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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + CIÊNCIA Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz Necessidade da ciência cristã A interpretação da lei corresponde ao sacerdote, diz São Jerônimo: Legis interpretativo, sacerdotis officium est (Epist. ad Nepotian.). Tu, porém, mantém firme o que aprendeste e te foi confiado 1 , considerando quem te ensinou tal doutrina. A ciência é necessária até para dar regras ao zelo. O zelo, diz São Bernardo, não é verdadeiramente eficaz senão quando vai unido à ciência: então, será mais útil; enquanto que, muitas vezes, é danoso o zelo sem ciência. Quando mais ardente o zelo, mais ativo o espírito e mais 1 Tu vero permane in iis quae didicisti, et credita sunt tibi, sciens a quo didiceris (II Tim. III, 14).

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Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz.

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Page 1: 23 - CIÊNCIA

Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+

CIÊNCIATradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz

Necessidade da ciência cristã

A interpretação da lei corresponde ao sacerdote, diz São Jerônimo: Legis

interpretativo, sacerdotis officium est (Epist. ad Nepotian.). Tu, porém, mantém

firme o que aprendeste e te foi confiado1, considerando quem te ensinou tal

doutrina.

A ciência é necessária até para dar regras ao zelo. O zelo, diz São Bernardo,

não é verdadeiramente eficaz senão quando vai unido à ciência: então, será mais

útil; enquanto que, muitas vezes, é danoso o zelo sem ciência. Quando mais ardente

o zelo, mais ativo o espírito e mais persuasiva a caridade, e tanto mais precisa é a

ação da ciência, para saber limitar o zelo, moderar o espírito e dirigir a caridade

(Tract. De Inter, Dom.).

Se estiver pendente ante ti uma causa, diz o Senhor, no Deuteronômio, e

achares ser difícil ou duvidoso o discernimento entre sangue e sangue, entre pleito e

pleito, entre lepra e lepra (isto é, em matérias criminais, civis ou de culto), e vires

1 Tu vero permane in iis quae didicisti, et credita sunt tibi, sciens a quo didiceris (II Tim. III, 14).

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que são vários os pareceres dos juízes que há em tua cidade, dirige-te e acode ao

lugar que terá escolhido o Senhor teu Deus, onde recorrerás aos sacerdotes de

linhagem levítica, e àquele que, como Sumo Sacerdote naquele tempo, for Juiz

Supremo do povo; e os consultarás, e te manifestarão como hás de julgar segundo a

verdade. E farás tudo o que te disserem aqueles que presidem o lugar escolhido

pelo Senhor, e o que te ensinarem conforme sua Lei; e seguirás a declaração deles,

sem desviar-te nem à direita nem à esquerda (Deut. XVII, 8-11).

A Escritura chama ao sacerdote Vidente. Davi diz ao sacerdote Sadoc: Ó

Vidente (isto é, ó Profeta, ó Sumo Sacerdote), retorna em paz à cidade: Dixit Rex ad

Sadoc sacerdotem: Ó videns, revertere in civitatem in pace (II Reg. XV, 27).

Outra das finalidades por que o Rei Salomão escreveu as Parábolas foi a de

que os pequeninos adquiram sagacidade ou discrição, e os moços, saber e

entendimento. O sábio, disse ele, que escutar estas palavras far-se-á mais sábio; e ao

que as entender, servir-lhe-ão de timão (isto é, para saber governar-se bem) (Prov. I,

4-5).

Devemos escutar e instruir-nos, diz Sêneca, tanto tempo quanto o

necessitamos, tanto quanto dure a vida: Tamdiu audiendum et dicendum, quamdiu

nescias, quamdiu vivas (Epist. LXXVII).

Por mais idade que tenhamos, jamais devemos dizer que é demasiado tarde

para instruir-nos; pois é mister aprender sempre aquilo que não saibamos. O rei

Carlos IV da França passava um tempo considerável estudando: e dizia que seus

estudos eram seu espetáculo (In ejus vita).

