All-

Badakhshan.pdf/view.

37 Entrevista com o Engenheiro Ghafar da

Afghanistan Geological Survey, 14 dez. 2016.

38 Lista de locais de minas ilegais publicada pelo

Ministrio das Minas e Petrleo (MoMP, na sigla em

ingls) em 2013.

39 Entrevista com um alto funcionrio do

Ministrio das Minas e Petrleo (MoMP, na sigla em

ingls), 15 set. 2016.

40 Entrevista com o gerente snior na Khoshak

brothers company, 22 dez. 2015.

41 Noorani, The Plunderers of Hope?, 2015.

42 Entrevista com moradores locais, 12.

JAVED NOORANI AfeganistoJaved Noorani pesquisador independente e membro do Comit Independente Conjunto de Monitoramento e Avaliao Anticorrupo do Afeganisto (MEC, na sigla em ingls). Javed vem conduzindo extensos trabalhos de campo, entrevistas e pesquisa documental sobre o setor extrativo no Afeganisto.

contato: [email protected]

Recebido em maro 2017.Original em ingls. Traduzido por Fernando Scir.

Este artigo publicado sob a licena de Creative Commons Noncommercial

Attribution-NoDerivatives 4.0 International License

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PALAVRAS-CHAVELibria | Silvicultura | Charles Taylor | Sanes | Sociedade Civil

RESUMO

Este artigo ressalta os vnculos entre explorao de recursos naturais, corrupo e violaes de direitos humanos em situaes de conflito e imediatamente ps-conflito no contexto da Libria. Aps contextualizar o conflito na Libria, o autor relata que ocorreram diversas violaes de direitos humanos no setor de silvicultura liberiano. Os comandantes da milcia cometeram essas violaes, apoiados por empresas madeireiras internacionais cujos executivos de alto nvel facilitaram a aquisio e transferncia de armas e materiais militares. Alm disso, essas empresas efetuaram pagamentos a indivduos envolvidos no treinamento de milcias.

O autor examina depois como a sociedade civil liberiana, trabalhando em estreita colaborao com organizaes internacionais, defendeu as reformas na silvicultura como uma abordagem estratgica para reduzir as violaes de direitos humanos e garantir direitos para aqueles que vivem na pobreza. Descreve tambm como, na dcada decorrida desde o final da guerra civil, essas reformas levaram ao aumento do acesso da sociedade civil s reas de explorao madeireira para monitorar a conduta das empresas e como comunidades outrora carentes compartilham agora da receita da silvicultura auferida pelo governo central. O governo tambm reconheceu formalmente certos direitos comunitrios em relao silvicultura. O artigo conclui observando que, apesar da legislao progressista em vigor, algumas medidas fundamentais da reforma ainda no foram totalmente implementadas e argumenta que o eventual sucesso delas depender da presso da comunidade internacional.

O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA REFORMA DO SETOR DE SILVICULTURA DA LIBRIA

Silas Kpanan Ayoung Siakor

Reflexes de um ativista da sociedade civil

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O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA REFORMA DO SETOR DE SILVICULTURA DA LIBRIA

Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

1 Introduo

Fundada por escravos libertados das Amricas, a Libria declarou sua independncia em 1847, mas seriam necessrios mais de cem anos para que os liberianos nativos ganhassem o direito de votar, em 1955.1 Os amrico-liberianos, como foram chamados os colonizadores, dominaram a economia e a poltica do pas at 1980, quando um sangrento golpe militar acabou com seu governo de partido nico. No entanto, o fracasso de sucessivos governos em resolver a m governana, a pobreza e a desigualdade desembocou numa revolta em 1989 que degenerou em guerra civil na dcada de 1990.2

Na dcada de 1990 e incio dos anos 2000, a Libria tornou-se sinnimo de violao flagrante dos direitos humanos. Grande parte dessa notoriedade estava ligada explorao dos recursos naturais, em especial as violaes de direitos humanos que caracterizavam a extrao e o comrcio de madeira e diamantes. Alm das violaes cometidas pelo pessoal-chave de vrias empresas madeireiras e pelas milcias que elas sustentavam, o comrcio de madeira desempenhou um papel fundamental no estmulo e no prolongamento da guerra civil, responsvel pela morte de aproximadamente 270 mil pessoas.3

As organizaes nacionais e internacionais da sociedade civil coordenaram esforos para documentar e relatar amplamente a situao, complementando o trabalho de um Painel de Especialistas das Naes Unidas (ONU) montado na Libria. Em 2001, o Conselho de Segurana da ONU imps sanes aos diamantes liberianos, citando os vnculos entre a guerra na vizinha Serra Leoa e o comrcio de diamantes.4 Quando surgiram provas mais fortes dos vnculos entre a indstria madeireira, os conflitos e a violao das medidas das Naes Unidas, o Conselho de Segurana ampliou as sanes para incluir a madeira em 2003.5

