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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional / Memorial Rua Procurador Antônio Benedicto Amancio Pereira, 121, Santa Helena - 29.055-036 - Vitória –ES - Tel: 27.3194.4560 / 4561 — www.mpes.mp.br Projeto Memória Oral 2018 Depoimento de Sonia Maria Bereta Alvim Transcrito por João Victor da Silva Nicodemos estagiário de História Revisado por Paulo José da Silva e Simone da Silva Ávila agentes de apoio administrativo Sonia Maria Bereta Alvim, natural de Miracema (RJ), nasceu em 10 de janeiro de 1952. Filha de João Ney de Alvim e Silva e Darcy Bereta de Alvim e Silva, teve quatro filhos: Pollo Felipe, Samantha, Túlio e Suíla. Foi professora no Estado do Rio de Janeiro e, no dia 11 de março de 1986, iniciou sua carreira no Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Aposentou-se como promotora de justiça em 9 de janeiro de 2012, após 25 anos de serviços prestados ao MPES. 00:00 a 00:14 Tela inicial: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO PROJETO MEMÓRIA ORAL Sonia Maria Bereta Alvim Promotora de Justiça aposentada Depoimento gravado em 29 de agosto de 2018 00:14 a 12:15 Eu sou Sonia. Nasci Sonia Maria Bereta Alvim. Com nome assim grande, porque meu pai achava que o nome tem que ter um som, tem que ter uma sonoridade. Então ele ficou estudando qual era o melhor som: Sonia Maria Bereta Alvim. Deu um som bom, então ele colocou esse nome em mim. E cresci numa família... nasci numa família maravilhosa, numa família de pessoas inteligentes, pessoas boas, honestas. A família do meu pai era de homens que respeitavam as mulheres e que viam nas mulheres alguma coisa melhor. Eu sou a mais velha dos netos do lado do meu pai são 23 netos e do lado da minha mãe eu não sou a primeira, mas sou a [filha] mais velha da minha mãe. Meu avô por parte de mãe é italiano. Casou-se com uma mulata eles falavam que era negra, mas a gente está descobrindo que ela era mulata e teve com ela seis filhos. Depois ela faleceu quando minha mãe tinha 2 anos faleceu no parto da outra irmã da minha mãe, a última e minha mãe foi criada depois na casa de irmãs até o vovô casar. Italiano, ele era industrial, fazia tijolos, fazia

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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional / Memorial Rua Procurador Antônio Benedicto Amancio Pereira, 121, Santa Helena - 29.055-036 - Vitória –ES - Tel: 27.3194.4560 / 4561 — www.mpes.mp.br

Projeto Memória Oral – 2018

Depoimento de Sonia Maria Bereta Alvim

Transcrito por João Victor da Silva Nicodemos – estagiário de História

Revisado por Paulo José da Silva e Simone da Silva Ávila – agentes de

apoio administrativo

Sonia Maria Bereta Alvim, natural de Miracema (RJ), nasceu em 10 de janeiro de 1952. Filha de João Ney de Alvim e Silva e Darcy Bereta de Alvim e Silva, teve quatro filhos: Pollo Felipe, Samantha, Túlio e Suíla. Foi professora no Estado do Rio de Janeiro e, no dia 11 de março de 1986, iniciou sua carreira no Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Aposentou-se como promotora de justiça em 9 de janeiro de 2012, após 25 anos de serviços prestados ao MPES.

00:00 a 00:14 – Tela inicial:

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

PROJETO MEMÓRIA ORAL

Sonia Maria Bereta Alvim Promotora de Justiça aposentada

Depoimento gravado em 29 de agosto de 2018

00:14 a 12:15 – Eu sou Sonia. Nasci Sonia Maria Bereta Alvim. Com nome

assim grande, porque meu pai achava que o nome tem que ter um som, tem

que ter uma sonoridade. Então ele ficou estudando qual era o melhor som:

Sonia Maria Bereta Alvim. Deu um som bom, então ele colocou esse nome em

mim. E cresci numa família... nasci numa família maravilhosa, numa família de

pessoas inteligentes, pessoas boas, honestas. A família do meu pai era de

homens que respeitavam as mulheres e que viam nas mulheres alguma coisa

melhor. Eu sou a mais velha dos netos do lado do meu pai – são 23 netos – e

do lado da minha mãe eu não sou a primeira, mas sou a [filha] mais velha da

minha mãe.

Meu avô por parte de mãe é italiano. Casou-se com uma mulata – eles falavam

que era negra, mas a gente está descobrindo que ela era mulata – e teve com

ela seis filhos. Depois ela faleceu quando minha mãe tinha 2 anos – faleceu no

parto da outra irmã da minha mãe, a última – e minha mãe foi criada depois na

casa de irmãs até o vovô casar. Italiano, ele era industrial, fazia tijolos, fazia

telhas... ele tinha um grande número de empregados com ele lá em Miracema.

Ele casou outra vez, teve mais quatro filhos, e minha mãe foi criada nessa

família pela avó – que eu chamava de avó Luíza, que era a segunda esposa do

meu avô. Nós a chamávamos de avó, não tinha essa diferença não. E então

minha mãe, desde pequena, cresceu ajudando na família. Cresceu ajudando a

madrasta dela – a minha outra avó – a ter os filhos, quando ela ficava de

resguardo e minha mãe, pequenininha, ajudava.

Então minha mãe tem umas histórias, sabe? Que contava assim: quando ela

tinha 8 anos de idade, o irmão dela, que trabalhava na olaria com o vovô,

sumiu. E ela fazia comida – na roça as crianças ajudam. Fez a comida, deixou

lá o prato dele pronto, do Francisco, e ele não apareceu para comer. Vovô

mandou procurá-lo e acharam-no afogado no rio com uma pancada na cabeça.

E um empregado do vovô sumiu. Sumiu e nunca mais apareceu. E desconfia-

se que esse empregado é quem matou o irmão da mamãe. Então a mamãe

desde essa época tem pavor de água, nunca deixou a gente chegar perto de

água por causa disso; e vovô também não quis procurar esse moço que matou,

porque já tinha perdido o filho – o vovô era muito religioso, ele rezava com o

pessoal da fazenda. A minha avó, a mãe da minha mãe, dava aula para o

pessoal todo que não sabia ler e escrever, sabe? Tinha aula. E toda quarta-

feira meu avô reunia todo mundo para fazer oração, todos que trabalhavam na

fábrica. Então minha mãe cresceu nessa unidade de família e aprendeu a

rezar, a orar, a ter compaixão, aprendeu a dar aula. A minha mãe teve essa

personalidade.

E mamãe me contou uma coisa, essa semana, interessante: eu não sabia de

onde vinha meu gosto pela política. Ela me contou que ela, com 12 anos de

idade, subia em palanques, que o vovô era filiado da UDN e, quando tinha que

fazer discurso, ele escrevia e mandava ela falar. Com 12 anos ela falava. E

mamãe é muito política, sabe? Acompanha tudo... eu não sabia de onde tinha

vindo isso. E mamãe veio dessa família. Chegando aos 13 anos, ela conheceu

o meu pai. E foi uma história muito linda. Posso contar, não é? Ela estava com

13 anos, trabalhava em casa e estudava. Adorava estudar, sempre quis

estudar, sempre incentivou a gente a estudar; então o meu pai a viu numa

apresentação de teatro. Ela tinha que apresentar uma peça de teatro em que

ela era uma professora. Ela conta que tinha que comprar um vestido, então ela

vendeu os ovos da galinha dela e comprou um tafetá azul, mandou a costureira

fazer e ela foi linda para esse palco. E ela, dando aula lá no palco, o papai com

19 anos viu minha mãe no palco e se apaixonou por ela. E começou a

perguntar quem era ela, ninguém sabia. Ninguém. Até que ele conseguiu uma

senhora que conhecia as famílias todas lá, que andava muito pela cidade, e ela

localizou e descobriu que era mamãe e falou onde é que era, e meu pai foi lá.

Foi lá a pé. Estrada de chão, chegou lá na porteira, tocou, bateu lá, e o meu

avô que atendeu, e falou: “Eu quero conversar com a sua filha. Quero falar com

a sua filha”, e o vovô deixou. Vovô foi lá e falou com a minha mãe: “Olha, tem

um rapaz aí chamando você. Vai lá levar um copo d’água para ele. Um rapaz

nariz de tucano” [risos], e ainda falou isso do papai. Mamãe foi levar a água e

eles se conheceram e se gostaram.

Para os meus netos eu conto assim: que ela chegou com o copo d’água e,

quando eles se olharam, os olhinhos deles bateram um no outro, assim, eles se

apaixonaram – as meninas adoram essa história [risos] – e se apaixonaram

nessa hora. E dali para frente começaram a namorar. Um dia meu pai falou

para ela: “Você é muito nova, não vai dar certo. Melhor a gente terminar”. Aí ela

falou para ele: “Não, vamos aventurar”. Vamos aventurar, com 13 anos! E está

com ele até hoje, 67 anos e oito filhos que tiveram vivos, porque perderam dois

após o nascimento, e são felizes até hoje.