Ainda que eu tenha mais idade que vós, escreve Santo Agostinho a São

Jerônimo, ainda que muito velho, não deixo de consultar. Para aprender o que é

preciso, nenhuma idade é demasiado avançada; porque, ainda que convenha que os

anciãos mais instruam que aprendam, é, sem embargo, de muito mais importância

que aprendam, para que não ignorem o que hão de ensinar aos outros (Epist.

XXVIII).

Page 3: 23 - CIÊNCIA

Instrui-vos antes de falar, diz o Eclesiástico: Antequam loquaris, disce (Eccli.

XVIII, 19). Não faleis jamais acerca daquilo que ignorais; poderia acontecer de

dizerdes coisas falsas, temerárias, condenáveis e condenadas.

Os lábios do justo instruem a muitos, dizem os Provérbios; mais os que não

querem receber a instrução, morrerão em sua ignorância: Qui indocti sunt, in cordis

egestate morientur (Prov. X, 21).

O sábio indagará a sabedoria de todos os antigos, e fará estudo nos profetas.

Recolherá em seu coração as explicações dos varões ilustres e penetrará do mesmo

modo as agudezas das parábolas. Tomará o sentido oculto dos Provérbios, e se

ocupará no estudo das alegorias dos enigmas. Assistirá em meios aos magnatas e se

apresentará diante daquele que governa. Passará a países de nações estranhas para

reconhecer aquilo que há de bom e de mal entre os homens (Eccli. XXXIX, 1-5).

Ficou sem fala o meu povo, diz o Senhor por Oseias, porque se acha carente

de ciência da salvação. Por haveres tu desprezado a ciência, eu te desprezarei a ti,

para que não exerças meu sacerdócio; e, pois, que esquecestes a lei de teu Deus, eu

também me olvidarei de teus filhos: Conticuit populus meus, eo quod non habuerit

scientiam: quia tu scientiam repulisti, repellam te, ne sacerdotio fungaris mihi, et

oblita es legis Dei tui, obliviscar tuorum et ego (Osei. IV, 6).

Nos lábios do sacerdote, diz o Senhor por Malaquias, há de estar o depósito

da ciência, e de sua boa há de se aprender a lei; posto que ele é o anjo do Senhor do

Exércitos: Labia sacerdotis custodient scientiam, et legem requirent ex ore ejus,

quia ângelus Domini exercituum est (Mal. II, 7).

Santo Ambrósio chama a Bíblia, o qual contém a Lei de Deus, o livro

sacerdotal: Librum sacerdotalem (Lib II, Offic.).

Page 4: 23 - CIÊNCIA

O sacerdote, diz São Jerônimo, há de guardar a ciência, de modo que ele seja

uma biblioteca saudável e sábia, onde todos possam acudir para tomar aquilo de que

necessitem (In Epist.).

Santo Ambrósio compara os sacerdotes a abelhas: como celestiais abelhas,

diz, os sacerdotes devem formar, com arte, seu suave mel com as flores das Divinas

Escrituras, e dispor com arte todo o necessário para curar as almas: Sicut apes, de

divinarum scripturarm flosculis suavia mella conficiunt, et quidquid ad medicinam

pertinet animarum, oris sui arte componut (Lib. III, Offic., c. V).

Em que consiste a verdadeira ciência

O verdadeiro conhecimento, a verdadeira ciência, diz São Jerônimo, é saber a

lei, entender os profetas e crer no Evangelho: Agnitio et scientia est nosse legem,

intelligere Prophetas, Evangelio credere (Commen.).

Sabemos, diz o Apóstolo São João, que o Filho de Deus veio e nos deu

inteligência para que conheçamos ao verdadeiro Deus e estejamos em seu Filho

verdadeiro. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna: Scimus quoniam Filius Dei

venit et dedit nobis sensum ut cognoscamus verum Deum et simus in vero Filio eius

hic est verus Deus et vita aeterna (I Johann. V, 20).