Depois dessa ampliao das sanes, a capacidade de Charles Taylor de obter receita para financiar sua guerra contra os dois grupos armados que combatiam seu governo foi significativamente limitada. Com faces rivais ocupando posies estratgicas fora da capital liberiana e a comunidade internacional exigindo que ele deixasse a Libria, Taylor fugiu para o exlio na Nigria.6

2 A atividade madeireira e a economia nacional

A Libria contm os maiores remanescentes da floresta da Alta Guin da frica Ocidental, que abrange nove pases, entre os quais Guin, Serra Leoa, Libria, Costa do Marfim, Gana e Togo. O governo liberiano estima que 42% da floresta restante da Alta Guin se encontra em seu pas.7 A Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao calcula que as reas florestais representam pelo menos 32,7% dos 9,6 milhes de hectares de terras da Libria.8

A explorao industrial da madeira para exportao o modelo preferido do governo para as atividades econmicas do setor florestal. Em 1989, antes da exploso da guerra

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SILAS KPANAN AYOUNG SIAKOR

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DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOS

civil no ano seguinte, essa explorao contribuiu com cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) do pas.9 O setor madeireiro formal comeou a parar medida que a guerra aumentava e, em seu lugar, surgiu um empreendimento criminoso, formado pelos capangas e partidrios do ento lder dos rebeldes, Charles Taylor. Eles passaram a explorar a madeira em territrios dominados pelos rebeldes e export-la para a Europa e outros lugares. Depois que Charles Taylor foi eleito presidente, em 1997, em eleies que pretendiam acabar com a guerra civil, as companhias madeireiras que haviam suspendido suas atividades por causa do conflito reiniciaram suas operaes em 1998.

A explorao e as exportaes de madeira foram retomadas gradualmente: em 2001, a produo j havia quadruplicado e, em 2003, atingiu o nvel do pr-guerra de um milho de metros cbicos, num valor de aproximadamente 100 milhes de dlares.10 quela altura, as exportaes de madeira respondiam por cerca de metade da receita cambial e 20% do PIB do pas.11 A indstria entrou em colapso em 2003, quando foram aplicadas as sanes ao setor madeireiro. O Conselho de Segurana da ONU levantou essas sanes em 2006, depois que o governo apresentou um programa de reformas do setor de silvicultura. Mais de um milho de hectares de floresta esto sob contratos de explorao madeireira e 785.841 metros cbicos de toras avaliadas em pouco menos de 150 milhes de dlares foram exportados entre 2009 e 2016.

3 Violaes de direitos humanos ligados silvicultura

Imediatamente aps sua vitria eleitoral em 1997, o presidente Charles Taylor concedeu blocos de florestas ricos em madeira a aliados formais e parceiros de negcios. Taylor propiciou s empresas madeireiras acesso relativamente barato aos recursos de madeira do pas e, em troca, as empresas deram-lhe acesso a redes criminosas internacionais que comercializavam armas e pedras preciosas, bem como apoio logstico e financeiro para sustentar suas milcias. Alm disso, a indstria madeireira da Libria proporcionava uma cobertura conveniente para traficantes de armas penetrarem na regio.

A maior concesso madeireira da histria da Libria foi dada Liberia Forest Development Corporation (LFDC), uma empresa de propriedade do holands Gus van Kouwenhoven. O contrato com a LFDC, assinado em julho de 1999, foi imediatamente repassado para a firma Oriental Timber Corporation (OTC), com ligaes asiticas. O Sr. Kouwenhoven, que maquinou esses negcios, participaria depois da montagem de esquemas para a transferncia de armas, munies e equipamentos militares variados para a Libria, junto com o famigerado negociante de armas Victor Bout.12 O Painel de Especialistas da ONU sobre a Libria tambm informou em 2003 que Kouwenhoven forneceu um helicptero de estilo militar ao governo no lugar de impostos relacionados silvicultura.13 Aps uma prolongada batalha legal, em abril de 2017, um tribunal holands julgou Kouwenhoven culpado de ser um acessrio de crimes de guerra e trfico de armas14 por fornecer armas a Taylor durante as brutais guerras civis liberianas.

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O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA REFORMA DO SETOR DE SILVICULTURA DA LIBRIA

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A fora de trabalho da OTC era composta, em sua maioria, por ex-combatentes rebeldes sem qualificao. As foras de segurana da OTC compunham-se principalmente de milicianos sob o comando de ex-comandantes rebeldes. Por exemplo, a empresa recrutou para chefe de segurana o general Roland Duo, um ex-comandante rebelde que lutou por Taylor e teve um papel importante em seu aparato de segurana aps sua eleio.15 As foras de segurana da empresa foram acusadas de abusos que iam de espancamentos a prises e detenes arbitrrias e explorao sexual.16 Esses comandantes e milicianos rebeldes, sustentados pela OTC, continuaram lutando em favor de Taylor quando outros grupos rebeldes retomaram seus ataques, em um esforo para expulsar Taylor.

