221736391 o cristao na teologia de sao paulo ucien cerfaux pdf (1)

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LCERFAUX O N A T EOLOGIA D E S .P A U U I e p

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  • LCERFAUXO

    NA TEOLOGIA DE

    S.PAUUIep

  • Coleo ESTUDOS BBLICOS

    1 A nova criao, B. Rey2 Os salmos dos pobres de Deus, P. E. Bonnard3 Paixo e ressurreio do Senhor, P. Benoit4 O casal humano na Escritura, P. Grelot5 A virgindade na Bblia, L. Legtand6 O cristo na teologia de so Paulo, L. Cerfaux7 O anncio de Cristo nos Evangelhos Sinticos, W. Trilling8 O livro da Consolao de Israel, J. Steinmann9 A pobreza evanglica, Dupont, George, Rigaux, Seidensticker10 O Cristo na teologia de so Paulo, L. Cerfaux

  • L . Cerfaux

    o CRISTO NA TEOLOGIA DE SAO PAULO

    Edies Paulinas

  • Ttulo originalLe Chrtien dans la Thologie Paulinienne Les ditions du Cerf, Paris, 1962

    TraduziuPe. Jos Raimundo Vidigal, CSsR

    C o m aprovao eclesistica

    BY EDIES P AU LIN AS - S O P AU LO - 1976

  • A confiana que Sua Santidade testemunhou-nos convocando-nos para a preparao do prximo Concilio, conduziu-nos a Roma, numa hora em que podamos unir-nos cristandade inteira para aclamar So Paulo, a testemunha sempre viva, neste dcimo nono centenrio de sua entrada na Cidade. Quisemos oferecer ao Apstolo das naes nosso modesto presente. Que no decepcione seu grande corao o esboo do cristo, que ousamos desenhar.

    S. Excia. Mons. Charue, consentindo em ser o padrinho desta obra, ajuntou mais um gesto de amizade a um sem-nmero de outros.

    Nosso trabalho foi, do princpio ao fim, animado pelo desejo de tornar-nos til a nossos estudantes de teologia. Mais alm, pensvamos em todos aqueles que nos do a honra de ler-nos, tanto no mundo catlico como entre os nossos irmos separados. Que estes reconheam, na nossa preocupao constante de evitar polmicas, o desejo de acentuar mais fortemente as convergncias de mtodo e o notvel substrato de nossa f comum.

    Seria possvel enumerar todas as minhas dvidas de gratido? Elas se multiplicaram no decorrer das diversas etapas do livro: cpias sucessivas, provas de tipografia at a composio dos ndices. Tenho motivos muito especiais para agradecer, antes de tudo, ao Cnego Massaux, professor e bibliotecrio- -chefe da Universidade de Lovaina, o qual, mais do que nunca, testemunhou-me seu interesse esclarecido. A colaborao do Pe. Denis, OP foi muito preciosa para mim. O Pe. Chifflot e seus colaboradores das ditions du C erf mostraram-se generosos em sua dedicao que me acompanha j h muitos anos. Seria faltar aos deveres da justia e da ariiizade, deixar de exprimir a Mons. Garofalo, Reitor da Universidade da Propaganda, minha viva gratido pelo seu precioso estmulo.

    Por mais de trinta anos, S. Excia. o Cardeal van Roey, arcebispo de Malinas e gro-chanceler da Universidade, mostrou

  • interesse pelas nossas pesquisas, mesmo as mais ridas, e foi um guia seguro e compreensivo. Seu apoio foi a melhor garantia para os intelectuais da Blgica. Ao lado dele, S. Excia. Mons. van Waeyenbergh sempre nos deu apoio nos nossos trabalhos.

    Todos os meus colegas de Lovaina, sacerdotes ou leigos, sabem quanta alegria a gente sente trabalhando como filho e pesquisador de nossa Alma Mater.

    Roma, na festa dos Santos Apstolos, Pedro e Paulo.

  • PROLEGMENOS

    A RESPEITO DE UM MTODO

    1 P r o g r e s s o d o u t r i n a

    Estudos j feitos sobre a eclesiologia e a cristologia de' so Paulo permitiram-nos constatar um progresso no seu pensamento. Isso se manifesta nos trs estdios sucessivos, que correspondem, grosso modo, diviso costumeira de suas Epstolas: Epstolas aos tessalonicenses (com o cap. 15 da primeira aos corntios), grandes Epstolas, Epstolas do cativeiro ^

    A um perodo primitivo, no qual, fiel tradio dos apstolos de Jerusalm, a mensagem de Paulo essencialmente escatolgica, sucede um outro, no qual o cristianismo se implanta no mundo helnico. No s a experincia da vida de suas igrejas, mas tambm algumas circunstncias particulares obrigam Paulo a fazer adaptaes na sua doutrina: ele constata as reaes do esprito grego diante do Evangelho e seu ardor apostlico encontra obstculo no antagonismo dos judeu-cristos. Mais uma guinada se verifica nas Epstolas do cativeiro, quando ele explana o grande tema da revelao do mistrio de Cristo.

    1 Sobre isto pode-se consultar: A . Sa b a t ie r , L'aptre Paul. Esquissed une histoire de sa pense'^, Paris, 1912; J . G. M a c h e n , The Origin of Pauls Religion, Londres 1921; W . M u n d l e , Das religise Leben desApostels Paulus, Leipzig, 1923; C. H. D odd, The Mind of Paul: (1)Psychological Approach; (2) Change and Development, ern Bull, of the John Ryl. Lihr., 17 (1933), pp. 91-105; 18 (1934), pp. 69-110; E.F a sc h e r , Paulus, ern Pauly-Wissowa Suppl., 8, 1956, pp. 431-466; A . P.D a v ie s , The First Christian, A Study of St. Paul and Christian Origins, New York, 1957; A . B r u n o t , Saint Paul et son message, Paris, 1958; H.-J. ScHOEPS, Paulus. Die Theologie des Apostels im Lichte der^ jdischen Religionsgeschichte, Tubingue, 1959; F . A m io t , Les ides mattresses de saint Paul {Lectio Divina, 24), Paris, 1959.

    2 Cf. abaixo, pp. 20s.

  • Enquanto que geralmente todos concordam em apontar um certo movimento na teologia paulina, alguns insistem, no entanto, em afirmar uma imutabilidade radical. Paulo estaria expondo sucessivamente os temas que ele sempre havia trazido consigo desde o momento de sua iluminao no caminho de Damasco. Por questo de mtodo, recusamo-nos a pronunciar qualquer veredicto a priori. Pode bem ser que o episdio de Damasco no tenha sido a nica revelao recebida pelo Apstolo; e quem pode pretender exaurir o contedo manifesto ou exprimvel de sua mensagem apostlica? fcil constatar, medida que se vai lendo o corpus paulino, a apario de teorias aparentemente novas. Se no temos o direito de afirmar que elas eram desconhecidas anteriormente por que haveriam de pertencer a uma sntese elaborada muito tempo antes em toda a sua complexidade? S um rigoroso estudo exegtico permitir construir uma opinio razovel. mais prudente, no comeo, deixar abertas todas as hipteses.

    Basta um rpido exame para concluir que o trplice estdio da teologia paulina aplica-se descrio da vida crist. Estas primeiras constataes ajudar-nos-o a elaborar o plano do nosso estudo.

    1 Estdio das Epstolas aos tessalonicenses

    1. O cristo que recebeu a mensagem aguarda com confiana a salvao futura, que o colocar ao abrigo da clera de Deus. A salvao realizar-se- numa parusia do Cristo.

    2 . O cristo se santifica para ser digno de Deus que o chama ao seu reino e sua glria.

    3 . Paulo prescreve regras de conduta provenientes do ensino de Cristo. Notem-se os motivos que legitimam sua necessidade: as recomendaes do Senhor, a vontade de Deus, as ameaas de castigo.

    4 . A presena do Esprito Santo exige dos cristos a santidade: pedra fundamental do belo edifcio que ser construdo a nossos olhos nas Epstolas posteriores.

    5 . A parusia a grande festa crist esperada com impacincia; a ressurreio dos mortos necessria para que os mortos dela possam participar.

  • 6. A vida atual uma vida de espera do Senhor, e j desponta a aurora do seu dia.

    Estas frmulas conservam um carter arcaico. A f permanece centrada na parusia: as crenas (como esta da ressurreio) e a moral existem em funo da esperana escatolgica. Para fundamentar os costumes cristos, vemos com surpresa aparecerem razes que quase no sero retomadas nas Epstolas seguintes, ao passo que o tema dos frutos do Esprito, que Paulo vai explanar mais tarde com todo entusiasmo, est apenas esboado.

    2 Estdio das grandes Epstolas

    A. Corinto representa a grande experincia da implantao do cristianismo em espritos helnicos de tendncias inte- lectualistas, platnicas e msticas embora se oponha com bastante firmeza ao que no podia combinar com a mensagem crist, Paulo sabe adaptar-se ao novo ambiente.

    1. Ele formula uma tese qe se ope frontalmente ao esprito grego. A filosofia, longe de conduzir ao conhecimento de Deus, gerou a idolatria e o pecado. por isso que Deus decidiu salvar os homens pela loucura da mensagem da cruz. Do ponto de vista humano, ela no seno deficincia e paradoxo; mas aos olhos de Deus, sabedoria e poder". Contudo, continua o Apstolo e esta uma das suas adaptaes existe uma sabedoria crist.

    2 . O intelectualismo grego, mesclado de misticismo, inclinava-se a negar a ressurreio. Paulo, conservando rigorosamente o tema da ressurreio corporal, procura sublinhar, no entanto, seu aspeto espiritual. Surge aqui uma frmula importante: o Cristo ressuscitado transformar sua imagem todos os cristos (IC or 15,49).

    B. As Epstolas aos romanos e aos glatas testemunham a impresso produzida pela ofensiva judeu-crist.

    1. Um dos temas abordados a eficcia sacramental da morte e ressurreio de Cristo.

    ^ Antioquia, onde Paulo exerceu o ministrio, era uma cidade mais oriental. O mesmo se diga de Tarso.

    Cf. ICor l,23ss.

  • 2 . Ao mesmo nvel aparecem as teorias sobre a libertao da Lei e o dom da filiao que nos concedida pelo Esprito do Filho. Alguns temas novos integram o conjunto: ns somos filhos, herdeiros de Deus, chamados liberdade.

    3 . Aparecem igualmente os temas referentes atividade de Cristo em ns (Gl 5 ,6 ), aos frutos do Esprito etc.

    3 Estdio das Epstolas do cativeiro

    1. Paulo continua a pensar dentro das categorias do segundo estdio; a eficcia da morte de Cristo (Col l,1 3 s .); nossa qualidade de filhos (E f 1 ,5-14;3 ,6); as teorias da redeno e da reconciliao; a eficcia, graas ao batismo, da morte e da ressurreio (Col 2 ,12).

    2 . Temas novos; a ressurreio atual do cristo transporta a Igreja ao mundo celeste e revela s potestades o mistrio que at ento lhes era oculto; a vida crist atinge seu apogeu no conhecimento do mistrio de Cristo.

    2 P o s t u l a d o s d a t e o l o g i a d e s o P a u l o

    O pensamento de Paulo formou-se em primeiro lugar no judasmo de tendncia farisaica, margem do helenismo. Sua antropologia, sua angelologia, sua cosmologia no eram mais puramente judaicas. Mas tudo o que sabemos de preciso no mais que deduo da anlise das Epstolas; por isso ser melhor abstermo-nos por ora de longos comentrios. No decurso da obra, daremos certas indicaes mais importantes.

    O judasmo foi o solo, o terreno, mas ele no explica o crescimento da teologia paulina^. Duas influncias foram preponderantes, e so elas que retero nossa ateno neste momento: o prprio cristianismo primitivo forneceu ao Apstolo os fundamentos de sua f e muitos temas para explanaes teolgicas;

    5 Nosso ponto de vista o de um pesquisador da histria da teologia paulina e no o de um historiador das religies. Para um estudo sucinto, mas bem orientado, das teorias que tm surgido a respeito da formao do pensamento paulino, cf. H.-J. S c h o e p s , Paulus, Tubinga, 1959, pp. 1-42,

  • as necessidades de sua misso obrigaram-no a levar em conta as exigncias espirituais e intelectuais do mundo grego.