Essa é a minha história com a minha família primeira. Eu fui a neta mais velha

do lado do meu pai. Eu era muito amada, queridinha. Não tem a queridinha da

América? Eu era a queridinha da família. Sempre fui queridinha da família. E

cresci no meio desse amor todo pelos tios, pelas minhas tias, pela minha avó,

por meu avô. E do lado da minha mãe também. Mamãe tinha uma irmã mais

velha, com 17 filhos, e ela me adorava. Eu adorava ir para a casa dela. Eu vivi

nesse meio, gente. Fui criada num meio de amor, de carinho.

Depois de Miracema, nós saímos e mudamos para Friburgo. Apareceu uma

oportunidade melhor para o papai lá, ele foi embora – ele era contador –,

mudou-se para Friburgo. Fomos nós. Éramos cinco filhos nessa época, mamãe

teve mais três lá. Já tinha morrido uma em Miracema e depois faleceu uma em

Friburgo. E fui criada em Nova Friburgo, fomos para lá em 1960. Na época da

Revolução eu estava lá, morando em Friburgo. E fomos... a escola era em

frente à nossa casa, então não tinha nem preocupação com os filhos. Iam e

voltavam. Não podiam ir para lugar nenhum não, tinha que ir para casa. E a

gente obedecia, ninguém mentia. Não tinha nada disso.

E crescemos com muito respeito. Mamãe sempre explicou para a gente que a

gente tem que ter respeito pelas autoridades, pelo presidente da República,

pelo nosso presidente. Ela ensinou a gente a amar o nosso país, sabe?

Ensinou os hinos para nós. Mamãe sempre ensinou esse respeito pelas

autoridades. Sempre. Autoridade do professor dentro de sala de aula. Sempre

foi incutindo isso em nós, sabe? E nós sempre tivemos respeito pelos seres

humanos, pelas pessoas em volta. Ela foi sempre muito católica, sempre rezou

muito, então ensinou para a gente também esse lado. Foi nossa primeira

catequista, sempre ensinando para nós o amor de Deus, o amor de Jesus por

nós. E sempre encaminhando todos os filhos no caminho do bem. E sempre

incentivando o estudo. A gente podia pensar o que fosse, mas estudo... podia

chover canivetes, não podia faltar aula nem nada, tinha que estudar. E para

mim isso não era difícil, porque eu adorava ler, sempre gostei muito de ler,

então para mim não tinha muita dificuldade nisso aí não. Eu acho que nenhum

outro irmão também teve esse problema. Alguns estudaram até a faculdade,

uns dois que não, mas não teve esse problema lá de estudo não. Ela não

enfrentou isso não, porque ela sempre incentivou.

Então, depois disso, minha família – eu não falei que nasci em Miracema, não

é? falei da parte de Friburgo. Eu nasci em Miracema e estudei no colégio

Doutor Ferreira da Luz, que ainda existe lá. Eu tenho uma tia que foi diretora de

lá até se aposentar, mas eu estudei nesse colégio. E esse colégio era

excelente, sempre foi referência no Noroeste do estado do Rio. Miracema é

uma cidade pequena, mas sempre teve raízes. De lá saíram vários

desembargadores, vários juízes, várias pessoas que ocuparam cargos

importantes no Brasil. Saíram muitas pessoas lá de Miracema por causa... eu

avalio isso, eu atribuo isso ao estudo. Porque lá tinha um bom estudo, uma boa

base. A pessoa conseguia ir para frente. Porque eu penso que a pessoa sem

saber português e matemática não consegue ir a lugar nenhum. Porque

sabendo português vai entender os enunciados de matemática, e sabendo

matemática vai saber fazer qualquer outra equação, qualquer outra questão,

não é? Então lá tinha isso de bom, português e matemática. Depois o resto

você aprende para frente só, sozinho até.

Então de Miracema nós mudamos para Friburgo. Estudei no Colégio Estadual

Ruy Barbosa – era municipal primeiro, depois era estadual, e eu estudei lá. Fiz

um ano no colégio particular Santa Mônica, onde eu fiz uma prova e fui a única

aprovada, com 10 anos, para a Fundação Getúlio Vargas – eu ganhei uma

bolsa de estudos para estudar na Fundação Getúlio Vargas. Não pude ir,

porque não tinha quem me levasse. Era de difícil acesso chegar lá, e mamãe

com uma porção de filhos não tinha condições de levar e não tinha mais

ninguém para ajudar.

Então não fui para a Fundação Getúlio Vargas, mas fiquei estudando num bom

colégio. E lá eu conheci a vida de Ruy Barbosa, a gente tinha que estudar, e eu

me apaixonei por Ruy Barbosa. Ruy Barbosa, para mim, era um ícone. Ele

sabia tudo, Águia de Haia... eu admirava, e eu via aquilo e comparava também

com meu pai – meu pai é inteligentíssimo – e fui crescendo assim. Minha mãe,

quando eu estava com 12 anos, começou a trabalhar fora. A gente ajudava a

cuidar das crianças, nunca teve empregada, e depois ela fez o curso normal

em Nova Friburgo. Durante os três anos, cada ano nasceu uma irmã.

Depois ela foi trabalhar, e a gente continuou com nossos afazeres, com nossas

responsabilidades, sem criar problema nenhum – eles nunca tiveram problema

nenhum com a gente, graças a Deus –, então nossos pais nos criaram sendo

amigos deles e eles nossos amigos. Eles ensinaram para nós, principalmente,

o amor. O amor, o respeito, a sinceridade, a honestidade dentro da família, e

daí eu acho que veio a nossa formação de caráter muito boa. Todos nós... as

minhas irmãs, eu adoro minhas irmãs, meus irmãos, sabe? E eles também, nós

temos um carinho muito grande um pelo outro. Eles ensinaram isso para nós.

Nossos sobrinhos, eu tenho muitos sobrinhos hoje. A família é grande. Mamãe

e papai têm vários bisnetos agora. Aí viemos para Friburgo, e de Friburgo nós

fomos para Niterói.

Exercício do Magistério e o curso de Direito

12:15 a 22:51– Eu passei no concurso público com 17 [anos]. Assim que eu

terminei o curso normal, eu fiz o concurso. Não pude tomar posse, tive que

esperar completar 18. Então, na semana que completei 18, logo depois eu

comecei a trabalhar na roça como professora. Perdi minha vaga do centro, eu

estava bem classificada, mas como eu não pude escolher eu fui para a roça. E

nessa ida para a roça eu aprendi a dirigir, que ele [o pai] me ensinou – ele me

ensinava as coisas, me ensinou a datilografar, me ensinou a dirigir, eu era a

mais velha – e fiquei muito em contato com o meu pai por isso. Aí nesse ano

em que eu estava trabalhando – eu trabalhava no colégio da prefeitura também

–, saí porque era muito difícil o acesso mesmo, era muito difícil, tinha perigo,

tinham estuprado uma professora lá, e eu saí, fiquei só com o Estado – meu

pai fez vestibular no meio do ano. Mamãe incentivando-o, ele fez vestibular.

Quando ele fez o vestibular, ele perdeu em literatura, em julho. Aí em

dezembro ele ia fazer de novo, eu falei assim: “Eu vou fazer com o senhor”. Ele

falou: “Você não pode, porque eu não tenho dinheiro para pagar sua passagem

não”. Eu falei: “Não! Eu tenho” – eu já era professora –, “eu tenho”. Tinha nada,

eu ia arranjar, dar um jeito. E tinha que fazer também a matrícula para fazer o

vestibular. Aí o meu pai falou comigo que estava difícil, e o que eu fiz? Olha

como que Deus coloca as coisas. Uma colega minha vem e me dá um dinheiro

para pagar uma calça jeans que ela comprou com um colega nosso. Aí eu falei

com esse colega, perguntei se ele me emprestava até o final do mês para eu

fazer a inscrição para o vestibular. Ele me emprestou o dinheiro da calça jeans

da colega.

Eu fui para Niterói com meu pai, paguei minha passagem e fui conversando

com ele dentro do ônibus. Eu ia fazer para Psicologia, porque eu admirava

muito o professor de Psicologia, eu queria Psicologia. E fui conversando com

ele o que era esse curso de Direito. E ele foi me explicando o que era o curso

de Direito dentro do ônibus, naquela viagem.

Chegou lá na reitoria da Universidade Federal Fluminense, naquele ano... – a

reitoria era um grande cassino, então tinha vários guichês, e os guichês tinham

aquela meia lua assim, para vender os bilhetes, e era ali que fazia a inscrição.

Então cada cabine daquela, cada guichê daquele era uma inscrição para um

vestibular: Medicina, Direito, Psicologia e cada um fazia fila ali. E o sol quente

de matar. Aí eu fui para a minha fila, Psicologia, e papai foi para a dele, de

Direito. E eu estava na fila, eu fui lá na frente e vi que tinha um papel colado,

falei: “Guarda meu lugar aqui que vou ver o que é”. Aí estava escrito lá:

“Português, Estudos Sociais, Química, Matemática”. Falei: “Não vou passar

nisso de jeito nenhum”. Eu tinha feito curso normal, não estudei Física nem

Química. Como é que eu vou passar nisso?

