#236 oÁsis · basta ir em frente dando os passos corretos. se ela ... se o seu caminho de vida...

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FOTOS QUE MUDARAM O MUNDO Do Dia D ao menino Aylan, 14 fotos que gritam NASCER NÃO BASTA O sentido fundamental dos ritos de passagem A CORTINA AZUL O dançarino, a cantora, o violoncelista #236 EDIÇÃO OÁSIS SOBRETUDO QUANDO VOCÊ APRENDE A SAIR DELA A ESTAFA É LINDA

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FOTOS QUE MUDARAM O MUNDO

Do Dia D ao menino Aylan, 14 fotos que gritam

NASCER NÃO BASTA

O sentido fundamental dos ritos de passagem

A CORTINA AZUL O dançarino, a cantora,

o violoncelista

#236

EDIÇÃO OÁSIS

SOBRETUDO QUANDO VOCÊ APRENDE A SAIR DELA

A ESTAFA É LINDA

OÁSIS . EDITORIAL

POR

EDITOR

PELLEGRINILUIS

O s americanos cunharam um termo para definir um dos males mais frequentes da nossa atual cultu-ra da produtividade e do consumismo insustentá-

veis: burnout (de burn – queimar + out – para fora). Prefiro traduzi-lo mais claramente por “estafa do trabalho”. Melissa Gorzelaczyk, a autora do nosso artigo de capa prefere dizer, acertadamente, que essa estafa nunca acontece sozinha. Ela quase sempre é o resultado final de uma série de fatores cansativos e estressantes, e entre eles, além do esgotamen-to pelo trabalho, estão os problemas domésticos, familiares, afetivos, sexuais, políticos etc e ponha etc n isso.

LEMBRA-SE DA HISTÓRIA DA FÊNIX QUE RENASCEU DAS PRÓPRIAS CINZAS? A ESTAFA PODE SER UMA OPORTUNIDADE DE

RENASCIMENTO. HÁ QUATRO ANOS A AUTORA DO NOSSO ARTIGO DE CAPA – “A ESTAFA É LINDA”- ESTAVA SOBRECARREGADA, ESTRESSADA,

ESTAFADA, QUEIMADA. AGORA, ESTÁ EM UM SITUAÇÃO MUITO DIFERENTE. ELA EXPLICA COMO CONSEGUIU ISSO

OÁSIS . EDITORIAL

POR

EDITOR

PELLEGRINILUIS

Ela mesma já experimentou essa horrível sensação de estafa generalizada, e quase sucumbiu por causa dela. Deu a volta por cima e livrou-se dela quando descobriu certas regras básicas para se sair do círculo vicioso em que se transformam quase todos os nossos hábitos de vida como cidadãos que se pretendem “modernos”.

Todos os conselhos de Melissa são importantes e pertinen-tes. Mas um deles é, para mim, particularmente importante: Não espere que nada caia do céu. Vá, energicamente, atrás daquilo que você quer. Inclusive quando se trata de se livrar de tudo aquilo que se transformou em bola de ferro atada ao nosso tornozelo. Tudo aquilo que perdeu sentido e signifi-cado, que agora é um peso incômodo e nada mais. E esse tudo engloba, atividades, relações pessoais, hábitos, vícios, costumes repetitivos, neuroses. Ela preconiza um limpa qua-se geral. E depois do limpa, quando o entulho foi removido, recomeçar o processo de reconstrução de si mesmo a partir de um modelo mais coerente com aquilo que se é ou que se deseja ser.

É perfeitamente possível emergir da estafa, afirma Melissa. Se o seu caminho de vida desmoronou, você pode dar a vol-ta por cima, pelos lados, ou por baixo, e construir um novo roteiro. Basta ir em frente dando os passos corretos. Se ela pude fazer isso, você também pode.

A ESTAFA É LINDASobretudo quando você aprende a sair dela

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odos experimentamos situa-ções de estafa. Mais particu-larmente aquela situação de estafa vinculada ao trabalho que os de língua inglesa cha-mam de burnout. Mas essa síndrome raramente está ligada apenas ao trabalho.

Agora mesmo, você talvez se sinta sobrecarre-gado, seu casamento está lhe deixando doente, ou está queimando as pestanas para solucio-nar problemas de dinheiro. Talvez você esteja vivendo um cotidiano que se tornou um clichê repetitivo: um passo à frente, dois passos para trás. É, amigo, a vida pode ser complicada.

Mas, acredite, a estafa pode ser uma coisa lin-da. Em vez de se render a ela, que tal se você a usasse para transformar sua vida? Lembra-se da história da fênix que renasceu das próprias cinzas? Para mim, a estafa foi uma oportuni-dade. Há quatro anos eu estava sobrecarre-gada, estressada, estafada, queimada. Agora, estou em um situação muito diferente. E já vou adiantando para você as coisas que fiz e estou fazendo, desde 2007, num esforço para redefi-nir minha vida:

• Parei de fumar de uma vez por todas (depois de ter tentado e falhado pelo menos umas oito vezes). • Eliminei uma dívida de mais de 42 mil dóla-res que se arrastava há anos. • Convenci meus chefes a me deixar trabalhar em casa dois dias por semana. • Vivo agora colada a um orçamento realista, elaborado em função dos meus rendimentos. • Passei a me interessar por outros atividades fora do meu trabalho diário. • Comecei a comer direito e a fazer exercícios. • Cortei relações com tudo que, na minha vida,

T

Lembra-se da história da fênix que renasceu das próprias cinzas? Para a autora, a estafa foi uma oportunidade de renascimento. Há quatro anos ela estava sobrecarregada, estressada, estafada, queimada. Agora, está em um situação muito diferente. Ela explica como conseguiu isso

POR MELISSA GORZELACZYK. FONTE: HTTP://WWW.PEACEANDPROJECTS.COM/BLOG/

era lixo e entulho, e com todos os hábitos idiotas e pernicio-sos que roubavam boa parte do meu tempo e energia. • Escrevi um romance. • Passei a me definir como um ser híbrido, metade dona-de--casa, metade mulher profissional. Estou quase sempre em casa quando as crianças chegam da escola. Ao mesmo tem-po, mantenho minha identidade profissional de escritora freelancer. • Mostro como é possível viver dessa forma em meu primei-ro ebook, The Hybrid Homemaker (A dona-de-casa híbri-da).

Nada disso teria sido possível sem a esta-fa. Se eu não tivesse chegado a um ponto onde me sentia esgotada, espancada e estafada… nunca teria emergido das mi-nhas próprias cinzas.

Assim, posso lhe afirmar por experiência própria: se o seu caminho de vida des-moronou, você pode dar a volta por cima, pelos lados, ou por baixo, e construir um novo roteiro. Basta ir em frente dando os passos corretos. Se eu pude fazer isso, você também pode.