    ' a. Influxo de Jesus e da Igreja primitiva

    1. A Igreja primitiva firma-se no ensinamento e na obra de Jesus de Nazar, bem como na mensagem de sua morte e ressurreio. Se esta mensagem parece monopolizar a ateno de so Paulo, ele sabe, contudo, referir-se a determinados pontos da doutrina evanglica*, como, alis, de praxe em todas as suas igrejas. Alm disso, sua consonncia profunda com o pensamento do Mestre galileu seria inexplicvel, se ele prprio no tivesse sofrido, mais do que ele parece reconhecer, a influncia das tradies apostlicas.

    Esta harmonia verifica-se, antes de tudo, em certos pontos que interessam particularmente o apostolado dos gentios. Jesus bastante reticente perante o batismo de Joo: no fez dele o alicerce de sua mensagem. Manda seus discpulos segui-lo, o que implica sobretudo a f na sua pessoa e no seu ensinamento. Esta f o elemento essencial que comanda a entrada na comunidade. Por sua vez, nas suas Cartas, Paulo no menciona jamais o nome de Joo Batista. D mais importncia mensagem que ao batismo: Cristo no me enviou para batizar, mas para evangelizar (ICor 1,17). Um dos doze, ao tempo da misso na Galilia, poderia ter falado exatamente do mesmo modo. E poderamos reforar a analogia; Jesus muniu os seus missionrios com o dom dos milagres; e Paulo apia-se em seus prprios milagres e carismas. E para Paulo, como para Jesus, a f na mensagem que faz pertencer ao cristianismo.

    Notvel a analogia entre a atitude de Cristo e a do Apstolo diante da Lei judaica. Jesus coloca-se acima da Lei,

    ^ Cf. P. F e in e , Jesus Christus und Paulus, Leipzig, 1902; M . B r c k n e r , Zum Thema Jesus und Paulus, em Zeitschr. Neut. Wiss., 7 (1906), pp. 112-119; O. M o e , Paulus und die evangelische Geschichte. Zugleich ein Beitrag zur Vorgeschichte der Evangelien, Leipzig, 1912; W. H e it m l l e r , Jesus und Patdus, em Zeitschr. Theol. Kirche, 25 (1913), pp. 156-179; B . W. B a con , Jesus and Paul, Londres, 1921; R. B u l t m a n n , Die Bedeutung des geschichtlichen Jesus fr die Theologie des Paulus, em Theol. Bltter, 8 (1929), c. 137-151; M . G o g u e l , De Jsus 1Aptre Paul, em Rev. Hist. Phil. Rel., 28-29 (1948-1949), pp. 1-29; B, G er h a r d sso n , Memory and Manuscritpt. Oral Tradition and Written Transmission in Rabbinic Judaism and Early Christianity, Upsala, 1961, pp. 262-323.

  • filia-se linhagem dos profetas, fala em nome de Deus: Foi dito aos antigos, porm, eu vos digo. Como Cristo, mas por outros motivos, Paulo proclama sua superioridade acima de Moiss. Cristo afirma que a Lei est parcialmente ultrapassada, por exemplo, quanto ao repouso do sbado; Paulo far a mesma coisa. Ambos consideram-na como uma economia inferior.

    A crtica da Lei desencadeia a oposio do farisasmo. A animosidade deste partido da estrita observncia contra Cristo, domina os nossos Evangelhos e s encontra semelhana no dio demonstrado contra Paulo pelos judeu-cristos de ndole farisaica. A parbola do fariseu e do publicano no Evangelho de Lucas, permite-nos levar mais adiante a analogia. Apesar dos mritos de suas obras, o fariseu no justificado (Lc 18,14), ao passo que o publicano voltou para casa justificado, graas sua humildade. Cristo fala como Paulo Cristo e Paulo concordam globalmente ao diminurem a importncia dos sacrifcios do Templo. Sua piedade sobrepujou esses ritos grosseiros *.

    O Evangelho combate o particularismo judaico. Jesus acolhe os mais desprezados pelo povo, aqueles que so colocados em p de igualdade com os incircuncisos, os publicanos, os pecadores, as mulheres de m vida, os samaritanos. Elogia a f do centurio romano e a da canania. As parbolas anunciam a vocao dos gentios. Mas no se nota que Paulo tenha baseado sua doutrina na de Cristo; poderia t-lo feito, mas a conscincia de sua misso lhe bastava. No entanto, no se poderia suspeitar que a razo de sua audcia e da grande confiana que possui na fora de sua posio no seio da Igreja primitiva, est na convico que tem, de que nenhum chefe autorizado do cristianismo primitivo haveria de se opor a uma misso anunciada e ratificada pelo prprio Cristo? O apostolado primitivo teria acaso concedido um lugar a Paulo, se o prprio Cristo no se houvesse mostrado acolhedor para com os pagos?

    Jesus revelou-se como Filho de Deus. A experincia misteriosa de um relacionamento nico com Deus ilumina toda a sua doutrina e ela que fundamenta o cristianismo. So Paulo, no caminho de Damasco, viu o Filho de Deus na sua glria. Da em diante, ele falar de Deus como do Pai de nosso

    ^ Pode ser que a redao de Lucas tenha sublinhado o paralelismo.* Uma vez que o movimento de espiritualizao no exclusivo do

    cristianismo, no se poderia, baseado em apenas esta comparao, julgar da dependncia de Paulo com respeito ao ensinamento de Jesus.

  • Senhor Jesus Cristo: a conscincia filial de Cristo lhe comunicada pelo Esprito e comanda doravante toda sua vida religiosa. Quando Paulo reza a este Deus, Pai de nosso Senhor Jesus, ele o chama Abba, Pai, retomando este grito aramaico que se ouvia dos lbios de Jesus. Revolver a perspetiva histrica e pretender que os cristos tenham imaginado a conscincia de Cristo antedatando sua experincia de serem filhos de Deus, e que Paulo estaria na origem desta experincia, uma hiptese gratuita que no se consegue demonstrar.

    de se admirar que o Apstolo, quando fundamenta sua pregao no exemplo de Cristo, no escolha os detalhes na histria de sua vida, mas recorra humilhao da kenose, uma renncia momentnea glria anterior encarnao. Recordemo-nos, no entanto, de que a vida mortal do Cristo Jesus foi a realizao de sua humilhao e que ela revelava, em seus detalhes, a humildade duma pessoa transcendente e o amor de Deus por ns. O Filho de Deus, imagem do Pai em sua divindade, fez-se nosso modelo na sua humanidade; o modelo reproduz no nvel humano a imagem de Deus. Ao falar da humildade da encarnao, Paulo no perde de vista os exemplos concretos, nem mesmo o ensinamento do Filho de Deus que foi Jesus de Nazar. Sobre este ponto ele tem a mesma idia que toda a comunidade crist, mas ele d a seu pensamento uma expresso mais teolgica. So Joo traduzir esta doutrina a seu modo, dizendo-nos que o Filho de Deus, morando no meio de ns, nos contou o que ele viu no seio do Pai (Jo 1,18).

    A narrao da Paixo, que na liturgia servia de moldura celebrao da ltima ceia, d a entender que Jesus desejou e aceitou voluntariamente sua morte redentora (ICor 11,23-26). Toda a Igreja primitiva tinha esta convico. Paulo recebeu-a da tradio apostlica e, neste ponto que o fundamento de sua mensagem, no faz outra coisa seno traduzir o que a comunidade crist julgava ser a conscincia de Cristo.

    2 . Paulo uniu-se comunidade primitiva desde as origens, numa hora em que os acontecimentos da fundao da Igreja eram ainda contemporneos e a comunidade se voltava para um mundo novo a ser conquistado. Paulo viveu de perto toda esta histria, e sua testemunha insubstituvel.

    A ressurreio de Cristo ficar para sempre a base da nova religio. No um paradoxo dizer que Paulo nossa melhor garantia do fato; Se Cristo no ressuscitou, afirmava ele, nossa mensagem vazia de sua substncia, vazia tambm vossa f

  • (ICor 15,14). Todo este captulo 15 da primeira Epstola aos corntios um compndio da doutrina crist da ressurreio: teologia, histria, apologtica. A mensagem apostlica anunciava antes de tudo a ressurreio de Cristo e sua morte prevista pelas Escrituras. Sepultado (conforme a narrao tradicional dos Evangelhos), ele ressuscitou ao terceiro dia; e citavam-se as testemunhas oficiais de suas aparies.

    Antes de morrer, para sobreviver a si prprio na sua comunidade, Jesus havia institudo a Ceia eucarstica, o memorial de sua morte, j aureolado do triunfo da parusia. Paulo nos conserva esta narrao primitiva transmitida pelos apstolos; Na noite em que ele foi entregue. . . (ICor 11,23).

    Inseparvel da ressurreio de Cristo a efuso do Esprito Santo. So Paulo nos fornece a melhor documentao que temos sobre os fenmenos que marcaram profundamente a vida das primeiras comunidades. So Lucas, ao descrever o primeiro Pentecostes de Jerusalm, inspira-se parcialmente no que viu nas igrejas paulinas, sabendo bem que estas imitaram as igrejas dos santos. Quanto ao Apstolo, sendo ele to fiel s tradies de Jerusalm a ponto de rejeitar toda inovao, mesmo num detalhe to insignificante como o uso do vu nas reunies, acaso poderia ele, sem o exemplo apostlico, permitir aos corntios que os confundissem, em suas assemblias carismticas, com os iniciados de Dionsio? Pretender que ele houvesse aprendido no mundo grego seus xtases e toda a teoria do Esprito, seria forjar uma v objeo ao cristianismo. Certos indcios, que, por serem fortuitos so tanto mais significativos, reforam a convico do historiador. Os carismas paulinos conservam um carter muito primitivo, voltados como so para a vinda de Cristo que eles anunciam, e relacionados com a celebrao da ceia. ento que ecoava a aclamao exttica Maranatha^, que era um patente apelo parusia e, ao mesmo tempo, um ato de f na presena misteriosa de Cristo. Atravs do testemunho de Paulo, atingimos a liturgia arcaica de Jerusalm.

    3. O papel de Cefas em Antioquia e em Jerusalm, seutestemunho sobre a ressurreio, sua dignidade frente do

    5 Os fenmenos espirituais da comunidade so intimamente ligados celebrao da Ceia e s aparies de Cristo ressuscitado. Combinamos os dados da Didaqu e Apoc 22,17 com ICor 16,22. A primeira parteda frase paulina evoca ICor 12,3 que trata dos carismas. Maranathacorresponde de certo modo a Anathema lese (ibid.).

  • colgio apostlico, a importncia de Tiago e Joo em Jerusalm, todas estas recordaes conservadas por Paulo permitem-nos controlar em detalhe o quadro da Igreja primitiva esboado por so Lucas nos Atos. Uma certa idealizao de Lucas recobre uma situao histrica. A comunidade primitiva, depois de se haver retrado sobre si mesma por certo tempo, voltou-se para os povos longnquos. Seguiu-se uma crise, que punha em jogo a obrigao da Lei para os convertidos do paganismo. Nestas circunstncias, Paulo foi o homem providencial.

    As Epstolas contam-nos que aquele que se chamava Saulo de Tarso tinha anteriormente perseguido os cristos. Temos toda razo em aceitar a perspectiva dos Atos: esta perseguio prendia-se reao provocada nas sinagogas dos judeus helenistas (e Paulo era um deles) pela pregao de Estvo e dos diconos helenistas. A vocao de Paulo, neste momento da evoluo do cristianismo, no se desassocia da vocao dos gentios. Pode-se mesmo imaginar que a atitude antilegalista dos cristos helenistas tenha-o impressionado vivamente. Ele a combateu, talvez com tanto maior ardor, quanto mais ela desfazia um problema que preocupava os fariseus helenistas

    impossvel desassociar Paulo do cristianismo primitivo. A histria de sua vida faz um s todo junto com a da Igreja de Jerusalm e de sua expanso no mundo greco-romano. Sua doutrina est incrustada da mensagem dos apstolos, predecessores seus. Seus atritos com os judeu-cristos provam at evidncia que ele era a personagem mais marcante do mundo cristo; dele f^zia parte a mesmo ttulo que Pedro e Tiago. Igualmente, nota-se que a comunidade crist primitiva formava um todo orgnico, uma seita fortemente individualizada no mundo religioso da poca. -

    Uma seita sem fundador, isso seria uma realidade deste mundo? A originalidade da seita crist era grande; to grande que o carter to pessoal do Apstolo no pde faz-la desviar da linha geral que ela seguia. No temos a um sinal de que preciso colocar, no incio do cristianismo, uma personalidade mais forte, mais original que a de Paulo? Supor que Paulo tivesse feito por sua conta, independentemente, a mesma experincia que Jesus, seria no s um atentado contra o que h

    Cf. W. G. K r m e l , Jesus und Paulus, em Theol. Bltter, 19 (1940), cc. 209-231; G. Sc h n e id e r , Kern-probleme des Christentums. Eine Studie zu Paulus, Evangelium und Paulinismus, Stu ttg art, 1959.