E a vida eterna, diz Jesus Cristo por João, consiste em conhecermos a Vós,

único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem Vós enviastes: Haec est autem vita

aeterna ut cognoscant te solum verum Deum et quem misisti Iesum Christum

(Johann. XVII, 3).

Feliz o homem a quem Vós, ó Senhor, instruístes e adestrastes em vossa Lei,

diz o Real Profeta: Beatus quem tu erudieris, Domine, et de lege tua loqueris eum!

(Psalm. XCIII, 12).

A verdadeira ciência consiste, pois, em receber lições do Senhor, e em

conhecer sua Lei. Por isso, o mesmo profeta disse: Quão amável é-me vossa Lei, ó

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Senhor! Durante todo o dia, ela é matéria de minha meditação. Com vosso

Mandamento me fizestes superior em prudência a meus inimigos, porque o tenho

perenemente ate os meus olhos. Eu compreendi mais que todos os meus mestres,

porque vossos mandamentos são objeto de minha meditação contínua. Alcancei

mais ciência que os anciãos, porque tenho investigado vossos preceitos: Super

omnes docentes me intellexi, quia testimonia tua meditativo mea est: super senes

intellexi, quia mandata tua quaesivi (Psalm. CXVIII, 99-100).

São vãos, diz a Sabedoria, todos os homens em quem não está a ciência de

Deus: Vani sunt omnes homnides in quibus non subest scientia Dei (Psalm. XIII, 1).

Não há aqui na terra ciência, diz São Bernardo moribundo, não há

verdadeiramente nenhum conhecimento; no céu está a plenitude da ciência: no céu

está o verdadeiro conhecimento da verdade: Nulla hic scientia, nulla vere cognitio;

sursum scientiae plenitudo, sursum vera notitia veritatis (In ejus vita).

São Justino ensina que a verdadeira filosofia consiste no conhecimento de

Deus (Epist.).

São Lourenço Justiniano dizia que a verdadeira ciência do homem consistia

em saber duas coisas: que Deus é tudo, e que ninguém é nada (Lib. de Ligno Vitae).

Se conheceis a Jesus Cristo, diz um autor, já basta, ainda que ignoreis tudo o

mais; porém, se não conheceis a Jesus Cristo, ainda que tivésseis todos os

conhecimentos do mundo, não sabereis nada.

Si Jesum noscis, sat est, si coetera nescis;

Si Jesum nescis, nil est, si coetera noscis.

Vós, disse Jesus Cristo, não vos deveis chamar de mestres, porque Cristo é

vosso único Mestre (Matth. XXIII, 10).

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O Senhor dá a sabedoria, dizem os Provérbios, e de sua boca saem a

discrição e a ciência: Dominus dat sapientiam, et ex ore ejus scientia (Sap. II, 6).

Deus é, para a ciência e para os que a buscam, o que a luz é para os que

olham um objeto e para o próprio objeto.

O coração reto busca a ciência, dizem os Provérbios: Cor rectum inquirit

scientiam (Prov. XXVII, 21).

Quando oramos, diz Santo Agostinho, nós mesmos falamos a Deus. Porém,

quando lemos, o mesmo Deus nos fala e nos instrui: Cum oramus, ipsi cum Deo

loquimur, cum vero legimus, Deus nobiscum loquitur (Serm. CXII de Temp.).

Conhecer a Deus, diz São Bernardo, é a plenitude da ciência: Deum

cognoscere, plenitudo est scientiae (Tract. de Inter Dom.).

O que sabiam os Apóstolos? Somente uma coisa: Jesus Cristo, e Jesus

Crucificado. Eu não quero saber outra coisa entre vós senão Jesus Cristo, e Este

crucificado, disse o grande Apóstolo aos Coríntios: Non enim judiavi me scire

aliquid inter vos, nisi Jesum Christum, et hunc crucifixum (I Cor. II, 2). Sem

embargo, Jesus Cristo chama aos seus Apóstolos luz do mundo; e o são de fato: Vos

estis lux mundi (Matth. V, 14). Jamais foi possível dizer tanto dos maiores filósofos.