A estafa é linda, e chega sempre carrega-da de oportunidades.

Imaginar é viver

Nunca pensei que seria possível viver dentro de um orça-mento realista até conseguir imaginar como seria uma vida isenta de débitos. Seria possível para alguém da classe mé-dia (e daquela baixa) viver apenas com a renda que a pro-fissão lhe proporciona? A estafa levou-me a imaginar uma vida onde eu não tivesse que trabalhar para sustentar a fa-mília. A imaginação mudou tudo.

O que você pode fazer com sua vida? Se você está infeliz no trabalho, deve começar imaginando outras maneiras de fa-zer dinheiro. Até mesmo uma simples pesquisa na internet pode ajudar. Se você está esmagado pelas dívidas, não um modo de mudar isso, a não ser imaginando outros modos

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de ganhar dinheiro que você possa por em prática. Imagine a sua vida sem limites. Alguém já está vivendo a vida que sonhou. Como ele conseguiu isso? Tornando-se um artista de si mesmo. Torne-se o artista de si mesmo. O dese-jo de mudança começa com você. Uma vez que você o sinta, use a forca dessa paixão para experimentar e tentar coisas novas. Torne-se o artista de si mesmo. Procure fazer da sua vida uma obra-prima.

Para começar, precisa cuidar da sua saúde e se manter em forma. Exercícios físicos e dieta correta são as duas chaves que abrem essa porta. Desafie a si mesmo para praticar 10 minutos de exercícios físicos todas as manhãs, logo depois de despertar. Escolha a sua dieta, de preferência vegetariana ou vegana, ou pelo menos com o mínimo de proteína ani-mal, gorduras e carboidratos. Contra as dívidas, a primeira

posição deve ser firme e incorruptível: cortar o uso do car-tão de crédito.

Força de resiliência e combate

A estafa costuma gerar emoções fortes como a raiva, o medo, o ciúme e tristeza. Todas elas são negativas para o seu bem-estar físico, psíquico e mental. Mas... você também pode usar esses sentimentos canalizando-os de forma criati-va, transformando-os em força de resiliência e de combate.

E, por favor, comece a perceber uma série de coisas óbvias. Por exemplo, não espere que o seu chefe ou patrão se des

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dobre para aliviar o estresse no local de trabalho; essa gente costuma achar que estresse é sinônimo de produtividade... Não espere que o seu companheiro ou companheira tome a peito a tarefa de fazê-lo feliz. Não espera que alguém as-suma a responsabilidade pela sua estafa. Você é o motor de todo o processo de renovação da sua vida, e precisa dar a si mesmo a permissão para executar todo o trabalho que isso requer. Defina-se como uma pessoa livre, e tome de volta as rédeas do controle das coisas. Na estafa você pode ser a víti-ma ou o vencedor. Encontre motivos claros, razões precisas, bem definidas na sua cabeça, para fazer o que tem de ser feito. Jogue fora as pedras que você esta carregando. Não tem areia demais no seu caminhãozinho? Elimine o excesso.

Não deixe nada nem ninguém atravancar e impedir o seu caminho.

Para se mover, no início é melhor se concentrar em peque-nos movimentos. É só o que é preciso para começar a mudar a sua vida. Se você quer parar de fumar, não ponha o cigar-ro na boca. Uma vez que você dominar a maneira correta, disciplinada de se mover, você pode fazer qualquer coisa. A musa está chamando? Você pode decidir escrever um bom trecho do seu livro em vez de sair para o almoço e enfrentar a ladainha dos colegas. Você pode deixar a cerveja de lado, ir para a cama mais cedo e acordar bem disposto para a sessão de ginástica e até para ouvir aquela sonata de Mozart que você adora...

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Você pode sentir os pés no chão para correr com mais pra-zer. Os movimentos, não importa quão pequenos eles se-jam, formatam a sua vida por inteiro. E, ao mesmo tempo em que conquista novos hábitos devi-da, misture tudo isso com novas ideias e novos projetos.Como você vai se comportar durante os movimentos, isso é com você. Pergunte a si mesmo: O meu jeito de me mover é bonito e prazeroso? Ou ele é destrutivo?

Paciência. A mudança pode ser lenta

Seja paciente. Mudança pode ser lenta, mas ela tem de começar de algum modo. Para mim, lidar com a estafa tor-nou-se uma coisa bonita quando passei a alimentar meu espírito encangalhado com novas ideias. A inspiração esta-va em toda a parte quando eu realmente quis ver. No meu caso pessoal, sites sobre a sabedoria budista e zen budista me deram coragem para começar uma nova vida. Descubra qual é a fonte de sabedoria espiritual mais adequada para o seugênio e personalidade. Eu sei agora: lidar com a estafa é apenas o começo. E con-fesso: às vezes ainda me sinto horrível. Mas se não fosse assim, como perceber a diferença desse com os outros esta-dos de espírito mais luminosos que consigo preservar mais e mais?

Deixe sua imaginação voar. Aprenda quais os fatores que iluminam sua vida, sem deixar que a estafa a defina. Peça ajuda, se sentir necessidade. E então, comece com peque-nos movimentos. Pequenas ações. É como construir uma nova casa, primeiro os fundamentos, e depois, tijolo a tijolo, você certamente poderá levantar um prédio forte e bonito.

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FOTOS QUE MUDARAM O MUNDODo Dia D ao menino Aylan, 14 fotos que gritam

FOT

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11/37OÁSIS . FOTOGRAFIA

fotógrafo que inventou o fotojornalismo: “Praia de Omaha, Normandia, França”. Robert Capa, 1944.

“Se suas fotos não forem suficientemente boas”,

costumava dizer o fotógrafo de guerra Robert Capa, “é porque você não se aproximou o bas-tante”. Ele sabia do que falava. Afinal, suas fo-tografias mais memoráveis foram tomadas na manhã do Dia D, 6 de junho de 1944, quando

aportou na Praia Omaha, na Normandia, jun-to com as primeiras fileiras da infantaria alia-da.

Em meio ao fogo da artilharia pesada desde o primeiro momento, Capa procurou se escon-der como foi possível. Do esconderijo, gastou todos os rolos de película que trouxera co-lhendo flagrantes dos combates. Por milagre conseguiu escapar vivo daquele inferno. Mas, dos quatro rolos de filme que fizera dos horrí-veis embates do Dia D, apenas 11 imagens se salvaram. Todas as outras foram destruídas por um desastrado assistente que velou as imagens ao tentar revelá-las com demasiada pressa. Ele não queria perder o fechamento do próximo número da Life Magazine, revista norte-americana para a qual trabalhava.

