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Sebastião Patrício Mendes da Costa

Solange Maria Teixeira ORGANIZADORES

RREEFFLLEEXXÕÕEESS EE RREECCOORRTTEESS TTEEÓÓRRIICCOOSS

SSOOBBRREE DDIIRREEIITTOOSS FFUUNNDDAAMMEENNTTAAIISS,,

DDEESSEENNVVOOLLVVIIMMEENNTTOO EE PPOOLLÍÍTTIICCAASS

PPÚÚBBLLIICCAASS

AUTORES:

André Carvalho Luz

Auricelia do Nascimento Melo

Fábia de Kássia Mendes Viana Buenos Aires

Francisco de Sousa Vieira Filho

Gerlanne Luiza Santos de Melo

Guiomar de Oliveira Passos

Maria dos Remédios Beserra

Maria Sueli Rodrigues de Sousa

Naiara de Moraes e Silva

Sebastião Patrício Mendes da Costa

Simone de Jesus Guimarães

Solange Maria Teixeira

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De acordo com a Lei no 9.610, de 19/2/1998, nenhuma parte deste livro pode ser fotocopiada,

gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de recuperação de informações ou

transmitida sob qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico sem o prévio

consentimento do detentor dos direitos autorais.

ORGANIZADORES: Sebastião Patrício Mendes da Costa e Solange Maria Teixeira

DIAGRAMAÇÃO: Francisco Carlos Cardoso

BIBLIOTECÁRIA: Irla Maria Castelo Branco

FICHA CATALOGRÁFICA

Reflexões e recortes teóricos sobre direitos fundamentais, desenvolvimento e políticas públicas / C322r Sebastião Patrício Mendes da Costa, Solange Maria Teixeira (Orgs). – Teresina: EDUFPI / Dinâmica Jurídica, 2016. 142 p.

Bibliografia. ISBN: 978-85-509-0020-9

1. Direitos fundamentais. 2. Políticas públicas. I. Costa, Sebastião Patrício Mendes da. II. Teixeira, Solange Maria. III. Título.

CDD 340.112

2016, Editora da Universidade Federal do Piauí (EDUFPI)

Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, Bairro Ininga. Teresina – PI

CEP – 64049-550 / e-mail: [email protected]

2016, EDITORA DINÂMICA JURÍDICA

Rua Visconde da Parnaíba, 1439, Horto

Florestal. Teresina - PI

CEP – 64049-570 / e-mail:

[email protected]

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CC OO NN SS EE LL HH OO SS EE DD II TT OO RR II AA II SS

CONSELHO EDITORIAL ESPECIAL DA ESA-PI

Naiara de Moraes e Silva – UESPI e ESA-PI Gabriel Rocha Furtado - UFPI

Amanda Costa Thomé Travincas – UNDB/MA Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa – PUC/RS

Elizabet Leal da Silva – UNIVEL/PR Lia Beatriz Torraca – UFRJ

EDUFPI - CONSELHO EDITORIAL

Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente) Acácio Salvador Veras e Silva

Antonio Fonseca dos Santos Neto Francisca Maria Soares Mendes

Solimar Oliveira Lima Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz

Viriato Campelo

EDITORA DINÂMICA JURÍDICA – CONSELHO EDITORIAL

Adriana Borges Ferro Moura Eliana Freire do Nascimento

Francisco Robert Bandeira Gomes da Silva Jarbas Avelino

Joana Moraes Souza Joffre Castello Branco

José Octávio de Castro Melo Leandro Cardoso Lages

Luís Cinéas de Castro Nogueira Nestor Alcebíades Mendes Ximenes

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A P R E S E N T A Ç Ã O

Escola Superior de Advocacia do Piauí-ESA-PI e o Programa de Pós-graduação em

Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí, como intuito de divulgar o

conhecimento científico produzido por seus membros, promovem a obra “Reflexões e Recortes

Teóricos sobre Direitos Fundamentais, Desenvolvimento e Políticas Públicas”. Com trabalhos

de professores mestrandos, mestres, doutorandos e doutores de renomadas instituições de

ensino superior, tais como UFPI, UESPI, UNIFOR, PUC/RS, Universidade Autônoma de

Lisboa, a coletânea agrega trabalhos resultantes de pesquisas teóricas e também empíricas

sobre as políticas públicas e a efetividade dos direitos fundamentais, abordando teóricos

relevantes na temática assim como a jurisprudência e a análise da aplicação prática dos

direitos fundamentais.

O Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí,

além da formação qualificada de seus discentes assume a tarefa de difundir as produções

acadêmicas de seus discentes em coautoria com os orientadores de seus quadros, em

produções periódicas ou esporádicas, e se une a ESA-PI para viabilizar essa coletânea.

Com essa obra, a ESA-PI segue as ideias da OAB, que criada em 1930 como um órgão

para disciplinar a atividade profissional dos advogados, continua a se preocupar com o ensino

científico no país, em especial, o ensino jurídico. Se a preocupação com a construção da

cidadania e com a ética pautou as atuações da OAB historicamente no cenário político

nacional, essa obra se insere na luta pela implementação das políticas públicas, em especial,

na efetividade dos direitos sociais consagrados e positivados na Constituição Federal de 1988,

a partir de um processo de redemocratização que o Brasil viveu na década de 1980 e que

precisa ser reconstruído diariamente nas práticas e nas explanações teóricas a partir de

discussões científicas presentes em cursos de pós-graduação de excelência.

Em relação à ESA-PI, a obra se insere na política de divulgação do conhecimento inserida

em atividades como expansão dos seus cursos de extensão e de qualificação profissional,

interiorização das atividades da Escola Superior de Advocacia pelo estado do Piauí, além dos

convênios com instituições jurídicas de primeira linha, como o IBCCRIM, atividades realizadas

com primor pela Diretoria Geral comandada pela professora Naiara de Moraes e Silva, uma

das autoras que colaborou com esse livro.

Reunimos aqui trabalhos do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFPI e

de professores da ESA-PI, selecionados através de conselhos editoriais e publicados numa

parceria entre a editora da UFPI (EDUFPI) e a editora Dinâmica Jurídica.

São oito trabalhos publicados, que compõem os capítulos, todos abordando a temática do

livro, seja de forma teórica ou teórica e prática. Os dois capítulos iniciais têm como co-autora

Solange Maria Teixeira, uma das organizadoras dessa obra. No capítulo inicial, “Neoliberalismo

A

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e neodesenvolvimentismo no Brasil: desmontes dos direitos trabalhistas e da proteção social

no Brasil”, a professora do programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFPI,

desenvolve, juntamente com a professora Naiara de Moraes e Silva, estudo sobre processos

de desmonte dos direitos trabalhistas e sociais, que constituem proteção social pública,

analisando os instrumentos desse desmonte, a desregulamentação e ainda a chamada

flexibilização. No segundo capítulo, “Segregação socioespacial em cidades brasileiras médias

e pequenas”, as autoras Maria dos Remédios Beserra e Solange Maria Teixeira realizam uma

profunda abordagem teórica sobre a urbanização e segregação socioespacial, analisando os

seus determinantes fundamentais, estudando, especificamente, esses processos nas cidades

médias e pequenas.

No capítulo três, o controle de contas é o objeto de estudo de Gerlanne Luíza Santos de

Melo e Guiomar de Oliveira Passos. Em “Soberania cosmopolita na auditoria operacional:

influência da Intosai no Estado brasileiro”, a partir de Habermas e Bobbio, as autoras analisam

o controle de contas feito por meio das regras da Intosai, uma instituição supranacional de

fiscalização. No quarto capítulo, intitulado “A participação social via ouvidorias dos Tribunais de

Contas dos Estados e seu papel no controle das contas públicas municipais”, as autoras Fábia

de Kássia Mendes Viana e Simone de Jesus Guimarães estudam a participação social e o

fortalecimento da relação entre o Estado e a sociedade civil através das ouvidorias do Tribunal

de Contas. Nesse capítulo, as autoras analisam tais ouvidorias e os mecanismos de

participação no regime democrático brasileiro com a redemocratização na década de 1980 e,

em especial, após a Constituição Federal de 1988.

“Direito fundamental de acesso à saúde como dever prestacional do Estado” é o título do

quinto capítulo. Nele, o autor André Carvalho Luz analisa os direitos fundamentais sociais com

um olhar direcionado ao direito a saúde. Através de uma pesquisa com ênfase na doutrina e no

posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre esse direito e seu caráter prestacional, o

autor busca mostrar qual o papel do Estado Brasileiro sobre esse tema e diante da

Constituição Federal de 1988, em específico perante o princípio da dignidade da pessoa

humana. Auricelia do Nascimento Melo, no capítulo seis “A inclusão previdenciária de pessoas

com deficiência física como forma de desenvolvimento humano”, faz uma pesquisa atual sobre

a inclusão da pessoa com deficiência física a partir da Convenção sobre os Direitos da Pessoa

com Deficiência da ONU, ratificada pelo Brasil em 2008, considerando a evolução histórica

dessa proteção, além da recente lei 13.146/15, conhecida como o Estatuto da Pessoa com

Deficiência.

No capítulo sete, o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo são tratados por Francisco

de Sousa Vieira Filho, em “Um ataque ao pós-positivismo: versão curta”. Nele, o autor propõe

“... em linhas gerais, é que seja princípio, ao menos aqueles que se adequem à perspectiva

fundante, aquilo que, parcela mínima que seja, sobrevive à mudança (devir), e que mantém a

identidade sistêmica (unidade mínima mantenedora do padrão organizacional e da estrutura)

de tal ou qual secção do saber (in casu: de tal ou qual sistema, e mais apropriadamente do

Direito).

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No oitavo e último capítulo, Maria Sueli Rodrigues de Sousa e Sebastião Patrício Mendes

da Costa, um dos organizadores deste livro, propõem uma análise das grandes obras do

governo federal brasileiro, em especial a Ferrovia Transnordestina e a construção das

Hidrelétricas do Rio Parnaíba. Nesse trabalho, os autores estudam os processos de

desapropriação na execução dessas obras, a busca do desenvolvimento regional pelo Governo

Federal e o concomitante enfraquecimento das populações que residem nesses locais,

inclusive com claras violações a princípios constitucionais, como o princípio da propriedade,

nos processos de desapropriação com suas indenizações subdimensionadas.

Que esse livro seja a primeira obra da parceria entre Escola Superior de Advocacia do

Piauí, Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí,

Editora da UFPI e Editora Dinâmica. Uma parceria que dá visibilidade aos trabalhos científicos

realizados na ESA-PI e na UFPI, conectando teoria e prática na efetividade das políticas

públicas e dos direitos fundamentais. Unindo o rigor científico e a divulgação de trabalhos que

buscam fortalecer a pesquisa no âmbito brasileiro, seja de seus instrumentos de fiscalização ou

controle social, seja nas reflexões teóricas sobre os mecanismos de proteção social, com

respaldo ou não nas garantias constitucionais.

Sebastião Patrício Mendes da Costa

Solange Maria Teixeira

ORGANIZADORES

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Í N D I C E

NEOLIBERALISMO E NEODESENVOLVIMENTISMO NO BRASIL: DESMONTE DOS DIREITOS TRABALHISTAS E DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL .................................................................... 9 Naiara de Moraes e Silva Solange Maria Teixeira SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM CIDADES BRASILEIRAS MÉDIAS E PEQUENAS ................ 24 Maria dos Remédios Beserra Solange Maria Teixeira SOBERANIA COSMOPOLITA NA AUDITORIA OPERACIONAL: ........................................................ 42 influência da Intosai no Estado brasileiro Guiomar de Oliveira Passos Gerlanne Luiza Santos de Melo A PARTICIPAÇÃO SOCIAL VIA OUVIDORIAS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DOS ESTADOS E SEU PAPEL NO CONTROLE DAS CONTAS PÚBLICAS MUNICIPAIS ............................................... 55 Simone de Jesus Guimarães Fábia de Kássia Mendes Viana Buenos Aires O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À SAÚDE COMO UM DEVER PRESTACIONAL DO ESTADO ................................................................................................................................................ 80 André Carvalho Luz A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA FÍSICA COMO FORMA DE DESENVOLVIMENTO HUMANO ........................................................................................................... 94 Auricelia do Nascimento Melo UM ATAQUE GERAL AO PÓS-POSITIVISMO – versão curta........................................................... 106 Francisco de Sousa Vieira Filho GRANDES PROJETOS DO GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO, DESENVOLVIMENTO REGIONAL E VIOLAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ............................................................................... 119 Maria Sueli Rodrigues de Sousa Sebastião Patrício Mendes da Costa

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NEOLIBERALISMO E NEODESENVOLVIMENTISMO NO BRASIL: DESMONTE

DOS DIREITOS TRABALHISTAS E DA PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL

Naiara de Moraes e Silva1

Solange Maria Teixeira2

Resumo: A nova ordem mundial do capitalismo globalizado e financeirizado afeta e muda não

apenas as fronteiras geográficas, mas também a soberania estatal e a capacidade do Estado

de definição de políticas macroeconômicas e sociais. A nova regulação estatal em bases

neoliberais se impõe como superestrutura adequada e viabilizadora das novas demandas do

capital, daí as consequências do avanço do desemprego, da precarização e flexibilização das

relações de trabalho e de desmonte dos direitos trabalhistas e sociais. É objetivo deste artigo é

discutir as determinações desse processo e suas manifestações no contexto brasileiro.

Palavras-chave: Direitos Trabalhistas. Neodesenvolvimentismo. Proteção Social

INTRODUÇÃO

conflito capital/trabalho se acirra na contemporaneidade, assim como se agudizam

as expressões da questão social, em decorrência do aprofundamento das condições

geradoras de desigualdades sociais e de exclusões sociais diversas, em decorrências da crise

capitalista dos anos de 1970, uma crise estrutural e cíclica do capitalismo, do padrão

fordista/keynesiano dos anos dourados do capitalismo do entre e pós-guerras. As saídas da

crise implicaram na adoção do modelo de acumulação flexível (globalizado, financeirizado e

reestruturado) e de políticas neoliberais determinando um conjunto de novas transformações

no mundo do trabalho que precarizou, fragmentou e fragilizou ainda mais a classe trabalhadora

e acentuou a exclusão de parcelas consideráveis dessa classe, o que vem sendo chamado de

subproletariados modernos.

A precarização estrutural do trabalho tomou escala global nos países centrais e no Brasil,

sendo considerado lugar-comum dizer que a classe trabalhadora vem passando por profundas

mutações, posto que, por todo o mundo, há um amplo contingente da força humana disponível

para o trabalho em escala global, mas que não encontra trabalho ou se encontra exercendo

trabalhos precários, temporários, parciais, ou já vivenciavam a barbárie do desemprego. Mais

de um bilhão de homens e mulheres padeciam com o trabalho precarizado; e, dentre eles,

centenas de milhões tinham o seu cotidiano moldado pelo desemprego estrutural (ANTUNES,

2010).

1 Advogada. Doutoranda em Políticas Públicas (UFPI). Mestre em Políticas Públicas (UFPI). Professora da Faculdade Integral Diferencial (FACID) e professora titular da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Email: [email protected]

2 Assistente Social. Pós Doutora em Serviço Social pela PUC-SP. Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora Associada da UFPI. Email: [email protected]

O

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Nesse quadro de mudanças, o Estado moderno, segundo Mészáros (2002), destacou-se

mais uma vez como a arquitetura coerente para garantir a produtividade do sistema – via sua

expansividade e dinamismo na extração do trabalho excedente – mudando seu papel e

funções em decorrência das novas necessidades de reprodução ampliada do capital. A crise

do capital evidenciou a crise das instituições do Estado, como ainda se pode ver

contemporaneamente. Na realidade, o Estado vem viabilizando a estrutura coesiva necessária

a essa condição expansionista, e a extração do sobre trabalho, sem que isso se passasse

como exploração ou provoque rebelião massiva; ao mesmo tempo o faz constituindo-se como

estrutura à parte do capital e buscando novas formas de legitimação.

A regulação social que tem o Estado como protagonista precisava ser alterada. A ideia

central estava em recuperar o crescimento e a produtividade para o capital nacional e

internacional, significando adotar a desregulamentação social para a transferência de renda ao

capital e, coletivamente, a redução dos custos da produção e salariais, diminuindo a ação do

Estado na proteção social e no investimento produtivo direito e sua maior atuação na

flexibilização organizacional, produtiva e trabalhista, desconstruindo as práticas e institutos

públicos criados até então no país (BARBOSA.).

No Brasil, após o social-liberalismo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, temos

em tempo de governo do partido dos trabalhadores o neodesenvolvimentismo, mas como visa

demonstrar esse trabalho, ambos são um versão não ortodoxa do neoliberalismo, uma

reatualização nacional do mesmo, com a ilusão de que o desenvolvimento econômico e social

capitalista são possíveis no espaço nacional de um país com inserção subordinada na divisão

internacional do trabalho, portanto, na nova ordem mundial globalizada.

Nesse contexto o objetivo deste trabalho é discutir os processos que determinam o

desmonte dos direitos trabalhistas e sociais que constituem parte da proteção social pública,

apontando os vários instrumentos utilizados para concretizar esse desmonte e as várias

direções dos fenômenos como desregulamentação e flexibilização.

O CENÁRIO MUNDIAL E SUAS CONSEQUÊNIA SOBRE O MUNDO DO

TRABALHO

É inegável o avanço das propostas democráticas estabelecidas no País desde o fim da

década de 1980 e início dos anos 1990, especialmente com a fixação das garantias

constitucionais trabalhistas a partir de 1988. No entanto, a crise dos anos 1970 deixou alicerces

que permitiram a disseminação das ideias neoliberais, que passaram a ganhar terreno desde

então. Para os neoliberais, as raízes da crise do capitalismo residiam no avanço dos sindicatos

e do movimento operário, com suas reivindicações sobre salários, o que corroía as bases de

acumulação da empresa, além de exercer uma pressão parasitária sobre o Estado. Era,

portanto, necessária, conforme a perspectiva neoliberal, a existência de um Estado forte, capaz

de romper o poder dos sindicatos, mas fraco o suficiente quando se tratasse de gerir os gastos

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sociais e de intervir na vida econômica. Minimizar o Estado – o Estado Mínimo – é uma das

principais preocupações e bandeiras do pensamento neoliberal (GRAVE, 2005).