Me deu um desânimo na hora e aí eu fui andando no sentido dos guichês, fui

vendo as matérias de cada um. Chegou em Direito, papai estava lá atrás da

fila, estava escrito lá “Português, Estudos Sociais, Literatura Portuguesa e

Brasileira, Inglês e Latim”. Aí eu falei: “Ah, eu acho que vou passar nesse

negócio aqui”. Papai me explicou o que que era, já tinha simpatizado, aí eu fui

lá para a fila. De repente, meu pai começou a me procurar, aí eu fiz o sinal para

ele que eu estava na fila: “Oh, resolvi fazer Direito”. Ele falou: “Ah, está bom”.

Fizemos a prova. Nossa! Gente, tinha muita gente. Era muito concorrente.

Tinha mais de 6.500 pessoas, sabe? Na primeira prova de Português, já deu,

assim, 90% saiu. Mas foi uma cortada enorme em Português. E eu passei, eu

era boa em Português, então passei em Português. Aí veio a prova de Estudos

Sociais e cortou mais um “tantão”. Saía no jornal em letras garrafais “30%

cortado na prova da UFF”, saíam aquelas letras das notícias... Aí veio para a

prova de Literatura. Na prova de Literatura, eu não tive tempo de ler os livros

todos não, mas como eu lia muita coisa – eu li “O Tesouro da Juventude”, que

papai tinha comprado para a gente. E no “Tesouro da Juventude” tinha o

resumo desses livros todos, e eu li tudo: “A Moreninha”, “Guarani”. Tudo. Tinha

lido tudo ali. Então eu sabia quem eram os personagens, sabia tudo da história,

era um resumo bem feito. Então o que que aconteceu? Passei de novo, eu e

ele.

Quando terminou essa terceira prova, tinha Inglês, que eu não sabia – sabia

muito pouco só do colégio –, e Latim, que eu nunca tinha visto. Falei: “Como é

que eu vou fazer?”. Olha como é que Deus bota a mão na gente: “Vai, minha

filha”. Fomos fazer a prova de Inglês, e eles chegaram dentro de sala e falaram

que iam fazer uma primeira experiência: o primeiro vestibular a ser feito num

computador. Aí explicaram para a gente que o computador ficava numa sala

enorme, onde eles apuravam os jogos da loteria esportiva. Então eles iam usar

aqueles mesmos cartões para fazer o nosso vestibular. A gente tinha que

responder ali, marcar de pretinho, não podia errar, e seria o primeiro vestibular

com perguntas para você responder a, b, c, d ou f. Aí eles falavam: “Nós vamos

dar a opção até ‘e’, as outras letras vocês não marcam”. Explicaram direitinho.

Então a primeira experiência em Inglês.

Eu fiz a prova de Inglês, tirei 3,5. Não sabia nada. Tinha um texto lá de uma

cirurgia. Eles devem estar tentando entender até hoje o que eu escrevi lá,

porque eu traduzi aquele texto todinho, deixei nada em branco. Mas eu tirei 3,5.

Era diferente de zero. Eles falaram que tinha menos candidatos do que vagas

nessa altura. Olha, olha a sorte! Aí eu falei assim: “Ah, passei. Diferente de

zero, consegui, passei. Agora tem o Latim”. Aí em Latim eu peguei e decorei

todos os números cardinais e ordinais que estavam na lista, no programa, tinha

que cair uma coisa. Fiz a prova de Latim, tirei 1,5. Passei de novo.

Quando veio o resultado, eu fiquei ainda na primeira turma. Eram 150 vagas

para a primeira turma. Eu fiquei em 141º lugar, papai tirou 17º lugar, sem nunca

ter feito vestibular nem nada. Tinha estudado tudo naquele ano, tinha feito

artigo 91, 99, ficou em 17º lugar. E isso separado no Direito. Tinha 300 vagas,

150 na primeira turma e 150 na outra.

Nessa faculdade que eu conheci o Bravo [Francisco de Assis Barbosa Bravo],

que eu conheci a Teresinha [Teresinha Familiar], que era da minha turma,

vieram de lá. Alguns colegas que eram da minha turma vieram para cá. E nós

passamos no vestibular e começamos a cursar juntos. Então eu cursei a

faculdade junto com o meu pai, sabe? Fizemos os cinco anos morando em

Friburgo, estudando em Niterói, e depois passamos para o noturno, e aí não

teve jeito, nós tivemos que morar lá, e minha mãe levou os meus irmãos para

lá, para Niterói. Eu morei em Niterói. Foi todo mundo para Niterói. Eu transferi o

meu cargo de professora para a Secretaria de Educação, fiquei trabalhando na

Secretaria de Educação, e eles ficaram... foram embora todo mundo para lá.

E depois, mais tarde, depois que eu já tinha quatro filhos – eu me casei, eu

conheci meu primeiro marido no Projeto Rondon lá em Valença. Casei com ele

lá em Valença, aí tive quatro filhos com ele e, depois de quatro filhos, ele

resolveu que ia embora, aí me deixou com os quatro. Com os quatro, eu ia

continuar morando em Niterói, estava estudando para fazer concurso. Eu não

pude continuar, porque o dono da casa pediu a casa e eu não queria mais ficar.

Aí eu quis voltar para Friburgo, e meu pai falou: “Você não vai voltar sozinha,

nós vamos com você”. Aí ele voltou com os quatro dele – os outros já tinham

casado – e eu voltei com os meus quatro para Friburgo.

Ingresso no Ministério Público

20:43 a 26:47 – Bom, eu morava em Niterói, como eu falei, não é? Fazia

concursos lá. Eu fui jurada no Tribunal do Júri de Niterói. Era o tempo que eu

aproveitava para estudar, porque eu era funcionária pública, me deixavam à

disposição e eu ficava e aproveitava para estudar. Às vezes eu não era

sorteada e às vezes o promotor dispensava a gente, e eu ia estudar. Eu

aproveitava assim, e quatro filhos, como é que eu ia estudar? Não era

brincadeira. Era bem difícil.

E então fui fazendo concursos lá, e eu ficava, assim, quase passava, quase

passava. Tirava notas altas em Civil, Penal, aí chegava e perdia lá em

Instituições do Ministério Público, numa matéria que eu não tinha estudado

direito. Eu não passava, porque não tinha estudado tudo mesmo, não dava

tempo. Não dava, era muito esforço para mim. Então fui me aprimorando, eu fui

estudando, estudando, estudando e chegou numa época que teve concurso

aqui. Muita gente estava vindo fazer concurso aqui, e eu vim com umas

colegas, me convidaram para vir, me chamaram para vir, e íamos fazer a

prova.

O primeiro concurso que eu fiz eu não passei, fiquei realmente bem chateada,

mas Deus sabe das coisas. Então, naquele concurso, Teresinha [Familiar]

passou, e a prova que ela fez, ela me falou que era para discorrer sobre crimes

contra a fé pública. Na época eu não tinha estudado essa parte assim para

saber escrever sem olhar, entendeu? Para discorrer. E eu fiz o concurso do

ano seguinte, me inscrevi no ano seguinte e, para mim, caiu o Tribunal do Júri.

E Tribunal do Júri eu tinha sido jurada, eu estava mais afiada nesse ano aí, eu

já podia fazer sobre fé pública que eu sabia. Eu já estava estudando, bem mais

preparada. Quando eu fiz essa prova sobre Tribunal do Júri, eu não escrevi

uma linha, não copiei uma linha, do Código. Eu citei, fiz tudo da minha cabeça

e, quando o doutor Faissal [Elias Faissal] falou que eu passei, ele falou que foi

a melhor prova que ele corrigiu. Ele ligou para mim e falou que fez questão de

falar isso comigo pessoalmente, sabe?

E então eu vim de lá, fiz a inscrição em janeiro, em julho tinha que juntar títulos.

Eu não acompanhei e perdi a juntada de títulos. Eu não juntei títulos, fiquei com

a minha nota nua e crua. Em outubro foi a prova. A prova era segunda, quarta,

quinta e sexta. Na sexta você já sabia se era promotor ou não. Só que no

nosso caso não aconteceu isso. Na última prova, a OAB [Ordem dos

Advogados do Brasil] entrou com um mandado de segurança para suspender o

concurso, porque eles não tinham participado da fase do edital, eles queriam

ter participado da fase do edital. Então os desembargadores tinham

suspendido o concurso. E doutor Benedicto Amancio [Antônio Benedicto

Amancio Pereira] entrou na sala e falou: “Olha, está acontecendo isso, e eu

quero saber de vocês, vocês estão no meio da prova: vocês querem continuar

a prova com o risco de não tomarem posse ou vocês querem suspender e

fazer essa prova depois?”. Aí o pessoal se reuniu e falou: “Não. Vamos

terminar a prova”. A gente já estava com tudo ali para fazer a prova. “Não.

Vamos fazer a prova. Fica resolvendo depois”. Fizemos a prova. Levou

realmente... foi outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro. Em fevereiro

eles começaram a chamar. Então quatro meses sub judice sem ninguém saber

se ia poder ficar ou não. E continuou sub judice a posse, mas continuou. Então

as pessoas tinham que pedir exoneração dos cargos que tinham e tomar posse

sem saber o que ia acontecer depois.