Numa irônica virada da sorte, no entanto, esse mesmo erro deu às poucas imagens res-tantes aquele famoso “look” surreal, que a re-vista Life, ao publicá-las, definiu erroneamen-te como sendo “ligeiramente fora de foco”. Mais de 50 anos depois, o diretor Steven Spielberg penou para reproduzir esse mesmo efeito na sequência que produziu sobre o de-sembarque do Dia D, no filme “O resgate do soldado Ryan”.

OUma foto fala mais que mil palavras, mas apenas algumas raras imagens passam um recado significativo e contundente o bastante para galvanizar todo o público. As fotos abaixo gritam tão alto que, quando foram publicadas, o mundo todo parou para ouvi-las

POR: RANSOM RIGGSFONTE: MENTAL FLOSS MAGAZINE

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Omaha Beach, Normandia, França. Robert Capa, 1944

2. A fotógrafa que deu um rosto para a Grande Depressão: “Migrant Mother”. Dorothea Lange, 1936.

Como fotografia que define toda uma era histórica, “Mi-grant Mother” é séria candidata ao primeiro prêmio. Para muitos, Florence Owens Thompson é a face da Grande De-pressão, graças à legendária fotógrafa Dorothea Lange. Ela captou a imagem quando visitou um campo empoeirado de colhedores de ervilha na Califórnia, em fevereiro 1936. Ao fazê-lo, capturou também a resiliência de toda uma nação que enfrentava tempos desesperados.

A história de Florence Thompson, incrivelmente, é tão pungente quanto o seu retrato. Ela tinha apenas 32 anos de idade quando Lange a abordou (“como atraída por um ímã”, disse a fotógrafa). Florence era uma mãe de sete filhos quando perdeu o marido, vítima de tuberculose. Encalhada, sem um centavo no bolso, numa fazenda de boias-frias em Nipomo, na Califórnia, ela e sua família se sustentavam graças a passarinhos que seus filhos conse-guiam caçar e a verduras colhidas no campo. O impacto causado pela foto foi avassalador. Reproduzido por jornais em toda a parte, a face assombrada de Florence Thompson desencadeou inúmeros protestos populares, obrigando os políticos da organização federal Resettlement Adminis-tration a enviar comida e suprimentos para aquela região. Infelizmente, Florence e sua família já tinham partido quando a ajuda chegou. Com efeito, ninguém conhecia a identidade da mulher fotografada até o ano de 1976, quan-do Florence decidiu revelá-la em artigo escrito para um jornal.

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3. O fotógrafo que trouxe o campo de batalha para o inte-rior das casas: “Federal Dead on the Field of Battle of First Day, Gettysburg, Pennsylva-nia”. Mathew Brady, 1863

Como um dos primeiros fotógrafos da Primeira Grande Guerra, Ma-thew Brady começou sua carreira de maneira bem mais prosaica. Era um cavalheiro bem sucedido da elite norte-americana, e bem conhecido como fotógrafo de cele-bridades como Abraham Lincoln e Robert E. Lee. Ninguém o imagi-naria como um fotógrafo nas trin-cheiras.

Com efeito, Brady tinha tudo a perder promovendo um tal desvio em sua carreira – seu dinheiro, seus negócios, e possivelmente a sua própria vida. Apesar disso, ele decidiu se arriscar e se juntou ao Exército da União na batalha com sua câmera. Ele declarou: “Um espírito se apoderou de meus pés e disse: Vá!” E ele foi e permaneceu – pelo me-nos até se ver frente a frente com a ponta de uma baioneta confederada.

Após escapar por pouco da captura na primeira Batalha de Bull Run, o espírito nos pés de Brady se aquietou um pouco, e ele passou a mandar assistentes para o front de combate, em vez de ir ele mesmo. No espaço de apenas uns

poucos anos, Brady e sua equipe tiraram mais de 7 mil fo-tografias – um número espantoso, quando consideramos que, naqueles tempos, para revelar uma única chapa era necessário trazer um carroção cheio de equipamentos e perigosas substâncias químicas. As coisas não eram exata-mente o que chamamos de “focar e clicar”. Apesar das dificuldades, Brady produziu fotografias de guerra bem impactantes. Graças a ele os americanos pude-ram, pela primeira vez, se confrontar com a dura realidade dos campos de guerra.

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4. O fotógrafo que pôs fim a uma guerra, mas ar-ruinou uma vida: “Murder of a Vietcong by a Sai-gon Police Chief”. Eddie Adams, 1968

“Fotógrafos em campo constituem a arma mais poderosa do mundo”, escreveu certa vez o fotógrafo Eddie Adams, da Agência Associated Press. Uma frase acertada para ele mesmo, já que sua fotografia de um oficial atirando à quei-ma-roupa num prisioneiro vietcongue, tirada em 1968, não apenas venceu o Prêmio Pulitzer em 1969, mas também fez o giro do mundo numa campanha contra as atitudes ilíci-tas cometidas pelos americanos na Guerra do Vietnã.A imagem provocou enorme impacto político, embora, como depois se soube, a situação não era de fato tão ma-

niqueísta como parecia. O que a foto de Adams não mostra é que o capitão vietcongue assassinado chefiava um “esquadrão da vingança” que, naquele mesmo dia, tinha executado dezenas de cidadãos desarmados. Apesar disso, a foto tornou-se imediatamente um ícone da selvageria da guerra e transformou o oficial que puxou o gatilho – General Nguyen Ngoc Loan – no vilão por exce-lência.

O testemunho do fotógrafo perseguiu e assombrou Loan pelo resto da sua vida. Depois da guerra, ele era hostilizado onde quer que fosse. Depois que um hospital de veteranos na Austrália recu-

sou recebe-lo para tratamento, ele foi transferido para os Estados Unidos, onde teve de enfrentar uma maciça (em-bora não bem sucedida) campanha pela sua deportação. Loan finalmente se estabeleceu na Virgínia e abriu um pequeno restaurante, mas foi forçado a fechá-lo assim que seu passado foi revelado na localidade. Vândalos picharam suas paredes com frases do tipo “sabemos quem você é”, e os negócios minguaram até a falência.

Sentindo-se mal, Adams pediu desculpas a Loan por ter tirado a foto, e escreveu: “O general matou o vietcongue; eu matei o general com a minha câmera”.