Atualmente, a partir da disseminação dos ideais neodesenvolvimentistas, o Brasil não

mudou o sentido geral que orienta o padrão de regulação econômica e social do capitalismo no

atual contexto de mundialização do capital, de financeirização da economia e de predomínio de

um regime de acumulação flexível. Segundo Lima (2013), trata-se de assegurar as condições

de flexibilidade necessária ao atual processo de reorganização capitalista e de compensar os

efeitos perversos da globalização dos mercados e da busca de eficiência e de competitividade

a qualquer preço. Portanto, não difere em essência do neoliberalismo, mas o repagina.

No plano econômico, esse padrão de regulação se traduz em uma política

macroeconômica que prioriza a estabilização monetária e o equilíbrio orçamentário, o que

resultou na privatização de empresas estatais e de importantes serviços sociais, a exemplo da

saúde, da educação e da previdência. Em segundo lugar, não menos importante, sobressai o

reforço à competitividade e à inserção da economia nacional na nova ordem mundial

globalizada, por meio de medidas tais como a desregulamentação dos mercados, a redução e

a flexibilização dos custos trabalhistas, dentre outras (LIMA, 2013).

Nesse sentido, os fundamentos constitucionais relativos à criação de mecanismos

político/democráticos de controle social e de regulação da dinâmica capitalista deram-se em

concomitância a uma conjuntura de crise econômica, que se relaciona a um movimento mais

geral, enquanto macrodeterminação, de dois processos situados no contexto de “crise” e de

rearranjo global do capitalismo, no sentido de se passar para um novo padrão de acumulação

(o flexível): as mudanças no mundo do trabalho e as mudanças na intervenção do Estado –

emergência do neoliberalismo – elementos inerentes à globalização operada sob o comando

do grande capital (DURIGUETTO, 2007).

O Estado brasileiro, diante da crise contemporânea, foi impulsionado a realizar nova

reforma, empreendida entre os anos de 1995 e 2000, de modo a alterar o tamanho do Estado e

suas atribuições. Dentre as medidas que fizeram parte dessa Reforma do Estado, Costa (2007)

destaca dois aspectos-chaves no processo de redefinição das prioridades de sua atuação, com

forte impacto no emprego, nos serviços públicos e nas prioridades de investimento estatal, são

eles: as privatizações e a reforma administrativa.

No Brasil, esses processos só ganharam densidade no decorrer da década de 1990,

quando foram implementadas as chamadas medidas de ajuste estrutural, preconizadas pelo

Consenso de Washington. Por Consenso de Washington entenda-se a denominação dada a

um plano de medidas de ajustamentos das economias periferias, chancelado pelo FMI, BM,

BIRD e pelo governo norte-americano em reunião ocorrida em Washington no ano de 1989

(FIORI, 1995). Foi assim, que no governo Collor (de 1990 a 1992) se operou drástica

modificação da agenda pública, de acordo com as diretrizes neoliberais.

A nova agenda pública de ajuste passou a ser dominada por temas como refluxo do

Estado e primazia do mercado, através das políticas de abertura comercial e financeira ao

capital internacional, desregulamentação e privatização, redução dos fundos públicos para o

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financiamento das políticas sociais, enfim, uma agenda que “só podia ser conduzida contra as

conquistas de 1988” (DURIGUETTO, 2007). Dessa forma, empreendeu-se no Brasil toda uma

política de desmonte dos direitos, inclusive os trabalhistas que, juntamente com as demais

transformações no mundo do trabalho, passaram a ser reflexo de precarização e flexibilidade.

Assim,

[...] em oposição ao “pacto social” que deu lugar à Constituição de 88, consolidou-se, nos anos 1990, um amplo consenso liberal (filiado ao Consenso de Washington) favorável à implementação do programa de estabilização, ajuste e reformas institucionais, apoiado e promovido pelos governos nacionais e pelas agências financeiras internacionais: programa de privatizações, redução de tarifas alfandegárias para importação; liberalização dos preços; redução de isenções fiscais, subsídios e linhas de crédito, corte dos gastos públicos (TAVARES; FIORI, 1993, p. 153).

Consolidaram-se, portanto, no cerne da política macroeconômica três patamares

fundamentais: redução dos gastos públicos; realocação de recursos necessários ao aumento

de superávits na balança comercial; e reformas visando aumentar a eficiência do sistema

econômico como um todo. A estabilização monetária, portanto, configurou-se como objetivo

último do governo, sendo fácil assim, reduzir o lugar das políticas públicas e dos direitos e

garantias sociais, nesse Estado de corte neoliberal. As políticas públicas passaram a ser

focalistas, pontuais, compensatórias, sem orçamento suficiente, sempre voltadas para atender

os setores mais vulneráveis da população. Além disso, boa parte dessas ações deveria contar

com a participação da iniciativa privada. Nessa direção, se justifica a chamada “filantropia

empresarial” e o voluntariado (GRAVE, 2005).

No primeiro e o segundo governos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC)

(1995 a 2002) houve continuidade e aprofundamento quanto à implementação do atual modelo

de desenvolvimento, o qual inviabilizou a criação das bases de sustentação

econômico/financeira para a construção de uma função estatal voltada para gerir e

operacionalizar amplas responsabilidades sociais. Em nome da solução da “crise” brasileira,

objetivando a construção de um Estado de corte neoliberal conforme ditames internacionais, o

Estado brasileiro desenvolvimentista e conservador do governo FHC promoveu a integração do

Brasil no cenário capitalista mundial, empreendendo grande período de privatizações, reforma

administrativa e desmonte de direitos.

Contemporaneamente, a corrente ideológica desenvolvimentista ganhou novo fôlego na

academia, sendo revestida como “social desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo”,

cheio de resgates e semelhanças tais que passaram a justificar as políticas assistencialistas e

traçar um novo padrão de regulação no plano social. Esse padrão atual substitui as “políticas

de integração de cunho universalista e distributivo” pelas chamadas “políticas de inserção”, de

caráter residual, focalizadas nos segmentos sociais mais vulneráveis, destacando-se dentre

estas os Programas de Transferência de Renda Condicionada em desenvolvimento na América

Latina, sobretudo, nos anos 2000e na impossibilidade posta pela ordem capitalista rentista de

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gerar emprego estável e formal, uma política de geração de trabalho e renda pelas vias do

empreendedorismo, economia solidárias, micro, pequenas e médias empresas, dentre outras

formas ditas autônomas são implementadas pelo Estado.

Segundo Lima (2013), o núcleo duro da proteção social no Brasil e na América Latina

pautou-se na lógica do reforço às capacidades individuais para a superação do ciclo

intergeracional da pobreza, cujo horizonte é a promoção da igualdade de oportunidades tão

cara à tradição liberal. Nesse ponto, não há distinções relevantes do padrão de regulação

objetivado pelo desenvolvimentismo clássico na década de 1990, pelo neoliberalismo,

praticamente intacto se comparado com a agenda proposta pelos ideólogos do novo

desenvolvimentismo.

Apenas algumas mudanças secundárias existiriam entre o desenvolvimentismo clássico e

o social desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo no plano social, percebidas através de

um olhar mais atento, como esboçado por Lima (2013) acerca dos moldes existentes no “novo

desenvolvimentismo”:

[...] uma maior intervenção do Estado na economia, no sentido de corrigir as falhas do mercado, o que não significa necessariamente ruptura com os fundamentos centrais do neoliberalismo, já que (...) o liberalismo econômico e o intervencionismo estatal não são mutuamente excludentes; medidas de cunho distributivo e de ampliação do crédito ao consumo das famílias, com vistas à ampliação e dinamização do mercado interno, o que não se traduz em superação do caráter essencialmente residual e compensatório do padrão vigente de proteção social e nem em mudança da forma de repartição do fundo público, destinado prioritariamente à remuneração das frações rentistas do capital. (LIMA, 2013, p. 287)

A partir daí, o que se deu foi uma redefinição das relações de trabalho, produzidas pelo

processo de reestruturação produtiva, expressas através da variedade e flexibilização das

formas ocupacionais (de contrato e de situação de trabalho). Seus efeitos na ocorrência do

desemprego vêm desencadeando desigualdades e destituição de direitos, que tendem a

conformar crescente segmentação entre trabalhadores qualificados – mais valorizados e

preservados em seus empregos – e uma grande maioria “desqualificada” em relação às

habilidades exigidas, encaminhando-se para o trânsito entre desemprego e ocupações

temporárias instáveis (DURIGUETTO, 2007).

Essa heterogeneidade ocupacional significou a crescente ampliação das desigualdades e

disparidades salariais, que são transportadas nas diferenciações de acesso a bens materiais

de consumo, configurando formas distintas de sociabilidade, demarcando o “universo da

pobreza” e aquele dos inseridos nos circuitos do mercado. A flexibilização das normas

contratuais (ou seja, das regras que regem a contratação, o uso, a remuneração e a dispensa

da força de trabalho) expressa também a segmentação da organização sociopolítica

(representação e negociação) em seu interior, em que milhares de trabalhadores são postos

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em situação de excludência no que concerne a medidas que favoreçam a formulação de

direitos relacionados à suas necessidades e interesses (DURIGUETTO, 2007).

AS NOVAS CONFIGURAÇÕES DO NEOLIBERALISMO NO BRASIL: O NEODESENVOLVIMENTISMO

O neoliberalismo surgiu na América Latina com a instauração da autocracia burguesa nos

anos 1970. Antes disso, como se viu, nos anos 1950 e 1960, algumas frações das burguesias

latino-americanas tentaram com um relativo apoio popular construir um modelo

desenvolvimentista de soberania nacional, que restou fracassado. Defendia-se o modelo de

substituição de importações, onde o crescimento econômico e o aumento da massa salarial

derivados da industrialização atrairiam o apoio de setores da classe trabalhadora e dariam uma

base popular aos projetos de desenvolvimento nacional. No Brasil, na Argentina e no México

esses projetos tentaram alçar voo, mas foram “abatidos por forças conservadoras internas e

externas, tanto do latifúndio quanto do imperialismo, além do empresariado industrial no qual

se depositaram falsas esperanças” (CASTELO, 2013, p. 390).

Em um primeiro momento de inserção na América Latina, o neoliberalismo alcançou o

Chile em 1973. A via chilena do socialismo foi interrompida por um golpe do general Pinochet,

que implementou políticas neoliberais propostas por economistas da escola de Chicago. Em

1976, o golpe na Argentina fez despontar algo parecido no campo da economia, com

consequentes violações aos direitos humanos. Já na segunda fase do neoliberalismo no

continente, que ocorreu nos anos 1980, presidentes foram eleitos com plataformas neoliberais.

Diferente dos anos 1970, o neoliberalismo (re)surgiu na região a partir de pleitos eleitorais da

democracia representativa (CASTELO, 2012).

A partir de então, até o início do século XXI, a agenda política da América Latina girou em

torno do Consenso de Washington, que previa uma série de medidas para acabar com a crise

da dívida externa, a estagnação econômica e os altos índices inflacionários. O Consenso de

Washington representava a vitória político-cultural da burguesia rentista e preparava terreno

para a inserção da América Latina na etapa contemporânea do imperialismo, na qual a região

se torna plataforma de valorização de capitais estrangeiros, especulação financeira e

expropriação maciça de bens públicos (CASTELO, 2012).

No Brasil, a crise da dívida externa e as escolhas que o país tomou a partir de 1981

implicaram em um pífio desempenho macroeconômico, com baixas taxas de crescimento,

desequilíbrio nos balanços de pagamentos, déficits públicos crescentes e aumento das dívidas

públicas internas. Além disso, os efeitos sobre as expressões da questão social também foram

desastrosos: aumento do desemprego estrutural, pauperismo e perda de direitos sociais

básicos, como a precarização das relações trabalhistas e a privatização de bens públicos como

saúde, previdência e educação (CASTELO, 2012).

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Foi na década de 1990 que foram sentidos de forma mais intensa os danos sociais

oriundos da agenda neoliberal. E, diante dos primeiros sinais de desgaste do neoliberalismo, o

pensamento desenvolvimentista retornou à agenda nacional de forma repaginada, acoplado

dos prefixos “novo” desenvolvimentismo ou “social” desenvolvimentismo, tornando-se um tema

central e bastante controvertido no meio acadêmico, especialmente relacionado com as

políticas públicas desenhadas pelos governos Lula e Dilma.

Ocorre que entre 2003 e 2010, os países da América Latina, grande parte deles sob o

comando de governos progressistas, oriundos de partidos de esquerda vivenciaram uma

inflexão marcada pela possível associação entre a retomada do crescimento econômico,

favorecida por um contexto internacional favorável, e a melhoria dos indicadores sociais,

sobretudo aqueles relacionados ao mercado de trabalho e à desigualdade (LIMA, 2013).

A nova face do desenvolvimentismo se estabeleceria, portanto, enquanto novo modelo de

desenvolvimento brasileiro, um modelo de inserção na economia mundializada em meio a atual

crise estrutural do capitalismo flexível, supostamente em contraposição ao ideário neoliberal,

mas a rigor, efetivando-se enquanto inflexão da política econômica, ao manter o núcleo duro da

política de ajuste e incorporar uma dimensão desenvolvimentista (CASTRO, 2013).

Segundo Sampaio Jr. (2012), o neodesenvolvimentismo é um fenômeno recente,

indissociável das particularidades da economia e da política brasileira na segunda metade dos

anos 2000. Sua repercussão, porém, não ultrapassaria as fronteiras nacionais, restringindo-se

a pequenos ciclos acadêmicos. Mais do que isso, a onda neodesenvolvimentista estaria

diretamente ligada à disputa de controle da política econômica brasileira. Seriam aí duas

correntes: a monetarista (neoliberal) e a autoproclamada “desenvolvimentista”, de esquerda,

que estaria à procura de uma terceira via que conciliasse os aspectos positivos do

neoliberalismo (compromisso incondicional com a estabilidade da moeda, austeridade fiscal,

busca de competitividade internacional, ausência de qualquer tipo de discriminação contra o

capital internacional) e os aspectos positivos do velho desenvolvimentismo (comprometimento

com o crescimento econômico, industrialização, papel regulador do estado, sensibilidade

social).

Percebe-se, assim, que todo o debate acerca do neodesenvolvimentismo gira em torno

dos instrumentos que devem ser mobilizados pela política econômica para superar os entraves

ao crescimento e conciliar as exigências do equilíbrio macroeconômico com os objetivos da

política industrial e as necessidades orçamentárias da política social. Em nenhum momento se

coloca em questão o impacto devastador da ordem global sobre o processo de formação da

economia brasileira, o qual, como se viu, articulado com as questões internas foi responsável

por consolidar na sociedade grandes desigualdades sociais e dependência externa

indissociável.

Levando em conta a análise neodesenvolvimentista enquanto novo modelo de

desenvolvimento brasileiro, especialmente a partir do governo Lula, é imprescindível destacar a

força da dimensão ideológica que essa corrente de pensamento direciona para as questões de

políticas públicas nacionais. Naquele momento, alçado à categoria de protagonista do

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neodesenvolvimentismo, o governo Lula firmou enquanto estratégia a dinamização das

políticas sociais brasileiras a partir dos programas de transferência de renda, sendo destaque o

Programa Bolsa Família, além da política de geração de trabalho e renda pela via do

empreendedorismo individual, economia solidária, micro e pequenas empresas e de

qualificação da mão de obra para dar-lhe empregabilidade, como se o problemas não fosse,

principalmente, a redução da oferta de empregos.

Defende-se nesse artigo que a política desenvolvimentista da Era Lula estaria mesclada

aos aportes neoliberais, consubstanciando uma orientação dita “desenvolvimentista e social”

sem nenhuma referência à política desenvolvimentista do ciclo de crescimento econômico

brasileiro (de 1930 a 1980), que forjou um projeto de desenvolvimento nacional.

Foi dessa forma que as atuais políticas compensatórias ampliaram seu raio de extensão

por conta do ideário do novo desenvolvimentismo, apesar de continuarem focalizadas e

minimalistas. O neodesenvolvimentismo, por sua vez, surgindo enquanto estratégia econômica

de terceira via que se apresenta, na verdade, como uma das formas de renovação do

liberalismo exacerbado, pregando falsamente a ideia de um novo modelo de capitalismo

globalizado mais humanizado.

Toda essa consolidação do pensamento social desenvolvimentista brasileiro, enquanto

verdadeira falácia fantasiosa de que o Brasil estaria vivendo um novo ciclo de

desenvolvimentismo, só acontece por conta de uma modesta retomada do crescimento

econômico no segundo governo Lula, a partir de uma guinada qualitativa na trajetória da

economia brasileira, após quase três décadas de estagnação.

Sampaio Jr. (2012) destaca que o país vivenciou uma lenta recuperação do poder

aquisitivo do salário após décadas de arrocho; ligeira melhoria na distribuição pessoal da

renda; o boom de consumo financiado pelo endividamento das famílias e a aparente resiliência

do Brasil perante a crise econômica mundial. A conjunção desses fatores criou falsamente a

expectativa de que o país estaria no “rumo certo” frente à crise internacional, de que as

políticas sociais compensatórias seriam destaque no âmbito das políticas sociais, o verdadeiro

reflexo deste novo ciclo de reordenamento do capital, que tem no Estado uma intervenção mais

atuante na extrema pobreza.