Foi uma insegurança muito forte para nós, porque ficou quatro anos nosso

concurso sub judice, sabe? Foi, para nós, difícil. Nosso concurso não foi fácil,

só 19 passaram. Eu fiquei em sexto lugar empatada com a doutora Elda [Elda

Márcia Moraes Spedo], que foi procuradora [procuradora-geral]. Mas ela tomou

posse antes de mim, então teve uma diferença na antiguidade de oito dias. E

eu não podia voltar para o Rio, pedi para o doutor Amancio: “Doutor Amancio,

deixa eu tomar posse de uma vez. Eu não tenho dinheiro para ir embora para

casa”. Não tinha como eu ficar na estrada. “Não. Você só vai tomar posse

depois”. E eu não sabia quando. Oito dias depois me chamaram, aí voltei.

Cheguei lá, tomei posse sozinha dentro do gabinete com ele, fiz o juramento e

ele falou: “Vai para Muqui”. Nem sabia onde era Muqui.

Fui eu para Muqui. Em Muqui encontrei gente conhecida de Niterói: o promotor

e o juiz eram de Niterói, o Sylvio Aceti [Sylvio Bulcão Aceti] e o... ah, esqueci o

nome dele agora, foi um rapaz novinho que foi juiz aqui... Marcos Alcino

[Marcos Alcino de Azevedo Torres], depois passou no concurso de juiz aqui. E

aí eu comecei a minha carreira assim, ao contrário, trabalhei primeiro lá em

Muqui, uns dois meses substituindo uma colega, depois fui para Mimoso e

depois me mandaram para Vitória. Fiquei três anos em Vitória.

Eu vinha no domingo à noite. Não tinha ônibus, então eu tinha que ir para o Rio

de Janeiro – eu ia de ônibus de Friburgo para o Rio de Janeiro, atravessava um

lugar perigosíssimo, que ainda é perigoso até hoje, passava numa passarela

para atravessar para a rodoviária. Na rodoviária eu pegava o ônibus de dez e

meia ou onze horas da noite e vinha para o Espírito Santo. Levava 12 horas.

Essa brincadeira levava 12 horas para trabalhar. Chegava aqui de manhã, 7

horas da manhã, aí eu tomava um café e já estava quase na hora de ir para o

Fórum. Tinha dia que eu comia, tinha dia que eu não dormia. Era muito difícil.

Estrutura do Ministério Público

26:47 a 28:47 – Não tinha estrutura nenhuma. O Ministério Público não existia

não. A gente ganhava menos do que um professor com dois cargos no Estado

do Rio. Teve época de eu ganhar menos do que eu ganhava lá como

professora. A minha vontade era de ir embora, não dava. O dinheiro mal dava

para pagar as passagens, eu pegava dinheiro emprestado em banco, eu

comecei a minha carreira pegando dinheiro emprestado em banco. E era muito

difícil, a gente... em todo lugar que eu ia ninguém sabia que que era um

promotor de justiça, sabe? Você chegava na cidade igual um cachorrinho. Você

não era nada abaixo de nada. “Eu sou promotora de justiça, estou chegando na

comarca agora”. Quê? Ninguém sabia o que era promotor de justiça. “Pouco se

me dá”, era desse jeito.

O Ministério Público não era nada, ninguém conhecia. A gente enfrentava a

estrada sem asfalto nenhum, estrada de chão, entendeu? Era muito difícil. Não

tinha lugar para ficar na comarca. A gente não tinha papel, a gente não tinha

máquina de escrever, não tinha nada. A gente comprava tudo do bolso da

gente. Às vezes eu pedia no Cartório, quando era uma pessoa simpática no

Cartório deixava usar a máquina lá, mas com o tempo a pessoa ficava enjoada,

não é? Mas não tinha nem onde pedir. Nós não tínhamos estrutura nenhuma.

Em São José do Calçado, eu fiz o nome do Ministério Público lá. Mimoso fiz...

Por onde passei deixei o nome do Ministério Público. Recebi homenagens, as

pessoas viram o que era o Ministério Público. Várias pessoas quiseram fazer

concurso. Muitos entraram no Ministério Público por minha causa, porque

queriam ser promotores. Quantos advogados mudaram a vida deles porque

queriam fazer júri comigo. Porque eu não sei, eu acho que eu era mulher, eu

era muito acessível, sentiam segurança em fazer o júri comigo e começaram a

crescer na profissão.

Atuação no Tribunal do Júri

28:47 a 38:45 – Teve muitos júris que eu fiz. Os primeiros, por exemplo, em

São José do Calçado, quando eu fui para lá, eu não sabia, eu não tinha

experiência nenhuma dentro da instituição. Cheguei lá, e tinha dois júris

marcados para 29 e 30 de dezembro. E eu fui para lá no dia 27. Como é que

eu ia ler os processos? Eu li na hora. E tem outra: os réus eram queridíssimos

na cidade, aí eles os absolveram. Que decepção! Mas aí o pessoal do Cartório

me chamou e falou assim: “A senhora não fica assim. Olha, aqui ninguém é

condenado. Olha aqui no livro, ninguém é condenado nessa comarca”. Eu

mudei aquilo. Falei: “Ah, ninguém é condenado aqui... espera lá”.

Prestei bem atenção na lista de jurados e tudo, e a coisa mudou. Aí os outros

júris que eu fiz já teve condenação direto, sabe? Porque lá o promotor podia

chegar e falar o que quisesse, que eles já estavam convencidos de que tinham

que absolver. Falasse ou não falasse, para eles era a mesma coisa. Mas era

início de carreira, gente. Era inexperiência mesmo, não é? Eu acho que nem

um promotor experiente ia adivinhar que aquelas pessoas da cidade queriam

absolver. E eram uns crimes terríveis.

Depois fui trabalhar na Serra, vi coisas terríveis por lá. Vim para Anchieta. Em

Anchieta fiz muitos júris lá, e teve uns júris interessantes. Teve o júri do

mudinho. O mudinho morreu porque falou demais. O mudo era um rapaz tão

bom, ele chamou o outro de chifrudo, e começou a fazer assim [gestos] falando

que a mulher tinha botado chifre nele. Falando para o outro, não é? O outro, no

dia seguinte, sai descascando laranja e encontra com mudinho na rua e não

pensou duas vezes, enfiou a faca de baixo para cima no mudinho e matou o

mudinho.

E era, como eu falei para vocês, um rapaz bom, trabalhador, mas tudo porque

foi falar aquilo com o cara. No júri, fui lá para o júri – o júri foi feito na Câmara

Municipal de Anchieta. Então era a parte de cima, onde ficavam os vereadores

ficavam os jurados. Aí eu estou fazendo o júri, estou lá sentada para começar o

júri, entraram duas top models – Nossa! Que duas moças lindas! De onde saiu

aquilo? Lindas, lindas, maquiadas, boca vermelha... muito lindas, mas muito

bonitas mesmo –, uns rapazes bonitos junto com elas, e foram fazer o júri. E o

júri era para ser feito com um advogado muito famoso de Vitória, que falava

várias línguas, ele era muito famoso, doutor Vinícius – só lembro do primeiro

nome, Vinícius – muito respeitado, mas ele não foi e mandou o pessoal dele.

Falei: “Pronto, aí é que eu vou perder esse júri. Não vai ter jeito, não é?”. Eles

chegaram lá e falaram, falaram, falaram, falaram, falaram, falaram. Eu primeiro

falei. Eu primeiro expus o processo, fiz a minha parte, conversei com os

jurados, falei por que que eu queria a condenação, expliquei as teses da

defesa, o porquê que elas não podiam ser acolhidas, e eles começaram a falar.

E dividiram o tempo e falaram, falaram, falaram, falaram... eu não usei minhas

duas horas não, eles usaram, sabe? Aí deu o intervalo e voltamos. Quando nós

voltamos, o juiz falou assim comigo: “Oh, vou perguntar à senhora se quer a

palavra. Se a senhora responder qualquer coisa além do sim ou não, se a

senhora responder alguma coisa além do não, se for não, eu vou considerar

que a senhora está indo à réplica”. Aí eu: “Por que que ele falou isso comigo?”.

Achei estranho, mas tudo bem, estava avisado. Aí quando ele falou: “O

Ministério Público vai à réplica?”. Eu pensei e falei: “Não”. Aí acabou o júri. Eles

não tinham falado tudo o que eles tinham para falar, a defesa não tinha

acabado de falar. Eles perderam o júri. Tinham falado, nossa, em inglês,

francês, russo, falaram em várias línguas lá, eu achei que eu ia perder. Fomos

para a votação. Eu não ganhei o júri? Aí recorreram, teve outro júri. Foi uma

coisa que aconteceu que me deu muita experiência, porque o tempo... e eu não

fui à réplica, porque não tinha realmente mais nada para falar. Naquele dia não

foi estratégia, nem nada. Eu já tinha falado tudo que eu tinha que falar, sabe?

Eu não sabia o que que eu ia falar mais, não tinha mais nada para falar, já

tinha conversado com os jurados.

E outro júri que também foi muito bom foi aqui em Guarapari. Tinha sete

acusados. A juíza dividiu o júri em dois: quatro jurados em um, três noutro. Eu

fiz o júri do primeiro e do segundo separados. O primeiro, na hora do júri, ela

falou assim comigo: “Você não vai ganhar isso”. Eu falei: “Por quê?”. “Porque a

pessoa que morreu era dedo duro, era alcaguete da Polícia. E ele denunciou

todo mundo lá de dentro da cadeia, era bandido também, então você não vai

conseguir não. Os jurados vão entender que bandido tem que morrer também.”