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5. O fotógrafo que não foi tão romântico quanto parecia: “O beijo - V-J Day, Times Square, Nova York”. Alfred Eisenstaedt, 1945

No dia 14 de agosto de 1945 surgiu nos Estados Unidos a notícia da rendição do Japão, assinalando o final da Se-gunda Grande Guerra. A multidão saiu às ruas em festa, mas talvez ninguém estava mais aliviado do que aqueles que vestiam fardas. Embora muitos deles tivessem recen-temente voltado vitoriosos da Europa, havia a possibilida-de de embarcarem novamente para um campo de batalha, desta vez nas águas sangrentas do Pacífico.No meio da multidão reunida em Times Square naquele dia estava um dos mais talentosos fotojornalistas do sécu-lo 20, um imigrante alemão chamado Alfred Eisenstaedt. Enquanto tirava fotos da celebração, ele viu um marinhei-ro “correndo pela rua e abraçando toda e qualquer moça que encontrava”. Mais tarde ele explicou: “Pouco importa-va se se tratava de uma vovó, gorda, velha, nada fazia dife-rença”.

Claro, uma foto do marinheiro lascando um beijo na boca de uma senhora idosa iria parar direto na capa da revista Life, mas quando Alfred viu o marinheiro atracado nos lábios de uma enfermeira muito atraente, ele não pesta-nejou e disparou. A imagem apareceu em praticamente todos os jornais do país. Não é preciso dizer que “O beijo” não captura a imagem de um esperado reencontro entre dois namorados, mas a foto também não foi montada, como muitos críticos acusaram. De qualquer forma, esta imagem permanece como um símbolo duradouro da exu-berância americana e do fim de um grande embate.

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6. O fotógrafo que destruiu uma indústria. “Hindenburg”. Murray Becker, 1937

Esqueçam o Titanic, o Lusitânia, e o comparativamente pouco fotogênico acidente nuclear de Chernobyl. Graças ao poder das imagens, a explosão do dirigível Hindenburg, no dia 6 de maio de 1937, merece a honra de ser a quintessên-cia das imagens de desastres do século 20.Contas feitas, no entanto, o Hindenburg não foi assim tão desastroso. Surpreendentemente, das 97 pessoas a bordo, 62 sobreviveram. Na verdade, esse não foi sequer o maior desastre com o Zeppelin no século 20. Apenas quatro anos antes, o U.S.S. Akron arrebentou e caiu no Atlântico ma-tando mais que o dobro de pessoas. Mas quando se calcula o status épico de uma catástrofe, a existência de terríveis fotos-documento contam mais do que o número de víti-mas!Reunidos pela empresa alemã construtora do Hindenburg, com vistas a uma maciça campanha publicitária, nada me-nos de 22 fotógrafos, repórteres e cameramen estavam em Lakehurst, Nova Jersey, quando a aeronave em chamas veio abaixo. A publicidade maciça realmente aconteceu, mas foi totalmente negativa para os Zeppelins, que eram considerados, até então, o modo mais seguro para se viajar pelo ar.Durante os anos 1920 e 1930, Zeppelins operaram voos re-gulares, levando e trazendo passageiros entre a Alemanha e as Américas, inclusive o Brasil. Mas tudo parou em 1937. O acidente realmente acabou com o uso de dirigíveis como um modo comercialmente viável de transporte aéreo, en-cerrando a carreira com uma horrível explosão seguida de incêndio que foi fotografada e fez o giro do mundo.

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7. O fotógrafo que salvou o planeta: “The Tetons - Snake River”. Ansel Adams, 1942

Alguns historiadores dizem que a fotografia pode ser di-vidida em duas eras: antes de Adams e depois de Adams. Antes desse fotógrafo, a fotografia não era em geral con-siderada uma forma de arte. Os fotógrafos tentavam fazer suas fotos mais “artísticas” (ou seja, mais parecidas com pinturas) submetendo-as a uma grande variedade de ma-nipulações que podiam ser extremas. Essas técnicas iam desde melar as lentes da câmera com geleia de petróleo a riscar e perfurar os negativos das películas com agulhas. E aí chegou Ansel Adams, para ajudar seus colegas manipu-ladores a sair dos seus complexos de inferioridade.

De modo até um tanto temerário, Adams passou a declarar que a fotogra-fia era “uma incrível poesia do real”. Ele evitava todas as manipulações, alegando que essas técnicas eram simplesmente derivadas de outras formas de arte. Em vez disso, ele pregava o valor da “pura fotografia”. Em uma época em que a tecnologia das câmeras começou a evo-luir com rapidez, criando dispositivos como o disparador automático, Adams e outros fotógrafos da natureza, especiali-zados em paisagens, mantiveram-se fieis às suas volumosas e antiquadas câmeras de grande formato.

Adams conseguiu transformar fotogra-fias em verdadeiras obras de arte. Mais ainda, ele moldou o modo que os americanos passaram a ver e a considerar as suas próprias extensões naturais selvagens, e graças a essa visão, desenvolver uma consciência de preservação da natureza.

A paixão de Adams pela Terra não se limitava à produ-ção de fotografias muito bem enquadradas. Em 1936, por exemplo, ele levou suas fotos e se juntou ao ativismo de um grupo que se manifestou em Washington em prol da preservação de toda a áreas dos grandes cânions da Cali-fórnia. A iniciativa foi bem sucedida, e a região se tornou parque nacional.

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8. O fotógrafo que manteve viva a memória do Che: “O cadáver de Che Guevara”. Freddy Aborta, 1967.

Bandido sociopata? Socialista iluminado? Ou, como o definiu o filósofo Jean-Paul Sartre, “o mais completo ser humano da nossa era”? Apesar das controvérsias, não há como negar que Ernesto Che Guevara tornou--se o santo patrono dos revolucionários. Sem dúvida, ele é um homem de status mítico - uma reputação que persiste por causa da forma como ele viveu, e de como morreu.

Levado à Bolívia – na época uma nação com exército treinado e equipado pelos militares dos Estados Uni-dos e da CIA – pelo seu desejo de incitar a revolução entre os pobres e oprimidos, Guevara foi capturado e executado em 1967. A primeira ideia dos militares bolivianos foi se li-vrar em segredo do seu corpo. Mas, sob o aconselhamento dos seus instrutores norte-americanos, decidiram desen-cadear um plano estratégico com o uso de fotografias do revolucionário morto. O objetivo era mostrar e provar ao mundo que Che estava realmente morto, e levara com ele, na morte, todo o seu movimento político. Inclusive, para evitar alguma acusação de que a foto tinha sido falsificada, seus captores amputaram suas mãos e as conservaram em formaldeído.