  • de mais verossmil, mas tambm um desmentido s afirmaes da histria crist. A tradio da comunidade, que conservou os ensinamentos de Cristo, e as iluminaes do Apstolo, juntaram-se na unidade da obra divina.

    b . - Sob o signo do judasmo e do helenismo

    Judeu ou grego eis o dilema que atravesa toda a histria do trabalho cientfico dedicado a so Paulo Desprezado pelos judeu-cristos como demasiado helenista, Paulo foi muitas vezes mal compreendido pelas suas prprias igrejas. Marcio fez dele uma caricatura. uma figura complexa, um problema extremamente difcil, e contudo por isso mesmo um homem que se impe e marca a histria universal A escola de Tubinga opunha insistentemente Paulo aos outros apstolos, tidos como judaizantes e os estudiosos da histria das religies secundaram-nos com toda sua riqueza de informaes sobre a parte preponderante do helenismo no pensamento paulino (A. Deissmann, R. Reitzenstein, W . Bousset etc.) Por outro lado, aps H. St. J . Thackeray W. Wrede M. Brckner e sobretudo A. Schweitzer explicavam o paulinis-

    Cf. A. Sc h w e it z e r , Geschichte der paulinischen Forschung, Tubinga, 1931, resumido em Die Mystik des aposteis Paulus, Tubinga, 1930. W. D. S t a c e y , The Pauline View of Man, Londres, 1956, pp. 3-55; H.-J. S c h o e p s , Paulus. Die Theologie des Apostels im Lichte der jdischen Religionsgeschichte, Tubinga, 1959, pp. 1-42.

    ^ Cf. H. W iN D iscH , Paulus und das Judentum, Stuttgart, 1935, p. 7.Epgonos da escola: H. Ldemann, O. Pfleiderer, K. Holsten,

    H.-J. Holtzmann; cf. W. D. St a c e y , op. cit., pp. 40-43.Mais recentemente: W. L, K n o x , St. Paul and the Church of

    Jerusalem, Cambridge, 1935; St. Paul and the Church o f the Gentils, Cambridge, 1939; Some Hellenistic Elements on Primitive Christianity, Londres, 1944; G . H. C. M bc-G rego r-A . C. P u r d y , Jew and Greek: Tutors unto Christ. The Jewish and Hellenistic Background of the N. T., Londres, 1937; M. P o h l e n z , Paulus und die Stoa, em Zeitschr. Neut. Wiss., 42 (1949), pp. 69-98.

    H. St. J. T h a c k e r a y , The Relation of St. Paul to Contemporary Jewish Thought, Londres, 1900. Thackeray descreveu a palindia de O. Pfleiderer, convertido pelo sistema da altsynagogalen palstinischen Theologie de Weber idia de que a chave da teologia paulina se encontra no judasmo.

    W . W re d e , Paulus (Religionsgeschichtliche Volksbcher), Tubinga,1904.

    M. B r c k n e r , Die Entstehung der paulinischen Theologie, Estrasburgo, 1903; Zum Thema Jesus und Paulus, em Zeitschr. Neut. Wiss., 1 (1906), pp. 112-119.

  • mo (inclusive a mstica e o sacramentalismo) em dependncia estreita do judasmo e do cristianismo primitivo. No era outro o pensamento de E. Lohmeyer esta tambm a posio deH. W. RobinsonS H. A. Kennedy , E. De W itt Burton,C. A. Anderson Scott . Os telogos de hoje acham-se divididos; a Bultmann, fiel a Bousset, opem-se O. Cullmann, W.D. Davies J . Munck etc. No dizer deste ltimo, as semelhanas de Paulo com o helenismo no atingem nunca o fundo do seu pensamento; no temos o direito de falar de dois cris- tianismos, um judaico, outro helenstico; e a atividade missionria de Paulo no se desvia da do cristianismo comum

    Os movimentos que dominam o pensamento teolgico moderno, o retorno ao Antigo Testamento, a vontade manifesta de fazer pesquisas de laboratrio e de constituir margem da histria uma verdadeira teologia da revelao tudo isso torna sempre mais aceito o carter judaico de so Paulo. Os ltimos estudos sobre a antropologia paulina identificam Paulo com o homem hebreu. Numa sntese muito clara dos trabalhos recentes, W. D. Stacey^ tem a preocupao constante de mostrar a concordncia profunda de Paulo e do Antigo Testamento com o judasmo. De ambas as partes, o dualismo antropolgico desconhecido; toda atividade corporal ou psquica procede dum substrato nico. Nada mais revelador, dizem, que as formas inconscientes do pensamento dum homem; a antropologia de Paulo pode provar que ele no foi um helenista, exposto influncia do pensamento grego, mas um judeu cem por cento.

    Estas pesquisas so geralmente tributrias da fenomeno- logia e da filosofia existencialistas. Tomamos a liberdade de

    Grundlagen pauUnischer Theologie (Beitrge zur historischen Theologie, I ) , Tubinga, 1929.

    Hebrew Psychology in Relation to Pauline Anthropology, New York, 1909. The Christian Doctrine of Man, New Yorw, 1911.

    ^ St. Paul and the Mystery-Religions, Londres, 1913; St. Pauls Conception of the Last Things, Londres, 1904.

    Spirit, Soul and Flesh: the Usage of TTVEiJia, o'p?G reek Writings. . ., Chicago, 1918.

    ^ Christianity according to St. Paul, Cambridge, 1927. Cf. W. D . D a v ie s , Paul and Rabbinic Judaism. Some Rabbinic

    Elements in Pauline Theology, Londres, 1948, p. 321.2'' Christus und Israel. Eine Auslegung von Rm. 9-11. (Acta Jutlandi-

    ca X X V III, 3), Copenhague, 1956, pp. 11s.^ The Pauline View o f Man, Londres, 1956.

    2 - O cristo na teologia de so Paulo

  • hesitar em definir com tanta firmeza a alma dos semitas, e sobretudo a de so Paulo. na qualidade de fillogo que tencionamos abordar o estudo do paulinismo: operamos com formas conscientes do pensamento, aquelas que se exprimem nas palavras e tm possibilidade de refletir algo das profundezas da alma humana.

    Historicamente, Paulo pertence ao judasmo helenizado. A imagem que Lucas dele traa a de um homem que sabe viver em sociedade, possuidor do tato e fineza gregos. Seus escritos produzem a mesma impresso. Sem dvida, ele no escritor de profisso. Comparado com Filon de Alexandria, filsofo e retor, ele faria figura de simples operrio, homem que age mais do que escreve^. Mas ele sabe falar, agir e at mesmo escrever como um homem culto. Sua melhor definio : um judeu muito helenizado.

    Mesmo se ele passou em Jerusalm uma parte de sua juventude, e talvez tambm de sua infncia^, ele , por nascimento cidado de Tarso e cidado romano. melhor no supor que ele tenha freqentado as aulas dos ilustres filsofos de Tarso, mas seria um outro excesso fazer dele um puro rabino ^ e enquadr-lo nos limites do judasmo. Seu fraseado vigoroso e muitas vezes entusiasmado no o de algum que pensasse em aramaico e traduzisse sua frase para o grego. O grego para ele uma lngua materna, se no a lngua materna simplesmente; do modo como ele manejava o aramaico ou o hebraico jamais saberemos coisa alguma^. Sua Bblia a Bblia dos Se'tenta, mesmo quando emprega certos recursos da exe-

    A. D e is s m a n n , Paulus. Eine kultur-und religionsgeschichtliche Skizze^, Tubinga, 1925, pp. 87-89.

    W . C. VAN U n n ik , Tarsus of Jerusalem, de stad van Paulus jeugd, em Mededelingen Kon. Akad., N. R., 15, 5, Amsterdam, 1951 (cf. Studia Paulina. ln honorem J. de Zwaan, Haarlem, 1953, p. 233) deduz de At 22,3, que Paulo recebeu sua pirmeira educao em Jerusalm, e que o aramaico a sua lngua materna, e o rabinismo sua ptria espiritual.

    ^ Sobre Paulo e a exegese rabinica, cf. G. K it t e l , Rabbinica [Arbeiten zur Religionsgeschichte des Urchristentums, B d I, H. 3) Leipzig, 1920; J. B o n s ir v e n , Exgse rabbinique et exegse paulinienne, Paris, 1928; A. F. PuuK K O , Patdus und das Judentum, em Studia Orientalia, 2, 1928, pp. 1-87; L. M. E p s t e in , Sex-Laws and Customs in Judaism, New York, 1948; H.-J. S c h o e p s , Paulus, Tubinga, 1959, pp. 28-31.

    Evidentemente eie era bilinge e falava o aramaico da poca, cf. At 21,40.

  • gese rabinica^. Seu estilo se inflama por vezes a ponto de poder ser comparado a Demstenes, mas no se mantm por muito tempo. O esforo seria artificial. Recorre com freqncia os processos da retrica grega, coisa que se explica naturalmente por um contato com a sofistica asitica. Mas nunca fica prisioneiro dos artifcios. O perfeito fillogo que foi E. Norden, numa pgina inesquecvel, imagina que impresso deviam ter os gregos, habituados falsa eloqncia dos sofistas, quando reencontravam, na palavra vibrante de Paulo (Rom 8 , 3 Iss; iCor 13) o entusiasmo inspirado dos epoptas e os arroubos que a humanidade nunca mais ouvira desde o Fedro de Plato^'.

    Que importncia tem, alis, o estilo! Os numerosos retoques na doutrina demonstram a dvida de Paulo para com o helenismo. Por meio dele, todo o cristianismo contraiu para sempre esta dvida.

    A tradio conservou para so Paulo o ttulo que ele reivindicava: Apstolo dos gentios. Voltou-se resolutamente para os gregos e tornou-se um deles para os ganhar; o fato de ele t-lo conseguido a melhor prova de que falava a lngua deles. Judeu com os judeus, ele foi grego com os gregos. Judeu ou grego, continuava sendo escravo de Cristo, livre de toda sujeio humana nesta escravido divina (IC or 9,20-23). No somente falava a lngua dos gregos, utilizando seus termos e seus conceitos^, mas tornou sua a alma deles, a fim de que, por sua vez, eles fizessem sua a linguagem de Cristo.

    Isto prova que sua lngua costumeira era o grego (cf. P. W e n DLAND, Die hellenistisch-rmische Kultur, Tubinga, 1912, p. 354; T. R. G l o v e r , Vaul of Tarsus, Londres, 1925, p. 143; A. D e is s m a n n , Paulm^, Tubinga, 1925, pp. 99-101; J . B o n sir v e n , Exgse rabbinique et exgse paulinienne, Paris, 1928, p. 37). So conhecidos todos os detalhes que deveriam matizar esta nossa afirmao; cf. O. M ic h e a , Paulus und seine Bibel, Gtersloh, 1929; E. G. E llis , Pauls Use of the Old Testament, Edimbourg, 1957; cf. W . D . St a c e y , The Pauline View o f Man, Londres. 1956, p. 32. '

    3* Die antik Kunstprosa, II , Tubinga, 1918, pp. 509s.Convm distinguir o emprego dos termos tcnicos e a assimilao

    profunda das noes jurdicas ou filosficas. Quanto aos termos e noes tcnicas, cf. O. E g e r , Kechtsgeschichtliches zum Neuen Testament {Rektoratsprogram der Univ. Basel, 1918), Basilia, 1919; W . S t r a u b , Die Bildersprache des Apostels Paulus, Tubinga, 1937, Quanto filosofia: R. B u l t m a n n , Der Stil der paulinischen Predigt und die Kynisch-stoische Diatribe [Forsch, z. Rel. u. Lit. d. A. u. N. T., 13), Gttingen, 1910; M. P o h l e n z , Paulus und die Stoa, em Zeitschr. Neut. Wiss., 42 (1949), pp. 69-104; A. F e s t u g i r e , Lidal religieux des Grecs et lvangile,

  • Os dados do problema aparecero no desenrolar deste estudo da teologia paulina.