Vantagens da verdadeira ciência

Nada melhor que o conhecimento de Deus, diz Santo Agostinho, porque não

há nada que faça mais feliz; este conhecimento é a mesma bem-aventurança:

Cognotione Dei nihil melius est, quia nihil beatius est; et ipsa vera beatitudo est

(Serm. CXII, de Temp.).

O conhecimento de um Deus único é a possessão de todas as virtudes, diz

São Jerônimo: Notitia unius Dei, omnium virtutum possessio est (In Epist.). Amai,

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prossegue, a ciência das Escrituras, e detestareis os vícios da carne: Ama scientiam

Scripturarum, et vitia carnis non amabis (In Epist.).

Conhecer-vos, Senhor, diz a Sabedoria, é a justiça perfeita; e conhecer vossa

justiça e vosso poder é a raiz da imortalidade: Nosse enim te consummata justitia

est; et scire justitiam et virtutem tuam, radix est immortalitatis (Sap. XV, 3).

Conhecer a Deus não só especulativamente, senão praticamente.

As raízes das ciências são amargas, diz Aristóteles, porém os frutos são

doces: Studiorum radices amarae, fructus autem suaves. O mesmo autor,

questionado sobre a diferença que existe entre um sábio e um ignorante, contestou:

Há tanta diferença como entre um homem vivo e outro morto: Quo viventes a

mortuis. Dizia que a ciência é um adorno na prosperidade, um refúgio na

adversidade; que os pais que instruem a seus filhos são muito superiores aos que

somente lhes dão a vida; porque estes não fazem mais do que lançá-los no mundo;

porém aqueles, não contentes com o haver-lhes dado a existência, objetivam a que

sua vida seja boa, rica e feliz (Ita Laertius, in ejus vita).

Os justos livrar-se-ão com o dom da ciência, dizem os Provérbios: Justi

liberabuntur scientia (Prov. XI, 9).

Por esta ciência é preciso entender o conhecimento de Deus, da Escritura, das

coisas divinas, da graça, das virtudes, do serviço de Deus, de seu amor, da alma, da

saúde e dos Novíssimos.

O varão instruído dirige-se até o alto pela senda da vida, a fim de desviar-se

do abismo do Inferno, dizem os Provérbios: Semita vitae super eruditum (Prov. XV,

24). Aquele que é sábio de coração, será chamado prudente, acrescentam os

Provérbios: Qui sapiens est corde, appellabitur prudens (Prov. XVI, 25). A ciência

é um manancial de vida para aquele que a possui: Fons vitae eruditio possidentis

(Prov. XVI, 22).

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O coração do sábio domesticará sua língua, e acrescentará graça a seus

lábios. As palavras eloquentes são um favo de mel, doçura da alma e vigor dos

ossos: Cor sapientes erudit os ejus, et labii ejus addet gratiam. Factus mellis,

compósita verba, dulcedo animae, sanitas ossium (Prov. XVI, 23-24). É coisa

apreciável o ouro, e a abundância de colares; mas a joia preciosa é a boca do sábio:

Vas pretiosum lábia scientiae (Prov. XX, 15).

A ciência do sábio, diz o Eclesiástico, transborda por todas as partes como

uma torrente de água, e seus conselhos são qual fonte perene de vida: Scientia

sapientes tamquam inundatio abundabit, et consilium sicut, fons vitae permanet

(Eccli. XXI, 16).

A ciência de Deus é o manancial de todos os bens. A coisa mais preciosa e

mais perfeita é o conhecimento de Deus, diz São Gregório Nazianzeno:

Perfectissima omnium rerum est cognitio Dei (In Distich.).

Clemente de Alexandria afirma que aquele que conhece verdadeiramente a

Deus não se pode entregar aos deleites, nem às demais agitações de alma (Lib. IV.

Strom.).

O conhecimento e a recordação de Deus excluem todos os crimes, diz São

Jerônimo (In Epist.).