O Brasil, sob a ótica de equilibrar crescimento econômico e desenvolvimento social,

passou a dar ênfase às políticas de transferência de renda e segue proclamando que os

patamares satisfatórios de crescimento econômico serão mantidos com a ampliação do

consumo, a fim de fortalecer o mercado. Além das políticas de geração de trabalho e renda

complementares à primeira. Segundo confirma Castro (2013), dentro da ideologia proclamada

pelo governo brasileiro, o crescimento do país só acontecerá com o atendimento das

necessidades sociais, o que exigiria um conjunto de políticas e programas voltados a minorar a

pobreza e reduzir as desigualdades sociais, amparados no modelo de desenvolvimento do

social desenvolvimentismo, onde havia de ser formatada uma nova cultura cívica e uma nova

sociabilidade que instaurasse novas tendências de comportamento e de relações sociais.

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Ledo engano, porque, como se sabe, o foco principal da política social migrou

ostensivamente das necessidades humanas para as necessidades do capital (GOUGH, 2003).

Na visão de Pereira (2012), a política social brasileira, inserida no marco das aspirações

governamentais de transformar o Brasil em potência emergente desde a década de 1930, se

realiza em um processo de desenvolvimento marcado pela atuação estatal de forma

dependente do capital internacional, desde os períodos de ditadura até o recente domínio

neoliberal, aprofundando as desigualdades sociais e impedindo efetivamente a política social

de concretizar direitos sociais conquistados formalmente.

O projeto do novo desenvolvimentismo, numa economia dependente como a do Brasil

embora em tese, intente aproximar os índices de crescimento econômicos e sociais, esbarra

nos componentes estruturais de formação da sociedade brasileira que acumula séculos de

miséria e pobreza. A ideologia do novo desenvolvimentismo adotada pelo Banco Mundial a

partir da perspectiva de Amartya Sem, destaca que uma das piores privações seria a restrição

dos indivíduos ao livre mercado e o Bolsa Família, com base nesta orientação, contribui para o

fortalecimento do mercado. O desenvolvimento social no governo Lula, com foco no combate à

pobreza é, na verdade, uma estratégia de gestão da pobreza focada no consumismo de

mercado típico da economia capitalista (CASTRO, 2012).

Como complementar a essa estratégia de política social está a de geração de trabalho e

renda, e dentro dela a do microempreendedorismo formalizado, a economia solidária, dentre

outras, por vias ditas autônomas, em detrimento, de geração de empregos, aumento da oferta,

criação de novos postos de trabalho o que seria esperado de um modelo de desenvolvimento

social e econômico, mesmo que em molde capitalista.

O dito “novo ciclo de reprodução do capital” que tem como referência o chamado novo

desenvolvimentismo, que, em tese, se estrutura em substituição ao neoliberalismo, assumindo

uma nova versão do desenvolvimentismo prega que o mercado ampliado seria capaz de

diminuir as distâncias sociais a partir de uma “inclusão forçada”, com fins de estimular o

mercado. A participação periférica dos beneficiários dos programas de transferência de renda

no mercado é uma meta consumada pelo capital, e não a participação engendrada pela

condição de cidadania alcançada pelos trabalhadores a partir de suas conquistas civilizatórias,

porquanto a chave de inflexão do neoliberalismo, que na realidade, se funde com novos

aspectos desde novo-desenvolvimentismo, está em focar nos bens de consumo, preparando o

mercado para que este esteja ao alcance dos pobres (CASTRO, 2012).

E, inclusão social, redução das desigualdades em nada tem a haver com ampliação do

mercado de consumo, acesso ao crédito, formação de microempresas ou geração de renda

mínima em condições precárias. É impressionante como a ideologia dominante consegue se

repaginar e incorporar todas as medidas de política social, direcionando-as e criando uma falsa

imagem de que esse processo de ampliação do acesso ao mercado, pela via do consumo, é

um legítimo direito humano a ser preservado frente às estruturas arcaicas de formação da

sociedade brasileira, em detrimento do direito ao trabalho regulamentado. A pobreza não pode

ser combatida no âmbito do mercado.

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Segundo Castro (2012), trata-se de uma estratégia do capital em fortalecer o mercado e

pacificar os segmentos pauperizados, que são estimulados a sentirem-se privilegiados com

certo grau de autonomia para “vencer por si só”: consolida-se uma nova cultura cívica fincada

em uma sociabilidade centrada no individualismo e na competição, já que as oportunidades

seriam dadas e caberia aos indivíduos aproveitá-las. É nesse contexto que se fortalece o apoio

estatal ao empreendedorismo.

Essa lógica de desenvolvimento na era do capital financeiro, o incentivo à lógica do

mercado, e as atuais imposições do modelo de acumulação flexível, caminham juntos no

desmonte da proteção social universalista, dos direitos trabalhistas e sociais e instituem

políticas compensatórias e focalizadas e alternativas de renda e trabalho que perpetuam a

precarização das relações de trabalho.

EXPRESSÕES DO DESMONTE DOS DIREITOS TRABALHISTAS E

SOCIAIS NAS ÚLTIMAS DÉCADAS

Ao tratar sobre a flexibilização e a informalização dos postos de trabalho durante o

governo de Fernando Henrique Cardoso, Borges (2002) relaciona um conjunto de medidas

legislativas que representaram o papel de desmonte da legislação e dos direitos trabalhistas

até então existentes. A MP n. 1.053, convertida na Lei n. 8.542, de 2001, é um desses

exemplos, pois, no bojo do plano real, determinou “a livre negociação” entre as partes,

proibindo a indexação dos salários. Segundo o autor (2002), na prática, extinguiu a política

salarial, resultando em recorrentes perdas do poder aquisitivo dos trabalhadores.

Houve a Lei n. 8.949, de 1994, que regulamentava as cooperativas surgidas nos setores

populares, visando estimular as formas solidárias de trabalho, que, segundo Borges (2002), foi

absorvida pelo patronato e possibilitou a criação de milhares de falsas cooperativas, servindo

para evitar os encargos das leis trabalhistas. A Lei n. 9.300, de 1996, que reduziu o valor das

indenizações dos assalariados rurais, excluindo das verbas rescisórias a incorporação das

parcelas pagas in natura durante a relação empregatícia. A Portaria n. 2, de maio de 1996 que

dobrou o tempo de serviço temporário de três para seis meses e flexibilizou os critérios para

contratação. A Lei n. 9.525, de 1997 que fixou a possibilidade de dividir as férias dos servidores

públicos federais em até três etapas, o que representou um desrespeito ao descanso

assegurado ao trabalhador (BORGES, 2002).

Houve também a MP n. 1530, convertida na Lei n. 9.468, de 1997, que instituiu o plano de

demissão voluntária dos servidores públicos federais, sendo depois seguida pelos Estados e

municípios. A MP n. 1523, convertida na Lei n. 9.528/1997, que criou uma nova modalidade de

extinção do contrato de trabalho, a partir da solicitação da aposentadoria proporcional, e

limitou, ainda, o acesso do trabalhador ao benefício previdenciário do auxílio/acidente. A Lei n.

9.527, de 1997, que eliminou ou modificou 53 artigos da Lei n. 8.221, de 1990, retirando

vantagens do Regime Jurídico Único dos servidores públicos federais. A Lei n. 9.601, de 1998,

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que instituiu o contrato por tempo determinado ou contrato temporário. Nele, o trabalhador

contratado não tem direito ao aviso prévio nem à multa de 40% sobre o FGTS, quando de sua

demissão. Além disso, o valor do depósito no FGTS é reduzido de 8% para 2%, assim como

são reduzidas as contribuições para o Incra, salário/educação, seguro acidente de trabalho e o

Sistema “S” (Sebrae, Sesc, Senat etc.). A lei também permitiu a jornada semanal superior às

quarenta e quatro horas semanais sem o pagamento das horas extras. Criou a figura do “banco

de horas”, determinando a compensação no período de um ano (BORGES, 2002).

Sob o ponto de vista da orientação legislativa do trabalho, todas essas mudanças

voltadas para a desarticulação e o desmonte das garantias constitucionais de 1988

desencadearam no interior do Direito do Trabalho uma discussão sobre a flexibilização e a

terceirização das relações de trabalho. Segundo Barros (2008), os significados dessas

mudanças variaram conforme o sistema legal adotado e o grau de desenvolvimento dos

países. Muitos sustentavam que a predominância de normas imperativas nos institutos

jurídicos era o fato gerador da crise nas empresas, uma vez que lhes retirava as possibilidades

de se adaptarem a um mercado turbulento. Afirmavam que a rigidez daí advinda impedia a

competitividade das economias europeias e o aproveitamento das oportunidades de inovação

tecnológica. Outros, por sua vez, atribuíam a culpa pela crise econômica à estrutura orgânica e

aos métodos de gestão, típicos da concepção fordista de produção, e viam a rigidez das

instituições mais como um resultado da crise do que como sua origem.

A verdade é que o neoliberalismo implantou uma visão axiológica diferenciada no Direito

do Trabalho, conduzindo àquilo que Nascimento (2006) denomina de “tensão dogmática do

direito do trabalho”, ou seja, aparentes tensões entre fatos, valores e normas, pois o Direito do

Trabalho se colocava agora como um valorizador da liberdade de negociação, pregando a

flexibilização e a desregulamentação do Direito do Trabalho. Buscava-se estabelecer uma nova

concepção das normas laborais, relativizando o protecionismo legislativo inspirado no Princípio

Protetor e quebrando a rigidez da legislação tutelar do trabalhador através de mecanismos de

flexibilização.

Sabe-se que o ordenamento jurídico trabalhista foi instituído em razão de um fato histórico

e marcante (revolução industrial e exploração desumana do trabalhador – fato

social/econômico) que infringiu valor supremo (dignidade humana – valor inerente à pessoa

humana), obrigando o estabelecimento de regras de conduta e sanções respectivas a

assegurar a ordem social e jurídica (normas de proteção), limitando a política de domínio do

capital, através do garantismo estatal, consagrando o Direito, em especial, o Direito do

Trabalho, como Ciência Social e Humana.

No Direito do Trabalho, a sua finalidade primordial ou o valor sob o qual se assentaram

suas normas está na mínima garantia de proteção trabalhista e preservação da dignidade

humana do trabalhador, visto que as relações de trabalho, embora assentadas no aspecto

econômico/produtivo, não se afastam da pessoa do trabalhador, que deve ter seus direitos de

personalidade tutelados, a garantia de um meio ambiente de trabalho sadio e equilibrado,

enfim, tudo o que diz respeito aos seus atributos pessoais. Com a influência do processo de

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desregulamentação e ampliação das diretrizes neoliberais, a partir da década de 1970, porém,

o ordenamento jurídico/trabalhista maximizou as tendências atuais de flexibilização e garantias

mínimas, voltadas para a flexibilização das garantias trabalhistas.

A flexibilização no campo do trabalho, historicamente, tem sido uma reivindicação

empresarial identificável como uma explícita solicitação de menores custos sociais e maior

governabilidade do fator trabalho. Para a realização dessa reivindicação, reclama-se uma

flexibilidade normativa, que poderá ser atingida sob o prisma legal, regulamentar e

convencional, mas assegurando-se garantias mínimas ao empregado (SALA-FRANCO, 1988).

A flexibilização teve dois momentos históricos: o primeiro coincide com o chamado “direito

do trabalho da emergência” e corresponde a um processo temporário; o segundo coincide com

a “instalação da crise” e corresponde a reivindicações patronais permanentes. Enfatize-se que

dois tipos de flexibilização podem ser destacados: a flexibilização interna e a externa. A

primeira, atinente à ordenação do trabalho na empresa, correspondente a mobilidade funcional

e geográfica, a modificação substancial das condições trabalho, do tempo do trabalho, da

suspensão do contrato e da remuneração. Enquadram-se nessa forma de flexibilização o

trabalho em regime de tempo parcial (art. 58-A, CLT), e a suspensão do contrato a que se

refere o art. 476-A do mesmo diploma legal. A segunda diz respeito ao ingresso do trabalhador

na empresa, às modalidades de contratação, de duração do contrato, de dissolução do

contrato, como também à descentralização com recurso a forma de gestão de mão de obra,

subcontratos, empresa de trabalho temporário (BARROS, 2008).

Acrescente-se que se encaixa, nos moldes da flexibilização externa, a forma de inserção

do trabalhador no regime do FGTS, retirando-lhe qualquer possibilidade de adquirir

estabilidade no emprego. Esse regime foi introduzido no País no primeiro momento histórico da

flexibilização; ou seja, como imposição do chamado direito do trabalho da emergência.

Constituem igualmente modalidade de flexibilização externa a ampliação do rol dos contratos

determinados, como, aliás, se refere a Lei n. 9.601, de 1998, contendo redução de encargos, a

terceirização disciplinada pela Súmula n. 331, do TST, a contratação de trabalhador temporário

na forma da Lei n. 6.019, de 1974, entre outras.

Destaque-se, oportunamente, que o fenômeno da flexibilização é encarado também sob o

enforque da “desregulamentação normativa”, imposta pelo Estado, a qual consiste em derrogar

vantagens de cunho trabalhista, substituindo-as por benefícios inferiores. A

“desregulamentação normativa” imposta unilateralmente pelo Estado (flexibilização

heterônoma) é considerada por alguns doutrinadores como “selvagem”. Em contrapartida, a ela

sugere-se uma “desregulamentação laboral de novo tipo”, a qual pressupõe a substituição das

garantias legais pelas garantias convencionais (flexibilização autônoma), com a primazia da

negociação coletiva. Situa-se aqui a hipótese de redução salarial prevista na Constituição

Federal de 1988 (art. 7º, VI), mediante convenção ou acordo coletivo, como também de

majoração da jornada de seis horas para turnos ininterruptos de revezamento, sempre

mediante negociação coletiva (art. 7º, XIV). A flexibilização traduz aqui uma forma de

adaptação das normas trabalhistas às grandes modificações verificadas no mercado de

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trabalho. Até nessa hipótese de flexibilização, objetiva-se (ao menos teoricamente) a

manutenção dos limites mínimos, previstos nos diplomas constitucionais e internacionais;

mesmo porque o Direito do Trabalho e os direitos trabalhistas, além de integrarem o rol dos

direitos fundamentais na Constituição de 1988, são voltados para a proteção do trabalhador e

pela correção de diferenças entre patrão e empregados (BARROS, 2008).

Para além da terceirização, o desmonte é tão avassalador que recentemente, o governo

Dilma anunciou um conjunto de regras mais rígidas que devem reduzir o pagamento de

benefícios como pensão por morte, auxílio-doença, abono salarial, seguro-desemprego e

seguro defeso. O governo divulgou que o objetivo de tais medidas é reduzir os gastos e fazer

uma economia de R$ 18 bilhões por ano, a partir de 2015. Dessa forma, como apresentado

nesse novo regramento, o governo federal quer justificar que limitando as regras para

concessão de benefícios do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da Previdência Social

estará fazendo um benefício à gestão pública. Na verdade, o acontece é mais uma

desarticulação da proteção social e das garantias dos trabalhadores à luz dos interesses do

capital resguardado pelo Estado.

Verdadeiramente, na relação entre capital e trabalho, o Estado e o mercado esmagam os

direitos trabalhistas e da proteção social, desmonta-os a partir de uma atuação administrativa e

legiferante questionável, e faz a população não se revoltar acreditando no consenso da

redução de gastos, como forma única de resposta à crise fiscal do Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Antunes (2011), depois do “dilúvio neoliberal” surgiu um novo “continente do labor”

caracterizado por uma nova precariedade salarial. Já para Alves (2013) o que se vivencia

atualmente é um “novo arcabouço técnico-organizacional do capital” que emerge na década de

2000 e é uma construção sócio institucional com traços significativos de relações de trabalho

precarizadas, destacando os seguintes elementos compositivos: remuneração flexível; jornada

de trabalho flexível – banco de horas; e, contrato de trabalho flexível (tempo determinado,

tempo parcial, terceirização, etc.

O neoliberalismo é a nova superestrutura político-ideológica desse novo modelo de

acumulação. No Brasil, essa versão é criticada, mas não superadas, dada a inserção

subordinada do país na divisão internacional do trabalho. Assume novas denominações como

o Social-Liberalismo e atualmente neodesenvolvimentismo. Apesar das novas denominações,

esses projetos são inteiramente compatíveis com essa nova lógica da regulação estatal e da

institucionalização de relações de trabalho flexíveis, precárias e de incentivo ao mercado e ao

consumo.

O exemplo da manutenção desse desmonte de direitos pode ser visto desde a década de

1990 aos dias atuais, em que diversas medidas administrativas e legislações flexibilizadoras

são responsáveis for fazer minar os direitos e as garantias trabalhistas e de proteção social dos

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trabalhadores. O consenso liberal busca disseminar a ideia de que toda essa articulação

estatal é para a redução de gastos, desenvolvimento brasileiro e saída das condições de

pobreza da população. Na verdade, o neodesenvolvimentismo revestido de social democracia

à brasileira é apenas um modo de compreensão da política econômica e social brasileira

associado aos ideais do capital, e suas diretrizes não alteram efetivamente as condições

sociais e econômicas da população brasileira. Porquanto permanece o desmonte dos direitos

trabalhistas e da proteção social da conjuntura neoliberal, em suas diversas denominações.

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SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM CIDADES BRASILEIRAS MÉDIAS E

PEQUENAS

Maria dos Remédios Beserra1

Solange Maria Teixeira2

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os determinantes da segregação

socioespacial na contemporaneidade da sociedade capitalista, tanto nos centros

metropolitanos, como nas cidades pequenas e médias, com destaque para as singularidades e

particularidades das cidades brasileiras médias e pequenas, mapeando suas expressões e

relações com a totalidade da sociedade capitalista, no seu atual modelo de acumulação

flexível, financeirizado e neoliberal. Trata-se de um artigo de reflexão teórica, logo, de revisão

de literatura e dos estudos realizados nesse campo temático, no doutoramento em políticas

públicas.

Palavras-chave: Urbanização. Segregação socioespacial. Sociedade Capitalista.