Outras empresas madeireiras tambm apoiaram os comandantes da milcia que foram acusados de massacres e outras violaes de direitos humanos. Em um caso documentado, os investigadores da ONU descobriram uma cova coletiva no sudeste da Libria com os restos de cerca de 200 vtimas de um massacre que teria sido cometido por foras sob o comando de um certo general William Sumo, que era chefe de segurana da Maryland Wood Processing Industries,17 cujo dono era o empresrio libans, Abbas Fawaz.18

As empresas madeireiras no s deram apoio a comandantes e milcias rebeldes que cometiam violaes de direitos humanos, como tambm pagaram pela importao de armas, ignorando o embargo de armas da ONU, e por mercenrios que apoiavam a aventura militar de Charles Taylor na regio. Por exemplo, documentos apresentados por um representante da OTC a um painel que investigava as empresas madeireiras em 2004 revelaram que essa empresa transferira grandes quantias em nome do governo da Libria para indivduos listados como mercenrios e traficantes de armas em vrios relatrios da ONU sobre a Libria. O Painel de Especialistas da ONU sobre a Libria j havia informado sobre esses pagamentos em 2003.19

De acordo com os documentos mencionados acima, a OTC efetuou pagamentos a Fred Rindel,20 um oficial aposentado da Fora de Defesa da frica do Sul e ex-adido militar sul-africano nos Estados Unidos, e a Sanjivan Ruprah, cidado queniano de ascendncia indiana.21 O Painel de Especialistas da ONU na Libria informou que Rindel (que tambm teria apoiado os rebeldes da UNITA em Angola)22 foi contratado por Taylor para fornecer treinamento a um grupo de milcias chamado Unidade Anti-Terrorista,23 comumente conhecido na Libria como foras do demnio, devido a seu papel nas violaes de direitos humanos, inclusive assassinatos. O Painel descreve Sanjivan Ruprah como um conhecido traficante de armas.24 Mais tarde, Ruprah foi preso pela segurana belga e acusado de associao criminosa25 relacionada a seu papel no trfico de armas que infringia as resolues da ONU.

Outro indivduo envolvido na indstria madeireira era o ucraniano Leonid Minin.26 Ele tinha uma participao na madeireira denominada Exotic Tropical Timber Enterprise e desempenhou um papel ativo na compra e entrega de armas Libria em 2000.27 Detido na Itlia naquele mesmo ano,28 ficou claro seu papel nas infraes das sanes relativas ao

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contrabando de armas. Ele usara suas conexes com o presidente Taylor e seu disfarce de empresrio da indstria madeireira para facilitar esse papel.

4 Reforma da silvicultura e levantamento das sanes

No final de 2003, com Taylor no exlio e um governo interino em vigor, a ONU, como condio prvia ao levantamento das sanes, pediu ao governo da Libria para tomar todas as medidas necessrias a fim de garantir que as receitas governamentais da indstria madeireira liberiana no sejam usadas para alimentar o conflito ou de outra maneira que viole as resolues do Conselho, mas destinadas a fins legtimos em benefcio do povo liberiano, inclusive o desenvolvimento.29

Em 2004, uma primeira tentativa do governo interino de iniciar uma reforma no setor de silvicultura fracassou quando o governo tentou excluir a sociedade civil do processo. Aps presso da sociedade civil e de doadores, o governo criou a Comisso de Reviso das Concesses de Silvicultura, com o objetivo de revisar todas as concesses existentes de explorao madeireira, e designou para essa comisso o advogado Alfred Brownell e o autor deste artigo.

A reviso, concluda em 2005, documentou a explorao madeireira ilegal generalizada, violaes de direitos humanos, transaes financeiras extra-oramentrias que envolviam empresas madeireiras e o envolvimento ativo de empresas do setor na guerra civil liberiana. Por conseguinte, a comisso recomendou que todas as concesses que revisou fossem canceladas.30 No incio de 2006, o governo da presidente Ellen Johnson-Sirleaf, por meio da Ordem Executiva n 1, adotou o relatrio, cancelou todas as concesses madeireiras e criou a Comisso de Monitoramento da Reforma da Silvicultura para supervisionar e coordenar o processo de reforma.31 Os dois representantes da sociedade civil que participaram da reviso da concesso foram novamente nomeados para a comisso.