Foi o que ela falou para mim num comentário particular, sabe? Eu li o

processo, falei: “Vamos ver o que eu posso fazer com isso aqui”. Então eu

expliquei o processo para os jurados, que eles tinham matado um rapaz

enforcado dentro da cela e que tinham enfiado a cabeça dele dentro do vaso

sanitário, porque ele tinha contado para os policiais que eles estavam furando

um buraco na parede para fugir – isso aqui em Guarapari – e deixaram-no

morto lá. Um dos líderes machucou a mão e pediu para ser levado ao hospital,

mas ele só fez isso no dia seguinte às 11 horas – a hora que eles mataram foi

mais ou menos 10 horas da noite. Ele ficou morto esse tempo todo com eles na

cela e não descobriram. Ele foi lá enfaixar a mão, voltou; quando descobriram

que ele estava morto, o delegado interrogou todo mundo, e a defesa deles é

que eles tinham sido obrigados a confessar a participação no homicídio.

E a defesa deles era essa, era coação, que eles tinham confessado sob

coação negativa de autoria. E eu provei para eles que não tinha sido negativa

de autoria, e nesse dia me deu uma iluminação de explicar aos jurados quanto

tempo que eles iam ficar presos, cada um deles. Eu fazia a acusação de

quatro. Cada acusado tinha dois, três advogados. Aquele monte de advogado

não adiantou. Eu ganhei aquele júri. Ganhei os quatro, foram todos

condenados. Chegou o terceiro, também. No terceiro, eles já sabiam que os

quatro já tinham sido condenados. Teve um que levou um advogado, que levou

uma Bíblia, falou que ele tinha se regenerado, e pediu para apresentar a

mulher do cara, que ele tinha conhecido dentro da cadeia, e ela tinha

engravidado, lá dentro da cadeia, dele. Olha, eu deixei... Quando ela entrou, o

júri gostou dela e das crianças, eram uma ou duas, e absolveu esse, uma

absolvição. Eu recorri e depois eu ganhei o outro júri. Esse foi um caso que eu

olhava para eles e falava assim: “Olhem bem para ele. Ele está pedindo para

ser condenado para ele se inserir novamente na sociedade”. Ele olhava para

mim e falava assim: “Maluca, doida”. Falava assim: “É doida” [risos]. Mas eu

acabei ganhando aquele júri.

Mas, especificamente, não tem assim um júri... teve um júri de alguma

repercussão, mas nada extraordinário. Eu fazia júri naturalmente... não sei, eu

gostava de fazer. Eu fazia júri sem ler o processo até. Por quê? Isso aconteceu

quando um juiz resolveu, interpretou, que as pautas eram ininterruptas e

resolveu marcar os júris todos seguidos, todo dia tinha júri. Eu falei: “Não faz

isso que não vai dar tempo de preparar, os processos são grandes”. Aí ele: “Eu

fui defensor e fazia júris sem ler processo”. Eu falei: “Ah é?”. Aí quando chegou

num dia de júri que eu estava cansadíssima, não tinha como ler aquele

processo, eu dei só uma lida, aí ele perguntou... Dei só uma folheada, não deu

para ler tudo. Na hora que ele perguntou: “O Ministério Público quer que leia

alguma peça?”. “Quero sim, senhor.” “Quais?” “2, 3, 4, 5, 7, 8, 9,10”. Fui

falando todas. Eles tiveram que ler o processo todo para mim. Aí ele nunca

mais fez isso comigo, sabe? Porque ele estava fazendo isso comigo era para

me provar, não é? Principalmente por eu ser mulher. Tem essas coisas

também que os homens não aceitam que a gente seja tão inteligente ou mais

do que eles não, viu? Os homens da nossa profissão. Estar no mesmo nível,

eles não aceitam não. A gente tem que se impor desse jeito.

Discriminação de gênero

38:45 a 41:07 – Algumas sim, eles tinham... eles não gostavam. Primeiro, eles

não gostavam de gente de fora e segundo que, por ser mulher, muitos homens

não aceitavam muito não, sabe? Tinha poucas mulheres, mas eu nunca recebi,

pessoalmente, nada não, sabe? Nunca sofri nada assim não, a não ser esse

daí, mas eu tirei de letra, que esse juiz aí eu conseguia falar com ele. Porque

tem juízes que você não consegue falar, mas eu argumentei com ele e falei

com ele para não fazer de novo, porque eu estava muito cansada. Porque os

juízes, às vezes, não entendem.

Teve um juiz em São José do Calçado, quando eu comecei a trabalhar, eu

levantei para ir para o banheiro – eu estava menstruada – e naquela época eu

estava com 36 anos mais ou menos, 38, e eu tinha que ir ao banheiro. Eu

pedia licença, falava que ia, ele mandou comunicações para a Procuradoria

que eu não estava na sala de audiência. Eu tinha avisado aonde eu ia, eu

estava passando mal. E não tinha compreensão. Existiu isso. Mas também tirei

de letra isso aí porque, quando a Procuradoria me perguntou, eu respondi,

tinha gente na comarca que via, não teve grandes problemas não. Também

nunca me agrediu com palavra, nada disso. Só tinha essas manias. Mas dizem

que ele era esquisito, todo mundo reclamava dele, então não era diferente.

Então eu acho que é a questão da personalidade da pessoa, não é dizer assim

que os homens não gostam das mulheres, nada disso não. Mas o que eu te

falei de não aceitar que a mulher seja mais inteligente que ele, isso é verdade.

Tem muitos homens que não aceitam que as mulheres... se você dá uma

opinião, ou sabe mais, mostra que sabe mais que eles, eles se ressentem.

Então você tem que ter jogo de cintura, às vezes, sabe? Mas nunca senti esse

negócio de sentir que eu estou alijada, que eu fui menosprezada em promoção

e remoção. Nunca aconteceu isso. Nunca. Nunca me senti assim,

principalmente, dentro da minha instituição. Os problemas que eu estou te

contando são quando a gente senta ao lado de um juiz que tem essas coisas,

essas birras. Tinha juiz que achava que poderia trabalhar sem o Ministério

Público...

Conciliação em São José do Calçado

41:07 a 44:40 – E uma vez em – lembrei uma coisa aqui engraçada – São José

do Calçado... Tinha um porteiro de auditório muito engraçado, o Alcendino. Eu

cheguei, ele entrou na minha sala e falou assim: “Doutora, tem uma mulher

esperando dentro da sala da senhora”. Aí eu falei: “Uai, o que é?”. Aí ela

começou a falar, eu perguntei o que era, e ela falou: “Olha, doutora, eu vim

reclamar com a senhora que o meu marido, José, não está indo na minha

casa”. Eu falei: “Não está indo na sua casa?” “É.” “A senhora tem filhos com

ele?” “Tenho cinco filhos com ele. Ele não está indo lá em casa, só está indo na

casa de fulana.” “Como é que é? Quem é essa fulana?” “É uma outra mulher

que ele tem. Tem quatro filhos com ela.” Eu falei: “Espera aí, vocês se

conhecem? Vocês sabem...”. “Eu sei.” Aí o Alcendino abriu a porta: “Doutora, a

outra mulher está aqui”. Aí entrou a outra mulher, uma sentada à minha frente

e a outra sentou no sofá, e eu falei: “Bem longe, fica bem longe”. Eu falei: “Meu

Deus, vocês se conhecem?”. “Conhecemos, nós nos conhecemos.” “E vocês

se dão bem?” A de cá estava zangadíssima, de cara virada. A outra falou

assim: “Nós nos damos bem sim”. “Como é que é isso? Vocês, então, têm o

mesmo homem?” “É”. Aí o Alcendino abriu a porta: “Doutora, o senhor José

está aqui”. Aí mando senhor José entrar. Um homem grandão, mulato, bonitão,

sabe? Aí eu falei assim: “Seu José, pode entrar”. Ele sentou perto da outra que

estava no sofá. Falei: “Seu José, duas mulheres? Não pode, o senhor sabe que

é crime isso, não é? O senhor é casado com alguma delas?”. “Não.” Ele não

era casado com nenhuma das duas, mas tinha as duas e cuidava dos filhos

muito bem, elas falaram, elogiaram-no, ele também falou que adorava os filhos.

Eu falei: “Mas, seu José, ela está reclamando que o senhor não está indo na

casa dela”. “É porque eu fiquei mais na casa... deu uns problemas lá, eu tive

que ficar mais, não podia avisar, por isso que ela está nervosa assim.” Aí falei:

“Mas, seu José, de qual das duas o senhor gosta mais?”. “Ah, doutora! Eu

gosto das duas. Gosto muito das duas.” Falei: “Jesus, o que eu vou fazer?

Gente, vocês estão reclamando de ele ir ou não ir. E se eu dividir os dias para

vocês, vocês aceitam?”. Aí uma olhou para a outra e falou assim: “Aceitamos”.