Eu vos darei pastores segundo o meu coração, os quais vos apascentarão com

a ciência e com a doutrina, diz o Senhor a Jeremias: IDabo vobis pastores justa cor

meum, et pascent vos in scientia et doctrina (Jer. III, 15).

Aqueles que tenham ciência, diz Daniel, brilharão como a luz do firmamento,

e aqueles que ensinam a muitos a justiça, serão como estrelas durante toda a

eternidade: Qui docti fierint, fulgebunt quase splendor firmamenti, et qui as

justitiam eridiunt multos, quaso stellae in perpetuas aeternitatis (Dan. XII, 3).

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Santo Agostinho, em seu livro acerca da vida feliz, ensina-nos prolixamente

que a vida feliz não é mais que o conhecimento perfeito de Deus.

São Bernardo diz: Conhecer a Deus é a plenitude da ciência; a plenitude

desta ciência é a plenitude da glória, a consumação da graça, a perpetuidade da vida

(Trat. de inter domo).

Não há alimento tão suave para a alma, diz Lactâncio, como o conhecimento

da verdade, e, sobretudo, da Verdade Incriada; Nullus suavitor est animo cibus,

quam cognitio veritatis, paesertim Primae Increate (Lib. I, c. III).

A ignorância dos incrédulos

Os incrédulos, os filósofos ímpios, são aquela raça sem conselho e sem

prudência de que nos fala a Escritura: Oxalá tivessem sabedoria e inteligência e

previssem seus Novíssimos! Gens absque consilio est, ut sine prudentia: utinam

saperent, et intelligerent, ac Novissima providerent (Deut. XXXII, 28-29).

Não há de se obscurecer a luz do ímpio? A luz obscurece-se em sua tenda; a

lâmpada que luzia em sua cabeça apagar-se-á (Job XVIII, 5-6).

Desde o alto do Céu, o Senhor lançou um olhar sobre os filhos dos homens

para ver se havia alguém que tivesse juízo ou que buscasse a Deus, diz o Salmista.

Todos se extraviaram, todos, de uma só vez, fizeram-se inúteis; não há quem faça o

bem, não há nenhum sequer (Psalm. XIII, 2-3).

Não quis o ímpio instruir-se para agir bem, diz em outro lugar o Salmista:

Noluit intelligere ut bene ageret (Psalm. XXXV, 4).

Aquele que não tem fé, não tem verdadeira ciência. A eternidade e a verdade

estão no céu, diz Santo Agostinho; chega-se à verdade por meio da fé: Duo illa

sursum sunt, aeternitas et veritas. per fidem veniendum est ad veritatem (Lib. de

Civit.).

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Fora de Deus não há verdadeira ciência. O incrédulo despreza a Deus, a Lei

de Deus, a Religião, sua consciência, sua alma, sua salvação, e sua eternidade;

jamais se ocupa disto. E, contudo, toda a sua ciência não consiste em outra coisa.

O fim dos mandamentos, diz o Apóstolo, é a caridade, que nasce de um

coração puro, de uma boa consciência, e de fé não fingida. Do que, desviando-se

alguns, vieram por desembocar no charlatanismo, querendo fazer-se de doutores da

Lei, sem entender o que falam, nem o que asseguram: Volentes esse legis Doctores,

non inteligentes neque quae loquuntur, neque de quibus affirmant (I Tim. I, 7).

Hás de saber isto, diz o mesmo Apóstolo a Timóteo: que, nos últimos dias,

sobrevirão tempos perigosos: levantando-se homens presunçosos, cobiçosos,

altaneiros, soberbos, blasfemos, desobedientes a seus pais, ingratos, facínoras,

desnaturados, implacáveis, caluniadores, dissolutos, ferozes, inumanos, traidores,