INTRODUÇÃO

discussão acerca da segregação socioespacial na sociedade capitalista é, antes de

tudo, desafiadora pela complexidade histórica e teórica que o tema revela. Trazer

essa discussão para a sociedade contemporânea, buscando apreender as contradições que

lhe são inerentes no processo de construção das cidades, requer um empenho ainda maior

diante das novas configurações em que se apresentam a dinâmica global do capital, a partir da

década de 1970 e suas inúmeras implicações na produção do espaço urbano, exigindo uma

análise a partir de uma concepção sócio-histórica.

Não apenas considerando a realidade brasileira de capitalismo tardio e periférico, que

acentua ainda mais as contradições e contrastes dessa lógica de acumulação, associada a sua

inserção no atual modelo de acumulação flexível, financeirizado, globalizado e neoliberal que

acentua a realidade de desigualdades sociais e a segregação socioespacial nas cidades. Mas,

considerando ainda o número acentuado de pequenas e médias cidades, ao lado das poucas

cidades grandes e metropolitanas, revela a necessidade de compreender o modo como essa

segregação se expressa e sua relação com a totalidade da sociedade capitalista.

Assim, este artigo visa discutir e apresentar os principais aportes teóricos que orientam a

discussão sobre a urbanização e segregação socioespacial e seus determinantes

1 Assistente social. Professora do Instituto de Educação Superior Raimundo Sá - IESRSÁ, Picos – PI. Mestre em Serviço Social/UFPE. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas/ UFPI, 2016. Email: [email protected]

2 Assistente Social. Pós-Doutorado em Serviço Social pela PUCSP (2009). Professora associada da Universidade Federal do Piauí. Email: [email protected]

A

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fundamentais, para em seguida discutir esses processos nas cidades médias e pequenas,

explicitando suas expressões singulares, particulares e a relação com a totalidade social da

formação social capitalista.

URBANIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL

O capitalismo apresenta fases distintas, cada uma mantendo características gerais,

entretanto, trazendo peculiaridades inerentes a cada momento histórico. Neste sentido,

abordou-se, neste tópico, a segregação socioespacial nas cidades médias e pequenas,

partindo, entretanto das características gerais que fundam o movimento dos sujeitos históricos.

URBANIZAÇÃO E SEGREGAÇÃO COMO DETERMINANTES NA

SOCIEDADE CAPITALISTA

Sposito (2012), no seu estudo sobre o processo de urbanização na sociedade capitalista,

evidencia que o surgimento das cidades é anterior a formação social capitalista. Para Lefebvre

(2001), a cidade também preexiste à industrialização, sendo uma das expressões da produção

social que tem passado por transformações que estão diretamente relacionadas com os modos

de produção.

Na sociedade capitalista à medida que se consolida a industrialização, a cidade capitalista

assume características que a diferenciam da cidade política-comercial da antiguidade, tendo

como base a generalização de relações sociais pautadas no valor de troca, ou seja, o sentido

passa a ser não mais para a satisfação de necessidades direta do produtor. Segundo Lefebvre

(2001), inicialmente a indústria não valorizou a cidade porque tinha seu foco na proximidade

das fontes-de-energia e das matérias-primas; no entanto, progressivamente, a indústria vai se

aproximando da cidade em virtude da abundância da mão-de-obra, dos capitais e do mercado.

Neste sentido, a cidade vai se transformando em uma gigantesca empresa, cuja principal

característica é a disseminação das relações de produção e da lógica produtivista capitalista

(crescimento econômico); destroem-se as particularidades locais em favor de uma

homogeneização que viabiliza a constituição de um mercado que favorece a intensificação do

processo de urbanização e o caráter mais amplo e diversificado das cidades.

O processo de expansão da urbanização está indissoluvelmente ligado ao processo de

aceleração da industrialização e ambos os processos atingem a qualidade de vida da

população em vários aspectos. As cidades passam a se constituírem centros de atração, em

parte devido à possibilidade de emprego e acesso a tecnologia e serviços sociais, produzem

também um efeito atrativo na esfera da cultura, tanto no âmbito do processo de produção,

quanto no de consumo.

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Lefebvre (1999), à luz do pensamento de Engels, mostra como no capitalismo a

aglomeração da população nas cidades acompanha a concentração do capital, pois ali se

concentram os elementos necessários ao desenvolvimento da indústria “[...] as vias de

comunicação (canais, estradas de ferro, estradas terrestres), os transportes de matérias-

primas, as máquinas e técnicas, o mercado, a bolsa” (LEFEBVRE, 1999, p.41). Assim, na

sociedade capitalista as cidades evidenciam com mais radicalidade as consequências

desestruturadoras nas condições de vida da classe trabalhadora, desnudando a raiz da

questão social: a riqueza e a pobreza justapostas. Ou seja, a pobreza não era mais decorrente

de um quadro de escassez em virtude do baixo grau de desenvolvimento das forças

produtivas, mas ao contrário, acentuava-se mesmo diante das possibilidades concretas de sua

superação, expressas no desenvolvimento e transformações crescentes das forças produtivas,

revelando a matriz da lógica capitalista.

O modo de produção capitalista, desde os seus primórdios, provoca uma subsunção do

trabalho ao capital, constituindo-se na gênese da questão social. Santos (2012), evidencia que

desde a Primeira Revolução Industrial, (que se estende até meados do século XIX), já se

tornava evidente a pauperização da classe trabalhadora no berço da industrialização, na

Inglaterra, e fora dela. Já entre as décadas de 30 e 50 do século XIX Engels, em A situação da

classe trabalhadora na Inglaterra, evidenciava “o brutal pauperismo das camadas

trabalhadoras urbanas derivadas diretamente da produção capitalista” (ENGELS, 2010, p. 30).

Nessas condições é que se desnuda a questão social, entendida como a relação de exploração

de uma classe (capitalistas) sobre outra (trabalhadores), de onde Marx, ao analisar o

movimento do capital, extrai a lei geral da acumulação capitalista e suas consequências, que

se expressam tanto no aumento gradativo da riqueza, quanto da pobreza,

[...] E tem de ser assim num modo de produção em que o trabalhador existe para as necessidades de expansão dos valores existentes, em vez de a riqueza material existir para as necessidades de desenvolvimento do trabalhador. Na religião, o ser humano é dominado por criações de seu próprio cérebro; analogamente, na produção capitalista, ele é subjugado pelos produtos de suas próprias mãos. (MARX, 2011, p. 724).

Nestes termos, Marx (2011) expõe o sentido primeiro da sociedade capitalista: a produção

de bens para apropriação privada da riqueza (para poucos), em detrimento da garantia de

condições de vida dignas para a grande maioria. Assim é que o surgimento das máquinas vai

arrancando dos homens suas condições anteriores de vida, na medida em que uns poucos

indivíduos vão se apropriando das vantagens que derivam desse processo, enquanto outros, a

maioria, se vê subtraída dos meios necessários de subsistência e têm que vender sua força de

trabalho.

Desse modo é que, em vista da necessidade crescente de acumulação, o modo de

produção capitalista se utilizou, nos seus primórdios, tanto da mão-de-obra masculina quanto

da feminina e da infantil, sendo todos submetidos a extenuantes jornadas de trabalho. A

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concentração e investimento nos meios de produção, com vistas a diminuir o tempo de

produção e aumentar a produtividade do trabalho, além da criação dos parques industriais,

levam a uma crescente aglomeração dos trabalhadores, de desempregados e de excluídos nos

arredores dessas áreas, bem como, no surgimento de espaços de circulação e venda das

mercadorias fabricadas pelas indústrias, e consequentemente, na expansão do centro

comercial, bancário, de lazer e de outros serviços, resultando no fenômeno da urbanização.

Assim, pode-se dizer que o processo de urbanização tem sua expressão materializada na

transformação das cidades como elemento central do modo de vida (material e subjetivo) da

sociedade capitalista, cidade que vai se transformando e engendrando maior complexidade na

sua organização a partir das transformações das relações sociais entre os homens com vistas

à garantia de sua capacidade de produção e reprodução social nos diversos contextos sócio-

históricos.

A vida nas cidades contemporâneas atinge atualmente a maioria da população mundial. O

modo de vida urbana vem permanentemente sofrendo transformações e ocupando novos

espaços, não mais exclusivamente devido aos processos industriais, mas também a

concentração dos serviços oferecidos, privados ou públicos. Assim, nas cidades concentram-se

os processos produtivos mais lucrativos e a produção de bens e serviços, que também se

centralizam em determinados espaços sociais urbanos, como no centro e áreas nobres,

expulsando as populações de menor poder aquisitivo desse circuito. Essas áreas são, em

geral, melhor servidas de infraestrutura urbana e de serviços.

As cidades mobilizam os homens pela promessa de melhoria de vida, acesso ao trabalho

e serviços em gerais, os quais estão distribuídos de forma desigual no espaço urbano. Nesse

processo de ampla mobilização da força de trabalho e da concentração e centralização da

riqueza e dos bens produzidos socialmente na mão de poucos, os benefícios do progresso e

da urbanização também se distribuem desigualmente no espaço urbano, dentre eles o acesso

aos bens e serviços produzidos pelas classes sociais. Entre os aspectos mais emblemáticos

dessa problemática, destaca-se o déficit habitacional que favorece, por um lado, às

construções de moradias distantes dos centros comerciais e da oferta de serviços públicos e

privados (porque permitem à indústria da habitação comprar terrenos mais baratos e construir

a baixo custo), contribuindo para a formação das periferias; e, por outro, aos que não têm

acesso a essa política restam as invasões, a formação de favelas em áreas de risco, a

autoconstrução; dentre outras.

Por outro lado, Maricato (2013, p.20) ressalta também que:

A cidade não é só lugar de reprodução da força de trabalho. Ela é um produto ou, em outras palavras, também um grande negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos. (MARICATO, 2013, p.20).

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Desse modo, a cidade assume papel estratégico para o capital, vez que contribui

decisivamente para o processo de acumulação, ao impor uma relação orgânica entre produção

e circulação, que faz crescer sem precedentes a área de serviços para realização da mais-

valia, com a venda das mercadorias e redução do tempo de reprodução do capital.

Nesse sentido, a complexidade das relações sociais presentes na sociedade

contemporânea é bastante visível e decorre, sobretudo, da forma como o trabalho se organizou

sob os imperativos dos interesses capitalistas. Para Mota (2008, p. 21) “as condições de vida e

de trabalho do enorme contingente de pessoas que vivem à margem da produção e do usufruto

da riqueza socialmente produzida são reveladoras de que a desigualdade social é inerente ao

desenvolvimento do capitalismo e das suas forças produtivas”. Assim, a autora, seguindo a

perspectiva marxiana, ressalta que a formação da riqueza produzida pelos homens na

sociedade capitalista é produtora, concomitantemente, do empobrecimento dos que vivem do

trabalho.

Se, por um lado, o modo de produção capitalista promove a modernização das condições

de vida e a formação das cidades, por outro enfrenta limites na organização racional do espaço

urbano: limites relacionados ao financiamento dos diferentes componentes da vida urbana;

limites relativos à divisão social do trabalho no conjunto do território, e que está diretamente

relacionado à concorrência anárquica entre os diferentes agentes que ocupam e transformam o

espaço urbano; e também aqueles limites que dizem respeito à propriedade privada do solo

urbano. (LOJKINE, 1981, p.153).

A concepção de cidade capitalista adotada neste estudo toma como base o exame das

"relações entre forças produtivas e acumulação do capital" (LOJKINE, 1981, p. 145), mediada

pela categoria - condições gerais de produção capitalista (LOJKINE, 1981, p. 144-174) -

concebida por Marx "para definir a relação entre o processo imediato de produção, a unidade

de produção, por um lado, e, por outro, o processo global de produção e de circulação do

capital" (LOJKINE, 1981, p. 145), e as relações sociais que decorrem desse fenômeno,

marcadas pela desigualdade no acesso aos bens e serviços e na distribuição do espaço

urbano.

É partindo dessa perspectiva que se entende que as diversas problemáticas urbanas

precisam ser pensadas a partir das relações que se estabelecem entre o espaço da produção e

os espaços de circulação, distribuição, troca e consumo. Assim, para o entendimento da cidade

capitalista faz-se necessário entendê-la, de um lado, como um modo de aglomeração próprio

do conjunto dos meios de reprodução do capital, tornando a cidade parte integrante do

complexo das forças produtivas; e de outro, como favorecedora da crescente concentração dos

equipamentos e serviços coletivos, que garantem os meios necessários a reprodução da força

de trabalho, contribuindo para a criação de um novo modo de vida, onde novas necessidades

sociais são permanentemente criadas.

Desse modo, para Lojkine (1981, p.137), a cidade vai expressar "[...] a aglomeração da

população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres e das necessidades", não

sendo o urbano um processo autônomo, ao contrário, encontra-se associado à tendência do

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capital de "aumentar a produtividade do trabalho pela socialização das condições gerais da

produção", sendo que a urbanização nela se encontra integrada, enquanto parte do complexo

das forças produtivas. Nessas condições e determinações da ordem capitalista, a urbanização

promove a segregação2, dentre elas a socioespacial.

Segundo Lojkine (1981, p.167) a segregação pode ser distinguida em três tipos

principais:

a) Uma oposição entre o centro, onde o preço do solo é o mais alto, e a periferia [...].

b) Uma separação crescente entre as zonas e moradia reservadas às camadas sociais mais privilegiadas e as zonas de moradia popular.

c) Um esfacelamento generalizado das “funções urbanas”, disseminadas em zonas geograficamente distintas e cada vez mais especializadas [...].

Lojkine (1981), mostra em seus estudos que Marx reduziu o valor de uso do solo a

apenas duas funções: como instrumento de produção e como instrumento de suporte passivo

dos meios de produção, de circulação e de consumo. No entanto, o autor aponta um terceiro

valor do uso do solo, que é a crescente importância que o mesmo assume para a socialização

das condições gerais da produção, ou seja, chama a atenção para a capacidade que o solo

tem “[...] de aglomerar, logo, de combinar socialmente meios de produção e de reprodução de

uma formação social”. (LOJKINE, 1981, p.164).

Assim, os proprietários fundiários urbanos desempenham uma função central no processo

de fragmentação do valor do uso do solo, tornando-se um obstáculo para o desenvolvimento

das forças produtivas sociais. A partir dessa perspectiva, Lojkine (1981, p. 165) afirma que o

capitalismo monopolista vai ter como um de seus desdobramentos a ”apropriação progressiva

e contraditória da renda fundiária pelos grandes grupos monopolistas”, marcado pela fusão do

capital financeiro com a renda fundiária, superando a fase inicial do capitalismo industrial, onde

a renda fundiária era marcadamente fragmentada entre pequenos incorporadores

independentes.

Nessa perspectiva, a renda fundiária irá marcar profundamente o desenvolvimento

urbano, pois os preços imobiliários passaram a se constituir o principal mecanismo de

distribuição da população no território urbano, o que tem significado o reforço da desigualdade

social no espaço urbano, cuja manifestação espacial se expressa no fenômeno da segregação

socioespacial, que por sua vez, expressa a valorização de certos espaços, apropriados pelos

empreendedores capitalistas, em detrimento de outros, que ainda sem valorização, são

ocupados pelas frações da classe trabalhadora, tornando a cidade o grande centro articulador

da acumulação do capital.

2 Parte-se do entendimento de que a segregação socioespacial, “[...] é um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole”. (VILLAÇA, 2002, p.142). Com os acréscimos de Lojkine (1981), ao incluir a distribuição desigual dos bens, políticas públicas e seus serviços.

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Para Caldeira (2000) a segregação socioespacial é uma característica elementar da

cidade e evidencia os padrões de diferenciação social e de separação que organizam o espaço

urbano. Esses padrões variam cultural e historicamente, revelando os princípios que norteiam a

organização da vida pública, indicando a forma como os diferentes grupos sociais se

relacionam no espaço da cidade.

A autora ao tratar das contradições do espaço urbano afirma que é preciso entender que

o mesmo é permeado por “[...] desigualdades sociais e segregação espacial, e seus espaços

são apropriados de maneiras bastante diferentes por diversos grupos, dependendo de sua

posição social e poder [...]” (CALDEIRA, 2000, p. 303). Ressalta, ainda, que nas cidades

contemporâneas os processos de mudança social têm gerado novas formas de segregação

socioespacial que requerem novos modos de enfrentamento pelo Estado e sociedade, que hoje

se reconfigura e se expressa na violência urbana, no surgimento dos lugares auto-segregados,

como ressalta Caldeira (2000), no isolamento social dos pobres, dentre outros. Essas questões

repõem a questão do seu enfrentamento pelo Estado no que se refere às políticas urbanas.

Todavia, a segregação socioespacial pode ser visualizada pelo preço do solo urbano,

diferenciado conforme sua localização, mas também pelas desigualdades no acesso aos

equipamentos públicos de lazer ou administrativos (parques ou áreas verdes, praças, hospitais,

escolas, creches, etc) e aos serviços públicos e privados e de uma forma geral na distribuição

desigual dos equipamentos e serviços urbanos.

Em relação aos equipamentos e serviços coletivos Lojkine (1981), destaca que o Estado,

via políticas urbanas, contribui decisivamente para a exacerbação das contradições inerentes

ao MPC, vez que:

[...] longe de suprimir a contradição entre meios de reprodução do capital e meios de reprodução da força de trabalho, a política urbana vai exacerbá-la, tornando-se um instrumento de seleção e de dissociação sistemática dos diferentes tipos de equipamento urbano, de acordo com seu grau de rentabilidade e de utilidade imediata para o capital. (LOJKINE, 1981, p. 171).

Para o autor essa contradição é reforçada no estágio monopolista, quando o Estado

intensifica a utilização de instrumentos jurídicos, ideológicos e financeiros para favorecer os

interesses da fração monopolista do capital.

Lojkine (1981), adota a concepção de que os equipamentos e serviços coletivos

constituem uma das condições gerais de produção, evidenciando que o Estado não é:

[...] um organismo exterior às relações de produção, mas, bem ao contrário, como um dos momentos, uma das manifestações da contradição fundamental entre a socialização do processo de trabalho e a apropriação privada dos meios de produção e do produto do trabalho [...]. (LOJKINE, 1981, p.85).