“Então vamos fazer assim: segunda, quarta e sexta na sua casa e terça, quinta

e sábado na sua. Está bom? E domingo, seu José, você pega as crianças e vai

passear, hein?” [risos]. “Está bom.” Aí eu peguei um papel timbrado, fui para o

computador e bati o acordo para eles assinarem. Eles assinaram. Eu tenho

cópia desse acordo. Eles assinaram comigo o acordo, eu dividi um homem

entre duas mulheres. Olha quanto tempo tem isso! Isso aí foi lá em São José

do Calçado pelos idos de 91, por aí. Olha, consegui dividir e ficou tudo em paz.

Eles obedeceram aqueles horários que eu marquei. Como é que eu ia fazer?

Eles já estavam juntos, as crianças gostavam dele, já estava todo mundo

convivendo. O que eu ia fazer, gente? Nessa hora, a moral é separada do

Direito. Então nessa hora... o costume, não é? Nessa hora eu tinha que ter

bom senso de não criar uma briga ali maior, não é? Processar nenhum ali. Por

que eu ia processar? Como? Ele nem era casado com elas.

Investigação policial em Anchieta

44:40 a 51:29 – Eu estava em Anchieta na minha sala – era uma sala que tinha

sido uma sala de juiz, sabe? Ali pelo menos eu tinha uma mesa, um banheiro –

e eu estava tranquila, trabalhava de porta aberta – nunca gostei de fechar a

porta. A porta estava assim mais aberta, aí entrou o porteiro de auditório e

falou comigo que tinha dois vendedores de livros querendo falar comigo. Eu

falei assim: “Eu não quero comprar livro não. Fala que eu não quero, que eu

estou ocupada, que eu não vou poder atender”. Aí foi: “Olha, eles estão

insistindo que querem falar com a senhora, porque os livros que eles querem

mostrar para a senhora a senhora não tem.” “Então tá. Manda entrar.” Eles

entraram e fecharam a porta e sentaram na minha frente, assim, com um

blazer igual vendedor de livro. Os dois enfiaram a mão assim no casaco, falei:

“Ah, vou morrer agora”. Eu fiquei gelada. “É agora que eles vão atirar em mim.

Fiz alguma coisa com eles?” Só passava na minha cabeça o que eu já tinha

feito com alguém de júri ou alguma coisa, acusei quem, por quê... começou a

passar um monte de coisa na minha cabeça. Quem podia ter ódio de mim? Aí

eles tiraram, assim, Polícia Federal: “Nós somos da Polícia Federal e queremos

falar com a senhora”. Falei: “Ah, eu vou levar vocês lá no juiz para vocês

falarem”. “Não. É com a senhora que nós queremos falar. Com o juiz não. E o

que nós falarmos aqui tem que ficar aqui dentro.” “É sobre o quê?” Eles eram

da P2, da polícia disfarçada. “Olha, doutora, nós estamos investigando um

senhor que mora aqui em Anchieta e ele sequestrou um avião lá na...” – Como

é o nome? Lá na Arábia, tem até um restaurante com o nome da cidade... vou

lembrar, começa com ‘b’ – “e ele sequestrou o avião e está sendo procurado

pela Interpol na França, Inglaterra.” Aí eles tiraram a documentação, me

mostraram e me deram a cópia – também tenho cópia disso – deram cópia da

vida dele, que ele era procurado e tal e tal, o nome dele, e eu cada hora mais

surpresa. “E nós estamos investigando como é que está a situação dele aqui

no Brasil, se tem alguma coisa, porque ele está renovando passaporte, e nós

estamos vendo se ele tem alguma coisa errada. Então nós queríamos que a

senhora desse um tempo.” Eu falei: “Como?”. “Ele tem um processo com a

senhora aqui, de adoção.” Aí mostraram fotos. “Oh, ele tem uma porção de

crianças no sitiozinho, na chácara dele, e ele já adotou um e está pedindo a

adoção da menina. Então nós queríamos que a senhora segurasse o processo

até a gente acabar de investigar para ver como é a situação dele”. Eu falei:

“Tudo bem, eu seguro”.

Os dias passaram, o advogado foi lá: “Doutora – eu nunca demorava com

processo –, o processo está aí com a senhora, e a senhora não despachou

ainda”. “Ah, eu vou despachar, pode deixar. É porque eu estava com muita

coisa para fazer e não deu tempo”. O advogado ficou sossegado, foi embora. E

os policiais mantendo contato comigo, me deram um número particular para se

eu quisesse entrar em contato com eles, era naquele número, mas que eu

continuasse segurando o processo lá. Muito bem, segurei, fui segurando, eles

iam falar lá comigo para ver como é que estava e tal. “Olha, nós ainda não

descobrimos nada, mas a senhora segura mais um pouco.” E eu fui segurando.

Um dia, o advogado levou o homem lá, eu conheci o homem pessoalmente, o

árabe. E ele falava com um sotaque muito carregado. E ele contou a história

dele para mim. Ele era autor de 36 livros, ele era escritor. Os livros dele eram

publicados em várias línguas, ele me mostrou isso, e ele estava no Brasil

montando uma firma legalizada, direitinho, em Vitória, de venda de

suplementos alimentares, comprimidos de vitaminas. Mas ele falou: “Tudo

direitinho, conforme o governo pede, tudo certinho, estou legalizando a firma,

com advogado e tudo. E o meu processo está aí com a senhora e eu quero

adotar essa menina. Já adotei um e está lá nos Estados Unidos estudando.

Estou querendo adotá-la para ficar comigo. Tem mais três morando comigo e

tal”. Aí ele contou que a irmã dele..., que ele saiu da Terra dele e veio para o

Brasil, não contou do avião. “Vim para o Brasil e trouxe minha irmã porque lá,

doutora, eu morava lá em...” – está quase vindo o nome. “E quando eu cheguei

em casa a minha casa estava lacrada e tinham matado minha família toda.

Sobrou uma irmã, essa irmã eu trouxe para cá, está morando aqui comigo

agora. E nós estamos extremamente felizes aqui em Anchieta, morando aqui.”

E ele já não era novinho não, sabe? Ele já tinha um pouco mais de idade, ele já

devia ter uns 67, 68 anos, por aí. E aquele negócio de adotar criança, os

policiais estavam investigando se ele estava fazendo isso para ficar fixo no

Brasil e fugir de alguma coisa, sabe?

Então eu segurei o processo, fiquei ouvindo essa história, e falei: “O que eu

vou fazer agora?”. Aí os policiais apareceram lá, contei para eles e eles

falaram: “Doutora, a senhora pode liberar, porque ele está limpo, está tudo

certinho na vida dele. Não tem nada errado, a senhora pode liberar. E nós

vamos informar à Interpol que ele está bem aqui no Brasil, não está fazendo

nada errado”. Porque realmente ele sequestrou o avião para poder fugir do

lugar. Não matou ninguém no avião, nem nada, só desviou a rota. E é crime

internacional. E eu falei: “Agora eu vou liberar”. E peguei o processo para

liberar. Aí, quando eu estou liberando o processo, o advogado entrou na minha

sala: “Doutora Sonia, sabe aquele processo? Vim pedir à senhora... Já estou

entrando agora com a desistência”. Falei: “Desistência, agora que eu estou

falando nele?”. “Desisti, doutora, a senhora não sabe o que aconteceu. O

menino que foi para os Estados Unidos e a menina que vai ser adotada estão

apaixonados. Se fizer a adoção dela, ela não pode casar com ele”. Olha o fim

da história! Aí acabei pedindo a extinção do processo e aqueles policiais

ficaram meus amigos depois. Mas eu passei um aperto, vocês não sabem. Seis

meses, mais ou menos, que eu fiquei sem poder contar para ninguém. Não

contava para ninguém, para ninguém. Não contei para ninguém não.

O papel do Ministério Público na Constituição de 1988

51:29 a 55:21 – O papel em si mudou por causa da liberdade que nós tivemos

de poder instaurar inquérito, de ter mais ação. Mas em relação ao

procedimento anterior, nós já tínhamos essa liberdade, mas ficamos com mais.

Porque nós podíamos fazer investigações, não é? Não ficávamos mais

dependendo só da polícia e da vontade do juiz, de o juiz autorizar ou não.

Então o Ministério Público ficou com essa autonomia de poder agir sem ser

provocado. A partir do instante em que soubesse, ou souber, de alguma coisa,

poder agir de ofício, vamos dizer. Ter iniciativa própria sem depender de

alguém autorizar. Então essa liberdade para o Ministério Público é muito

importante. Tem que saber medir, porque quando a gente tem liberdade

demais a gente tem que saber até onde vai. Tem que ter cautela para não

cometer equívocos, não cometer injustiças, mas é muito importante. Foi muito

importante isso. Mudou muito. E ampliou muito a área de atuação.

As nossas atribuições anteriores eram muito pequenas, assim, limitadas. Todo

mundo entendia que o promotor de justiça era só o promotor de júri – promotor

de acusação, que chamavam. Depois não, porque as pessoas começaram a

ver que o promotor é um defensor da sociedade. É a última esperança que eles

tinham. Eu resolvia problemas até de pessoal não tomar banho, menina. Os

pais levavam os filhos lá que não queriam tomar banho. A gente fazia um papel

social. O promotor virou psicólogo, psiquiatra, sem estar preparado para isso,

assistente social. Aí você ocupa um lugar na vida das pessoas importantíssimo.