Aps as eleies pacficas de 2005 e a entrega do poder em 2006, declarou-se o fim da guerra na Libria. Com todas as concesses madeireiras canceladas pela Ordem Executiva n 1, alm de uma nova lei florestal elaborada e aprovada sob os auspcios da Comisso de Monitoramento, e uma srie de novos regulamentos em desenvolvimento, o Conselho de Segurana da ONU levantou as sanes no final de 2006.32 Somente trs anos depois seria retomada a atividade madeireira formal.

5 Sociedade civil e reformas agrria e florestal

Aps sua eleio em 1997, Taylor passou a perseguir figuras da oposio, ativistas pela democracia e pelos direitos humanos, forando muitos ao exlio. A mdia independente tornou-se menos franca, pois os editores foram forados a praticar a autocensura. Isso resultou na criao de um ambiente de medo e terror. Enquanto os ativistas e defensores

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de direitos humanos liberianos tomavam medidas para se manter em segurana e se envolviam em monitoramentos e relatrios mais secretos, as organizaes no governamentais (ONGs) internacionais intensificaram seus relatrios sobre a situao dos direitos humanos no pas; porm, viajar para a Libria tornou-se cada vez mais perigoso. medida que a situao se deteriorava, comearam a formar-se novas parcerias entre ativistas locais e ONGs internacionais, j que os ativistas podiam reunir informaes e pass-las para as ONGs que ento as publicariam, depois de verificar vrias fontes. Essas parcerias permitiram que importantes atores da sociedade civil dentro e fora da Libria estabelecessem relaes estratgicas e credibilidade junto a influentes atores governamentais e indivduos da comunidade internacional. Essas relaes, especialmente com funcionrios do Congresso em Washington e membros de misses diplomticas no Conselho de Segurana da ONU em Nova York, se tornariam um capital poltico essencial para a sociedade civil no contexto imediato do ps-guerra.

Com a cessao das hostilidades em 2003 e o desarmamento em curso em 2004, a sociedade civil liberiana, com forte apoio de parceiros internacionais, tornou-se proativamente defensora local da reforma do setor florestal. Por exemplo, membros da sociedade civil se reuniram em abril de 2004 para criar uma pauta de reformas que tinha em seu centro a demanda por um processo independente, transparente e participativo de reviso das concesses florestais.33 A Iniciativa de Silvicultura da Libria, criada por mltiplos doadores, aps sua primeira misso na Libria um ms depois, incorporou essa proposta a sua prpria proposta de reforma apresentada ao governo da Libria.34 Com esse endosso de alto nvel aos apelos por uma reviso independente das concesses madeireiras, o Governo Nacional de Transio da Libria criou a Comisso de Reviso das Concesses de Silvicultura para conduzir a reviso, designando para essa comisso representantes de duas ONGs liberianas: o Instituto de Desenvolvimento Sustentvel e os Advogados Verdes.35 Isso marcou o incio de uma colaborao e coordenao informal de trs vias entre a sociedade civil liberiana, a sociedade civil internacional e os doadores, colaborao que continuaria durante todo o processo de reviso, at a elaborao de uma nova estrutura jurdica para a silvicultura.

Alm disso, desesperado para reativar a economia e dar trabalho a milhares de ex-combatentes impacientes, o governo da presidente Ellen Johnson Sirleaf fez do levantamento das sanes uma alta prioridade. A vontade poltica do governo de que o projeto de reforma fosse aprovado criou um ambiente positivo no qual a sociedade civil pde fazer demandas e propor uma pauta de reformas progressistas. As sanes no comrcio de diamantes e madeira continuavam a ter uma forte influncia na sociedade civil e junto aos doadores, e isso fez com que o governo cooperasse com a sociedade civil e com a Iniciativa de Silvicultura da Libria durante todo o processo e por vrios anos depois.

Em consequncia dessa colaborao e cooperao, a nova estrutura legal da silvicultura liberiana contm vrias disposies progressistas, entre elas o reconhecimento formal do direito das comunidades a suas matas tradicionais, o direito das populaes locais de participar dos processos de governana florestal e o direito de participao na receita

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da silvicultura. Alm disso, o acesso s informaes do setor florestal agora um direito para qualquer membro do pblico e a sociedade civil tem o direito de monitorar de forma independente as operaes de silvicultura. Em 2013, uma reforma agrria complementar reforou ainda mais os direitos da comunidade sobre as matas, mediante a adoo de uma Poltica de Direitos Agrrios que definiu a Terra Tradicional como uma categoria formal de propriedade da terra na Libria.36 Uma proposta de lei agrria, atualmente em exame pelo legislativo,37 procura conceder proteo legal igual a terras tradicionais. Se aprovada, ela poderia reformar drasticamente a dinmica de poder e as relaes entre o Estado, as empresas estrangeiras e as comunidades locais.