    3 N o s s o PROGRAMA

    O cristo nasce do plano de salvao de Deus. ele o termo deste plano, situado na interseco do mundo atual que est passando, e do mundo futuro que j penetra com seus valores no tempo presente. O primeiro Livro descreve a economia da salvao, desde a morte e a ressurreio de Cristo, acontecimentos decisivos que fazem o mundo entrar na era da salvao, at a aceitao pelos homens da mensagem que lhes traz esta Boa-nova.

    Depois desta introduo suceder-se-o trs outros Livros, programados para corresponderem aos nveis sucessivos da teologia paulina. O primeiro dos trs dedicado esperana crist; aliando-se ao pensamento do cristianismo primitivo, Paulo orientou-se primeiro para a parusia de Cristo. Mas em breve, sendo obrigado a responder s exigncias da alma grega, e talvez simplesmente de qualquer alma humana que deseja saber que contribuio lhe d a religio para o tempo atual, ele salientar, os componentes da condio de cristo, isto , as riquezas de nossa vida sobrenatural. Ser este o nosso terceiro Livro. O quarto e ltimo trar um complemento essencial: o cristo perfeito aquele que, na luz de Deus, aceita o conhecimento de todo o mistrio da benevolncia divina.

    Para permanecermos dentro dos limites duma obra que se possa ler, renunciamos a dissertar sobre os costumes e atividades crists.

    4 A A U T E N T I C I D A D E D A S E p S T O L A S P A U L I N A S

    Apenas uma questo de crtica literria tem importncia essencial para o andamento do nosso estudo: refiro-me auten-

    Paris, 1932, pp. 264s.; H. A l m q u is t , Plutarch und das N. T., Upsala,1946. So Paulo no nem jurista em direito helenista, nem filsofo de profisso; mas tampouco ele um simples papagaio, seja qual for o sentido que os atenienses atriburam sua alcunha de ffTCsptJioXYO' (At 17,18).

    Cf. sobre esse assunto: W. S c h m it h a l s , Zur Abfassung und l-

  • ticidade das Epstolas aos colossenses e aos efsios, sobre as quais se fundamenta o nosso quarto Livro. A a teologia paulina transps uma etapa que as Epstolas anteriores, por si mesmas poderiam j fazer prever. Foi o prprio so Paulo que as comps?

    Foroso nos tomar partido. J o fizemos em nossos estudos anteriores, e no recebemos demasiadas crticas. De ento para c, o comentrio de H. Schlier sobre a Epstola aos efsios veio confirmar as posies conservadoras. A evoluo da teologia, das grandes Epstolas at s do cativeiro, plausvel e concorda com as condies em que estava empenhado o pensamento paulino.

    A autenticidade da Epstola aos filipenses no mais problema; a Epstola aos colossenses e o bilhete a Filmon esto geralmente bastante reabilitados Pensando bem, a evidncia da autenticidade do bilhete a Filmon, logo traz consigo a mesma convico com referncia a Col. A rigor, contentar-nos-amos com a autenticidade desta ltima Epstola, pois as teses paulinas essenciais da etapa Col-Ef j esto a suficientemente representadas. Contudo, a autenticidade de Ef traz-nos um aumento de liberdade e de certeza aprecivel, revelando-nos que o pensamento de so Paulo progrediu dum modo sistemtico. Esta Epstola, na opinio da maioria dos crticos, e independentemente da questo de sua autenticidade, compreende-se melhor como uma tentativa de sntese teolgica. Para E. J. Goodspeed, cuja hiptese crtica realmente sedutora, Ef, juntando aos temas de Col as teorias fundamentais das grandes Epstolas, seria destinada a prefaciar o corpus das Cartas paulinas. Com maior freqncia ela considerada como uma Carta encclica que expe os dados principais duma teologia paulina. Na hiptese da autenticidade, isto significaria que Paulo, em determinada fase de sua vida, sentiu a necessidade de propor sua doutrina numa perspetiva nova.

    testen Sammlung der paulinischen Hauptbrieje, m Zeitschr. Neut. 'Wiss.,51 (1960, pp. 225-245.

    H.-J. S c h o e p s , Taulus, Tubinga, 1959, p. 44, considera Col. como deuteropaulina (por causa do seu carter gnstico). Sobre as discusses referentes a 2Tes, veja B. R ig a u x , Saint Paul. Les pitres aux. thessaloni- ciens, (tudes Bibliques), Paris, 1956, pp. 124-152,

  • Nossa pesquisa, em geral, limita-se s Epstolas aos tessalonicenses, s grandes Epstolas e s Epstolas do cativeiro. A contribuio das Epstolas pastorais para a teologia propriamente dita muito modesta, como se sabe. A Epstola aos hebreus mereceria bem mais que algumas aluses. Mas todo livro deve saber moderar-se.

    Observao. As notas bibliogrficas indicadas no decurso da obra no pretendem, evidentemente, ser completas e tambm no so sempre de primeira mo. A indicao de trabalhos bibliogrficos pode-se encontrar em B. M . M e t z g e r , Index to Periodical Literature on the Apostle Paul, Leyde, 1960, pp. 1-3. Esta obra, que bastaria para revelar a complexidade dos estudos paulinos, permanece, no entanto, ainda incompleta. No temos a pretenso de elogiar, seja como for, em detrimento de outros, os trabalhos que citamos, e geralmente no se devem procurar a nem nossas fontes, nem nossos cavalos de batalha. A moda servir pelo menos, no nosso caso, como primeira orientao para os centros de interesse das pesquisas modernas. Quando fizermos referncias s doutrinas de Qumrn, utilizaremos, para maior brevidade, as siglas usuais: Dam (Docurnento sadoquita, ou de Damasco), S (Serek: Manual de Disciplina), M. (Milhamah: Livro da Guerra), H (Hodayt: Livro dos Hinos), pHab (pesher: comentrio de Habacuc). Quanto aos fragmentos da gruta 4, publicados por J . M . Allegro, usaremos: 4Q Flor (Florilegium), 4Q Test (Testimonia), 4QPs37 (pesher: comentrio do Salmo) etc.

  • LIVRO PRIMEIRO

    A ECONOMIA CRIST

  • A obra de Deus visando a salvao crist foi efetuada em duas etapas. Servo de seu Pai, Cristo foi enviado, manifestou-se, morreu pelos pecados e ressuscitou. Desta forma, em princpio a salvao estava adquirida; faltava, numa segunda etapa, coloc-la ao alcance dos homens: Deus o realiza pela misso e a mensagem dos apstolos. Uma vez que se trata do pensamento de so Paulo, no compreenderemos bem esta segunda etapa, seno luz da vocao daquele a quem damos o nome de Apstolo dos gentios.

  • CAPTULO PRIMEIRO

    A INTERVENO DE CRISTO

    1. A histria religiosa da humanidade antes de Cristo. A humanidade naordem da criao e o reino do pecado. O paganismo. A eleiode um povo.

    2. A obra salvifica de Cristo. A ressurreio: funo teolgica da ressurreio de Cristo; sua eficcia. A morte de Cristo: seu lugar na mensagem crist; sua eficcia. Eficcia conjunta da morte e da ressurreio. A carreira terrestre de Cristo.

    3. A ordem crist. O cosmos: o mundo material; o mundo dos seresinvisveis. Perodo de transio. Nova et vetera. A hora dosgentios. O Israel de Deus.

    Os apstolos foram encarregados pelo Senhor Jesus Cristo de nos anunciar a mensagem. Jesus Cristo foi enviado por Deus. Assim pois, o Cristo por Deus e os apstolos pelo Cristo: ambas as coisas foram assim ordenadas segundo a vontade de Deus (IClem 42,1-2). A salvao crist, a nova ordem, comea pela misso de Cristo; ela ter sua continuao na mensagem apostlica.

    No sentir de Clemente, a mensagem tem por objeto o reino escatolgico *. Os Evangelhos sinticos falam de um modo muito mais matizado. No somente mostram a Boa-nova do reino anunciada na Galilia, mas consideram a morte e a ressurreio de Cristo como elementos-chaves da obra divina realizada em Jesus. O Evangelho de so Joo prope uma sntese que une ainda mais estreitamente o ensinamento de Cristo (considerado como revelao) e a manifestao brilhante de sua morte gloriosa. A teologia paulina assume uma cor prpria, desde o comeo, pela importncia que atribui ressurreio de Cristo e sua morte, em detrimento, diramos, de

    ' Uma anlise de IClem 42,3, onde aparece num estilo paulino a aluso ressurreio (7tXripoc(>opri0vir- x t vao^-rcECo toO Kupou ltxwv Ir\(Tov XpiCToO) leva a matizar estas frmulas.

  • seu ensino e da sua encarnao (no sentido de entrada no mundo humano tomando uma carne semelhante nossa).

    Poderemos entender a obra de Cristo, maneira de Paulo, enquadrando-a no conjunto dum grande plano divino. O primeiro artigo descrever em grandes linhas a situao anterior revelao crist. Dedicaremos o artigo seguinte interveno salvfica da paixo e da ressurreio. Estes dois acontecimentos, reunidos na inteno divina, inauguram o tempo cristo que deve terminar na parusia.

    Art. I. --- A HISTRIA RELIGIOSA DA HUMANIDADEANTES DE C r is t o

    Cristo o termo da evoluo, como dizemos hoje, de todos os sculos precedentes, desde o comeo dos tempos. Sua obra e o sculo cristo do qual ela o comeo, esto no centro duma histria universal, a aventura religiosa da humanidade.

    Dividir esta histria em perodos seria impor ao pensamento paulino uma sistematizao que lhe desconhecida. Distinguiremos contudo a ordem da criao, o reino do pecado sob suas duas formas, pecado original e conseqncias da idolatria, e enfim a eleio de um povo^.

    1. A humanidade na ordem da criao e o reino do pecado

    A histria humana comea pela criao. Falando da ordem da criao, no sentido prprio, separamos logicamente no estado parasaco, os elementos que pertenciam natureza do homem e os que a sobrepujavam.

    Breve ou longo, no o sabemos, o perodo inaugurado pela criao foi bruscamente transtornado por uma revolta do homem. At ento a humanidade estava sem histria, vivia na paz total com seu criador. Seu relacionamento com Deus era

    2 Cf. O. Kuss, Zur Geschichtstheologie der paulinischen Hauptbriefen, em Theol. u. Glaube, 46 (1956), pp. 241-260.

  • direto, sem a mediao das potestades espirituais Pois a humanidade tinha sido criada como uma raa distinta de todas as espcies animais e das famlias anglicas. Colocada sobre a terra, tinha como misso descobrir o Criador atravs de sua obra e render-lhe homenagem: Desde a criao do mundo, escrever so Paulo na sua Carta aos romanos, as profundezas invisveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visveis inteligncia, por suas obras, e so contempladas (Rom 1,20). O tema bem conhecido na filosofia grega, no Antigo Testamento (nos Salmos sobretudo) e no judasmo helenista'. Foi abordado principalmente no Livro da Sabedoria, e precisamente num contexto paralelo ao da Epstola aos romanos, tratando da origem da idolatria.

    ^ Paulo pautava sua teologia pelas primeiras pginas do Gnesis, tradies judaicas e luzes de Deus.