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Ramos (2002, p.136), compartilhando da concepção de Lojkine (1981), destaca que a

concepção dos equipamentos e serviços coletivos como um dos elementos que compõem às

condições gerais de produção permite entender uma dupla característica da cidade capitalista:

favorece a concentração crescente dos equipamentos e serviços coletivos, contribuindo para a

constituição de um novo modo de vida, caracteristicamente urbano; a concentração dos meios

de reprodução do capital e da força-de-trabalho produz, por seu turno, “efeitos úteis de

aglomeração”, que se constitui um fator de favorecimento à acumulação e desenvolvimento do

capital.

Particularmente, em relação à segunda característica, favorece efeitos contraditórios, pois

conduz as camadas dos segmentos populares das áreas menos valorizadas, que não vão

dispor dos equipamentos e serviços coletivos necessários para uma vida em condições dignas.

As cidades, portanto, em função das transformações na contemporaneidade, especialmente,

em relação ao processo de reestruturação produtiva a partir das décadas de 1980 e 1990,

estão num processo de crise social decorrente da crise estrutural do capital que busca imprimir

um novo padrão de desenvolvimento. Essa crise se particulariza diferentemente nos países e

regiões, de acordo com sua inserção na estrutura do capitalismo mundial.

Nesta discussão, Icasuriaga (2002) destaca que os equipamentos e serviços coletivos,

desde o início do período monopolista, e, especialmente aqueles destinados a assegurar a

reprodução da força-de-trabalho, se representaram, por um lado, conquistas sociais

importantes da classe trabalhadora, por outro, representaram a capacidade de aumento do

grau de acumulação do capital necessário à estabilização da queda da taxa de lucro. Nessa

perspectiva, essas relações conflituosas fazem parte do processo de concessão e conquista

entre classes e frações de classes e que expressam, tanto as conquistas resultantes das lutas

empenhadas pela classe trabalhadora, quanto o grau de desenvolvimento das forças

produtivas e das relações de produção.

SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL NAS CIDADES MÉDIAS E PEQUENAS

A discussão sobre a adjetivação das cidades como médias ou pequenas implica

diferentes perspectivas conceituais e remete a escala de grandeza relacionada aos estudos

nas Ciências Sociais, especialmente, na Geografia Urbana, conforme aponta Maia (2010), no

seu estudo “Cidades Médias e Pequenas do Nordeste: Conferência de Abertura”. Para a

autora, nos estudos que priorizam os sistemas hierárquicos das cidades o contingente

populacional é tomado como base para a classificação em cidades pequenas, médias ou

grandes, sendo então definidas de cidades pequenas aquelas com população até 20 mil

habitantes, cidades médias aquelas com população acima de 20 mil habitantes e grandes

aquelas com população acima de 500 mil habitantes.

Silva (2010), no seu estudo sobre cidades médias e pequenas, atribui a Walter Christaller

(1966), com sua Teoria das Localidades Centrais, a contribuição mais relevante para a teoria e

aplicação urbano-regional na Geografia, dada a sua relevância para a organização hierárquica

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e em redes dos serviços de saúde proposta pela OMS, OPAS e pelo SUS (Brasil), que busca

explicar a localização dos serviços nas cidades, e assim, contribuir para a criação de uma

teoria de localização dos negócios e instituições urbanos. Para Christaller a principal

característica de uma cidade é constituir-se o lugar central de uma região, podendo assumir

diversas dimensões. O autor destaca os três princípios derivados da Teoria das Localidades

Centrais:

Princípio de mercado: no sistema de localidades centrais, todos os bens e serviços destinados a toda a região são oferecidos por um número mínimo de localidades centrais. Na conclusão, ele é apresentado como o mais importante.

Princípio da circulação: é o de satisfazer todas as demandas possíveis de transporte com um custo mínimo, o que afeta o estabelecimento e a operação das rotas de transporte.

Princípio administrativo: é o da organização institucional hierarquizada, de natureza política e administrativa, em seu rebatimento espacial, priorizando lugares e áreas. (CHRISTALLER, 1966 apud SILVA, 2010, p. 95).

Em vista desses princípios, para a Teoria das Localidades Centrais, é impossível que as

localidades centrais ofereçam igualmente todos os bens e serviços demandados pelas

populações, decorrendo daí uma hierarquização no oferecimento diferenciado de bens e

serviços, fruto da interação espacial, intra e interurbana, entre consumidores e provedores das

demandas postas em grandes, médios e pequenos centros. (SILVA, 2010).

Assim, Silva (2010, p.99), destaca a relevância das ideias de Christaller nos estudos da

Geografia, vez que tais estudos contribuíram para o aclaramento de um problema fundamental:

“[...] o da adequação das estruturas espaciais às necessidades do desenvolvimento

econômico-social, o que coloca em evidência o planejamento regional [...]”.

Silva (2010) aponta que enquanto os geógrafos, mais especificamente os do IBGE,

continuam vinculados a Teoria das Localidades Centrais, os pesquisadores vinculados a

academia utilizam outras abordagens, especialmente as vinculadas às questões de

estruturação-reestruturação produtiva. Apesar dessa polarização, o autor chama a atenção

para a possibilidade de combinação dessas abordagens, considerando, sobretudo, as novas

tecnologias e suas repercussões nos processos produtivos e nos setores de bens e consumo

de serviços.

A partir da década de 1990 as diversidades das cidades no território brasileiro levam os

estudiosos da área da Geografia e outras áreas das ciências humanas e sociais a

desenvolverem pesquisas sobre a dinâmica das cidades médias e pequenas em vista de

alguns questionamentos: até que ponto as teorias e as metodologias utilizadas nos estudos

das metrópoles cabem na análise das médias e pequenas cidades, ou mesmo das cidades não

metropolitanas? O estudo das cidades médias e pequenas merece uma discussão particular

sem, no entanto, perder de vista a noção de totalidade do fenômeno urbano, portanto, uma

análise que articule singularidade, particularidade e totalidade. Que particularidades e

singularidades, a dinâmica das cidades médias e pequenas,expressa?

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Nessa perspectiva a discussão e análise sobre as particularidades e singularidades das

cidades médias e pequenas, mesmo considerando os limites que muitos teóricos colocam para

essa nomenclatura, estão diretamente vinculadas às transformações e impactos da

modernização tecnológica no mundo, com seus impactos sobre o trabalho, a cultura e a

política, reconfigurando permanentemente as relações sociais entre os homens.

Assim, o entendimento sobre a cidade deve expressar, não só a discussão sobre o

espaço geográfico, mas sobre o lugar de existência das pessoas, sendo, portanto, resultante

das relações sociais de produção que os homens estabelecem com a natureza e entre si, na

busca das condições materiais de existência e que são determinantes nas suas visões de

mundo, nos seus posicionamentos políticos, culturais e ideológicos. Portanto, o estudo das

cidades pequenas e médias diz respeito a um amplo contexto da organização do espaço de um

país, de uma região, especialmente no Brasil, com suas dimensões continentais.

Moreira Júnior (2010) em seu estudo sobre a segregação urbana em cidades pequenas

informa que:

Atualmente, mais de 50% da população mundial vive em áreas urbanas. Assistimos a proliferação, de forma rápida e intensa, do fator urbano pelo mundo afora. No caso brasileiro, a urbanização deu um salto considerável na última metade do século passado, com aumento do número e do tamanho das cidades. Juntamente com o que podemos chamar de revolução urbana brasileira, ocorreu também uma revolução demográfica. A população urbana brasileira atingiu a taxa de 81, 25% do total (IBGE, 2000), cuja maior característica foi o aumento do processo de metropolização. Contudo, o cenário urbano nacional é marcado pelo grande número de cidades de pequeno porte, tanto no que diz respeito a sua dimensão populacional quanto em seu tamanho físico-territorial. (MOREIRA JÚNIOR, 2010, p.134).

Essa realidade retratada no estudo acima é bastante evidente no estado do Piauí, onde

87,94% dos municípios possuem população abaixo de 20.000 habitantes, apenas 1,34% tem

população superior a 50.000 habitantes e 0,89% tem população superior a 100.000 habitantes

(conforme tabela abaixo). Assim, pode-se afirmar que as cidades pequenas são bastantes

presentes no território brasileiro, especialmente na região nordeste. Segundo Soares e Melo

(2010, p. 236) “O Brasil possui grande número de pequenas cidades localizadas em todas as

regiões do país. Conforme dados do ano de 2000, cerca de 83% dos 5.507 municípios

existentes tinham como sede municipal núcleos, cuja população era inferior a 20 mil

habitantes”.

Tab. 1 - Piauí: Distribuição populacional dos municípios em 2015

População Municípios/Nº Absoluto %

>100.000 habitantes 02 0,89

>50.000habitantes 03 1,34

>20.000 22 9,82

>10.000 habitantes 36 16,07

>5.000 80 35,71

Até 5.000 habitantes 81 36,17

Total 224 100

Fonte: IBGE - Estimativa da população residente – agosto 2015.

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Acerca dos estudos sobre as cidades pequenas, (BACELAR, 2016; MAIA, 2010;

MOREIRA JÚNIOR, 2010), apontam algumas características comuns aos pequenos núcleos

urbanos: base produtiva vinculada predominantemente às atividades agrícolas e pecuárias;

setor de emprego mantém quase total dependência do poder público, sendo as prefeituras as

maiores empregadoras; receita tributária insignificante; dependência orçamentária dos

repasses da União, através do FPM, e do estado, via ICMS, constituindo-se nas principais

fontes de receita; relações de sociabilidade mais próximas entre a população e,

consequentemente, com os agentes públicos locais, reforçando os laços de subserviência e de

paternalismo, característicos do Brasil agrário; maior número de pessoas comunga dos

espaços públicos – a igreja, a praça, o centro, o mercado, etc.

Soares e Melo (2010), em seu estudo sobre cidades médias e pequenas, definem alguns

parâmetros qualitativos que devem ser levados em conta para a discussão sobre a cidade

pequena brasileira, bem como, da complexa expansão do fenômeno urbano, no contexto

contemporâneo, a saber:

a) A inserção no mundo da globalização: a probabilidade de integração da pequena cidade na globalização existe, ainda que de forma desigual no que diz respeito à distribuição social e territorial das inovações tecnológicas e das riquezas. No estudo de pequenas cidades observa-se que a população já tem acesso aos novos modos de consumo, através do uso de lanhouses e da compra on-line, entre outros. Entretanto, ainda apresentam um baixo índice de desenvolvimento tecnológico.

b) A relação entre o poder público local e a população: [...] relações entre a população e os agentes políticos marcadas pela dependência, assistencialismo, demandas e atenção pessoais (questões são tratadas no âmbito da pessoalidade) são uma das características fundamentais da política na pequena cidade brasileira.

c) A relação com a natureza: nas pequenas cidades, o contato dos moradores com a natureza é intenso, pois ela é um meio de sobrevivência, seja como atividade produtiva, através dos alimentos produzidos para sua comercialização e consumo, seja como lazer ou prática turística, através das cachoeiras e matas [...].

d) O entorno rural e as ruralidades: as pequenas cidades têm forte ligação com seus entornos rurais e, em certos aspectos, desempenham papel semelhante ao do espaço rural. O rural pode ser entendido como uma representação social que está presente na pequena cidade através dos hábitos, costumes, valores e tradições dos moradores [...].

e) A dependência do sistema urbano regional: a maioria das pequenas cidades apresenta um processo de urbanização frágil, consequência, sobretudo, da concentração das atividades econômicas e da oferta de serviços nos grandes e médios centros urbanos e, particularmente, da insuficiente rede de comunicação/informação entre aglomerações de todos os tamanhos.

f) O envelhecimento e a involução populacional: a perda ou estagnação populacional é uma das características que os municípios com menos de 20 mil habitantes apresentaram nos dois últimos estudos do IBGE — censo de 2000 e a contagem populacional de 2007. Dos 2.616 municípios com menos de 10 mil habitantes, 964 ou 36,85%2 apresentaram perda populacional. É necessário ressaltar que não só perderam população, como também a migração se apresenta cada vez mais seletiva em termos de sexo e faixa etária.

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h) Aspectos de sociabilidade na pequena cidade: as pequenas cidades apresentam situações em que a sociabilidade está muito condicionada à personalização porque os indivíduos vivem em um ambiente social com um alto grau de proximidade com seus contatos e, muitas vezes, tomam conhecimento do mundo a sua volta a partir de relações essencialmente interpessoais [...].As festas, as rezas, o lazer, as estórias, as conversas são compartilhados com todos.(SOARES; MELO, 2010, p. 241-243).

Conforme pontuam os autores acima citados, a discussão sobre as pequenas e médias

cidades no contexto contemporâneo requer reconhecê-las diversas, bem como, entendê-las

como elemento básico de ligação, com a totalidade capitalista, portanto, com o grande

mercado capitalista de consumo dos bens industriais disponibilizados nos centros mais

avançados, aos quais estão diretamente vinculadas, fazendo parte da cadeia produtiva, na

condição de venda e consumo desses produtos. Logo, da rápida reprodução ampliada do

capital, mesmo que na condição peculiar de dependência, constituindo os setores mais

modernos desse comércio, embora uma das características seja também a comercialização de

produtos primários produzidos localmente (agrícolas e agropecuários) nos mercados e feiras;

como ofertante de mão de obra para os grandes centros, dentre outras.

Especificamente sobre as cidades médias e pequenas do Nordeste brasileiro Maia (2010),

destaca a existência de vários núcleos considerados a partir do tamanho demográfico: com

população abaixo de 1.000 habitantes (88), de 1.000 a 5.000 habitantes (716), de 5.001 a

20.000 habitantes (748), de 20.001 a 50.000 habitantes (156), de 50.001 a 100.000 habitantes

(38) e de 100.001 a 500.000 habitantes (31). A autora destaca que há uma predominância do

núcleo de cidades com até 20.000 habitantes, que se caracterizam:

Destarte, as particularidades econômicas pontuais, percebe-se uma similaridade entre as denominadas cidades pequenas do Nordeste, em especial a forte relação campo - cidade,que se revela na economia municipal, em que a agricultura e a pecuária aparecem como os principais componentes econômicos, assim como a incipiente oferta de serviços e ainda um comércio bastante restrito, especialmente naquelas de menor contingente populacional. (MAIA, 2010, p.29).

Na discussão sobre as especificidades das cidades médias, os diversos estudos

ressaltam a relevância que as mesmas têm como centros polarizadores da produção e

comércio regional. Maia (2010), destaca que essas cidades têm o setor de serviços e de

comércio mais diversificados, que contribuem para ocupar uma posição de centralidade nesses

núcleos. Cabe ressaltar, no entanto, que não é apenas o tamanho demográfico que deve ser

utilizado como critério preponderante e isolado para definir uma cidade média, mas as funções

que desempenha na rede urbana e na intermediação regional.

Para Souza (2003, p. 30-31), é necessário entender que:

[...] uma cidade média em uma região pobre, como o Nordeste brasileiro, tenderá a não apresentar comércio e serviços tão diversificados e sofisticados

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quanto uma cidade de mesmo porte em uma região mais próspera, comum à presença bem mais expressiva de estratos de renda médios, como o interior de São Paulo ou o Sul do país, por exemplo.

Conforme apontado acima, o autor destaca a necessidade de se entender que as cidades

médias e pequenas, mesmo inseridas dentro do contexto maior das relações sociais

predominantes no mundo capitalista, guardam especificidades relacionadas aos espaços,

especialmente quando se considera a diversidade do território brasileiro.

Sposito (2007), afirma que quando se trata de cidades médias é preciso considerar o

papel que desempenham em âmbito regional no que se refere à concentração e centralização

econômica. Essa posição é igualmente compartilhada por Corrêa (2007), que destaca ainda, a

concentração da oferta de bens e serviços em escala regional.

Entre as características da cidade média, Sposito (2009), destaca o papel de

intermediação entre as pequenas e as grandes:

[...] são cidades que comandam uma região, que polarizam uma região, que crescem em detrimento da sua própria região ou crescem em função da sua própria região, as duas coisas acontecem. Cidades médias que ampliam seus papéis, porque diminuem os papéis das cidades pequenas a partir de uma série de mecanismos econômicos, ou cidades que, em função do tipo de atividade que têm, das lideranças que ali se encontram, são capazes decrescerem e proporem um projeto ou desempenhar um papel político, econômico e social de crescimento para toda uma região. (SPOSITO, 2009, p. 19).

É necessário ressaltar um elemento central no desenvolvimento das cidades médias

constituído pelas feiras livres e mercados públicos como mecanismo para escoamento da

produção local, especialmente dos gêneros alimentícios, artesanato e utensílios, que atraem

cada vez mais vendedores e consumidores. O desenvolvimento dessas feiras contribuiu para o

a formação de inúmeras cidades no Nordeste, a exemplo de Caruaru e Petrolina, no estado de

Pernambuco. Algumas dessas cidades se transformaram em importantes centros regionais

(CARDOSO; MAIA, 2007). Essa realidade convive com outros setores mais modernos que

escoam produtos industrializados e de consumo de luxo dos grandes centros nacionais e

internacionais, nas boutiques, nos shoppings, lojas, supermercados, dentre outros espaços.

Nas duas últimas décadas do século XX, as cidades médias passaram por profundas

transformações decorrentes da implantação de novos serviços, “[...], sobretudo os logísticos,

de informação, de comunicação, de transportes, de educação e de turismo” (SPOSITO et al,

2007, p. 52). Os autores enfatizam que a nova dinâmica resultante desse processo acarretou

impactos negativos em virtude da expansão territorial e populacional de algumas cidades, o

aumento das periferias, a reestruturação dos espaços da cidade, a concentração dos serviços

nas áreas centrais, dentre outros culminando com o aumento das desigualdades sociais e,

consequente, com o aumento da segregação socioespacial.