perversos, orgulhosos e mais amantes dos deleites que de Deus. Mostrando, sim,

aparência de piedade, porém renunciando a seu espírito. Aparta-te desses tais,

porque como estes são os que se metem pelas casas e cativam as mulheres néscias

carregadas de pecados, arrastadas por várias paixões, as quais andam sempre

aprendendo, e jamais ascendem ao conhecimento da verdade. Enfim, assim como

Janes e Mambres resistiram a Moisés, do mesmo modo, estes resistem à verdade,

homens de coração corrompido, réprobos na fé, que quiseram perverter aos demais,

mas não lograram seus intentos, porque sua insensatez se fará patente a todos, como

aconteceu antes àqueles Magos. Quer dizer com isto o Apóstolo que os tais

impostores se valem da natural curiosidade e irreflexão de tais mulheres, ansiosas

sempre de falar uma doutrina que se acomode a todos os seus caprichos: Semper

discentes, et nunquam ad scientiam veritatis pervenientes (II Tim. XXX, 1ss).

Perigos e desgraças que ocasionam uma falsa ciência

Por isso, dizia o mesmo Apóstolo aos Coríntios: a ciência por si só incha, a

caridade é a que edifica (I Cor VIII, 1). É coisa da virtude dos humildes, diz Santo

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Agostinho, o não gloriar-se da ciência: Humilium virtus est de scientia non gloriari

(De Morib.).

Um alimento indigesto, diz São Bernardo, gera maus humores; não nutre o

corpo, antes o deteriora. O mesmo sucede com a ciência lançada no estômago da

alma, que é a memória: se a caridade de Jesus Cristo não lhe presta calor, e se esta

ciência não faz a vontade agir, é um mal, uma calamidade (Serm. XXXVI, in

Cant.).

Vai em busca de males o coração do iníquo, porém, o bom coração inquire a

ciência, dizem os Provérbios: Cor iniqui inquirit mala, cor autem rectum inquirit

scientiam (Prov. XXVIII, 21).

Meu povo foi levado cativo, disse o Senhor por meio de Isaías, porque não

teve a verdadeira ciência: por isso o Inferno ampliou seu seio2: Captivus ductus est

populus meus, quia non habuit scientiam: propterea dilatavit infernos animam

suam (Isai. V, 13-14).

Ninguém deve se vangloriar de sua ciência, posto que:

1º é transitória;

2º imperfeita;

3º frequentemente danosa; e

4º trabalhosa.

Tempo virá, disse o Apóstolo, em que não poderão suportar a sã doutrina,

senão que tendo comichão extremada de ouvir doutrinas que lisonjeiam suas

2 É deveras intrigante saber que o Inferno dilata-se progressivamente em concavidades ainda inéditas, recheadas de maiores e intensíssimos sofrimentos, correspondentes à intensificação e a maior gravidade dos pecados cometidos pelos homens enquanto viviam neste mundo. É obra da justiça divina. Aquelas concavidades novas de castigos incomensuráveis são necessariamente inauguradas pelos condenados pioneiros nos males de cada época histórica (Nota do tradutor).

Page 12: 23 - CIÊNCIA

paixões, recorrerão a uma horda de doutores próprios para satisfazer seus desejos

desordenados, e fecharão seus ouvidos à verdade, e os aplicarão, enfim, às fábulas.

Não se deve buscar a ciência do homem e do coração humano nos livros

maus, em novelas obscenas, em folhetos irreligiosos. Esta é a ciência das paixões, a

prostituição na ciência, a ciência do Inferno; tal ciência faz demônios, e conduz à

morada destes seres desgraçados.

Evita as questões néscias, disse o Apóstolo a seu discípulo Tito, e as

genealogias, as contendas e as discussões sobre a Lei; posto que são inúteis e vãs:

Stultas quaestiones, et genealogias, et contentiones, et pugnas legis devita; sunt

enim inutiles et vanae (Tit. III, 9).

Como se deve estudar ou meios para instruir-se vantajosamente

O modo de instruir-se, disse São Bernardo, é estudar com ordem, com

assiduidade, e com um fim louvável: Modus est ut scias quo ordine, quo studio, quo

fine (Serm. XXXIV in Cant.).

Qual ordem teremos de seguir nos estudos? Temos de começar por instruir-

nos naquilo pertencente à salvação; aprender o que devemos a Deus e ao próximo, o

que nos devemos a nós mesmos.