O que você falar eles escutam. Então você sabendo conduzir, sabendo falar,

você vai saber fazer um bom trabalho na comarca. E eu acho que a justiça vem

daí. Esse é o papel da justiça. De fazer a paz entre as pessoas, orientar. Aí as

pessoas sempre vêm ao Ministério Público. Está com briga lá com o vizinho?

Vamos lá.

Eu tive... Dois irmãos aqui em Guarapari, já velhos, começaram a brigar, um

tacar coisas na casa do outro, estava quase que dando morte. Eu chamei os

dois lá, conversei, conversei. Era muito difícil, muito difícil. Aí eu acalmava um

pouco e começava de novo, sabe? Jogavam coisas na varanda um do outro.

Um destruía coisas do outro e o outro revidava. Aí eu fui conversando,

conversando, conversando. Foi um trabalho muito demorado, mas nós fomos

conseguindo com as audiências, fomos falando. Eu ia conversando, falando

que não era assim. Eu ia elogiando um, elogiando outro. Falei: “Oh, mas ele

falou bem de você”. Mentira. “Mas ele falou bem de você, ele gosta de você.” E

eu ia falando coisas assim para eles mudarem a ideia de um para o outro,

entendeu? E foi mudando, foi acalmando. Com o tempo, levou muito tempo, foi

acalmando, foi melhorando, não deu morte não. Mas estava a ponto de dar

morte, sabe?

Então esse trabalho do Ministério Público vem da Constituição, que deu essa

liberdade para a gente, de a gente ser mais próximo do público, porque o juiz

não tem condição. Se o juiz começar a atender público, ele não fica imparcial.

Eu já ouvi de um juiz que eu tinha que ser imparcial, eu falei: “Não, imparcial

tem que ser o senhor, eu não. Eu sou parcial, eu fico do lado de quem está

com a verdade. Eu brigo pela verdade, para surgir a verdade em qualquer

situação, para o senhor, na hora de julgar, não incorrer num erro, não é?”.

Inspiração para o trabalho

55:21 a 01:02:26 – Tive colegas maravilhosos que eu admirei muito, cada um

na sua função, mas para inspirar a minha atuação não. Minha atuação é

totalmente diferente da deles. Eu era “clínica-geral” no interior, e os que eu

conhecia todos já estavam especializados, sabe? E não tinha como eles me

influenciarem. E tudo o que eu fazia, eu sempre fui muito independente.

Sempre procurei estudar no que eu estava fazendo. Procurei ter bom senso e

eu sempre procurei uma coisa: eu sempre procurei a palavra de Deus. Porque

quando eu decidi ser promotora de justiça não foi de brincadeira não. Eu

comecei a estudar para concurso e eu não sabia se eu devia fazer para juiz ou

promotor e pedi a Deus para que ele me mostrasse o que eu tinha que ser.

Porque estava difícil de eu decidir. A gente fica, não é? Igualzinho quem está

fazendo vestibular para procurar uma profissão.

Então eu estava em casa com os meus filhos, e apareceu um filho de uma

amiga minha lá da igreja, que eu tinha entrado para um grupo carismático da

Igreja Católica lá de Niterói, e o filho dela resolveu ir lá em casa com os amigos

– ele era da Igreja Batista. “Ah, nós queremos fazer uma oração com a

senhora.” Falei: “Ah, que bom! Oração é bom. Pode entrar”. Aí uma das

meninas falou assim para mim – nunca tinha visto essa menina: “Tem um

recado de Deus para a senhora”. “Um recado?” “É, aqui.” Aí ela me mostrou

um livrinho de cenáculo – vocês já viram um livrinho de cenáculo? Aí me

mostrou uma página escrita assim: um rapaz que perguntava ao pastor como é

que ele podia conciliar a profissão de promotor – que ele tinha sido aprovado,

acabado de ser aprovado no concurso – com a vida de cristão. Aí o pastor

respondia para ele, com vários versículos da Bíblia, que não há

incompatibilidade nenhuma. Que Deus diz na Bíblia “Ide e fazei a minha

justiça” e vários versículos parecidos.

Ali, para mim, foi a minha resposta. Mesmo assim, eu ainda duvidei, eu ainda

cheguei a fazer uns concursos para juiz, não passei. Tinha que ser promotora

mesmo e no Espírito Santo, sabe? Aquilo foi uma resposta de Deus mesmo

para mim. Então, quando eu fiz o concurso para promotor, eu não fiz à toa não.

Eu primeiro pedi a Deus que me ajudasse a escolher uma coisa que eu

gostasse, que eu fosse feliz, e que Ele me usasse para o bem da humanidade

e que me desse condições de cuidar dos meus filhos, que eu estava sozinha. E

Deus me deu tudo, deu até mais do que eu pedi, sabe? Então essa resposta

veio, e eu segui isso aí a minha vida inteira. Eu seguia o que a Bíblia mandava:

“Ide e fazei a minha justiça”.

Quando eu tinha alguma dúvida, eu procurava Deus para falar comigo, pedia a

Jesus para falar comigo. E a resposta vinha, a inspiração vinha. Eu nunca falei

lendo. Eu ia para o júri, eu ia para qualquer lugar para falar, em Câmaras de

Vereadores, qualquer lugar, pegava o microfone e começava a falar, e saía.

Teve uma vez, um Dia da Mulher aqui em Guarapari, eu estava fazendo

audiência no Juizado Especial, demorou demais, cheguei atrasada – Dia da

Mulher. Quando eu entrei, tinha uma missionária falando. Eu sentei, não fiz

alarde da minha chegada. Sentei e fiquei escutando-a falar. Belíssimas as

palavras dela. Ela falou no Dia da Mulher sobre todas as mulheres na Bíblia:

Ester, Rute, Débora, as mulheres todas que tinham na Bíblia.

Eu fiquei encantada com ela, que tinha sido missionária na Índia, tinha sido

missionária em vários lugares, falava várias línguas. Fiquei encantada com ela.

Eu bati palmas. Estou eu batendo palma, o presidente da Câmara falou assim:

“Agora, nós queremos que nossa querida doutora Sonia...” – olha só, ai meu

Jesus Cristinho – “venha compor a mesa”. Aí eu levantei, todo mundo bateu

palmas e tudo, aí eu agradeci e ele falou, assim, enquanto eu estava indo: “E

ocupe a tribuna para nos falar algumas palavras, sábias como sempre”. Ele

ainda falou assim.

Aí eu fui, tudo sendo filmado. Deixei minhas bolsas num canto, porque nem

sabia em que lugar eu ia sentar ainda. Fui para a tribuna e falava assim: “Ai,

meu Jesus Cristinho, eu já chego trabalhando. Nem bem cheguei e já estou

trabalhando”. Aí todo mundo riu com isso aí, ficou todo mundo descontraído e

eu comecei a falar, cumprimentei todo mundo. Falei várias coisas sobre

mulheres, isso tudo espontâneo. E de repente eu falei assim, sem segunda

intenção nenhuma, foi inspiração divina mesmo: “E nesse Dia da Mulher não

podemos esquecer da mãe de Jesus, não é?”. Falava assim com todo mundo.

“Foi ela quem criou Jesus. Foi ela que ensinou Jesus a andar, falar. Foi ela

quem ensinou tudo a Jesus. Foi ela quem teve a coragem de assumir o filho de

Deus para levá-lo à missão que Ele tinha de nos salvar. Foi ela que ficou ao

lado dEle, que Ele só teve coragem de carregar aquela cruz por causa dela.

Que Ele olhava para ela e tinha forças”. Eu não notei que ela [a missionária]

não tinha falado de Maria, porque ela era de outra religião. Eu não notei isso.

Eu não fiz de propósito. Eu fiz de inspiração minha. Depois da cerimônia que

uma conhecida falou assim: “Muito bem a senhora ter falado de Maria, porque

a outra não falou”. E eu não tinha notado isso, sabe?

Então tinha essas coisas comigo, de falar, eu acho que, por inspiração divina,

sabe? Vinha. As coisas vinham e eu falava. Lógico que eu tinha cautela de

falar em certos ambientes, não falar para ferir um nem outro. Alertava as

coisas. Eu, quando vim para Guarapari, alertei que o crack estava aqui, que se

eles não tomassem jeito ninguém ia poder sair na rua. Está desse jeito.

Ninguém fez nada. Eu estava na frente de representantes do governador,

secretários estaduais, secretários municipais, só tinha homem, só eu de

mulher, era época de propaganda eleitoral, de campanha eleitoral. Não fizeram

nada. Até hoje. A insegurança está aí.

Quando eu estava na Promotoria Criminal, que eu sempre fiquei na Promotoria

Criminal, eu chamava a polícia e dava um jeito, que eles tinham bom

relacionamento comigo. Eu tinha um bom relacionamento com eles, eu ligava,

falava, mas, depois que passou para o Ciodes – Centro Integrado Operacional

de Defesa Social, ficou mais difícil, mais longe. As viaturas ficaram difíceis de

serem encontradas, policiais ficaram difíceis de serem encontrados.