Mas, ao assassinar o homem, os oficiais bolivianos, a con-tragosto, deram origem a um mito. A foto rodou o mundo e apresenta uma impressionante semelhança com as pintu-

ras renascentistas do Cristo morto, ao ser retirado da cruz. Inclusive, no momento em que os oficiais estão reunidos ao seu redor (um deles, à direita, parece apontar para um ferimento no corpo do Che situado bem próximo ao lugar onde o Cristo teria recebido sua estocada final), o rosto do Che mostra uma expressão tranquila e pacífica, o que para muitos foi rapidamente descrito como demonstração de perdão. O significado alegórico dessa foto certamente não foi perdido. Pelo contrário, passou a ser uma imagem sempre presente nos protestos e demais manifestações re-volucionárias que se sucederam naquele período. Elas logo adotaram o grito “Che vive!”, como um slogan internacio-nal. Graças a esse fotógrafo, “a paixão do Che” assegurou a sua sobrevivência para todo o sempre como um mártir da causa socialista.

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9. O fotógrafo que permitiu aos gênios desfrutar do senso de humor. “Einstein mostra a língua”. Arthur Sasse, 1951

Podemos apreciar esse memorável retrato como sendo o do amigo da porta ao lado, e por isso é justo cogitar se ele

realmente mudou a história. Certamente, sim. Ao mesmo tempo em que Albert Einstein mudou a história com suas contribuições à física nuclear e à mecânica quântica, essa fotografia mudou o modo como a história via Einstein. Ela humanizou um homem que, antes disso, era conheci-do quase que apenas pelo brilho da sua inteligência. Essa imagem é a razão pela qual o nome de Einstein tornou-se sinônimo não apenas de “gênio”, mas também, de “gênio amalucado”.

Mas afinal, por que Einstein decidiu mostrar a língua? Parece que ele, querendo desfrutar do seu 72o aniversário em paz, deparou-se no campus da Princeton University com uma perseguição incessante de um batalhão de jor-nalistas e fotógrafos. Após sorrir para as câmeras centenas de vezes, ele decidiu presentear o fotógrafo Arthur Sasse com uma bela e total visão da... sua língua. Como não se tratava de uma língua qualquer, a foto resultante tornou--se imediatamente um clássico que assegurou ao notável Prêmio Nobel ser lembrado não apenas por seu cérebro mas também pela sua personalidade.

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10. O fotógrafo que fez o surreal se tornar real: “Dalí Atômico”. Philippe Halsman, 1948

Philippe Halsman é possivelmente o único fotógrafo do mundo que construiu uma inteira carreira tirando retratos de pessoas saltando. Ele alegava que o ato de saltar revelava a “verdadeira nature-za” dos seus sujeitos. Ao olharmos sua mais famosa fotografia de um salto, “Dalí Atômico”, fica difícil não concordar com ele.

Essa fotografia é a homenagem de Hal-sman tanto à nova era atômica (com a então recente afirmação da física de que toda matéria existe em constante esta-do de suspensão) quanto à obra-prima surrealista de Dali, a tela “Leda Atômica” (que pode ser observada à direita, atrás dos gatos, e ainda inacabada na época). Foram neces-sárias seis horas, 28 saltos, e uma sala cheia de assistentes atirando ao ar gatos e baldes cheios de água até se conse-guir a foto perfeita.

Mas até chegar à “fórmula” do “Dalí Atômico” que conhe-cemos hoje, Halsman rejeitou várias outras sugestões de conceitos para a foto. Uma delas era a de se usar leite em vez de água, mas ela foi abandonada por medo de que o público, recém saído das privações da Segunda Grande Guerra, a condenasse por desperdício de leite.

Os métodos de Halsman eram únicos e muito eficazes. Seus retratos de saltos de celebridades apareceram pelo menos em sete capas da revista Life e foram decisivos para que a fotografia entrasse numa nova – e radicalmente mais aventurosa – era do retrato fotográfico.

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11. O fotógrafo que mentiu. “O monstro de Loch Ness”. Ian Wetherell, 1934

Embora relatos de coisas estranhas avistadas nas imedia-ções e na superfície do lago Loch Ness, na Escócia, tenham começado no distante ano de 565, foi apenas depois que a

fotografia chegou à beira do lago que a “febre Nessie” re-almente se desencadeou. Depois que a agora-legendária foto, alegadamente tirada em abril de 1934, rodou o mun-do, uma verdadeira indústria do turismo foi instalada na localidade. Desde então, ela é responsável pelo aporte de muitos milhões de dólares trazidos todos os anos por tu-ristas desejosos de ver o “monstro”.

Mas a festa quase acabou em 1994, quando uma reporta-gem foi publicada afirmando que o construtor de maque-tes e modelos Christian Spurling admitira ter falsificado a foto. De acordo com o testemunho de Spurling, seu padrasto, Marmaduke Wetherell, que trabalhava como caçador de animais de grande porte, fora contratado pelo jornal londrino Daily Mail para encontrar o monstro. Mas, ao invés de dizer a verdade, ele decidiu fazer uma foto fal-sificada. Wetherell, acompanhado de Spurling e seu filho, Ian, construíram o seu próprio monstro, capaz de flutuar na superfície do lago, com o uso de um brinquedo subma-rino e algumas placas de madeira. Foi Ian quem tirou a foto, mas para dar maior credibilidade à história eles con-venceram um figurão da comunidade – o cirurgião Robert Kenneth Wilson – a declarar que ele mesmo fora o autor. Tudo para provar o velho ditado dos fotógrafos: “A câmera nunca mente”. As pessoas, por seu lado, sim.

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12. A fotógrafa que quase não foi: “Gandhi com sua roca e seu fuso”. Margaret Bourke-White, 1946

Este retrato definidor de uma das figuras mais influentes do século 20, quase não pode ser feito, por causa das exigências estritas do Mahatma. Ele representou uma rara oportunidade de fotografar o líder pacifista indiano. Margaret Bourke--White, fotógrafa da revista Life, estava pronta para o trabalho quando as secre-tárias de Gandhi a interromperam: Se ela fosse fotografar Gandhi manejando a roca e o fuso (um símbolo da luta in-diana pela independência), ela teria pri-meiro que aprender a manejar aqueles instrumentos.

E isso não foi tudo. O ascético Mahatma não diria uma única palavra durante os trabalhos, já que aquele era o seu dia de silêncio. E porque ele detestava luzes fortes, Bourke--White só estava autorizada a usar três lâmpadas. Escla-recidas e acertadas todas essas condições, persistia no en-tanto mais uma – o clima indiano excessivamente úmido, estava provocando defeitos em sua câmera e estragando o resto do equipamento. Quando, finalmente, chegou o mo-mento de clicar, a primeira lâmpada explodiu. E quando a segunda funcionou, ela esqueceu de inserir a película.

Margaret pensou que tudo estava perdido, mas, por sorte, a terceira tentativa deu resultado. No final, ela foi embo-

ra com uma imagem que se tornou a representação mais expressiva e durável de Gandhi. Foi também, um dos úl-timos retratos que ele tirou em sua vida; o Mahatma foi assassinado menos de dois anos depois.