    C f. E. N o r d en , Agnostos Theos. Untersuchungen zur Formen geschickte religiser Rede, Leipzig , 1913 , H . D a x e r , R om 1 ,1 8 -2 ,10 im Verhltnis zur Sptjdischen Lehrauffassung (D is s .) , R o sto ck , 1 9 1 4 ; H . L ie t z m a n n , An die Rmer, T u bin g a , 1928 , p. 33 (e x cu rsu s); E. F a s c h e r , Deus invisihilis em Marburger Theologische Studien, I , G o th a , 1931 , pp. 41 -7 7 ; E. ScH L iN K , Die Offenbarung Gottes in seinen Werken und die Ablehnung der natrlichen Theologie, em Theol. Bltter, 2 0 ( 1 9 4 1 ) , cc. 1-14; A .-J . F e s t u g i r e , La Rvlation d'Herms Trismgiste, I V , P aris, 1949 ; O . M i c h e l , Der Brief an die Rmer, Goettingen, 19 5 5 , pp. 52-56 . P au lo recorre ao argum ento bem conhecido da theologia naturalis. D everemos conclu ir que perm anece ainda h o je , para a intelign cia hum ana, a possibilidade de descobrir a D eus em suas obras; m as esta possibilidade era estorvada pelas institu ies do paganism o, a filosofia corren te , a interveno das potncias etc. E. B o r n k a m m , Die Offenbarug des Zornes Gottes, em Zeitschr. Neut. Wiss., 34 ( 1 9 3 5 ) , pp. 2 3 9 -2 6 2 , agrupou o m aterial h elen stico . C f. igualm ente E. N o rd en , Agnostos Theos, pp. 125-140 . O . M ich el in siste na dependncia de P aulo com respeito apocalptica. N o se devem negar os contatos [Test. Nepht., 3 , 4 ss; Apoc. B ar., 5 4 , 1 8 ) , mas seria preciso perguntar se a prp ria apocalp tica no tem dvidas para com o ju d asm o helen ista , ou ento se a corren te sapiencial e a corrente ap ocalp tica no correm em leitos onde se m isturam suas guas, sendo o prim eiro m ais grego e o segundo m ais orientalizado. Q u anto ao ju d asm o h elen ista , pode-se lem brar Sab 1 3 ,ls s ; Orac. Sib.,I I I , 8 -4 5 ; J o s e f o , c. Ap., 2 , 1 6 7 ; F i lo n , Op. Mundi, 7 ss; Spec. Leg.,l ,1 8 s s tem a est ico e m u ito popular (c f. P . R e n a r d , Le mysticisme cosmique dans le Corpus hermeticum, U niv. de Lou vain . M m oire de licence P h ilos, e t L e ttres , P h ilo l. class., 1 9 4 9 ). Cf. B . R e ic k e , Natrliche Theologie nach Paulus, em Svensk Exeg. Arsb., 22-23 (1 9 5 7 -5 8 ) , pp. 15 4 -1 6 7 ; H . P . O w e n , The Scope of Natural Revelation in R om 1 and A cts 17 , em New Test. Studies, 5 (1 9 5 8 -5 9 ) , pp. 133-143 .

  • A inteligncia ( sua meno est implcita no particpio voofXEva 5 ) tinha pois sido dada ao homem como privilgio essencial. Ela devia proceder segundo sua fora nativa e conduzir por raciocnio ( ou talvez melhor, por analogia ^) da contemplao das obras descoberta de Deus. As obras criadas so o lugar normal onde a inteligncia humana encontrava seu Criador. So Paulo aplica concretamente esta teoria humanidade nascida de Ado, que se foi multiplicando e abandonando o monotesmo. Seus dizeres so paralelos aos do Livro da Sabedoria; A inveno dos dolos foi a origem da fornicao, a descoberta deles corrompeu a vida; pois eles no existiam no princpio e no duraro para sempre. Foi pela vaidade humana que eles fizeram sua entrada no mundo (Sab 14,12-14). Percebe-se claramente que a Sabedoria, ao descrever as origens da idolatria, sobrepe ao esquema bblico da histria primitiva (cf. por exemplo Sab 14,6) um quadro mais geral em que toda a humanidade evolui em massa. So Paulo no pensa doutra forma. Os homens nascidos de Ado, no s continuavam capazes de conhecer a Deus, mas no se afastaram

    5 Comparar com vw Ssffopa-cai no hieros logos judaico (cf. Recueil Lucien Cerfaux, I, Gembloux, 1954, pp. 72-73).

    ^ Pode ser citado Sab 13,5: Pois a grandeza e a beleza das criaturas do a contemplar, por analogia, o seu criador.

    De acordo com sua tendncia, O. Michel pensa nas obras e aes de Deus na criao e na histria (Der Brief an die Rmer, Gtfnigen, 1955, p. 54). No entanto, se o tema helenstico (os termos apa-ca, rtoiTuxaaw, vooiaeva, xaGopaxai sugerem esta origem), trata-se do mundo criado, que manifesta Deus.

    No C. Herrn., Deus toma a iniciativa, manifestando-se com vontade de ser conhecido; uma espcie de revelao; no se v_ a Deus com os olhos do corpo, mas com os da inteligncia ('co' to vo GaXp.oi'). E ainda necessrio que ele queira tornar-se perceptvel s inteligncias que ele predestina (o- v a

  • do seu conhecimento seno progressivamente. E ainda assim, no seio da idolatria generalizada, o homem continua homem e sua inteligncia capaz de descobrir seu Criador: este dom constitui sua grandeza. Pode-se acrescentar que a filosofia humana era o instrumento destinado a promover a procura de Deus (ICor 1,21).

    Este ponto de importncia capital para interpretar o paulinismo. No temos o direito de declarar que o homem,depois da queda, incapaz de atingir a Deus ou no o atingeseno para melhor rejeit-lo O insucesso da inteligncia, de que fala Rom 1,21 (a procura de Deus fracassou) no tambm to radical, que tenha arruinado a natureza humana. Uma reflexo conduzida com critrio poderia ainda chegar ao conhecimento de Deus, Paulo faz um corajoso apelo disposio nativa da inteligncia, no discurso de Listra e no do Arepago Quando, no incio da Carta aos romanos, deixando de lado certos detalhes, ele atribu totalidade do gnero humano a ignorncia de Deus e os pecados da derivados, no ser por uma generalizao literria? Toda proposio geral conhece excees e nunca se sabe at que ponto a exceo contraria a tese abstrata. No mesmo contexto em que afirma a universalidade do pecado, so Paulo ensina que os pagos que tiverem tido a coragem de fazer o bem e de viver segundo sua dignidade de pessoas religiosas, recebero em recompensa a vida eterna (Rom 2,7-16).

    Portanto, a ordem da criao continua, mesmo depois do pecado original e depois das prevaricaes da idlatria. Ela persistia debaixo desta camada de pecado que recobria a humanidade. E no desaparecer aps a morte e a ressurreio de Cristo. Assim como ela se harmonizava no incio com uma primeira ordem sobrenatural, coexiste agora com a ordem ligada restaurao no Cristo. Em outras palavras, o mundo no qual vivem os cristos permanece, sob este aspeto determinado, exatamente como saiu das mos de Deus. Os homens que, por algum motivo, no so atingidos pela mensagem crist, conser-

    abordamos aqui a questo muito particular do livre arbtrio inclinado e atenuado pelo pecado original (cf. infra, pp, 426s), Sabemos que Deus ilumina a inteligncia. Desde que o movimento desta tende para o Deus pessoa, e por conseguinte prepara a salvao propriamente dita (que sobrenatural), a iniciativa divina precedeu a atividade humana,

    Estes discursos representam pelo menos os tetnas clssicos em voga nos meios paulinos.

  • vam a capacidade de conhecer a Deus pela contemplao de suas obras. Os prprios cristos continuam a louvar a Deus pelos benefcios da criao

    Antes de Cristo, o pecado reinou sobre o mundo So Paulo justape duas explanaes: uma partindo do pecado de Ado, a outra a partir da idolatria; a primeira, inspirada no Gnesis, a segunda, num contexto judeu-helenista. O pecado de Ado afeta toda a raa humana. O pecado original significa uma runa, mas no a privao das condies essenciais nas quais a ordem criada propriamente dita estabeleceu a natureza humana. Outros pecados, individuais, vieram somar-se ao primeiro pecado (Rom 1,18). Progressivamente, os homens se arraigaram em sua recusa de conhecer o verdadeiro Deus. Substituram-no pelos dolos. A idolatria gerou a imoralidade, especialmente as desordens sexuais; o pecado se instalou no mundo, como se este lhe pertencesse. Disto os judeus no esto isentos so Paulo chega a afirmar que a lei reaviva e multiplica o pecado.

    2. ^ O paganismo

    1. O termo pagos exprime a opinio de Paulo sobre o mundo greco-romano. Os judeus classificavam os homens dum modo bastante sumrio: havia os judeus e os no-judeus, os circuncisos e os incircuncisos.' Paulo emprega eviri (com os Setenta) para designar os no-judeus. Com menor freqncia usa Axpoucxia (prepcio) em sentido metonmico, por oposio circunciso, que indica, por uma metonmia paralela os judeus circuncisos Quando, em duas sees das Epstolas,

    '2 iCor 10,31; Col 3,17. Pata no complicar nossa exposio, deixamos de lado uma viso mais profunda da ordem da criao, apresentada em Ef-Col: Cristo estava j no incio de todas as coisas, como termo, instrumento da criao e revelao do plano divino,

    '3 Voltaremos a este assunto mais adiante, cf, pp. 394-400,A Sabedoria de Salomo (15,1-6) mais otimista que Paulo,

    *5 Cf, Gl 2,15; Rom 3,29;9,24; o captulo 15 de Rom ICor 1,23, Nossos dois adjetivos gregos-pagos eqivalem de certo modo a 0VT]- xpouffTia, Para a significao exata desses termos, ver H, W in d is c h , art. EXX^v, em Theol. Wrterbuch, II , pp. 501-514, e K. L, S c h m id t , art, E0VO- ibid., pp, 362-369. Os E 0 vn , conforme o vocabulrio do Antigo Testamento, vulgarizado pelo judasmo, so os no-judeus, como tais; os incircuncisos so aqueles, cuja religio o que chamamos de paganismo. Traduzimos o termo ora por pago, ora por gentios.

  • a saber, no incio de Rom e no de ICor, ambas influenciadas pelo discurso de propaganda judaica, ele emprega o binmio de totalidade, com a anttese judeu-heleno, seu modo de dizer idiomaticamente grego; louSo- t e (-repwTov) "EXXinvM. Mas quando discutia com Cefas em Antioquia, como judeu desejoso de causar impresso sobre outro judeu, diante dum auditrio judeu, ouvimo-lo dizer: ns que somos judeus de nascena ((pffEi) e no pecadores da gentilidade (Gl 2 ,15). No teria falado desta forma diante do Arepago.

    Paulo no tem receio de relembrar a seus pagos a degradao em que viviam outrora: Lembrai-vos, escreve aos efsios, do que reis outrora, vs, os pagos segundo a carne, que reis chamados de incircuncisos por aqueles que se chamavam circuncisos, os que levam na carne a circunciso, feita por mos humanas; naquele tempo estveis sem Cristo, sem direito de cidadania em Israel, alheios s alianas, sem esperana da Promessa, e sem Deus neste mundo (E f 2,11-12). Esta sntese, nica na literatura paulina, corresponde bem ao que se espera. Todas as consideraes so de ordem religiosa, pois a cidadania (itoXiTEa) de Israel a de um Estado religioso. Todas as taras do paganismo tm por origem a recusa de reconhecer a Deus e a inveno dos dolos Como conseqncia, grassa a imoralidade, anexada religio. O paganismo , pois, formado destes elementos: a impiedade, a negao do verdadeiro Deus, e a imoralidade; podemos acrescentar: a clera de Deus Do cu desce (manifesta-se) a ira de Deus contra toda a impiedade e perversidade dos homens, que pela injustia aprisionam a verdade (Rom 1,18).

    1 Cf. R om 1,16;2,9-10;3,9;10,12; ICor 1,24; cf. 10,32;12,13; Gl 3, 28; Col 3,11; ICor 1,22 etc. Sobre os binmios contraditrios, indicando a totalidade, cf. H. R ie s e n f e l d , Accouplements de termes contradictoires dans le Nouveau Testament, em Coniectanea Neotestamentica, 9, Upsala, 1944, pp. 1-21. '

    Ser que Paulo pensa que, desde o incio, Deus preservou uma parte da raa humana por escolhas (eleies) sucessivas na descendncia dos patriarcas? Mas no h indcios de que ele v alm de Abrao. Abrao foi o primeiro a ser colocado parte. Provavelmente Paulo imagina a vocao de Abrao como o fez Filon de Alexandria: Abrao, no meio dum povo que no conhecia a Deus, chega ao conhecimento do verdadeiro Deus. Contudo, o tema propriamente filoniano (descoberta de Deus pela astronomia) no conviria ao Apstolo.