Aposentadoria

01:02:26 a – Eu trabalhei 42 anos e 10 meses, contando com o meu tempo de

professora, que eu trabalhei um pouco em sala de aula e o resto na Secretaria

de Educação. Contando esse tempo, deu 42 anos e 10 meses. E não tirava

férias, sempre... eu não ia viajar, eu sempre não tirando. Como na época eu

acumulava Eleitoral, eu procurava não tirar para não perder o Eleitoral também,

que fazia falta, não é? Porque era muita gente, era muito colégio para pagar,

faculdade. Todos eles estudaram, todo mundo, graças a Deus, formado.

Então eu cheguei numa hora da minha vida que o meu processo já estava

pronto e eu não decidia nunca me aposentar. Meu falecido marido, Godofredo,

falava comigo: “Sonia, você vai morrer e esses processos vão ficar aí. Larga

esses processos e vamos viajar comigo”. E eu não atendi. Ele acabou

morrendo antes de a gente viajar, sabe? Eu falei: “Não. Quando eu terminar

esses júris aqui...” – eram 11 júris que estavam na pauta aqui em Guarapari,

estava inaugurando o júri no salão novo – “assim que eu terminar o último júri,

a gente vai para Porto Alegre ver sua filha, na Bahia ver a outra”. Não deu

tempo. Ele adoeceu e morreu em cerca de 40 dias daquele dia.

Então eu não quis parar de trabalhar logo, porque eu sentia falta dele. Eu

achava que ia preencher mais a minha vida. Mas eu já tinha pedido para ver

minhas contas, ver todo o meu processo, meu processo já estava prontinho lá.

Era só eu assinar a petição. Eu cheguei a ir lá três vezes, gente, para poder

assinar para aposentar, mas na hora eu desistia: “Ah, eu vou sentir saudade,

eu vou sentir falta”. Fiquei. Mas aí na véspera de eu fazer 60 anos, eu estava

aqui nessa casa com a minha tia no dia 9 de janeiro, eu falei: “Tia Vera, vamos

lá na Procuradoria comigo?”. “O que você quer fazer lá?” “Eu vou pedir a minha

aposentadoria.” “Vai pedir? Ah, não acredito, não acredito!” “Tia, eu vou fazer

60 anos. Chega. Eu vou curtir os meus netos, vou viver, não estou indo à casa

de ninguém. Para ir para São Paulo, não dá tempo de ir, porque eu tenho que

trabalhar. As crianças nasceram, uns eu conheci pela internet. Então eu estou

querendo dar atenção a eles.”

E a cada casa que eu ia, os sogros e as sogras dos meus filhos me

perguntavam: “Quando é que você vai se aposentar para você dar atenção aos

seus netos?”, sempre me cobravam. E eu achava aquilo um absurdo, na minha

cabeça não entrava que eu tinha que parar de trabalhar, sabe? Aí eu pedi

minha aposentadoria, no dia seguinte não precisei ir. Eu senti um alívio muito

grande, muito grande mesmo. De não ter – essa foi a primeira coisa que eu

senti – o compromisso do horário mais. A preocupação de trazer processo para

casa. Eu trabalhava preocupada com as partes, eu achava que eu tinha que

trabalhar por tarefa. Eu trabalhava de segunda a sexta no fórum, nunca peguei

um juiz que não trabalhasse em um dia da semana, era sempre de segunda a

sexta, a audiência ia até às 8 horas da noite, 8:30. Eu chegava em casa, comia

alguma coisa, sentava e fazia processo até 2 da manhã. Dormia até as 6. Às

seis horas estava de pé fazendo processo de novo, sabe? Então eu fiquei livre

daquela rotina.

Nos primeiros dias me perguntavam assim: “Você gosta disso? Gosta de

alguma coisa?”. Eu não sabia. Eu não sabia do que eu gostava, não tinha

noção de quem eu era. Só cuidando dos outros, não cuidava de mim, não é? Aí

eu comecei a viajar, comecei a passear, comecei a estudar, ler as coisas que

eu sempre quis ler. Fazer as coisas que eu não fazia antes e eu comecei a

gostar. Eu comecei a gostar da liberdade de poder fazer o que eu quero, de

estudar, me aprimorar.

E tinha um monte de gente atrás de mim. Eu tenho os meus filhos, são

advogados, médicos. Eu tenho essa gente toda para orientar, tenho os netos

todos. Minha neta mais velha faz Psicologia, estava fazendo Direito, parou,

trancou e está fazendo Psicologia, termina ano que vem. O outro quer ser

maestro, está fazendo Ciências da Computação e Faculdade de Música, mas

já é maestro, já rege coral – tem um coral aqui em Guarapari, e é ele que rege.

Aí eu vou vendo essas pessoas maravilhosas que estão passando por mim,

sabe? O outro é campeão de skate. A outra está estudando lá em Itajubá,

Engenharia... Eu acho que é Biotecnologia. Que tem a ver com construção de

aparelhos, sabe? Está lá, está fazendo essa faculdade lá em Itajubá. As outras

estão se preparando. Tem uma que fala pouco igual a mim, aí conversando

comigo noutro dia falou: “Vó, eu descobri o que eu quero ser”. “O que você

quer ser?”, pelo telefone. “Eu quero ser presidente da República.” Me

surpreendeu. “Mas presidente da República?” “É, vó. Porque eu pretendo fazer

muitas coisas. As pessoas precisam de muita ajuda, vó.” “Mas o que você faria

como presidente da República?” “Ah, eu ia cuidar das crianças, ver o estudo

para todo mundo...” E falou da saúde... Sabe quantos anos ela tem? Ela falou

isso comigo com 10 anos, mas assim desse jeito, entendeu? Eu falei assim:

“Mas, gente, eu estou perdendo de conviver com essa gente maravilhosa”. A

outra canta lá em São Paulo, é cantora lá, a mais novinha, a última. Ela é

contralto, que gracinha. Toca piano, toca violão e canta, uma gracinha, só

vendo.

Aí eu falei: “Gente, eu estou perdendo. Eles estão crescendo e eu não estou

vendo”. Aí eu estou recuperando isso, essa convivência. Estou me

“especializando” em relações humanas e vendo a vida espiritual deles, que a

gente não pode deixar para lá.

A gente que é avô, mãe, tem responsabilidade de falar que existe um Deus que

nos ama e nos quer bem. O que eu falei a vida inteira para os réus. Eu pedia

ao juiz para dar a palavra e eu conversava com os réus. Uns me perguntavam:

“Como é que ninguém nunca me falou desse Deus?”. Eu falei: “Então aproveita

que você está lá preso. Deus está te dando a chance de conhecê-Lo. Pede

para ir uma pastoral, um pastor, alguém para ir lá para falar dEle para você.

Você precisa conhecer Deus, conhecer Jesus”. Aí mostrava o crucifixo: “Sabe

por que Jesus ficou preso numa cruz? Por nós”. “Como é que ninguém nunca

me falou isso?” Era assim que eles falavam. Eu perguntava: “Por que você

praticou esse estupro? Por que vocês praticaram esse estupro, quatro contra

uma, e mataram a menina? Por que vocês fizeram isso?”. Aí ficam rindo: “Ah,

não sei. Veio uma voz assim e falou...”. Falei: “Veio uma voz e falou com vocês

para fazer isso? E a voz de Deus, vocês nunca ouviram a voz de Deus?”. Aí

um olhava para o outro assim, sabe? Aí eu aproveitava para falar de Deus para

eles antes de eles voltarem para a cadeia, entendeu? Porque a maioria que

sentou na minha frente não conhecia Deus. Por isso que eu falo que quem

conhece Deus não faz o que estão fazendo por aí não, não faz mesmo. “Ah, a

religião é um freio.” Ótimo. Se for um freio, ótimo. Só que religião nos dá um

sentido para a vida, para evitar esses suicídios que estão por aí, todo dia a

gente ouve falar em suicídio, todo dia. Não é muito divulgado na televisão, mas

a gente fica sabendo. As pessoas estão tendo depressão. Por que estão tendo

depressão? Porque não estão vendo um sentido na vida. Se a gente não se

agarrar com Jesus, com o que está escrito na Bíblia, com o que Jesus ensinou,

o que Deus falou, a gente não tem um sentido na vida. E é isso que eu procurei

falar, sabe, nas minhas audiências, para fazer as pessoas se conciliarem. Eu

falava do perdão, muito do perdão, que a pessoa tinha que perdoar uma à

outra, não só para o bem do outro, para ela mesma, para ela não ficar doente.

Quantas pessoas que apareceram na minha frente doente e falaram: “Ah,

depois que eu conversei com a senhora, eu melhorei, doutora”. Às vezes eu

nem lembrava quem era. “Eu melhorei, a minha pressão abaixou. Estou

melhor.” Que bom ouvir isso de alguém, não é? Que a gente pode ouvir,

porque as pessoas queriam ser ouvidas.

Tela final:

Projeto Memória Oral

Gerência

Pedro Ivo de Sousa

Coordenação

Catarina Cecin Gazele

Pesquisa e entrevista

Paulo José da Silva

Simone da Silva Ávila

João Victor da Silva Nicodemos - estagiário

Gravação e edição

Giovani Tiussi Broseghini

Design gráfico

Bruno Alves Moure

Realização

Ministério Público do Estado do Espírito Santo

Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional – Ceaf

Memorial do Ministério Público do Estado do Espírito Santo – Memp