É preciso estudar com assiduidade e com zelo; porém, com o zelo do amor de

Deus; não deixar que o coração se seque, enquanto se adorna e alimenta o

entendimento.

Com que finalidade devemos estudar e instruir-nos? Não deve ser nem por

vanglória, nem por curiosidade ou outro motivo semelhante, senão por Deus, por

nossa própria utilidade e para a serventia do próximo. Há alguns que somente

querem saber para se dar a conhecer, acrescenta São Bernardo; e isto não passa de

uma vergonhosa vaidade: Sunt manque quis cite volunt ut sciantur et ipsi, et turpis

vanitas est (Serm. XXXVI, in Cant.).

Page 13: 23 - CIÊNCIA

Muitos buscam os meios de formar seu entendimento com a ciência, e mui

poucos procuram os meios necessários para formar sua consciência. Se pusessem,

acima de tudo empenho em ilustrar sua consciência, empregando o mesmo ardor e o

mesmo zelo que se emprega em ir atrás da ciência profana e vã, teriam prontamente

uma consciência reta, uma guia mais segura do que toda ciência humana.

Havendo alguém perguntado a Santo Tomás de Aquino qual era o meio para

adquirir ciência, respondeu: Prescrever-vos-ei que faleis pouco, que guardeis pureza

de vossa consciência, que vos dediqueis frequentemente à oração, e que sejais

amáveis para com todos; que não vos ocupeis das ações alheias: compreendei o que

façais e ouçais, e consultai, na dúvida.

Filho meu, diz o Senhor nos Provérbios: se recebeis minhas palavras; se

acolheis meus preceitos; se prestais ouvido atento à sabedoria; se inclinais vosso

coração à prudência; se implorais sabedoria, então aprendereis o temor do Senhor e

achareis a ciência de Deus (Prov. II, 1-5).

Se quereis ser sábios, não leiais mais que um só livro, disse Santo Tomás de

Aquino: Si vis evadere doctus, unum dumtaxat lege librum (S. Th. III Pars, q.7, a.

9). O livro por excelência é a Sagrada Escritura.

O sábio, disse o Eclesiástico, indagará a sabedoria de todos os antigos, e fará

estudo nos Profetas. Conservará na memória as explicações dos homens célebres:

Sapientiam omnium antiquorum requiret sapiens, et in Prophetis vacabit.

Narrationem virorum nominatorum conservabit (Eccli. XXXIX, 1-2).

Para adquirir a verdadeira ciência, disse São Bernardo, a compunção vale

mais que as profundas pesquisas; os suspiros instruem muito mais que os

argumentos; as lágrimas, mais que as sentenças; a oração, mais que a leitura; a

contemplação das coisas celestes, mais que exploração das coisas da terra.

Page 14: 23 - CIÊNCIA

A primeira das ciências, disse em outra parte São Bernardo, a verdadeira

ciência, consiste em uma consciência pura e santa ante Deus: Vera scientia

consistit in pura et sancta coram Deo conscientia (Lib. de Conscientia).

Somente os discípulos de Jesus Cristo, acrescenta aquele Doutor, isto é, os

que desprezam o mundo, chegam à verdadeira ciência; porque não é a leitura a que

dá essa ciência certa, senão as obras; não é a letra, senão o espírito; não é a

erudição, senão o exercício nos mandamentos de Deus. Semeai para a justiça, colhei

a esperança da vida futura, e fazei brotar em vós a luz da ciência do Espírito Santo e

da Cruz.

Não se chega à luz da ciência quando o gérmen da justiça não está, antes, na

alma: deste gérmen, forma-se o grão da vida eterna, e não a palha da vanglória (Lib.

de Conscientia).

Empreguemos a ciência, disse Santo Agostinho, como um meio de construir

o edifício da caridade: Sic adhibeatur scientia tamquam machina quaedam, per

quam structura caritatis assurgat (Epist. CXIX, c. XXI).