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13. O fotógrafo que previu o futuro: “O violino de Ingres”. Man Ray, 1924.

Antes de existir o Photoshop, existiu Man Ray. Um dos fotógrafos mais originais jamais surgidos, Ray era um ex-perimentador incansável. De fato, seu trabalho era tão in-ventivo que ele chegou a não usar a câmera, criando suas “Rayografias” inteiramente na sala escura.

“O violino de Ingres” é possivelmente a sua fotografia mais conhecida, e uma das suas primeiras. Como muitas obras do movimento dadaísta (que Ray levou para os Estados Unidos), trata-se de um “trocadilho visual”. Ao desenhar claves musicais no corpo de sua modelo, ele aponta as se-melhanças que existem entre o corpo da mulher e a forma de um violino. Tanto a roupagem da modelo quando a sua pose lembram a famosa pintura do artista francês Jean--Auguste-Dominique Ingres, que gostava de pintar mulhe-res nuas e de tocar violino.

O trabalho de Man Ray estava muito à frente do seu tem-po. Ao ridicularizar o agora obsoleto conceito de que a imagem fotográfica é interpretação literal da realidade, suas imagens antecipam a atual era da revolução digital.

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14 A foto que ainda não mudou o mundo. Mas esperamos que o faça: “O menino na praia de Bodrum”. Nilufer Demir, 2015

A imagem do menino sírio Aylan Kur-di, que se afogou ao largo da praia de Bodrum, na Turquia, quando tentava chegar à ilha grega de Kós numa balsa, em companhia dos familiares, chocou o mundo há poucos dias. Nilufer Demir, fotógrafa da imprensa turca, estava fo-tografando um grupo de imigrantes pa-quistaneses na praia quando encontrou o corpo sem vida de Aylan Kurdi.

Demir fez o que qualquer fotógrafo faria: tirou fotos. Sua foto mais forte mostrava o garoto sírio de três anos de idade caído sozinho e com o rosto enterrado na areia. Suas mãos estavam abertas e viradas para cima.

“Eu tive que tirar a foto e não hesitei”, afirmou ela à agên-cia de notícias onde trabalha, a DHA. “A única coisa que eu podia fazer é ter certeza de que essa tragédia fosse vista”.Ela não previa a comoção que a imagem provocaria na Eu-ropa e no mundo. “Eu nunca acreditei que uma foto pode-ria causar esse impacto”, disse. “Gostaria que isso mudasse o curso das coisas”.

Pode-se dizer que a foto não apenas documentou, mas in-fluenciou o desenrolar da crise dos refugiados na Europa.

Se providências realmente forem tomadas para resolver o drama desses refugiados, a morte de Aylan não terá sido em vão. Sem o saber, ele emprestou seu pequeno corpo para a elaboração de uma imagem destinada a permane-cer na história dos desatinos humanos.

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NASCER NÃO BASTAO sentido fundamental dos ritos de passagem

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roga é melhor que sexo.” Essa afirmação surpre-endente foi feita por um garoto de 14 anos numa sala de aula em São Pau-lo, diante dos colegas, da professora e da orientado-ra social Ana Mortari. Foi

Ana, querida amiga que infelizmente faleceu há alguns anos, quem me relatou o episódio. “Poucos dias depois, nessa mesma escola”, contou Ana, “fui procurada por uma menina de 12 anos para uma conversa particular. Ela já tinha provado algumas drogas e tinha vida sexual ativa. Não, não veio a mim por achar que essas coisas constituíam problemas. Sim-plesmente disse que não sentia nada, nem prazer nem dor, na relação sexual. Queria que eu lhe ensinasse o que deveria sentir durante a transa”.

Contei essa história a uma psicóloga especia-lizada em crianças e adolescentes que, por seu lado, fez-me um relato ainda mais pre-ocupante e doloroso. Acabara de enfrentar um problema sério: a pedido dos pais deses-perados de um rapaz de 17 anos, cuidara da internação dele numa clínica de desintoxica-ção escondida numa localidade campestre do interior de São Paulo. O rapaz fora “iniciado” anos antes às drogas mais leves - maconha, cogumelos e LSD - em antros da capital e de Ilhabela, no litoral paulista. Depois de um ve-rão inteiro passado em Porto Seguro, no Sul da Bahia, descambou de vez. Não apenas vol-tou de lá viciado em drogas pesadas - cocaína, crack e heroína -, como se tornou traficante. Passou a vender drogas a outros adolescentes. Os pais só perceberam a gravidade da situa-ção quando o rapaz, que vivia solto pelas ruas, trancou-se em casa apavorado, recusanD

Na semana passada, Oásis publicou matéria sobre os mais estranhos ritos de passagem que ainda permanecem vivos no mundo. Este artigo aborda o perigo que representa a quase total abolição desses ritos em nossa própria cultura. Segundo o terapeuta junguiano italiano Luigi Zoja – autor do livro “Nascer não basta”, Axis Mundi Editora -, essa falta é em boa parte a raiz da explosão do consumo de drogas, sobretudo entre os mais jovens

POR: LUIS PELLEGRINI

do-se a sair. Pressionado, acabou confessando: recebera de grandes traficantes uma partida de drogas. Em lugar de vendê-las, consumira tudo ele mesmo e dera uma parte de

presente a amigos. Por não poder pagar a mercadoria que lhe fora consignada, estava agora ameaçado de morte pela quadrilha. A clínica secreta para onde a psicóloga o en-caminhou foi criada exatamente para esses casos. Abriga jovens drogados que vivem sob ameaças análogas, e seu endereço só é conhecido por terapeutas especializados. Esses relatos de uso de drogas por gente jovem reaviva-ram a memória de outros tristes casos que testemunhei em minhas andanças pelo mundo. Lá pelo ano de 1974, no hotel zero estrelas onde eu estava hospedado em Cabul, a capital do Afeganistão, conheci um jovem alemão. No café da manhã, no restaurante do hotel, quando eu mergulha-va um naco de pão na gema vermelha de um ovo, ele se aproximou. Teria 19 ou 20 anos, era magro e de estatu-ra média, e usava uma camisa afegane larga e de mangas compridas. Seus longos cabelos louros e encaracolados serviam de moldura a um rosto de rara beleza. Mas a ex-pressão ansiosa e o estranho brilho nos olhos contrasta-vam com seus traços de anjo europeu.

Sem nenhum preâmbulo pediu-me vinte dólares empres-tados. Disse que passava mal e tinha de comprar um re-médio imediatamente. Vinte dólares era um bocado de dinheiro naqueles tempos e naquele lugar. Por isso ini-cialmente neguei, dizendo que não podia. Ele não hesitou. Aproximou-se da janela próxima à minha mesa - estáva-mos no terceiro ou quarto andar -, foi se debruçando para fora e disse que iria se jogar se eu não lhe desse o dinhei-ro. Acabei cedendo para não arruinar completamente meu café da manhã e meu primeiro dia em Cabul. Ele foi embo-ra apressado, dizendo que me pagaria em um ou dois dias.