    ** Cf. E. B o r n k a m m , T)ie Offenbarung des Zornes Gottes, em Zeitschr. Neut. Wiss., 34 (1935), pp. 239-262,

  • Coletividade dos homens, acervo de pecados, responsabilidade do gnero humano, tudo isso so generalizaes: em teoria, a humanidade inteira culpvel pelo abandono de Deus; ela punida no esprito e na carne. Os indivduos podero usar sua liberdade, seja para pactuar com a atitude geral do gnero humano, seja para observar os preceitos da vontade divina. Sem isso, o juzo que Paulo anuncia ficaria sem sentido. Portanto, preciso salvaguardar s instituies, que, alis, pesam grandemente sobre os costumes, uma possibilidade de libertao pessoal.

    Uma passagem de ICor faz recair sobre o paganismo uma condenao mais severa. A se ouve a reprovao do Antigo Testamento e de certas correntes do judasmo. O paganismo , afinal, O' culto dos demnios (ICor 10,20). Os banquetes sacrificais unem aos demnios e esta unio imaginada dum modo muito realista Ao mesmo culto esto ligados os excessos sexuais ( 1 Cor 10,7-8).

    2 . A responsabilidade das filosofias humanas est comprometida nestas origens do paganismo. Conforme ICor 1,21, a sabedoria humana, isto , a filosofia, era encarregada de conduzir os homens ao conhecimento de Deus A Epstola aos romanos faz aluso mesma teoria (1,21-22) que corresponde funo religiosa que as filosofias contemporneas, especialmente o estoicismo, atriburam a si mesmas. Na verdade, se os moralistas pagos souberam dizer coisas bonitas, muitas vezes eles aprovaram de fato a imoralidade e a idolatria

    Neste processo, o juzo de Paulo sumrio. Se a filosofia tinha por misso conduzir os homens a Deus, ser que ela no o conseguiu algumas vezes, em certas pocas, em determinadas criaes geniais, ou para alguns indivduos privilegiados? Se nos

    Cf. Rom 2,12-16.20 Faz-se um paralelo com a unio sexual da prostituio, iCor

    6,16-20.21 EtolSt). . . OX eyvu xtrpio- 5i tt- ffoa- tv ev. 2o(pa

    faz anttese com (Jiwpta to ocipYpaxoj-. O sentido parece bem determinado pelo contexto e Rom 1,21. Cf. os comentrios de E.-B. A l l o , Fremire pUre aux corinthiens (tudes Bibliques), Paris, 1935, e de J. W e is s , B er Erste Korintherbrief (Krit.-exeg. Kommentar), Goettinguen, 1910, ad loc. _ ^

    22 E[xaTai[00Tnffav v to" S iaX oy iffno " a T v . . . cpffxovTE e v a i aoo i...

    23 Rom 1,32;2,3 (segundo uma exegese plausvel).

  • dizem que a filosofia humana era capaz de conhecer a Deus, porque se fez disso experincia; com efeito, uma corrente monotesta atravessou a filosofia grega. Quando Paulo declara que a criao manifesta o poder e a bondade de Deus ( Rom 1,20), ele se refere implicitamente a certos topoi filosficos conhecidos (a aluso filosofia clara no contexto, vv. 21 e 22 ). Por conseguinte, a condenao no to absoluta, e se a tese teolgica permanece verdadeira como aproximao ou generalizao, a realidade comporta nuanas que no se podem ignorar. A teoria da interveno dos seres demonacos na inveno da filosofia , alis, paralela outra, que atribui aos anjos uma funo na promulgao da Lei judaica. Deve-se afirmar, em suma, que o veredicto de Paulo lhe imposto por seu monotesmo

    3. A eleio de um povo

    1. Paulo pintou um quadro muito sombrio do judasmo legal. Censuram-no como se ele no tivesse percebido os ver-

    Cf. acima, pp. 32s. A comparao com os mitos do judasmo sobre a queda dos anjos faz-nos identificar aos anjos maus os poderes que revelam a filosofia deste mundo (ICor 2,6). A unio dos anjos e das mulheres d origem a maus espritos, que induzem o homem ao culto idlatra (Hen., 19,1; Bar., 4,7; cf. G. B. C a ie d , Vrincipalities and Powers. A Study in Fauline Theology, Oxford, 1956, p. 67). Por outro lado, estes mesmos anjos so responsveis pela revelao ilcita dos mistrios.

    25 Os ataques idolatria se multiplicam ao longo das Epstolas. Os pagos so sem Deus no mundo, no conhecem a Deus (ITes 4,5; Gl 4,8; Ef 2,12), no adoram o Deus vivo e verdadeiro (ITes1,9); tornaram-se alheios vida de Deus (Ef 4,18) (num contexto paralelo ao de Rom l,21ss, rnas transposto, a recusa de conhecer a Deus torna-se uma recusa de participar de sua vida). Os pagos adoram deuses que no o so por natureza (Gl 4,8), pretensos deuses (ICor 8,5). Multiplicaram esses deuses enganadores que eles chamam de deuses e senhores, procurando-os no cu e sobre a terra (iCor 8,5). Concretamente: dolos mudos (ICor 12,2), deuses antropomrficos dos gregos ou zoolatria egpcia (Rom 12,2), deuses astrais (ICor 8,5), culto dos soberanos (ICor 8,5); provavelmente^ (Tes 2,4); Paulo faz aluso a todas estas formas duma idolatria que sempre a mesma, que tranfere s criaturas a homenagem devida somente ao Criador (Rom 1,25).

    3 - O cristo na teologia de so Paulo

  • dadeiros valores religiosos da Lei de Moiss. Provavelmente basta, para defend-lo, compreend-lo com simpatia^.

    Lei um termo susceptvel de mltiplas acepes^, e, segundo, seu sistema de pensar e de raciocinar, o Apstolo

    passa, sm transio, de uma para outra. assim que ele acumula sobre a Lei acusaes que visam ora o farisasmo estreito que certamente existiu na Palestina como no mundo helenista, ora a prpria Lei, concebida como um cdigo de preceitos sem preocupao moral mais profunda. A controvrsia que ele mantm contra os judaizantes torna mais rgidas suas apreciaes.

    2 . Mas ele sabe tambm que a Lei outra coisa,a) Desassociou da instituio mosaica Abrao e os patriar

    cas. E contudo, a prpria Lei (a saber, os Livros santos) que o fez conhecer a histria patriarcal, a tal ponto que ele no porcura separar a histria em sentido estrito isto , a realidade material dos acontecimentos da moldura de interpretaes alegricas que a rodeiam. A meno de Abrao, tal como sua teologia o descreve, uma homenagem Lei, entendida num sentido amplo, quer dizer, ao valor religioso profundo do Antigo Testamento.

    Abrao um cristo antes do cristianismo, como poderia s-lo todo judeu capaz de elevar-se altura de sua f. Ele ouviu, em smbolos, a mensagem da ressurreio, no dia em que Deus exigiu dele a f na promessa dum filho, isto na revivescncia de seu corpo amortecido e do de Sara (Rom 4,19-21)

    ^ H.-J. ScHOEPS, Paulus, Tubinga, 1959, pp. 174-230, analisa longamente a doutrina de so Paulo sobre a Lei. Censura-o antes de tudo por ter ele desconhecido o alcance da aliana, e isto porque reagiu como helenista, inalando seu passo verso dos Setenta. De fato. Mas poder-se-ia exigir de so Paulo uma crtica histrica da Lei de Moiss? A liberdade que ele tinha por misso garantir aos cristos da Gentilidade estava ameaada, no s pela concepo que um doutor palestino possua da Lei, mas tambm pela dos judeus da Dispora. Admiramos, alis, a verdadeira simpatia com que Schoeps, como historiador, aborda os problemas do paulinismo. Quem sabe a simpatia decisiva impossvel para quem no penetra no interior do esprito proftico que animava o Apstolo?

    27 P. B l se k , Das Gesetz bei Paulus {Neutest. Abh., X IX , 1-2), Mnster-na-W., 1941; W. G u t b r o d , art. v^-o-, em Theol. Wrterbuch,IV, pp. 1061s. ^

    2* Note-se a formula do v. 21: xal 7cX]po(popiQ0l- ti, o nriyYEXTai SuvttT- TTv xal ito-iTcrai. Cf. J . H u b y , Saint Paul, L ptre aux romains, (Verbum Salutis), Paris, 1957, pp. 177s; St. L y o n n e t , La valeur sotriologique de la rsurrection du Christ selon saint Paul, em Grego- rianum, 39 (1958), pp. 296s (apoiando-se em Orgenes).

  • Creu na promessa. Esta confiana lhe valeu o dom da justia. Neste momento, ele ainda no era circunciso; ele , pois, na sua f, conforme a afirmao do Gnesis, o pai dos gentios que abraarem a f crist. Abrao um personagem da religio universal; no entanto, ele o homem de Israel.

    b) Os escritos mosaicos ora falam em nome da Lei propriamente dita (os preceitos), ora anunciam misteriosamente a justia da f. A Lei dos preceitos foi promulgada pelos anjos (que so Paulo chegar a identificar com os elementos deste mundo); as frmulas anunciadoras do Cristo e da justia crist provm do Esprito proftico.

    c) Paulo faz justia Lei quando diz que ela espiritual e que tem como termo o Cristo, ou ento quando afirma que a religio da f, longe de aboli-la, d-lhe, ao contrrio, seu justo valor ou ainda quando escreve que ela contm os orculos de Deus e que ela visava j os tempos cristos.

    A instituio mosaica era, pois, bivalente. Trazia em si as promessas esperanosas que os profetas ampliariam e que o Cristo ia realizar. Mas seu carter nacional e legalista encerrava muitos perigos. Seria justo censurar so Paulo por haver respondido com argumentos ad hominem a seus adversrios judaizantes, e por haver salientado insistentemente, para garantir a liberdade de suas igrejas, as deficincias reais da velha religio de seu povo?

    3. Paulo releu a Histria Sagrada luz da f crist. Procurou distinguir o que se relacionava com o Israel de Deus, espiritual, e o que dizia respeito ao povo terrestre e carnal.

    a) Na eleio de Abrao Deus escolheu para si um povo que prepara o Cristo. A circunciso era O' sinal carnal da pertena linhagem predestinada. Ser os descendentes de Abrao e portadores das promessas espirituais, ser o principal ttulo de glria dos judeus (hebreus, israelitas). Paulo participou do orgulho de todo o seu povo (Flp 3,4-5). A descendncia carnal, todavia, acompanhada duma liberdade de escolha: os verdadeiros filhos de Abrao, e portanto de Deus, no so simplesmente os que nascem segundo a carne, mas sim os filhos da promessa (Rom 9 ,8 ). Paulo ir at o fim de seu pensamento: os cristos constituem a verdadeira descendncia. So eles a verdadeira circunciso; a promessa estava feita em favor do Cristo:

    N fjio v o 5 v x a T a p Y o jj iE v 5 i t - T t c x E W ; [jit) y v o i ir o , X k , vfxov cnrvojjiEV (Rom 3,31).

  • OS que pertencem ao Cristo so a raa eleita Quando nasceu Isaac, filho da promessa, era j em figura o Cristo que ressuscitava. A f de Abrao, preldio da dos cristos, orientava-se j para a ressurreio.

    b) A promessa passa, portanto, por cima do povo eleito, para se realizar por direito no povo cristo. Mas Rom 11,13-32 fala num tom diferente. A descendncia carnal possui tanta importncia, que os judeus so por natureza por direito, portanto, membros do Israel novo e espiritual. um eco da teoria nacional do judasmo. Assim as frmulas paulinas oscilam, ou para a esquerda, ou para a direita. Elas se equilibram na tese duma preferncia concedida ao judasmo por causa dos patriarcas (Rom 11,28), Os judeus so favorecidos; Deus respeitou seu privilgio; devia-lhes a salvao, no apenas por misericrdia, mas porque seus dons e sua escolha fundavam um direito deles (Rom 11,29). Tambm o Cristo se inclinou diante da eleio deles e se fez ministro da circunciso. Os apstolos enquanto judeus so as colunas da Igreja. Estavam representados simbolicamente, junto com a Igreja apostlica de Jerusalm, por aqueles sete mil homens que no dobraram o joelho diante de Baal no tempo de Elias O prprio Paulo, o Apstolo dos gentios, um judeu e recebeu sua misso na qualidade de judeu Ele resume os privilgios do judasmo em Rom 9,4: seu ttulo de israelitas e de filhos de Deus, a glria, os testamentos, a legislao, o culto, as promessas, os patriarcas; Cristo pertence raa deles, filho de Abrao e filho de Davi. Mas estes privilgios no so absolutos. A restrio feita para o Cristo ( segundo a carne, Rom 9,5) aplica-se, guardadas as devidas propores, aos outros privilgios. O Cristo segundo o Esprito, pela ressurreio, escapa ao domnio duma raa. A glria e o culto antigos so imperfeitos, comparados com as realidades perfeitas que os cristos vo possuir. Os testamentos, as promessas, no so outra coisa seno hipotecas sobre o futuro cristo.