6 Concluso

Embora essas mudanas na lei tenham sido progressistas, a implementao no foi imediata. A plena implementao da estrutura legal representa um desafio e as medidas recm-introduzidas ainda no produziram totalmente os resultados esperados. Por exemplo, dos aproximadamente seis milhes de dlares que deveriam ter sido pagos s comunidades at o final de 2016, pouco menos de dois milhes foram pagos, deixando um saldo no pago de cerca de quatro milhes.38 Alm disso, conforme os contratos de concesso existentes, as comunidades no podero recuperar mais do que dois milhes de hectares de florestas e terras tradicionais at que esses contratos expirem, ainda que alguns deles tenham validade por mais 50 anos, ou mais ainda.

Com o estabelecimento de uma estrutura legal robusta e progressista, a Libria celebrou um Acordo de Parceria Voluntria com a Unio Europeia (UE) para combater a extrao ilegal de madeira e combater o comrcio de madeira ilegal, que entrou em vigor em 1o de dezembro de 2013.39 O apoio adicional do governo noruegus tambm est proporcionando recursos fundamentais para fortalecer a governana e a aplicao da lei no setor florestal. No entanto, h preocupaes de que a indstria esteja beira do colapso, j que as companhias existentes demonstraram uma incrvel falta de capacidade e interesse em obedecer a estrutura jurdica da silvicultura. Com as sanes extintas, a nica influncia que a comunidade internacional tem sobre a Libria parece ser a ameaa de excluir a madeira liberiana do mercado da UE, conforme as regulamentaes europeias sobre madeira ilegal. No entanto, a eficcia dessa influncia depender em grande parte de que a China venha a adotar uma poltica similar para excluir a madeira ilegal de seu mercado, uma vez que ela se tornou o destino preferido da madeira de lei liberiana.

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Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

1 Consideration of Reports Submitted by States

Parties Under Article 40 of the Covenant, Initial

Reports of States Parties due in 2005: Liberia, UN

Human Rights Committee (HRC), CCPR/C/LBR/1,

9 de dezembro de 2016, acesso em 8 jun. 2017,

http://www.refworld.org/docid/588f3af44.html.

2 Liberia: Poverty Reduction Strategy Paper

- Annual Progress Report, Republic of Liberia,

2008, acesso em 8 jun. 2017, https://www.imf.

org/external/pubs/ft/scr/2012/cr1245.pdf.

3 Ibid.

4 Resolution 1343 (2001), UN Security

Council, S/RES/1343 (2001), 7 de maro de

2001, acesso em 8 jun. 2017, https://www.jstor.

org/stable/20694160?seq=1#page_scan_tab_

contents.

5 Resolution 1478 (2003), UN Security Council,

S/RES/1478 (2003), 17(a), 6 de maio de 2003,

acesso em 8 jun. 2017, http://www.refworld.org/

docid/3f45dbe47.html.

6 Liberian President Charles Taylor Goes into

Exile, The Voice of America, 11 de agosto de 2003.

7 National Forestry Policy and Implementation

Strategy, Republic of Liberia, Forest

Development Authority, 2006, acesso em 8

jun. 2017, http://www.fao.org/forestry/16167-

0dd77b0af6b1e94481d519ab979fd40db.pdf.

8 State of the Worlds Forests, Food and

Agriculture Organization of the United Nations,

2009, acesso em 8 jun. 2017, http://www.fao.org/

docrep/011/i0350e/i0350e00.htm.

9 James W. Doe, The Forest Revenue System

and Government Expenditure on Forestry in

Liberia. FAO, julho de 2004, acesso em 8 jun.

2017, ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/007/ad494e/

ad494e00.pdf.

10 Liberia: Poverty Reduction Strategy Paper,

2008, 11.

11 Ibid.

12 UN Panel of Experts on Liberia Report

(S/2000/1195), UN Security Council, paras. 233

& 234, 20 de dezembro de 2000, acesso em 8

jun. 2017, http://www.securitycouncilreport.

org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-

CF6E4FF96FF9%7D/SL%20S2000%201195.pdf.

13 UN Panel of Experts on Liberia Report

(S/2003/498), UN Security Council, 24 de

abril de 2003, acesso em 8 jun. 2017, http://

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F483E4C2B60EC20AC1256D260048C102-unsc-

lib-24apr.pdf.

14 Owen Bowcott, Dutch Arms Trafficker

to Liberia Given War Crimes Conviction. The

Guardian, 22 de abril de 2017, acesso em 8 jun.

2017, https://www.theguardian.com/law/2017/

apr/22/dutch-arms-trafficker-to-liberia-guus-

kouwenhoven-given-war-crimes-conviction.