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O processo de surgimento e desenvolvimento das metrópoles brasileiras, especialmente a

partir da década de 1950, esteve diretamente vinculado ao desenvolvimento industrial e à

migração da população para grandes conglomerados industriais e sua relação com as cidades

metropolitanas, sendo possível associar metropolização com desenvolvimento industrial. No

entanto, a análise das cidades médias nem sempre remete a essa relação, pois a maior parte

delas não é cidade industrial, embora esteja diretamente vinculada à dinâmica capitalista, pois

forma o mercado consumidor nacional. Assim, as cidades médias sofreram mudanças com

vistas a se adaptarem para se constituírem em centros de distribuição da produção industrial

em escala nacional. (SPOSITO, 2007).

Para o mercado consumidor, “as cidades médias continuam a desempenhar o papel de

pólos para os quais realizam o consumo de bens e serviços mais sofisticados do que aqueles a

que têm acesso nas cidades e localidades de menor porte”. (SPOSITO, 2007, p. 49).

A afirmação acima enfatiza a real contribuição que as cidades, em especial às médias,

desempenham no circuito de valorização do capital, especialmente a partir da adoção das

diretrizes e concepções neoliberais, na década de 1990, que reconfiguraram as relações entre

capital, Estado e sociedade. Nessa nova configuração, a fase intervencionista do Estado é

vista como empecilho ao desenvolvimento das cidades, sendo o mercado um ótimo regulador

dos recursos socialmente produzidos. Na década de 1990, o aumento da urbanização e as

transformações provocadas pela globalização alteram substancialmente a rede urbana,

colocando em foco as cidades médias que passaram a assumir novas funções no circuito da

produção capitalista, cumprindo a função de fazer a mediação entre as metrópoles e as

cidades pequenas.

Ramos (2011), em estudo sobre as cidades médias assinala que:

Ficou evidente, a partir deste estudo, que as cidades médias aprofundaram o seu papel no processo de desconcentração populacional e econômico brasileiro, já que apresentaram taxas de crescimento superiores às metrópoles. Elas exprimem tipos de desenvolvimento que se diferencia, dependendo do contexto regional em que se encontram. Alguns fundados na agroindústria, outros no comércio e prestação de serviços, outros ainda na indústria, o que mostra, dessa forma, que não existe um padrão único e geral de crescimento para o grupo das cidades médias. (RAMOS, 2011, p.138).

Assim, para o autor, as cidades médias apresentam diferentes configurações, atraindo e

articulando a rede urbana nacional e regional, visto que são capazes de atender às

necessidades essenciais de suas populações, constituindo-se em elementos estratégicos para

os processos de desenvolvimento regional com capacidade de absorver novos investimentos

em virtude da dinamicidade de suas redes urbanas, entendidas como um sistema integrado de

transportes, serviços e comunicação interligando um conjunto de cidades.

Ao fazer uma análise das transformações ocorridas na sociedade capitalista, a partir dos

anos de 1970, nas cidades, Netto (2012) aponta que:

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Em síntese, nos últimos trinta anos, o modo de produção capitalista experimentou transformações de monta, que se refrataram distintamente nas diversas formações econômico-sociais em que se concretiza e que exigem instrumentos analíticos e heurísticos mais refinados. Ainda que se registrem polêmicas acerca da natureza e das complexas implicações dessas transformações, bem como, do ritmo em que leva o modo de produção capitalista a aproximar-se dos seus limites estruturais, duas inferências parecem-me inquestionáveis: 1ª) nenhuma dessas transformações modificou a essência exploradora da relação capital/trabalho; pelo contrário, tal essência, conclusivamente planetarizada e universalizada, exponencia-se a cada dia; 2ª) a ordem do capital esgotou completamente as suas potencialidades progressistas, constituindo-se, contemporaneamente, em vetor de travagem e reversão de todas as conquistas civilizatórias. (NETTO, 2012, p.424).

Assim, Netto (2012) enfatiza que os impactos das transformações na ordem do capital

com vistas a recuperar sua capacidade de acumulação rebatem negativamente nas condições

de vida da classe trabalhadora, em âmbito planetário, desconstruindo as conquistas advindas

das lutas por direitos, especialmente, as relativas ao período dos trinta anos do Estado de

Bem-Estar Social. Esses impactos dessas transformações e do desmonte das conquistas,

também estão desigualmente distribuídos entre os países e dentro dos países. Ou seja, atinge

de forma diferenciadas as metrópoles, as médias e pequenas cidades brasileiras.

Harvey (2013, p.544-545) evidencia que a crise do capital pós anos de 1970 direciona a

crise para a renovação das condições de acumulação para ampliação da esfera produtiva em

todos os níveis, com a incorporação de novos territórios e o redimensionamento de outros.

Nessa perspectiva, os espaços, regiões e territórios de todo o mundo passam a se constituírem

em ativos para as novas reorientações econômicas, ganhando destaque as estruturas urbanas

como articuladoras da dinâmica deste capitalismo flexível e integrado, com possibilidades de

atividades produtivas estratégicas ao modelo dominante.

Lima Júnior (2014, p.90), ao analisar a estrutura produtiva e a rede urbana do estado do

Ceará destaca que,

[...] ficam, portanto, cada vez mais notórios os movimentos de ajustes e conformações espaciais conectando territorialmente as várias regiões brasileiras aos desdobramentos de modificações globais. A categorização de centros urbanos e dos espaços por eles articulados expressam os elementos maiores de organização urbano-regional refletindo o estágio de mudanças estruturais ocorridas em cada reordenamento das lógicas de acumulação capitalista.

As análises acima apontam que a urbanização na sociedade brasileira na atualidade,

redimensionou o papel das cidades médias, que passaram a desempenhar novas funções para

o processo de acumulação capitalista, onde as redes urbanas assumem papel de destaque

para o escoamento da produção industrial dos grandes centros.

Nessa perspectiva, as cidades médias vão, paulatinamente, se inserindo numa rede

urbana mundializada, decorrente dos fluxos intensos de informações, mercadorias e pessoas

assumindo, por um lado, a estruturação da cidade como empresa e, por outro, se distanciando

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das características espaciais estabelecidas anteriormente. Importa, ainda, ressaltar que à

medida que esses centros vão atraindo atividades empreendedoras a um contingente

populacional maior, surgem novos problemas sociais urbanos ou se intensificam os já

existentes. Ou seja, a grande questão que se evidencia é que a dinamicidade das cidades

médias, no que se refere a contribuição para o processo de acumulação de riqueza, não tem

se refletido em melhoria das condições de vida da população, mas, ao contrário, em

deterioração das condições de trabalho e em concentrado usufruto da riqueza socialmente

produzidas pelas classes sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise aqui empreendida foi um esforço inicial no sentido de entender as expressões

da questão social nas cidades contemporâneas, especialmente nas médias e pequenas, e as

bases em que se dão as relações Estado-sociedade, bem como, apreender os novos

elementos teóricos que podem contribuir para a compreensão do complexo processo que

envolve a tessitura social urbana no contexto da sociedade capitalista na contemporaneidade.

A reflexão sobre a questão social e as relações entre Estado-sociedade a partir do

pensamento dos autores contemporâneos aponta um caminho para uma análise crítica sobre a

atuação do Estado, indicando a necessidade de redirecioná-la, bem como, da sociedade civil

com seus dilemas contemporâneos – a concentração da riqueza, as desigualdades, o

individualismo, a destruição da solidariedade entre as classes, o crescimento da segregação

socioespacial, etc.

As conseqüências desse processo estão visíveis na realidade de crise das grandes e

médias cidades mundiais e brasileiras, cuja representação mais evidente é a

desestruturação do mercado de trabalho. No entanto, é possível identificar um movimento de

resistência da classe trabalhadora na direção da defesa dos direitos historicamente

conquistados e que têm sido ameaçados pelas elites dominantes. Assim, urge o adensamento

das lutas na defesa do direito à cidade para todos.

Outro ponto que se destaca atualmente na análise das cidades é o crescente processo de

segregação socioespacial decorrente da industrialização das sociedades capitalistas, que se

expressa nos níveis muito desiguais de renda, educação formal e qualificação profissional,

entre outros.

Assim, a análise da configuração das cidades médias e pequenas precisa ser situada

sobre a funcionalidade que as mesmas desempenham no processo de circulação e

acumulação do capital em âmbito nacional e mundial. Por outro lado, é preciso enfatizar que as

cidades pequenas, especialmente no Nordeste brasileiro, continuam com fortes características

rurais e que também oferecem elementos para se entender a dinâmica urbana local, pois

carregam como principais características: a centralização de suas atividades vinculadas à

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administração da economia rural, dependência de recursos da União, ausência de atividades

econômicas capazes de gerarem receitas nesses municípios, dentre outras.

As cidades médias, por outro lado, vêm se constituindo espaços necessários à circulação

de mercadorias vindas dos grandes centros urbanos, servindo como mercado abastecedor de

mercadorias para as cidades pequenas sob sua influência. Essa característica evidencia que

as cidades médias se constituem, portanto, em mercado de consumo para a população local e

regional, bem como, para as áreas de sua influência, desempenhando uma função de

intermediação e centralidade para essas cidades.

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SOBERANIA COSMOPOLITA NA AUDITORIA OPERACIONAL:

influência da Intosai no Estado brasileiro

Gerlanne Luiza Santos de Melo 1

Guiomar de Oliveira Passos2

Resumo: Aborda-se o controle de contas no Estado brasileiro, instituído pela Constituição

Federal, enfocando a soberania e a adoção de regras internacionais da Intosai nas normas e

nos procedimentos de auditoria operacional realizados pelos tribunais de contas. Pergunta-se:

a adoção das regras da Intosai afeta a soberania do Estado brasileiro? Que influências

exercem? Objetiva-se analisar como a adoção de normas e procedimentos internacionais de

auditoria operacional afeta a soberania do Estado brasileiro. A análise utiliza como base teórica

o Estado Nacional e os mecanismos de controle, as regulamentações externas, configuradas

nos documentos da Intosai, e internas, representadas nos documentos do TCU, em particular,

àqueles relativos às auditorias operacionais. Constatou-se que a diluição de fronteiras dos

Estados Nacionais faz com que deliberações internas sejam afetadas por definições ‘externas’

como as normas da Intosai que fornecem as bases conceituais e metodológicas da auditoria

operacional prevista na legislação nacional. Isso alinha procedimentos de controle nacional a

padrões internacionais, possibilitando comparação e balizamento de relações e contratos entre

países. A diluição de fronteiras redefiniu os Estados Nacionais, inclusive na aferição da

economicidade e eficiência no uso dos recursos públicos. Logo, tornou a soberania

cosmopolita, pois exercida conforme o mundo.

Palavras chave: Estado Nacional. Controle Externo.

INTRODUÇÃO

s relações entre os Estados Nacionais, notadamente as comerciais, têm sido uma

constante na história da humanidade. Nestas relações, admitia-se a manutenção de

regras locais em face dos outros territórios, interagindo, agindo com soberania e sem perder

sua identidade.

Paulatinamente, o aumento do intercâmbio entre os Estados e o alastramento da

interação entre estes, as regras locais, até então pacífica se adequadas ao cenário dos

Estados Nacionais, tornaram-se desalinhadas, demandando ajustes para contemplar não

apenas as interconexões e nova racionalidade, mas também a vasta gama de organizações

1 Bacharela em Direito. Mestra em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí. Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí. Email: [email protected]

2 Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professora da Universidade Federal do Piauí no Departamento de Serviço Social, atuando, atualmente no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (Mestrado e Doutorado) e no Departamento de Serviço Social. Email: [email protected]

A

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internacionais que tratam desde questões técnicas e administrativas até a alocação de normas

e recursos (HELD, 1991, p. 170).

Este texto aborda o controle de contas realizado no Estado Nacional brasileiro

enfocando a soberania nacional diante da adoção de regras estabelecidas pela Intosai,

instituição supranacional de fiscalização, nas normas e procedimentos de auditoria operacional

realizado pelos tribunais de contas da União e dos estados. Pergunta-se: a adoção das regras

da Intosai afeta a soberania do Estado brasileiro? Que influências exercem? Objetiva-se

analisar como a adoção de normas e procedimentos internacionais de auditoria operacional

afeta a soberania do Estado brasileiro.

Para isso, tomam-se por base os estudos de Habermas (2001; 2002) e Bobbio (1987)

sobre Estado Nacional soberano, além de fontes documentais consubstanciadas nos informes

e orientações emitidos pela Intosai (International Organization of Supreme Audit Institutions) e

na legislação e nos manuais de auditoria operacional do Tribunal de Contas da União (TCU).

Trata-se de revisão da literatura com intenção de sistematizar indicações teóricas e

metodológicas para o estudo da auditoria operacional enquanto espécie de controle de contas

do Estado Nacional brasileiro no contexto da soberania, complementada com pesquisa

documental da Intosai e do TCU. Com esta se expõe a adoção das normas internacionais na

auditoria operacional realizada, evidenciando sua influência e como afetam a soberania do

Estado brasileiro.

O trabalho está estruturado em quatro partes, cuja primeira é esta introdução. A

segunda trata da regulamentação e do controle num Estado democrático em face da

comunidade internacional, adotando, como ponto de partida, o enfoque habermasiano de

Estado administrador/fiscal. A terceira parte trata, nesse modelo de estado, da fiscalização das

contas considerando a ordem internacional e da aplicação de orientações de Instituições

supranacionais, como a Intosai, no controle externo das contas públicas realizado no Brasil

pelos tribunais de contas. Na última parte, analisa como normas e procedimentos de auditoria

operacional, estabelecidos por organizações supranacionais, como a Intosai, afetam o sistema

de controle externo das contas públicas exercidos por órgãos de fiscalização nacional.

REGULAMENTAÇÃO E CONTROLE NO ESTADO NACIONAL

DEMOCRÁTICO

Os Estados Nacionais, dominantes no mundo hoje, formados a partir de um “tipo histórico

decorrente da Revolução Francesa e da Revolução Norte-americana”, (HABERMAS, 2002, p.

127), surgiram, segundo Habermas (2001, p. 80) “como Estado administrador/fiscal e como um

Estado territorial provido de soberania que se pôde desenvolver no âmbito de um Estado

nacional no sentido de um Estado democrático de direito e social”.

O primeiro, explica Habermas (2001, p. 80), “constituído na forma de direito positivo”

compreende o subsistema diferenciado e especializado em decisões formado para que “uma

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sociedade possa atuar politicamente sobre si mesma”. É, complementa, “o resultado da

especificação funcional” e, como tal, separa-se da sociedade e da economia, que possui “as

competências reguladoras públicas e administrativas mais importantes”, mas depende dos

“recursos do trânsito econômico liberados na esfera privada” (HABERMAS, 2001, p. 80).

O segundo decorre do primeiro, pois a imposição das normas reguladoras requer a

“delimitação territorial da área controlada pelo Estado” ou, em outros termos, a circunscrição do

âmbito de validade de suas normas. O território, explica Habermas (2001, p. 81-82), ao

circunscrever o âmbito de validade da ordem jurídica estatal, define a nacionalidade,

delimitando o povo sujeito às suas normas e a sociedade a qual objetiva sua ação. Além disso,

é o território que estabelece a separação das relações internacionais do âmbito de soberania

nacional.

A soberania do Estado territorial, avalia Habermas, é a “capacidade do poder do Estado

de proteger as fronteiras contra os inimigos externos e de manter a ‘lei e a ordem’ internas”

(HABERMAS, 2001, p. 82).Por conseguinte, nos termos de Bobbio (1987, p.101), tem “duas

faces, uma voltada para o interior”, que estabelece os limites nas relações entre governantes e

governados, e “outra para o exterior”, que estabelece os limites das relações entre os Estados.

Habermas diz que essa se funda no “reconhecimento recíproco da integridade das fronteiras

estatais” (HABERMAS, 2001, p. 82) e aquela consiste na “autonomia do poder do Estado

[Staatsgewalt] efetivamente evidenciado” (HABERMAS, 2001, p. 82).

A soberania ou “autodeterminação democrática”, explica Habermas,se desenvolve

“quando o povo do Estado se transforma em uma nação de cidadãos do Estado [Staatsbürger]

que toma seu destino político nas próprias mãos” (HABERMAS, 2001, p. 82). Portanto, quando

os habitantes do mesmo território estatal tomam “consciência de uma pertença”,o povo faz do

estado moderno o Estado Nacional (HABERMAS, 2001, p. 82). Esse se completa com a

reunião de pessoas livres e iguais no “modus democrático da legitimação da soberania”. Trata-

se do Estado Constitucional Democrático como “ordem desejada pelo povo e legitimada pela

sua livre formação de opinião e vontade” (HABERMAS, 2001, p.83).

Nesse, o Estado administrador/fiscal, por intermédio da máquina administrativa, é o

responsável por alcançar, com sua normatização a observância da supremacia do interesse

público. Portanto, ainda que a máquina administrativa caminhe de acordo com normas

fiscalizadoras, observadas e aplicadas por órgãos de controle interno e externo, a meta a ser

atingida pela administração haverá de ser norteada pelo bem-estar coletivo alcançado de forma

econômica e eficiente.

É aí que se encontram as normas de controle e fiscalização das atividades

administrativas, que são executadas por instituições integrantes da estrutura institucional

democrática, previstas no estado democrático de direito e social, cuja finalidade é verificar se o

bem-estar coletivo foi alcançado conforme os parâmetros definidos pelas normas

fiscalizadoras.

Na sociedade contemporânea, com “a multiplicação de fontes do direito acima do nível do

Estado e a evidente desvinculação da legislação do Estado territorial”, parece fazer

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desaparecer tudo isso, sugerindo que “este perdeu tanto sua soberania jurídica quanto política”

em razão “das novas interdependências criadas e possibilitadas pelo capitalismo global”

(COHEN, 2003, p. 446).

No Brasil, a fiscalização do Estado administrador/fiscal, de que fala Habermas (2001) foi

instituída pela Constituição Federal por meio de mecanismos de controle público efetivado por

controladorias, Ministério Público, Poderes Judiciário e Legislativo, estes últimos com auxílio

dos tribunais de contas.