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Capa do livro Nascer não bastade Luigi Zoja, Axis Mundi Editora

Naquela tarde, ao atravessar o saguão do hotel, cruzei com o jovem alemão. Ele parou à minha frente e agrade-ceu o favor que lhe fizera. Parecia então estar tranquilo e até mesmo contente. Mas, ao baixar o olhar, um calafrio percorreu-me a espinha. Ele usava agora uma camiseta de mangas curtas que lhe deixavam expostos os braços: não havia neles nem mais um centímetro sem marcas de pica-das de agulhas.

Meses depois fiz o mesmo caminho terrestre, voltando da Índia para a Europa. Novamente me hospedei naquele hotel, em Cabul. Lembrei-me do rapaz alemão e perguntei por ele ao garçom afegane. Este, como quem narra um fato corriqueiro qualquer, contou-me que ele tinha morrido havia poucas semanas. Pressionado pela gerência a pagar a conta, furtara uma quantidade de lençóis na lavanderia do

hotel, amarrara os lençóis um ao outro, como quem quer fazer uma corda, e tentara, com bagagem e tudo, descer com ela desde a janela do quinto andar, onde estava o seu quarto. Despencou lá de cima e teve morte quase instantâ-nea. “Está enterrado no jardim da Embaixada da Alema-nha”, continuou o garçom. “Há muita gente enterrada lá. Você sabe, eles chegam aqui, gastam todo o dinheiro em drogas, e por fim vendem os próprios documentos, passa-portes e tudo o que têm para comprar mais. Alguns aca-bam morrendo e as embaixadas não podem repatriar os corpos por causa da falta de documentos de identificação. Enquanto não chega alguém da família capaz de reconhe-cer os restos, ficam enterrados nas embaixadas.” E com-pletou, sacudindo a cabeça de modo desconsolado: “Por que vocês, ocidentais, não podem viver sem drogas?”

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Até hoje tento elaborar uma resposta. Na memória, ima-gens do rapaz alemão em desespero pela falta de droga se alternam com outras cenas análogas que testemunhei em minhas andanças. A de uma jovem americana sentada na calçada de uma rua de Bombaim, falando sozinha e mo-vendo os braços no ar como se voasse; a de um outro garo-to contido à força por policiais em Catmandu, após inges-tão excessiva de comida temperada com pó de haxixe; a de uma amiga italiana, casada e mãe de dois filhos, condena-da a dez anos de prisão em Singapura por porte de droga. A pergunta do garçom afegane permanece no ar. Por qual motivo tantas pessoas, particularmente jovens, arruínam a saúde, arriscam a própria vida e até mesmo morrem por causa de drogas? Trata-se de uma pergunta fundamental:

o consumo de drogas é um dos mais inquietantes e som-brios fenômenos contemporâneos.

Durante muito tempo só tive meias-respostas: a crise geral da nossa civilização; a impossibilidade para muitos de acei-tar a escala de valores que o sistema oferece como “objeti-vos máximos” a serem alcançados - o acúmulo desmedido de bens materiais, a conquista de status social, a competi-tividade; a carência de uma real filosofia de vida, de uma ideologia ou religião organizadas que possam oferecer às pessoas respostas verdadeiras, capazes de dissipar ou pelo menos mitigar a grande angústia existencial que caracteri-za o atual momento histórico; a relação estreita entre dro-gas e sexualidade, com o espectro da AIDS a pairar sobre as cabeças inexperientes dos nossos jovens tão desprovidos

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de orientação eficaz quanto ao amor e ao sexo. Todas essas causas são válidas em alguma medida. Mas a razão maior, a causa profunda pela qual tantos se atiram no poço autodestrutivo das drogas, ainda permanece um mistério. Muito provavelmente essa causa não é de tipo objetivo, e sim subjetivo. Tem a ver com a mais fundamen-tal e premente das inquietudes da alma humana: a inquie-tude espiritual.

A primeira observação importante nesse sentido diz res-peito ao quase constante interesse de tipo espiritual que se manifesta nas pessoas que usam drogas. Ele se exprime em geral através de alguma atividade religiosa, mística ou esotérica primárias. É muito comum que os usuários de drogas se interessem por técnicas de meditação, de ioga, ou práticas de tipo mágico ou mediúnico. Mesmo que tais práticas não sejam explícitas, parece evidente que quem

usa drogas tende a tecer ao redor do seu hábito uma auré-ola mística. Exemplo típico, entre nós, são as seitas ligadas ao consumo do Daime - uma bebida vegetal alucinógena muito potente.

Uma resposta instigante ao fenômeno foi desenvolvida pelo psicólogo junguiano italiano Luigi Zoja. Em seu li-vro Nascer Não Basta, editado no Brasil pela Editora Axis Mundi, Zoja aborda um ponto fundamental: ele relaciona diretamente o consumo de drogas aos assim chamados “ritos de passagem”, processos iniciáticos que no passado faziam parte integrante de todas as culturas e civilizações. A abolição desses processos iniciáticos é um fenômeno relativamente recente e localizado, levado a cabo pela pri-meira e única vez pela civilização ocidental moderna.

A iniciação é o tema nuclear de Nascer Não Basta. Não basta nascer no corpo, é necessário nascer também no espírito. Nascer no espírito é a realização plena da consci-ência, fruto de um trabalho que, no passado, era orientado pelas religiões. Eram elas que, através dos seus símbolos, abriam as portas para um universo oculto que está além das palavras, dos sentidos, da realidade sensível. Em todas elas encontramos rituais de passagem ou de iniciação para orientar esse desenvolvimento.

A iniciação pressupõe que o mero nascimento ponha o ho-mem no mundo em condições insatisfatórias, sem valores ou transcendência ou, antes, numa condição meramente vegetativa. O acesso a uma condição superior é obtido com uma morte e uma regeneração simbólicas e rituais.O binômio morte-renascimento simbólico constitui o cer-ne de todo processo de iniciação, da mesma forma que

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de todo processo de desenvolvimento e de maturação da psique e da consciência humanas. A psique e a consciência parecem não se desenvolver de modo linear, mas sim aos saltos, por degraus ou, melhor dizendo, por etapas e por ciclos. As passagens de uma etapa para outra são caracte-rizadas por situações de crise de transformação, nas quais a pessoa sente-se em geral perdida, desorientada, como se ficasse temporariamente desprovida da sua identidade anterior, e ainda sem a posse de uma nova identidade. Por isso, desde os tempos mais primitivos, as civilizações cria-ram os rituais de iniciação. Durante muitos milênios esses rituais organizaram a vida psíquica e social dos povos. São reminiscências de rituais de iniciação o batismo, a primei-ra comunhão, o casamento, o bar mitzva dos judeus e to-dos os demais rituais de puberdade, da mesma forma que as “camarinhas” da umbanda e do candomblé.