15 Taylor-made: The Pivotal Role of Liberias

Forests and Flag of Convenience in Regional

Conflict, Global Witness, setembro de 2001,

acesso em 8 jun. 2017, https://www.globalwitness.

org/sites/default/files/pdfs/taylormade2.pdf.

16 Logging-off: How the Liberian Timber

Industry Fuels Liberias Humanitarian Disaster

and Threatens Sierra Leone, Global Witness,

setembro de 2001, acesso em 8 jun. 2017, https://

www.globalwitness.org/en/archive/logging/.

17 Truth and Reconciliation Commission,

Volume Three: Appendices, Title III: Economic

Crimes and the Conflict, Exploitation and Abuse,

Republic of Liberia, 2009, acesso em 8 jun. 2017,

http://trcofliberia.org/resources/reports/final/

volume-three-3_layout-1.pdf.

18 UN Panel of Experts on Liberia Report

(S/2001/1015), UN Security Council, 26 de

outubro de 2001, acesso em 8 jun. 2017, http://

reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/

8694267033022D9FC1256AFC004A8DA2-unsc-

lib-26oct.pdf.

19 S/2003/498, 2003, 38.

NOTAS

34

http://www.refworld.org/docid/588f3af44.htmlhttps://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2012/cr1245.pdfhttps://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2012/cr1245.pdfhttps://www.jstor.org/stable/20694160?seq=1#page_scan_tab_contentshttps://www.jstor.org/stable/20694160?seq=1#page_scan_tab_contentshttps://www.jstor.org/stable/20694160?seq=1#page_scan_tab_contentshttp://www.refworld.org/docid/3f45dbe47.htmlhttp://www.refworld.org/docid/3f45dbe47.htmlhttp://www.fao.org/forestry/16167-0dd77b0af6b1e94481d519ab979fd40db.pdfhttp://www.fao.org/forestry/16167-0dd77b0af6b1e94481d519ab979fd40db.pdfhttp://www.fao.org/docrep/011/i0350e/i0350e00.htmhttp://www.fao.org/docrep/011/i0350e/i0350e00.htmftp://ftp.fao.org/docrep/fao/007/ad494e/ad494e00.pdfftp://ftp.fao.org/docrep/fao/007/ad494e/ad494e00.pdfhttp://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/SL%20S2000%20http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/SL%20S2000%20http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/SL%20S2000%20http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/F483E4C2B60EC20AC1256D260048C102-unsc-lib-2http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/F483E4C2B60EC20AC1256D260048C102-unsc-lib-2http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/F483E4C2B60EC20AC1256D260048C102-unsc-lib-2http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/F483E4C2B60EC20AC1256D260048C102-unsc-lib-2https://www.theguardian.com/law/2017/apr/22/dutch-arms-trafficker-to-liberia-guus-kouwenhoven-given-https://www.theguardian.com/law/2017/apr/22/dutch-arms-trafficker-to-liberia-guus-kouwenhoven-given-https://www.theguardian.com/law/2017/apr/22/dutch-arms-trafficker-to-liberia-guus-kouwenhoven-given-https://www.globalwitness.org/sites/default/files/pdfs/taylormade2.pdfhttps://www.globalwitness.org/sites/default/files/pdfs/taylormade2.pdfhttps://www.globalwitness.org/en/archive/logging/https://www.globalwitness.org/en/archive/logging/http://trcofliberia.org/resources/reports/final/volume-three-3_layout-1.pdfhttp://trcofliberia.org/resources/reports/final/volume-three-3_layout-1.pdfhttp://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/8694267033022D9FC1256AFC004A8DA2-unsc-lib-2http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/8694267033022D9FC1256AFC004A8DA2-unsc-lib-2http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/8694267033022D9FC1256AFC004A8DA2-unsc-lib-2http://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/8694267033022D9FC1256AFC004A8DA2-unsc-lib-2

SILAS KPANAN AYOUNG SIAKOR

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DOSSI SUR SOBRE RECURSOS NATURAIS E DIREITOS HUMANOS

20 Ibid.

21 Ibid.

22 James Rupert, Diamond Hunters Fuel

Africas Brutal Wars. Washington Post, 16 de

outubro de 1999, acesso em 8 jun. 2017, http://

www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/daily/

oct99/sierra16.htm.

23 S/2003/498, 2003, 38.

24 S/2000/1195, 2000, 11.

25 Andrew Osborn, Key African Arms Dealer

Arrested. The Guardian, 16 de fevereiro de 2002,

acesso em 8 jun. 2017, https://www.theguardian.

com/world/2002/feb/16/armstrade.sierraleone.

26 S/2000/1195, 2000, para. 217.

27 S/2001/1015, 2001.

28 Ibid.

29 Resolution 1521 (2003), UN Security

Council, S/RES/1521, p. 11, 22 de dezembro

de 2003, acesso em 8 jun. 2017, http://www.

un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/

RES/1521%20%282003%29.