As controladorias exercem o sistema de controle interno da administração pública, o

Ministério Público e os Poderes Judiciário e Legislativo, estes auxiliados pelos tribunais de

contas, desempenham o controle externo (accountability horizontal) no sistema de freios e

contrapesos (checks and balances). Esses têm sua competência para fiscalização definida

constitucionalmente de acordo com o ente federado responsável pelos recursos públicos; se

provenientes da União, a auditoria é realizada pelo Tribunal de Contas da União (art.70 e 71 da

CF/88), se dos estados e municípios, pelos Tribunais de Contas Estaduais3 (art.75 da CF/88).

Assim, o Estado Nacional, no âmbito de sua soberania interna define as normas de

funcionamento do aparato burocrático assim como sua fiscalização. Nesse sentido, o controle

das atividades é realizado horizontalmente (accountability horizontal) por entes funcionais

designados na Constituição Federal.

Trata-se de uma forma de institucionalização baseada no Estado nacional, isto é, numa

organização política fundamentada no poder soberano sobre uma área claramente delimitada e

um povo ou cidadãos do Estado. Essa soberania, contudo, como realçou Habermas (2001, p.

84), “encontra-se cada vez mais sob a pressão da globalização”, isto é, da intensificação em

quantidade cada vez maior das relações “de troca, de comunicação e de trânsito para além das

fronteiras nacionais” (HABERMAS, 2001, p. 84).

A percepção, diz Cohen (2003, p. 420), é “de que os processos de globalização tendem a

solapar a capacidade dos Estados para o exercício das funções cruciais de controle e

regulação da economia e da sociedade”. Isso porque, complementa, ao mesmo tempo em que

vários fatos reduzem sua importância econômica e política, observa-se

a notável expansão não só de várias instituições supranacionais dedicadas à regulação e produção de regras, como o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio – OMC e a União Européia, mas também de uma pletora de agências privadas de âmbito mundial (COHEN, 2003, p. 420).

Com efeito, como observou Nancy Fraser (2009), o Estado Nacional, se, por um lado, já

não consegue restringir suas decisões às vidas dos que estão em seu interior, por outro, não

3 Os municípios não podem criar Tribunais ou Conselhos ou órgãos de contas municipais, conforme previsto na Constituição Federal, (CF, art. 31, § 4º), mas é possível a instituição de Conselho ou Tribunal de Contas dos Municípios como órgão auxiliar da Câmara de Vereadores (BRASIL, 1988. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/>. Acesso em: 07 jul. 2015).

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pode evitar que aqueles que ocupam seu território sejam afetados por ações de outros

governos, de corporações transnacionais, especuladores financeiros internacionais e grandes

investidores institucionais.

Como esse processo afeta a fiscalização e o controle do Estado administrador/fiscal é o

que se examina a seguir.

MECANISMOS DE CONTROLE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A regulamentação internacional, necessária para que se mantenha o trânsito de riquezas

no mundo, obriga que o direito positivo doméstico de cada Estado Nacional se a de que a uma

preexistente ordem mundial. Isso, como explica Cohen (2003, p. 445), pode deslocar as

“funções regulatórias da órbita de instituições públicas para a das instituições semi privadas e,

de outra parte, o deslocamento da regulação do plano do Estado nacional para o de

instituições públicas transnacionais”.

Na área de controle e fiscalização do Estado administrador/fiscal, tem-se a Organização

Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai). Fundada em 1953 pelo

presidente da Entidade Fiscalizadora de Cuba como “organização autônoma, independente e

apolítica, com o objetivo de promover o intercâmbio de ideias e experiências entre seus

membros, as Entidades Fiscalizadoras Superiores (EFS) de países de todo o mundo no campo

da auditoria governamental” (INTOSAI, 2004, p. 10 - tradução das autoras).

No aniversário de seus 60 anos em 2013, reunia 191 membros (INTOSAI, 2013) e desde

1970 é entidade consultiva do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas.

Essa, através da Resolução A/66/209 de 22 de dezembro de 2011, reconheceu a importância

do seu trabalho “para promover uma maior eficiência, prestação de contas, eficácia, e

transparência, assim como o ingresso e uso eficiente e efetivo dos recursos públicos em

benefício dos cidadãos” (ONU, 2011 - tradução das autoras). Além disso, também incentivou

os Estados membros a, “de maneira compatível com suas estruturas institucionais nacionais,

apliquem os princípios enunciados” na Declaração de Lima sobre as Linhas Básicas da

Fiscalização, de 1977, e na Declaração do México sobre a Independência das Entidades

Fiscalizadoras Superiores, de 2007 (ONU, 2011 - tradução das autoras)4.

A participação dos países na Intosai é voluntária e a aplicação de seus princípios

orientadores se dá “sem prejuízo do marco legal e da estrutura organizativa de cada membro”

(INTOSAI, 2005, p. 10). Até porque a fiscalização das contas governamentais se desenvolve

em todo o mundo como “marco institucional para a transferência e aumento do conhecimento

para melhorar mundialmente a auditoria pública externa e, portanto, reforçar a posição,

4 Essa Resolução tem sido reafirmada em várias outras, por exemplo, a 69/228, aprovada em 19 de dezembro de 2014 que tratou da “Promoção e fomento da eficiência, da prestação de contras, da eficácia e a transparência da administração pública mediante o fortalecimento das entidades fiscalizadoras superiores” (ONU, 2015 - para a referênciaverhttp://www.intosai.org/fileadmin/downloads/downloads/4_documents/publications/span_publications/SP_Resolution_69_228.pdf).

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competência e prestígio das diferentes EFS5 em seus respectivos países” (INTOSAI, 2006 -

tradução nossa).

O Estado brasileiro é um dos 34 países participantes da fundação, sendo sua Entidade

Fiscalizadora Superior, o Tribunal de Contas da União, membro do Comitê de Normas

Profissionais, do Grupo de Trabalho de Tecnologia da Informação, do Grupo de Trabalho de

Auditoria Ambiental, do Grupo de Trabalho de Privatização, Regulação Econômica e Parceria

Público Privada, presidindo o Subcomitê de Auditoria de Desempenho, pertencente ao Comitê

de Normas Profissionais (BRASIL, 2008).

A maneira como o Brasil tem aplicado orientações da Intosai no controle externo é o que

se examina a seguir.

APLICAÇÃO DAS ORIENTAÇÕES DA INTOSAI NO CONTROLE

EXTERNO

No Brasil, o TCU, conforme a Portaria - TCU nº 280, de 8 de dezembro de 2010, ao

realizar o controle externo, além do arcabouço normativo que o regula, utiliza

normas técnicas apropriadas, desenvolvidas de acordo com padrões reconhecidos internacionalmente, a exemplo das Normas Internacionais de Auditoria das Entidades de Fiscalização Superior (ISSAI), da Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai) [...] (BRASIL, 2010, p. 9).

Esse controle externo, segundo ainda a Portaria citada acima (BRASIL, 2010, p. 9),

“realiza-se, predominantemente, por meio de auditorias e inspeções de natureza contábil,

financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, conforme prevê o inciso IV do art. 71 da

Constituição”.

As auditorias são entendidas como

processo sistemático, documentado e independente de se avaliar objetivamente uma situação ou condição para determinar a extensão na qual critérios são atendidos, obter evidências quanto a esse atendimento e relatar os resultados dessa avaliação a um destinatário predeterminado (BRASIL, 2010, p. 13).

Classificam-se, segundo a natureza, em auditoria de regularidade e auditoria operacional.

As primeiras são aquelas em que

as conclusões assumem a forma de opinião concisa e de formato padronizado sobre demonstrativos financeiros e sobre a conformidade das transações com

5 Entidade de Fiscalização Superior.

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leis e regulamentos, ou sobre temas como a inadequação dos controles internos, atos ilegais ou fraude (BRASIL, 2010, p. 13).

As auditorias operacionais, por seu turno, tratam “da economicidade e da eficiência na

aquisição e aplicação dos recursos, assim como da eficácia e da efetividade dos resultados

alcançados” (BRASIL, 2010, p. 13). Conforme o Manual de Auditoria do TCU, tendo por base a

ISSAI 400/2-3, 2001, os “relatórios podem variar consideravelmente em escopo e natureza,

informando, por exemplo, sobre a adequada aplicação dos recursos, sobre o impacto de

políticas e programas e recomendando mudanças destinadas a aperfeiçoar a gestão” (BRASIL,

2010, p. 13).

O que determina a classificação em um ou outro tipo é o “objetivo prevalecente” do

trabalho, pois, em ambas, tomam-se os mesmos referenciais normativos: Constituição da

República Federativa do Brasil de 1988, Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União – Lei

8.443, de 16 de julho de 1992, Regimento Interno do Tribunal de Contas da União – Resolução

TCU 155, de 2002, Código de Ética dos Servidores do Tribunal de Contas da União –

Resolução TCU 226, de 2009, (BRASIL, 2010, p. 16) e são conduzidas, conforme a Portaria -

TCU nº 280, pelas Normas de Auditoria do Tribunal (NAT).

As conclusões, porém, de cada uma delas, assumem formatos distintos: a de

regularidade efetiva o exame da despesa pública através do respectivo demonstrativo

financeiro com o foco na legislação ou regulamento, portanto, visa à legalidade com a

supressão de fraude nos atos praticados pelo gestor público. A operacional foca na eficiência

da máquina administrativa quando implementa seus programas e projetos e na prática dos atos

administrativos via gestor público, verificando a economicidade e eficiência na aquisição e

aplicação dos recursos com a apuração da eficácia e efetividade dos resultados alcançados.

A auditoria operacional é objeto da próxima seção.

AUDITORIA OPERACIONAL NO BRASIL COMO MECANISMO DE

CONTROLE

A auditoria operacional é um mecanismo de controle (fiscalização) que passou a ser

enfatizado a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 04 de maio

de 2000) que atribuiu, no art. 59, §1º, inciso V, aos Tribunais de Contas o dever de alertar o

Ministério Público e os Poderes Legislativo e Judiciário sobre fatos que comprometam “custos

ou resultados de programas governamentais” (BRASIL, 2000). É, conforme define o Glossário

do TCU, “processo sistemático, documentado e independente” para avaliar objetivamente uma

situação ou condição para determinar a extensão na qual os critérios aplicáveis são atendidos,

obter evidências quanto ao atendimento dos critérios e relatar resultados da avaliação

(BRASIL, 2012).

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Isso significa que também, como a auditoria de regularidade, cuida da impessoalidade, do

mérito ao verificar a conformidade com a legislação e a legitimidade dos atos da gestão, isto é,

dos elementos que caracterizam a administração burocrática weberiana (1982). Todavia,

segundo o TCU (BRASIL, 2010) visa contribuir para melhorar o desempenho de programas de

governo e aumentar a efetividade do controle por meio da mobilização de atores sociais, ao

acompanhar e avaliar os objetivos, a implementação e os resultados das políticas públicas.

Trata-se de instrumento de transparência, pois permite que cidadãos, legisladores, executivos

obtenham “respostas sobre a execução e os resultados das atividades governamentais”

(COBRA, 2014, p. 18).

A finalidade é o resultado, isto é, a efetividade da ação pública e, por isso, diferentemente

da auditoria de regularidade, que se refere às desconformidades, produz “relatórios

construtivos” para a gestão pública, vale dizer, indicações para a superação dos problemas

identificados (ALBUQUERQUE, 2006).

Destarte, é uma forma de accountability, isto é, de responsabilidade, de obrigação ou de

responsabilização dos ocupantes de cargos públicos de prestar contas, conforme o parâmetro

normativo, abrangendo a possibilidade de ônus, de sanção, diante do descumprimento legal

(PINHO ; SACRAMENTO, 2009; LOPEZ, 2010). Na classificação de O’Donnell (1998), é do

tipo horizontal, pois, realizada no âmbito das agências de controle, não realiza ações

individuais ou de grupos “com referência àqueles que ocupam posições em instituições do

Estado eleitos ou não” (O’DONNELL, 1998, p. 29). É feita por organismos com o direito e poder

legal (de fato dispostos e capacitados) para realizar ações “[...] que vão desde a supervisão de

rotina a sanções legais, ou até o impeachment contra ações ou emissões de outros agentes ou

agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas” (O’DONNELL, 1998, p. 40).

A condução da auditoria operacional tem por base as Normas de Auditoria do Tribunal de

Contas da União (NAT), aprovado pela Portaria nº 280/2010, e o Manual de Auditoria

Operacional, aprovado pela Portaria-Segecex nº 4, de 26 de fevereiro de 2010, do Tribunal de

Contas da União, ambas orientadas por normas internacionais da Organização Internacional de

entidades Fiscalizadoras Superiores Intosai.

Nas Normas de Auditoria, o item 7 do Anexo consta que quando não tratar explicitamente

do assunto “as Normas Internacionais de Auditoria das Entidades de Fiscalização Superior

(ISSAI), da Organização Internacional de entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai), são

aplicáveis em complemento”, desde que, ressalva,“compatíveis com as atribuições

constitucionais e legais do TCU, com o ordenamento jurídico pátrio e com as disposições e a

lógica destas normas”.

O Manual de Auditoria Operacional do TCU alinha-se aos padrões adotados pela

International Organization of Supreme Audit Institutions – Intosai, considerando-a como uma

auditoria de desempenho nos termos em que esta é definida na Implementation Guidelines for

Performance Auditing, ISSAI 3000/1 de 2004, qual seja: “exame independente e objetivo da

economicidade, eficiência, eficácia e efetividade de organizações, programas e atividades

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governamentais, com a finalidade de promover o aperfeiçoamento da gestão pública” (BRASIL,

2010a, p. 11).

A adoção de padrões internacionais no âmbito do TCU é verificada no Manual de

Auditoria Operacional que cita noventa e uma vezes às normas da Intosai, sendo: setenta e

duasa ISSAI 3000/2004; oitoa ISSAI 400/2001; setea ISSAI 200/2001; duasa ISSAI 100/2001;

duasa ISSAI 300/2001 (BRASIL, 2010a).

Isso se configura quando o Manual (BRASIL, 2010a):

Estabelece, dimensões de desempenho, no item 2, e define, nos itens 3, 4 e 9, as

características economicidade e efetividade, com base na ISSAI 3000/2004 e ISSAI

100/2001.

Na fase de seleção da auditoria: utiliza para definir o processo de seleção dos objetos

de auditoria a ISSAI 200/2001, nos itens 20 e 21; aborda um planejamento estratégico

integrado ao processo de seleção com base na ISSAI 3000/2004; 200/2001 e

300/2001; define critérios de seleção, explica sobre vulnerabilidade do objeto e

levantamento do objeto com base na ISSAI 3000/2004 e ISSAI 200/2001, conforme

consta nos itens 28, 36 e 37.

Na fase de planejamento da auditoria, utiliza a ISSAI 3000/2004 para tratar: do

objetivo do planejamento (itens 51, 59, 60, 61 e 62), da análise preliminar (item

71),dos critérios de auditoria (itens 93, 94, 95 e 97); dos achados de auditoria (itens

116, 117, 119, 121 e 122), das evidências (itens 123 ao 125 e 127) e do

desenvolvimento dos trabalhos de campo (item 129).

Na fase de relatório, fundamentado na ISSAI 3000/2004 e na ISSAI 400/2001, os itens

153, 154, 168, 181, 189, 190, 193 e 194do Manual orientam a: concepção, produção e

definição dos requisitos do relatório final; divulgação dos dados em relatório em

separado, utilizando a diretriz da Intosai; confrontação dos argumentos da equipe aos

melhores argumentos; garantia de oportunidade ao gestor de examinar o relatório

preliminar; conclusão da auditoria com respostas aos objetivos propostos, baseada na

racionalidade e seus critérios específicos; proposta de encaminhamento com

‘recomendações e determinações da equipe de auditoria para sanar alguma

deficiência identificada durante a fiscalização.

Na fase de controle de qualidade, adotando a ISSAI 3000/2004: define e submete as

auditorias ao controle de qualidade nas auditorias operacionais, nos itens 219 e 221;

indica, no item 222, o exercício dos objetivos do controle de qualidade; define os

“papéis dos atores envolvidos com o controle de qualidade”, conforme consta nos itens

227, 229, 230, 239.

No procedimento de análise de dados, com base na ISSAI 3000/2004, estabelece a

utilização de abordagens qualitativas abrangendo comparação e contraste de

informações pesquisadas.

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Portanto, as normas internacionais adéquam e alinham os sistemas de controle internos,

no âmbito dos Estados Nacionais, nos seguintes aspectos:

a) formal, pois o texto do “considerando” da Portaria - SEGECEX Nº 4, de 26 de fevereiro

de 2010, que aprovou a revisão do Manual de Auditoria de Natureza Operacional,

indica expressamente a adoção dos padrões de auditoria operacional da International

Organization of Supreme Audit Institutions – Intosai (BRASIL, 2010);

b) material, pois o Manual de Auditoria Operacional do TCU adotou regras da ISSAI -

ISSAI 3000/2004, ISSAI 400/2001, ISSAI 200/2001, ISSAI 100/2001, ISSAI 300/2001 -

ao definir auditoria operacional, ciclo de auditoria operacional, indicar a composição

do referido ciclo e suas etapas, e apontar as dimensões e as características da

auditoria operacional (BRASIL, 2010a).

Desse modo, verifica-se que as normas técnicas, ao tempo em que se ajustam ao

ordenamento jurídico nacional, não deixam de se alinhar aos padrões internacionais definidos

pela ISSAI a partir da participação de organizações de fiscalização superiores, tanto na forma

como no conteúdo. Com isso, a fiscalização das contas pode tanto ser comparada, como

balizar relações e contratos entre os países.

CONCLUSÃO

Este trabalho abordou o controle de contas realizado no Estado Nacional brasileiro,

enfocando a soberania nacional diante da adoção de regras estabelecidas pela Intosai,

instituição supranacional de fiscalização, nas normas e procedimentos de auditoria operacional

realizado pelos tribunais de contas da União e dos estados.