    ^ Ver L, C e r f a u x , Abraham, pre en circoncision des gentils, em Mlanges E. Podechard, Lyon, 1945, pp, 57-62 ( = Recueil Lucien Cerfaux, I I , Gembloux, 1954, pp. 333-338),

    Comparar Gl 2,15 e Rom 2,27; 11,21-24,32 Rom 11,4-5,33 O tema aparece em Rom 11,1; pois eu fflesm sou israelita, da

    descendncia de Abrao, da tribo de Benjamim,

  • c) A Lei de Moiss colocou os judeus acima dos povos pagos. O mundo greco-romano confessava, s vezes, que o monotesmo e a moral deles suplantavam sua prpria cultura. Paulo reconhecia que os judeus tinham sido os educadores do gnero humano. A Lei espiritual, acrescentava, entendendo com isso que ela era obra divina. Mas era ao mesmo tempo o cdigo dum povo semita, uma Constituio nacional, semelhante a muitas outras. O Apstolo tinha motivos para diminu-la. Suas crticas, embora voluntariamente severas, eram procedentes. A legislao mosaica constitua um retrocesso em relao religio de Abrao. Para promover a educao do povo, Moiss fora obrigado a submet-lo a mltiplos preceitos. Nem todos tinham o mesmo valor. Paulo notara a analogia do culto e das prticas mosaicas com certos costumes grosseiros dos povos pagos e atribua sua entrada na lei interveno de Moiss, o mediador que devia levar em conta as deficincias do seu povo e influncia das potncias incumbidas do governo do mundo. Magnfica clarividncia de um homem religioso, que a inspirao crist soube colocar bem acima das apreciaes de sua raa e de seu tempo

    4 . Portanto so Paulo emitiu, a respeito da instituio judaica, um juzo moderado e matizado. Evitava as posies extremas: aquela que vai ser o marcionismo e a gnose e a dos judeu-cristos. No consentiu em atribuir o Antigo Testamento a um deus inferior ou ao demnio; mas no hesitou em situaro Cristo acima dos anjos, das potestades e de Moiss.

    A instituio mosaica, embora permanecendo divina, perdia seu valor absoluto. Numa intuio genial, Paulo aplicou ao testamento concedido a Abrao e conservado sob o regime da Lei, o dado permanente da revelao. O pacto mosaico propriamente dito tornava-se assim secundrio e provisrio e podiam-se reconhecer suas imperfeies. Podia-se admitir que em algumas de suas disposies a Lei estava caduca. Paulo no cessou de afirmar, antes de mais nada, que a instituio, com suas imperfeies, tendia para o Cristo.

    Esta arbitragem sobre o Antigo Testamento permitiu legar ao povo cristo a Bblia dos judeus. Foi um servio inestimvel

    ^ Paulo no tem noo de uma evoluo que fizesse subir poucoa pouco a religio do Antigo Testamento para um estado superior, o cristianismo.

  • que, na prtica, salvaguardou o monotesmo e a moralidade das jovens igrejas do mundo pago.

    A rt . I I A OBRA SALVFICA DE C r ISTO

    Inverteremos a ordem tradicional dos acontecimentos, morte e ressurreio, a fim de obedecer ao movimento interno da teologia. Primeiro a ressurreio de Cristo, promessa de sua parusia e como seu primeiro ato, que retm a ateno dos apstolos e dos cristos.

    1. A ressurreio

    I Funo teolgica da ressurreio de Cristo

    1. Fiel ao pensamento cristo primitivo, Paulo prega em primeiro lugar a ressurreio de Cristo Embora a expresso primognito dentre os mortos que emprega no hino da Carta aos colossenses (Col 1 ,18), seja de formao secundria , ela

    35 C f. D , M. S t a n l e y , Christs Resurrection in the Pauline Soterio- logy (Diss. de Ilnstitut biblique), Roma, 1952; G. K o c h , Die Auferstehung Jesus (Beitrge z. hist. Theologie, 27), Tubinga, 1959.

    ^ C f. L. C e r f a u x , Le Christ dans le thologie de saint Paul 2, Paris, 1954, pp. 57-71; K. H. R e n g s t o r f , Die Auferstehung Jesu. Form, Art und Sinn der urchristlichen Osterhotschaft*, Witten, 1960.

    3'^ npojTTOxo- significa primeiramente primognito no sentido prprio, e se aplica ao nascimento de Cristo: Rom 8,29; Lc 2,7; Hebt 1,6 e cf. 12,23. O Apocalipse de so Joo emprega a expresso TcpwxTOXo- TV VEXpv (Apoc 1,5). Poder-se-ia perguntar se no precisamos fazer uma diferena entre a frmula: upwtTOXO' x -rov VEXpwv e a do Apoc TtpwTTOXO- Twv VEXpwv. A expresso paulina parece indicar que Cristo deve sua ressurreio um privilgio de primazia sobre todos os outros mortos. O Apocalipse faz seguir o ttulo primognito dos mortos deste outro: prncipe dos reis da terra. Paulo ensina alhures que a ressurreio a origem do senhorio universal de Cristo, estendendo-se aos mortos e aos vivos (Rom 14,9); e cf. Rom 1,4, a frmula vaffxffEo VEXpwv marcava o ponto de partida da funo de santificador. preciso, de qualquer forma, conservar em Col 1,18 a lio comum (com x), contra

    S *, Ir. que uniformizam provavelmente com ICor 15,20 e Apoc 1,5 e suprimem a preposio.

  • representa uma noo antiga, e situa a ressurreio de Cristo no seu ambiente original, a escatologia apocalptica: Cristo ressuscitou enquanto primeiro, primcias da ressurreio geral; por conseguinte, a poca do fim do mundo, o tempo propriamente cristo, comea com este acontecimento e durar at a parusia, a qual d o sinal da ressurreio de todos os cristos. Primcias dos mortos em ICor 15,20 tem o mesmo sentido; Cristo ressuscita primeiro, como por uma ressurreio subtrada por antecipao (primcias) da ressurreio g e r a lC a d a qual em sua ordem, explica o Apstolo: como primcias. Cristo; em seguida, os que form de Cristo, na ocasio de sua vinda (iC or 15,23).

    Por detrs desta concepo assoma uma outra mais arcaica: a ressurreio de Cristo dava o sinal da parusia e da ressurreio geral dos mortos. Dificilmente se opunham a ressurreio de Cristo e a dos outros mortos; e o pensamento orientava-se todo para a entrada dos cristos na glria; a ressurreio de Cristo tinha-a revestido da glria que ia manifestar-se na sua parusia.

    A viso de Damasco tinha encaminhado as reflexes de so Paulo para a parusia. Sem especular sobre a durao do intervalo que separava os cristos da ressurreio dos mortos, ele recomendava-lhes antes de tudo que esperassem o Filho de Deus que deve vir do cu para julgar o mundo; sua ressurreio era a prova de que ele estava estabelecido na dignidade de Juiz. o estdio da mensagem que nos conhecido pela primeira Epstola aos tessalonicenses

    Nesta perspetiva escatolgica, a mensagem destinava-se a vivos que se consideravam reservados para a parusia. Por ocasio da morte de alguns cristos de Tessalonica, Paulo precisa sua doutrina: os mortos ressuscitaro pois eles pertencem ao Cristo '. O cortejo triunfal da parusia vai ser integrado pelos ressuscitados e os vivos reservados para o grande dia do Senhor.

    _ 38 Cristo ressuscitou dos mortos, primcias dos que repousam ( dtnapxT)TJV XEXOl[X]^JlvWv). .

    A cristologia do cristianismo nascente alia-se primeiro naturalmente escatologia judaica, na qual, durante a poca neotestamentria, o messianismo poltico (escatologia poltica) sofria a concorrncia de uma escatologia dualista, apocalptica, com um Messias transcendente. Cf. H.-J. S c h o e p s , Paulus, Tubinga, 1959, pp. 85-95. A segunda corrente influenciou sobretudo a comunidade crist; a primeira aflora, no entanto, na tradio evanglica e continua ainda perceptvel nas frmulas que traduzem a soberania de Cristo.

    To- xoi.y.'oBvTa- S i to I tio-o (ITes 4 ,1 4 ) .

  • Os cristos acostumam-se a ver as coisas sob um outro prisma. A ressurreio de Cristo, antes imaginada como a realizao dum acontecimento escatolgico, perde cada vez mais este carter; passa a ser considerada sobretudo como o comeo dos tempos novos que precedem a parusia e a ressurreio dos mortos Os cristos que vivem os tempos novos encontram-se colocados sob o influxo espiritual do Cristo ressuscitado. como se o desenrolar do drama escatolgico houvesse sido interrompido. A fora de Deus permanece ativa e orientada para o futuro, mas a preparao parusia, obra espiritual, realiza-se no presente, transforma os cristos e organiza a Igreja. Sob o influxo da fora que ressuscitou o Cristo, o tempo da Igreja comeou.

    A importncia da ressurreio de Cristo ficar sempre em evidncia no pensamento paulino. Se Cristo no ressuscitou, os apstolos so falsas testemunhas de Deus, sua mensagem v, nossa f v (iC or 15,14s.); e por outro lado, objetivamente, a partir de sua ressurreio que se manifesta o poder santifi- cante que ele possui como Filho de Deus (Rom 1,4).

    A evidncia do acontecimento se imps a Paulo na sua viso do caminho de Damasco. A glria na qual Jesus lhe apareceu era a da ressurreio. Instantaneamente se realizou na sua inteligncia uma sntese entre o dado intelectual imediato da viso que se lhe oferecia, o que os cristos diziam de Jesus, e o que ele, fariseu, conhecia teoricamente acerca da ressurreio dos mortos.

    2 . Paulo jamais ps em dvida que a ressurreio fosse uma reanimao do corpo. Falaremos deste assunto a propsito da ressurreio dos cristos. Mas podemos dizer desde j que a ressurreio do Cristo possui uma dupla realidade. Primeiramente, ela pertence ordem dos fatos tangveis, ao nvel de nossos valores humanos: Cristo saiu do tmulo. Este carter experimental de acontecimento que pode ser classificado entre todos os fatos da experincia est implicado no smbolo primitivo que Paulo recebeu do colgio apostlico e que ele promulga na sua mensagem: Cristo morreu. . . foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia (ICor 15,3-4). As prprias vises

    A escatologia antecipada no mais que parcialmente escatolgica, justamente na medida em que ela compreendida como presente atualmente num mundo que ainda no est na escatologia.

    A glria pertence inicialmente ao ciclo de pensamento primitivo, escatolgico.

  • tinham para ele valor de experimentao, recaindo sobre o fato da reanimao de um corpo que tinha vivido antes uma existncia mortal efmera. Isto vale de todas as vises enumeradas em ICor 15,5-8.

    Em segundo lugar, a ressurreio de Cristo pertence ordem espiritual, e seu significado se revela f. Foi o prprio poder de Deus, e no o de um taumaturgo, que ressuscitou seu Filho, comunicando-lhe ao mesmo tempo o poder de santificao no Esprito. A vida qual Jesus retornou no mais a vida perecvel, mas a vida em Deus daquele que alcanou a vitria definitiva sobre o pecado e a morte (Rom 6,9-10); ela instaura na humanidade a ordem nova do senhorio de Cristo sobre todos os cristos (Rom 1,4) e at mesmo sobre toda a criao (Flp 2,9-11).

    Claro est que Paulo no sente dificuldade alguma em aliar estas noes de realidade tangvel e de espiritualidade, que os modernos a custo conciliam. Para ele, o espiritual to real e objetivo quanto a matria. Uma interveno divina imediata insere-se sem hiato na trama dos acontecimentos deste mundo. As relaes com Deus so de ordem objetiva e pessoal; o Apstolo no pensa como um filsofo existencialista e no faz da categoria Deus um poder do alm, no csmico, e invisvel ao pensamento objetivo

    Quanto exegese histrica, primeira serva da teologia, ela no pode, em boa metodologia, encerrar-se numa filosofia.