30 Phase III Report, Forest Concession Review

Committee (FCRC), maio de 2005.

31 Executive Order # 1 - Gol Forest Sector

Reform, Republic of Liberia, fevereiro de 2006,

acesso em 8 jun. 2017, http://www.emansion.

gov.lr/doc/EXECUTIVE%20ORDER%20_%201%20

-%20Forest%20Sector%20Reform.pdf.

32 Resolution 1731 (2006), UN Security

Council, S/RES/1731, 20 de dezembro de 2006,

acesso em 8 jun. 2017, http://www.refworld.org/

docid/45c30c690.html.

33 Liberia: A Public Debate on Forest Sector,

IUCN, 2004, acesso em 8 jun. 2017, http://www.

bibalex.org/Search4Dev/files/363393/200460.pdf.

34 Action Plan for Forest Sector Rehabilitation

and Reform, Liberia Forest Initiative, 1 de junho

de 2004, acesso em 8 jun. 2017, https://rmportal.

net/library/content/usda-forest-service/africa/

liberia_report_final.pdf/at_download/file.

35 O autor deste artigo representou o Instituto

de Desenvolvimento Sustentvel na comisso.

36 Land Rights Policy, Land Commission of

the Republic of Liberia, 2013 acesso em 8 jun.

2017, https://www.documents.clientearth.org/

wp-content/uploads/library/2013-05-21-policy-

2013-land-rights-policy-ext-en.pdf.

37 Land Rights Act (DRAFT), Government of

Liberia, 3 de julho de 2014.

38 Financial Flows from Logging to Communities

and Central Government, Sustainable

Development Institute, maro de 2017.

39 Ver Liberia, EUs FLEGT Facility, 2017, acesso

em 8 jun. 2017, http://www.euflegt.efi.int/liberia.

35

http://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/daily/oct99/sierra16.htmhttp://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/daily/oct99/sierra16.htmhttp://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/daily/oct99/sierra16.htmhttps://www.theguardian.com/world/2002/feb/16/armstrade.sierraleonehttps://www.theguardian.com/world/2002/feb/16/armstrade.sierraleonehttp://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1521%20%282003%29http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1521%20%282003%29http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1521%20%282003%29http://www.emansion.gov.lr/doc/EXECUTIVE%20ORDER%20_%201%20-%20Forest%20Sector%20Reform.pdfhttp://www.emansion.gov.lr/doc/EXECUTIVE%20ORDER%20_%201%20-%20Forest%20Sector%20Reform.pdfhttp://www.emansion.gov.lr/doc/EXECUTIVE%20ORDER%20_%201%20-%20Forest%20Sector%20Reform.pdfhttp://www.refworld.org/docid/45c30c690.htmlhttp://www.refworld.org/docid/45c30c690.htmlhttp://www.bibalex.org/Search4Dev/files/363393/200460.pdfhttp://www.bibalex.org/Search4Dev/files/363393/200460.pdfhttps://rmportal.net/library/content/usda-forest-service/africa/liberia_report_final.pdf/at_downloadhttps://rmportal.net/library/content/usda-forest-service/africa/liberia_report_final.pdf/at_downloadhttps://rmportal.net/library/content/usda-forest-service/africa/liberia_report_final.pdf/at_downloadhttps://www.documents.clientearth.org/wp-content/uploads/library/2013-05-21-policy-2013-land-rights-https://www.documents.clientearth.org/wp-content/uploads/library/2013-05-21-policy-2013-land-rights-https://www.documents.clientearth.org/wp-content/uploads/library/2013-05-21-policy-2013-land-rights-http://www.euflegt.efi.int/liberia

O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NA REFORMA DO SETOR DE SILVICULTURA DA LIBRIA

Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

SILAS KPANAN AYOUNG SIAKOR LibriaSilas Siakor ex-diretor do Instituto de Desenvolvimento Sustentvel (SDI, por suas siglas em ingls) da Libria. Em 2006, ganhou o Prmio Goldman de Meio Ambiente por seu trabalho de reunio de provas de que o ex-presidente da Libria, Charles Taylor, estava usando lucros da explorao madeireira para financiar a guerra civil. Seu trabalho, realizado com grande risco pessoal, levou a sanes da ONU sobre a exportao de madeira liberiana. Como diretor do SDI de 2005 a 2009, Silas coordenou a contribuio da sociedade civil para a reforma florestal da Libria e continua trabalhando por justia social, direitos humanos e meio ambiente. Foi escolhido pela revista TIME como um dos Heris do Meio Ambiente de 2008 e, em 2012, ganhou o prmio da Fundao Alexander Soros por Realizao Extraordinria em Ativismo Ambiental e de Direitos Humanos. Trabalha agora com as comunidades para garantir o reconhecimento e a proteo legal de suas terras tradicionais e resistir apropriao em grande escala de terras para a plantao de monoculturas. membro do conselho consultivo da Global Witness.

contato: [email protected]

Recebido em maro de 2017.Original em Iingls. Traduzido por Pedro Maia Soares.