A psicologia sabe bem que toda transformação no universo da psique segue o padrão arquetípico da morte e do renas-cimento simbólicos. A morte da criança para surgir o adul-to, a morte do solteiro para surgir o casado, a morte neste mundo para renascer num outro mundo. Nas sociedades organizadas com algum sentido iniciático, cada uma des-sas transformações é acompanhada de rituais específicos que impedem a caotização do processo e o tornam mais seguro, mais coerente, mais rápido e, principalmente, mais consciente.

A psique profunda precisa de rituais para o seu desenvol-vimento harmônico. Quando há falta de rituais, ela busca alternativas e às vezes sucedâneos incompletos, desvirtua-dos, que levam a resultados destrutivos.

Exatamente aqui Luigi Zoja nos fala do fenômeno da “morte do renascimento”, observado no dependente de drogas. Tomado pela grande angústia que deriva do modo inadequado ou desorganizado pelo qual acontece o seu processo de transformação psíquica, e sem nenhuma orientação e proteção dadas pela sociedade e pela cultu-ra em que vive, o jovem recorre às drogas na tentativa de encontrar uma saída para a sua crise pessoal. Mas a droga constitui uma saída ilusória e destinada a frustrar. Ela pro-duz, enquanto dura o seu efeito no organismo, a sensação de um renascimento: morre-se durante algum tempo para a realidade anterior angustiante, e se renasce no universo mais prazeroso, de percepções mais aguçadas, mais livre e aparentemente mais vital da consciência drogada. Mas como o drogado não passou antes pela experiência da mor-te simbólica, ele viverá essa “morte” depois que o efeito

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da droga passar. Faz assim uma iniciação às avessas, de sentido negativo, e aí costuma acontecer uma grande tra-gédia: o drogado permanece paralisado na fase que deveria ser inicial e transitória, a fase de morte. Para escapar dela, recorre novamente à droga, e o processo tende a se repe-tir indefinidamente, levando à destruição da saúde física e psíquica, e muitas vezes à morte final.

O recurso às drogas seria, portanto, uma tentativa incons-ciente de iniciação. Mas uma tentativa falha já de início por falta de consciência.

A carência de oportunidades de iniciação no mundo mo-derno não afeta apenas os jovens, mas também a muitos

adultos. Muitos procuram, consciente ou inconsciente-mente, meios para supri-la. Evidência disso é o grande florescimento, nas últimas décadas, do interesse por as-suntos de tipo esotérico, ocultista ou místico. Mas, infe-lizmente, a tradição multimilenar da iniciação como um sistema cultural orgânico foi rompida, e dela restam hoje apenas fragmentos.

Mas nem por isso devemos ser pessimistas. Da mesma forma que cada pessoa atravessa ao longo da vida várias situações de crise de passagem, e sofre com elas, também com as civilizações isso acontece. Nossa civilização pas-sa agora por uma grande crise de transformação, na qual valores antigos e esclerosados morrem para que novos padrões surjam para constituir as bases do mundo futuro. Nada é realmente eterno, nem mesmo os sistemas religio-sos com seus métodos iniciáticos. Cada tempo histórico, cada civilização, têm de criar os seus próprios métodos, a sua própria religião. A nossa civilização também acabará criando os seus. Enquanto isso não acontece, Luigi Zoja e outros psicoterapeutas propõem a psicologia analítica como uma real possibilidade de iniciação, embora ainda em fase de desenvolvimento. Para esses psicólogos o tra-balho analítico é, ao mesmo tempo, um processo de escla-recimento e de conhecimento, e um processo afetivo: um trabalho iniciático cujo método, sem fugir à regra, também está essencialmente baseado na experiência da morte e do renascimento simbólicos. “Se o processo funciona”, diz Zoja, “pode exprimir-se numa espécie de renascimento. Lento, trabalhoso, e inevitavelmente incompleto. É, no en-tanto, uma das poucas experiências de renascimento que se podem encontrar com certa objetividade na cultura das grandes cidades”.

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TEA CORTINA AZUL

O dançarino, a cantora, o violoncelistaBill T. Jones

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omo bailarino e coreógrafo, Bill T. Jones quase não tem rivais. Ele é cofundador da companhia American Dance Asylum, em 1973, atuando nela como solista até 1982, quando fundou com seu

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O lendário coreógrafo Bill T. Jones, o violoncelista Joshua Roman e a vocalista Somi não sabiam exatamente o que aconteceria quando subiram ao palco do TED 2015. Sabiam apenas que queriam oferecer ao público uma oportunidade de testemunhar a colaboração criativa em ação. Resultado: uma peça improvisada que chamaram de “O Círculo Vermelho e a Cortina Azul”, tão extraordinária que tinha que ser compartilhada...VÍDEO: TED – IDEAS WORTH SPREADINGTRADUÇÃO: RAYSA VALENTIMREVISÃO: PÉROLA VIEIRA

Bill Gates fala no TED

parceiro Arnie Zane a Bill T. Jones/Arnie Zane & Company. Bill permanece nesse grupo como diretor artístico e coreógrafo, tendo criado mais de 140 trabalhos para a companhia.

Conhecida agora como New York Live Arts, a companhia atuou em todo o mun-do, com coreografias célebres pela sua intensidade e pelo seu conteúdo muito li-gado a questões sociais. Ele inspirou toda uma geração de bailarinos, coreógrafos e formou um vasto público de admiradores entusiasmados.

Bill T. Jones e o violoncelista Joshua Roman, no palco do TED em Vancouver

Tradução integral da palestra de Bill T. Jones no TED

Isadora Duncan, louca, mulher de longas pernas de São Francisco, se cansou desse país e dele queria sair.Isadora foi famosa por volta de 1908 por colocar uma cortina azul. E ela ficava de pé com suas mãos sobre seu plexo solar. E ela espe-rava. E ela esperava. E então, ela se movia.Josh, eu e Somi chamamos esse número de “O Círculo Vermelho e a Cortina Azul.” Círculo Vermelho. Cortina Azul. Mas, este não é o início do século 20. Esta é uma manhã em Vancouver, em 2015.Vamos, Josh! Vai!Já chegamos? Acho que não.Isso!Que horas são?Onde estamos?Josh.Somi.Bill T.Josh.Somi.Bill T.Isso!

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A vocalista Somi

Bill T. Jones