    II A eficcia da ressurreio

    1. A ressurreio de Cristo age como um catalisador na teologia paulina. No comeo, no estdio das Epstolas aos tessalonicenses e de ICor, a doutrina permanece paralela escatologia judaica'* .^ Contudo, no se pode levar muito longe a comparao. A ressurreio de Cristo de modo algum inaugura na terra um reino messinico comparvel ao reino de 40 anos ou

    Cf. J . P p i n , Mythe et allgorie. Les origines grecques et les contestations judo-chrtiennes, Paris, 1958, p. 55 (com bibliografia).

    ^ Ver a respeito do possvel progresso do pensamento paulino H.-J. S c h o e p s , Paulus, Tubinga, 1959, pp. 98s. Quanto a Qumrn, cf. Dam 7,6 e par. 19,l-2;20,22; S 4,22;11,8; Hod 3,22-23;ll,12; 4Q pPs37, 2,1, Estas passagens evocam menos uma ressurreio que uma vida no alm.

  • mais (milenarismo) que a teologia judaica imaginava. Nunca se fala de uma primeira ressurreio dos mortos, que lhes daria acesso s alegrias messinicas. O que importa , junto com a ressurreio de Cristo, a efuso do Esprito Santo. Esta aparece como um resultado da entronizao celeste do Cristo. Pouco importa se assim se introduz no paulinismo uma noo quase desconhecida do judasmo; pouco importa que a possa haver suspeitas de influncias helenistas. De fato, so Paulo consideravao Cristo ressuscitado como um centro irradiador de vida espiritual (Rom 1,4) que atingia todos os cristos.

    No , pois, a idia dum reino intermedirio, breve e precrio, que se transpe ao cristianismo; Paulo deu uma expresso teolgica experincia espiritual dos cristos.

    2 . A ressurreio obra da fora de Deus e portanto do Esprito Santo. Cristo ressuscitado, que possui em si a vida do Esprito, por em ao doravante seu poder de espiritualizao. No apenas Deus ressuscitar os cristos na parusia, pelo poder eficiente da ressurreio de seu Filho (2Cor 4 ,1 4 ) *^ , mas j agora, a inabitao do Esprito em ns ativa e se exerce no sentido de nossa ressurreio: Se o Esprito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vs, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, tambm dar a vida aos vossos corpos mortais, pela fora do Esprito que habita em vs (Rom 8,11).

    Uma de nossas tarefas futuras consistir em descrever a atividade do Esprito e as realidades sobrenaturais que nascem da ressurreio de Cristo e caraterizam os cristos.

    2 . A morte de Cristo

    I Seu lugar na mensagem crist

    Bem cedo a morte de Cristo entra em competio com a ressurreio, para apresentar-se em seguida como frmula fundamental da m e n s a g e m A afirmao: Cristo morreu pelos

    '*5 Cf. a frmula realmente equivalente, de Flp 3,21; Cristo transformar nosso msero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso.

    Cf. G. W iENCKE, Paulus ber Jesu Tod, Gtersloh, 1939. E. L o h s e , Mrtyrer und Gottesknencht. Untersuchungen zur urchristlichen Verkndigung vom Shntod Jesu Christi, Goettinguen, 1955; E. S c h w e i-

  • nossos pecados segundo as Escrituras precede a da ressurreio no smbolo de f exposto aos corntios (ICor 15,3). So Paulo pode at mesmo falar simplesmente da mensagem do Cristo Jesus, que foi crucificado (iC or 2 ,2 ). a linguagem da Cruz (iC or 1,18). De modo semelhante ele resume sua pregao entre os glatas: ele colocou diante de seus olhos, como um quadro, Jesus Cristo crucificado (Gl 3 ,1 ). Devemos dizer que, tanto entre os glatas como entre os corntios, tem ele suas razes para pr em destaque a morte de Cristo, smbolo de humilhao da razo humana para os corntios, prova da abolio da Lei para os glatas; no deixa de ser verdade que o tema da morte redentora adquire prioridade e vem tona em certos trechos das Epstolas que o pem em grande evidncia, por exemplo numa saudao (Gl 1 ,4), ou na definio da justia crist (Rom 3,24-26)

    Compreende-se facilmente esta dualidade da teologia paulina. Ela provinha do prprio Jesus. Uma tradio crist da mensagem e do ensino unia solidamente morte e ressurreio. Esta tinha sido o fato milagroso que devolveu a f ao grupo apostlico. Aquela fora o escndalo da qual a f tinha triunfado. Tinha-se recorrido s Escrituras, seja para provar que o reino de Deus no seria fundado seno depois da ressurreio, seja para explicar que o Cristo tinha sido submetido morte; tinha-se lido, especialmente em Is 53, a necessidade dos sofrimentos e seu valor de expiao para a multido.

    A influncia da doutrina primitiva perceptvel nas nossas Epstolas. A morte de Cristo no uma abstrao; o Apstolo conhece a cruz, a noite em que Jesus foi entregue, a instituio do memorial da Ceia. So as tradies de Jerusalm. Como toda a Igreja apostlica, ele se apia em Is 53. Outros temas do judasmo que a rigor poderiam ter auxiliado, no so seno

    ZER, Erniedrigung und Erhhnug bei Jesus uni seinen Nachfolgern, Zrich, 1955; L. R ic h a r d , Le Mystre de la rdemption, Paris, 1959; A. FEmLLET, Mort du Christ et mort du chrtien daprs les pitres pauliniennes, em Rev. Bibl., 6 6 (1959), pp. 481-513; A. K a ssin g , Der Tod im Leben des Christen nach dem Apostel "Paulus, em Liturgie und Mnchtum (Laacher H efte), 25 (1959), pp. 7-21.

    A morte de Cristo est ainda em bom lugar na sntese da Epstola aos romanos, dedicada justificao. O pecado que submerge a humanidade deve ser expiado, o batismo une com a morte de Cristo etc. Contudo, uma vez realizada pela cruz a reconciliao com Deus, a vida triunfa: e a vida tem por origem a ressurreio de Cristo (Rom 5,10.21;6,4; etc).

  • raramente explorados; por exemplo, o sacrifcio de Isaac Terminando, devemos notar que a associao destes dois temas, morte redentora ressurreio, especialmente crist.

    II Sua eficcia

    A morte de Cristo, fazendo-se abstrao da ressurreio, significa o instante temporal em que Deus decidiu reconciliar-se com o homem e restabelecer a unidade primordial da ordem moral O poder da ressurreio de Cristo explicava sem dvida os fenmenos espirituais e o entusiasmo religioso que animava os cristos; restava fundamentar o sentimento de libertao do pecado e a necessidade duma converso; numa perspetiva judaica, era preciso justificar a supresso da Lei.

    A morte de Cristo constitui o comeo da obra da salvao. O homem subtrai-se ao domnio do pecado, a morte da cruz 0 reconcilia com Deus. Perante a morte de seu Filho, Deus alterou suas disposies para com a humanidade e deixa campo livre para a sua graa e liberalidade. A reconciliao da humanidade com Deus no , alis, seno uma faceta duma mudana geral efetuada no mundo; a unidade restabelecida l onde a desordem se havia introduzido; os poderes hostis so vencidos; pagos e gregos so unidos no Cristo; o dio, nascido da Lei, abolido. Todos os pecados so expiados e perdoados; mudana das disposies de Deus, que renuncia sua ira, corresponde uma situao nova para a humanidade chamada amizade divina.

    Num pargrafo sinttico, H.-J. Schoeps enumera como temas judaicos correspondentes ao tema cristo: o sofrimento expiatrio dos justos; o sofrimento do Messias; o sacrifcio de Isaac (Paulus, Tubinga,1959, pp. 129-159). O tema da tribulao messinica, no judasmo, no deve ser confundido com o do sofrimento do Servo de Isaas. O Servo uma figura proftica que rene em si os traos do sofrimento dos justos e dos profetas. Seu valor religioso puro e profundo servir para espiritualizar a figura do Messias. Mas no seria preciso reservar exclusivamente ao cristianismo o mrito desta espiritualizao? Cf. V. de L e e u w , De Ebed Jahweh-Profetien (Univ. Cath. Lov, Dissert, ad gradum Magistri in Fac. Theol.), Assen, 1956, pp. 5-22,

    Esta idia da morte do Messias para a expiao dos pecados era pouco divulgada no judasmo, Cf. J. G. M a c h e n , The Origin of Pauls Religion, Londres, 1921, p. 196; E, S c h r e r , Geschichte des jdischen Volkes im Zeitalter ]esu-Christ, II , Leipzig, 1907, pp. 648-651.

  • 3. Eficcia conjunta da morte e da ressurreio

    Na perspetiva arcaica, a ressurreio parecia bastar teologia crist. A ressurreio de Cristo um ato escatolgico autnomo, uma interveno divina que estabelece unilateralmente 0 reino de Deus sobre a terra: nada se exige dos homens, seno que eles se deixem levar pelo movimento da salvao. No entanto, estas frmulas, em que, unindo diretamente a ressurreio parusia, so Paulo parece insistir exclusivamente na eficcia da ressurreio, de fato so apenas premissas; encontramos seu pensamento completo e definitivo nas frmulas estilizadas em que, repetindo a tradio apostlica, ele une morte e ressurreio: . . .ns que cremos naquele que dos mortos ressuscitou Jesus, nosso Senhor, o qual foi entregue por nossos pecados e ressuscitado para a nossa justificao ^ (Rom 4,24-25).

    Se a eficcia da morte e a da ressurreio se distinguem logicamente, em concreto elas se implicam mutuamente. Estes dois atos foram separados apenas por um breve espao de tempo; esto unidos no plano divino e agem como duas foras coordenadas, produzindo simultaneamente a morte do que deve morrer e a vida da humanidade renovada. Se a morte agisse sozinha, a vivificao real no se efetuaria, e o regime cristo no seria mais que um outro sistema jurdico em substituio ao da Lei. Isto no seria uma teologia paulina. Correr-se-ia o risco de esvaziar o cristianismo de sua substncia espiritual.

    4 . A carreira terrestre de Cristo

    preciso reagir contra a tentao de considerar Paulo como o fundador duma religio de salvao centrada unicamente na morte de Cristo. A funo primordial atribuda ressurreio, sem verdadeiro paralelo nas religies de salvao, uma primeira correo a esta tese superficial. A importncia da humanidade de Jesus, ou ento, da manifestao de Cristo numa existncia temporal, outra ressalva Como sabemos,

    ^ A m x t]v 5ixawo"i,v )[xwv. O substantivo justificao no exprime ae modo satisfatrio a ao indicada por Sixawtn-, O termo s aparece aqui e em Rom 5,18, onde ele determinado pelo genitivo ojt-: justificao de vida, quer dizer, vivificao.

    _ A afirmao contrria um dogma da escola da histria das religies, para a qual Paulo pregou unicamente o Cristo elevado glria,

  • so Paulo afirma que o Cristo segundo a carne, isto , na sua existncia histrica, no deve ser tomado em considerao por um cristo Mas esta uma tese teolgica e, alm disso, uma posio rgida, motivada pelas necessidades da polinica. lcito, pois, imaginar seriamente um influxo da carreira histrica de Cristo sobre a atividade do Apstolo.

    O interesse da pesquisa continua grande. difcil os modernos considerarem ainda so Paulo como o verdadeiro fundador do cristianismo, mas existe ainda o perigo de se equivocar quanto ao verdadeiro significado de sua construo teolgica.

    Na nossa tradio catlica, confessamos sinceramente nossa dvida para com o ensinamento de Jesus. Somos antes de tudo discpulos formados pelo Mestre galileu. Segundo seu testamento, participamos, pela liturgia, da sua morte e ressurreio, e possumos os dons do Esprito Santo. Teria so Paulo, ao contrrio, recusado a seus discpulos o direito de se filiarem tradio de Jesus? Teria ele baseado toda a sua doutrina no Cristo elevado glria, e, afinal de contas, em suas revelaes pessoais?

    1. So Paulo conservou a expresso evanglica o reino de Deus, que certamente faz eco pregao de Cristo e dos apstolos, e se acompanhava de recordaes provenientes do Antigo Testamento. Jesus o rei-Messias que os judeus esperaram. ele o soberano do reino de Deus (iC or 15,24; Col 1,13; Ef 5 ,5 ) ; se seu reino espiritual, isto no quer dizer que, na sua existncia mortal, ele no possua j certas