Este artigo publicado sob a licena de Creative Commons Noncommercial

Attribution-NoDerivatives 4.0 International License

36

SUR 25 - v.14 n.25 37 - 55 | 2017

PALAVRAS-CHAVEPalestina | Israel | gua | Acordos de Oslo | Potncia ocupante.

RESUMO

A ocupao israelense do territrio palestino, atualmente em seu 50 ano, inclui o controle sistemtico e a explorao dos recursos naturais palestinos, impedindo-os de se beneficiarem plenamente de suas riquezas naturais. Este artigo examina como, no caso da gua, Israel negou deliberadamente o controle e o acesso dos palestinos aos seus recursos hdricos, em clara violao de suas obrigaes conforme o direito internacional, que exigem que Israel, como potncia ocupante, proteja a populao e o territrio palestino ocupado. A autora argumenta que, atravs da imposio de polticas e prticas discriminatrias, Israel criou um sistema abrangente de controle sobre os recursos hdricos que probe os palestinos de exercer direitos soberanos sobre seus recursos hdricos e obriga-os a depender de Israel para boa parte de suas necessidades de gua. O artigo conclui examinando o papel que os Estados terceiros, as empresas e a sociedade civil deveriam desempenhar na resistncia explorao da gua por Israel e pela transportadora nacional de gua, a Mekorot.

Aseil Abu-Baker

A ocupao de Israel despoja os palestinos de sua terra e de seus recursos

PRIVADOS DE GUA

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PRIVADOS DE GUA

Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos

1 Introduo

A ocupao israelense do territrio palestino, atualmente em seu 50 ano, inclui o controle sistemtico e a explorao dos recursos naturais palestinos, que vo desde gua at pedras, bem como os minerais do mar Morto, impedindo que os palestinos se beneficiem plenamente de suas riquezas naturais. No caso da gua, Israel negou deliberadamente o controle e o acesso dos palestinos a recursos hdricos, forando sua dependncia de Israel para muitas de suas necessidades de gua. Em consequncia, os palestinos sofrem com a falta de acesso suficiente sua necessidade mais bsica, e existe um grave desequilbrio do uso da gua que favorece os israelenses, tanto os que residem em assentamentos ilegais1 no Territrio Palestino Ocupado (TPO), como em Israel.

Durante o vero de 2016, como em muitos veres anteriores, milhares de palestinos do TPO foram privados de gua corrente, pois a Mekorot, transportadora nacional de gua israelense, restringiu o abastecimento de gua s reas da parte norte da Cisjordnia ocupada.2 A falta de acesso gua no s exerce uma forte presso sobre a vida cotidiana, tornando muito difceis as atividades mais comuns, como cozinhar e tomar banho, como tambm causa efeitos prejudiciais na educao, na sade e nas atividades econmicas palestinas.

Neste artigo, discutirei as vrias polticas e prticas que Israel empregou para exercer ilegalmente e manter o controle sobre os recursos hdricos palestinos adequados; o impacto nas comunidades palestinas de todo o TPO, incluindo a Cisjordnia, Jerusalm Oriental e a Faixa de Gaza, todos ocupados, mas que enfrentam diferentes realidades; o quadro jurdico internacional pertinente; e uma breve discusso das parcerias problemticas entre empresas latino-americanas e a Mekorot.

2 Mito versus realidade

H muito tempo Israel perpetuou o mito da escassez de gua na regio, anunciando-se como a nao que fez o deserto florescer. Na realidade, o TPO rico em recursos hdricos. Existem trs fontes principais de gua doce na rea: o rio Jordo, que corre ao longo da fronteira leste da Cisjordnia, o Aqufero da Montanha, subjacente Cisjordnia e Israel; e o Aqufero Costeiro, subjacente Faixa de Gaza e Israel.3 H tambm chuvas abundantes na regio.4 Por exemplo, os registros refletem que Jerusalm recebe mais chuva em mdia por ano do que Berlim.5 Apesar das abundantes fontes de gua, os palestinos sofrem com falta de gua suficiente devido ao controle de Israel e apropriao deste recurso vital por meio de sua ocupao.

Israel mantm o mito da escassez de gua para mascarar seu controle quase exclusivo (e ilegal) dos recursos hdricos palestinos no TPO, especificamente na Cisjordnia. Quando Israel ocupou a Cisjordnia, incluindo Jerusalm