O Estado Nacional, o tipo de Estado que se impôs mundialmente desde o século XVIII,

assenta-se na autoridade que se encontra na soberania exercida por um povo através de

instituições que, tanto nos limites do território ou da nação como frente ao poder de outros

Estados, regulam as atividades econômicas e administrativas. Por conseguinte, é da soberania

que deriva a regulação pública que não apenas confere organização e normatização às

atividades econômicas como coordena e efetiva a atividade administrativa na qual se insere o

aparato burocrático ou, nos termos de Habermas, o Estado administrador/fiscal. Esse, como

instância especializada de controle e fiscalização, é responsável pela observância da

supremacia do interesse público no âmbito de um território.

Isso parece ameaçado, pois o aumento do intercâmbio entre os Estados e o alastramento

da interação entre estes, tem, além de multiplicado as fontes do direito acima do nível do

Estado, em decorrência da profusão de organizações supranacionais voltadas à regulação e

produção de regras, desvinculado a legislação do Estado territorial. É que, ao tempo em que a

regulamentação internacional, necessária para que se mantenha o trânsito de riquezas no

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mundo, obriga a adequação do direito positivo doméstico de cada Estado Nacional a uma

preexistente ordem mundial, tem-se o deslocamento das funções regulatórias da esfera

nacional para instituições supranacionais.

É o que ocorre com a auditoria operacional, que, ao tempo em que se fundamentam no

arcabouço jurídico nacional, são orientados pela Organização Internacional de Entidades

Fiscalizadoras Superiores (Intosai).Esta, como entidade responsável pelo intercâmbio de ideias

e de experiências sobre a auditoria governamental e a melhoria da fiscalização pública externa,

acrescenta, ao arcabouço normativo regulador nacional, padrões técnicos reconhecidos

internacionalmente, tais como:

A definição do processo e critérios de seleção dos objetos de auditoria, o

planejamento estratégico, a vulnerabilidade e o levantamento do objeto, (base

conceitual e metodológica da fase de planejamento da auditoria, baseada na ISSAI

200/2001, ISSAI 3000/2004 e 300/2001).

O estabelecimento do objetivo do planejamento na análise preliminar, os critérios e

achados de auditoria, as evidências e o desenvolvimento dos trabalhos de campo,

(base conceitual e metodológica da fase de planejamento da auditoria, fundada na

ISSAI 3000/2004).

Orientações acerca da: concepção, produção e definição dos requisitos do relatório

final; divulgação de dados em relatório em separado, utilização da diretriz da Intosai;

confrontação dos argumentos da equipe; garantia de oportunidade ao gestor de

examinar o relatório preliminar; conclusão da auditoria com respostas aos objetivos

propostos; propostas de encaminhamento com recomendações e determinações da

equipe de auditoria decorrente da fiscalização (definições e procedimentos da fase de

relatório, fundamentado na ISSAI 3000/2004 e na ISSAI 400/2001).

As definições e submissão das auditorias operacionais ao controle de qualidade;

indicação do exercício dos objetivos do controle de qualidade; definição dos “papéis

dos atores envolvidos com o controle de qualidade” (bases conceituais e parâmetros

da fase de controle de qualidade, adotando a ISSAI 3000/2004).

Utilização de análises qualitativas abrangendo comparação e contraste de

informações pesquisadas (base metodológica aplicada no procedimento de análise de

dados com base na ISSAI 3000/2004).

Por conseguinte, a adoção das normas da Intosai, em particular as ISSAI 3000/2004,

ISSAI 400/2001, ISSAI 200/2001, ISSAI 100/2001, ISSAI 300/2001, conferem parâmetros,

procedimentos, bases conceituais e metodológicas ao Manual de Auditoria Operacional do

TCU e, com isso, influencia-o nos aspectos formais e materiais. Dessa forma, a linha os

procedimentos de controle brasileiro aos padrões internacionais, possibilitando a comparação e

balizamento em relação ao controle de contas realizado por outros países.

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Assim, o aumento do intercâmbio entre os Estados e o alastramento da interação entre

estes, longe de negar a soberania, redefine-a, ou, em outros termos, torna-a uma soberania

cosmopolita, pois que exercida em conformidade com o mundo.

REFERÊNCIAS

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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL VIA OUVIDORIAS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS

DOS ESTADOS E SEU PAPEL NO CONTROLE DAS CONTAS PÚBLICAS

MUNICIPAIS

Fábia de Kássia Mendes Viana Buenos Aires 1

Simone de Jesus Guimarães 2

Resumo: O artigo discute a relevância da participação social via Ouvidoria do Tribunal de

Contas no controle das contas públicas municipais, bem como seu papel para o fortalecimento

da relação entre Estado e sociedade civil. Para alcançar este objetivo discute-se inicialmente a

participação social pós redemocratização do Brasil, seus protagonistas, lutas e conquistas,

bem como retrocessos relacionados ao avanço do ideário neoliberal no país na década de

1990. A diversificação de espaços participativos é analisada sob a perspectiva de sua

contribuição para o fortalecimento democrático das relações entre Estado e sociedade civil.

Discute-se o controle social sob a perspectiva de sua relevância junto à fiscalização da atuação

do Estado e como o mesmo repercute na construção de espaços públicos democráticos e

dialógicos entre a sociedade e o Estado. Trata-se de uma pesquisa de caráter analítico-

descritivo e qualitativo, utilizando como técnica de pesquisa a revisão bibliográfica, com fins de

perceber o papel da participação social naquele espaço, sob a perspectiva do fortalecimento da

relação entre Estado e sociedade civil. Os resultados apontam para a relevância do controle

social exercido via Ouvidoria do Tribunal de contas, contudo revelam o seu desvirtuamento

face ao ideário neoliberal, que a utiliza em prol de uma despolitização da sociedade e um

engessamento de sua atuação.

Palavras-chave: Participação Social. Ouvidoria. Controle Social. Sociedade Civil. Estado.

INTRODUÇÃO

medida que os grupos da sociedade civil se organizam em torno de demandas,

focalizando-as e agindo em prol da sensibilização e da mobilização de outros grupos

membros dessa sociedade, como por exemplo, os negros, as mulheres , os indígenas, etc.,

essas tendem a adentrar a agenda do Estado enquanto políticas públicas. O papel destes

grupos está em adensar forças e pressionar o Estado no sentido de transformar em prioridade

suas solicitações e introduzi-las no espaço de disputa política. Assim, o ingressar de suas

demandas na agenda estatal pode elevá-las à categoria de prioritárias no campo das políticas

públicas tornando-se interesse não apenas da sociedade civil, mas do próprio Estado

(TEIXEIRA, 2007).

1 Professora Mestre em Políticas Públicas do Curso de Direito da Universidade Estadual do Piau. Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí. Email: [email protected].

2 Professora Doutora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. Email: [email protected].

A

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Políticas públicas, nesse contexto, é descrito por Teixeira (2002, p.2) como “princípios

norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder

público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado” (TEIXEIRA, 2002,

p.2).

Nesse sentido as políticas públicas se apresentam como

a gestão dos problemas e das demandas coletivas através da utilização de metodologias que identificam as prioridades, racionalizando a aplicação de investimentos e utilizando o planejamento como forma de se atingir os objetivos e metas predefinidos (DIAS; MATOS, 2012, p. 14).

A relação existente entre Estado e sociedade civil nesse cenário interessa por demais ao

presente artigo, tendo em vista que, é a partir dela e de suas modificações pós

redemocratização do país, na década de 1980 e elaboração e promulgação da Constituição de

1988 que se estabelecem os mecanismos de participação existentes e atuantes em nosso

regime democrático, dentre eles as Ouvidorias dos Tribunais de Contas dos Estados.

Passemos a partir de agora a compreender em que contexto essa relação foi sendo construída

e quais os elementos preponderantes à sua configuração democrática. Não é intenção desta

pesquisa esgotar todo o conteúdo referente à essa configuração. Porém, seu entendimento é

essencial no sentido de construir um estudo relacionado à como se dá a participação da

sociedade civil organizada ou não no controle das contas públicas municipais via Ouvidoria do

Tribunal de Contas do Estado, haja vista sua caracterização pela administração pública como

sendo um espaço relevante de atuação social na fiscalização da gestão pública.

A RELAÇÃO ESTADO E SOCIEDADE CIVIL PÓS REDEMOCRATIZAÇÃO

DO BRASIL

Para se compreender o modo como Estado e Sociedade civil se relacionam no Brasil pós

redemocratização é necessário analisar seus significados, suas características no decorrer do

tempo, percebendo suas variações e interpretações em favor do fortalecimento desta relação

ou, ao contrário, direcionando sua relevância para o campo dos interesses capitalistas. Vários

pensadores, como Hobbes (2006), Locke (2005), Rosseau (1999), entre outros, se debruçaram

sobre o papel e a necessidade da existência do Estado com fins a garantir a paz social, manter

o equilíbrio entre os interesses privados e, permitir o amplo desenvolvimento das relações

políticas entre ambos. Faz-se necessário compreender como essa relação se construiu com

fins a alcançar em nível nacional as influências conceituais que os diversos pensamentos

acerca do assunto produziram. É o que procuraremos tratar a partir de agora.

Os pensadores contratualistas (HOBBES, 2006; LOCKE, 2005; ROSSEAU, 1999)

apresentaram as primeiras nuances acerca da relação entre Estado e sociedade civil, na

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medida em que abordavam as características do Estado e a necessidade de sua existência e

fortalecimento frente à manutenção da sociedade.

Hobbes (2006) apresenta o Estado como antítese do estado de natureza. Ou seja,

mediante o estabelecimento de regras de convivência a serem obedecidas pelos indivíduos em

prol da criação de uma nova sociedade. Seria criado um contrato entre os mesmos, aceito pela

maioria, transferindo poderes individuais e direitos a um ente soberano, o Estado,

desconstituindo assim a ideia de direitos inerentes à natureza humana e anteriores a qualquer

formação social.

Nesse sentido, o surgimento do Estado é apresentado por este pensador como resposta a

uma necessidade de sobrevivência e resguardo da propriedade. Os indivíduos estariam

dispostos a abrir mão de sua auto defesa e auto controle em detrimento de uma proteção maior

e mais forte, que seria capaz de impor limites aos poderes e interesses de uns em detrimento

de outros.

Há que se ressaltar inclusive que o Estado surge, na visão deste autor, para garantir e

resguardar a propriedade. Os indivíduos entregam, portanto, a sua liberdade para esta

instituição que garantiria, assim, o controle sobre a vida de cada um. Desse modo não há que

se falar nesse momento histórico, e a partir dessa perspectiva, de qualquer tipo de controle da

sociedade sobre o Estado, ao contrário, o controle partia do Estado em prol da paz social,

tendo poderes para interferir na vida privada dos indivíduos.

Locke (2005) ainda que também rompa com a tese de direito natural, como o fez Hobbes

(2006) e, também, estabelecesse a necessidade de proteção da propriedade do indivíduo

mediante contrato, defendia que esse direito à propriedade era algo inerente ao ser humano,

vindo, portanto, antes da própria instituição do contrato social e da sociedade. Assim, mesmo

que não defendesse a tese da existência de direitos naturais, sobrepunha o direito à

propriedade como intrínseco à existência humana. Na sua visão o Estado não poderia

centralizar absolutamente seu poder, sendo necessária a divisão entre executivo e legislativo.

Nessa visão, a sociedade estaria subentendida no exercício do poder legislativo, tendo

em vista ser composta por membros da sociedade, tendo inclusive poderes para destituir o

poder executivo, quando do não cumprimento de seus deveres. Nesse sentido é possível

observar uma evolução no entendimento acerca do papel dos indivíduos na sociedade. No

entanto, há que se ressaltar que essa compreensão de controle da sociedade em relação ao

Estado se dá no campo da propriedade privada, uma vez que apenas os detentores da mesma

tinham acesso às instâncias políticas do Estado, dele podendo participar.

A ideia de Estado liberal, já latente no período, receberia ênfase a medida em que Locke

(2005) defendia a existência do Estado com o objetivo de proteção dos indivíduos e de suas

propriedades, suas liberdades e direitos. No entanto essa proteção não ultrapassava os limites

da individualidade, crendo o autor que caberia a cada um buscar seu lugar ao sol, sem

interferências por parte do Estado.

Rousseau (1999) também tratou, ainda que de forma indireta, acerca da relação Estado e

sociedade civil, convergindo com os pensadores anteriores acerca da necessidade de leis que

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regessem o comportamento do homem em sociedade, rompendo com a ideia de estado de

natureza e defendendo a existência de um Estado civil. O autor defendia a elaboração de uma

legislação sob a vontade geral na qual o Estado, personificado na figura monárquica do

príncipe, não estaria acima das leis, devendo respeito às mesmas. Sua visão acerca da

sociedade levava em consideração as desigualdades por ela produzidas quando da

instauração da propriedade privada, a qual possibilitava a diferença entre indivíduos e suas

posições no quadro social.

O fato de ambos os pensadores, Locke (2005) e Rousseau (1999) trabalharem com a

ideia de elaboração de um contrato ou acordo no qual os indivíduos abririam mão de seu poder

e autonomia em prol de uma proteção mais ampla e passível de obediência pela maioria,

através da criação de um ente abstrato e gestor da vida em sociedade, estabelece as bases

sobre as quais os estudos acerca do conceito de sociedade civil e Estado vão se alicerçar. O

rompimento com leis naturais e divinas de condução da humanidade são heranças adquiridas

nesse processo contratualista e liberal de compreensão das categorias em estudo, ou seja,

tem-se a partir desse momento uma compreensão de Estado e de sociedade para além da

vontade de Deus, destituindo a religião do posto majoritário de definição e condução da vida

política e social.

Hegel (1993) em seus estudos já caracterizava a sociedade enquanto espaço das

necessidades individuais, do egoísmo e divisionismo, sendo a ela inerente um poder de auto

destruição. Caberia, segundo ele, ao Estado regular as necessidades e interesses desse

espaço, onde o mesmo imporia o interesse coletivo em detrimento do individual. Não haveria

sociedade sem a presença e atuação constante do Estado, cabendo a este regular as relações

sociais.

Marx (2008) também apresentou a sociedade como local propicio ao egoísmo,

materialismo e dos interesses individuais e de grupos. A figura do Estado, no entanto, surge

segundo este autor com fins direcionados a fazer prevalecer os interesses de classes e de sua

perpetuação. Caberia ao Estado a função de manter a separação dos indivíduos em seus

grupos, conforme a divisão do trabalho que, a partir de então, se impunha como a

predominante, qual seja, a capitalista. A divisão da sociedade em classes era condição da

própria existência do Estado, segundo esse autor, uma vez que caberia ao Estado reproduzi-la

e resguardar os interesses do Capital. Sua função era de viabilizar o capitalismo e manter a

paz e a ordem dentro de um sistema desigual de forças entre a classe de trabalhadores e os

detentores dos meios de produção.

Assim, Marx (2008) apresenta a sociedade e o Estado numa relação dicotômica, na qual

os interesses sociais entram em conflito direto com os interesses econômicos, tendenciando o

Estado em última instância para a satisfação das necessidades do Capital.

A visão Gramsciana (2001) de sociedade civil também a diferenciava do mercado e do

Estado, sendo aquela, espaço inerente ao conflito e de luta por hegemonia cultural e política.

Gramsci (2001) vem ao encontro das discussões acerca de Estado e sociedade civil,

distinguindo esta última do mercado e do próprio Estado, sendo o espaço inerente ao conflito e

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de luta por hegemonia cultural e política. Os partidos políticos, as igrejas, os sindicatos,

organizações profissionais, entre outros, seriam peças chaves na caracterização da sociedade

civil e sua dissociação do mercado.

Sua visão de Estado diferenciava-se da apresentada por Marx (2008), tendo aquele uma

composição dual, sociedade civil e sociedade política, numa relação dialética constante de

busca e manutenção da hegemonia. A sociedade civil seria composta por partidos,

organizações sociais, escolas, empresas, igrejas, sendo estas responsáveis pela difusão de

ideologias e valores simbólicos. A sociedade política seria formada pelo governo, forças

armadas, poder judiciário, burocracia, etc., concentrando o monopólio da força coercitiva.

A visão de Estado ampliado apresentada por Gramsci (2001) o coloca na condição de

fundador de uma teoria na qual seria possível uma relação de compartilhamento de forças e

interesses entre sociedade civil e Estado. O Estado sairia da condição de mantenedor

exclusivo da paz e dos interesses sociais, perdendo sua característica restritiva e seria,

juntamente com a sociedade civil composto por elementos políticos e sociais. Da

interpenetração de grupos e de seus interesses, em um jogo de forças heterogêneo e plural,

mas condizente com sua característica política e civil.

Há ainda a visão neo-tocqueviliana (1985), na qual diferenciava-se Estado, mercado e

sociedade civil, pondo esta ultima como autônoma e produtora de solidariedade social. Eis que

a sociedade civil passou a ser vista distinta do Estado e do mercado e que poderia contribuir

grandemente para o desenvolvimento das sociedades.

Tocqueville (1985) aparece como pensador liberal de grande notoriedade por defender a

liberdade como princípio democrático. Para ele, a democracia se daria mediante a

representação política através das eleições, e caberia a sociedade civil participar através de

seu engajamento em associações. Sua visão de sociedade civil a colocava fora do Estado e do

mercado, em busca da defesa de seus interesses. Caberia ao Estado comandar a maioria sem

interferência popular direta, e, ainda que propusesse a participação popular, esta estaria

renegada a pequenos interesses, não avançando em assuntos relacionados a gestão publica.

Keynes (1988) defendia a preponderância do Estado em sua relação tríade com a

sociedade civil e o mercado. A necessidade de interferência estatal segundo ele era urgente e

necessária, com fins a garantir o pleno emprego, corresponder às demandas por direitos

sociais e, continuar a crescer economicamente. O mercado na visão desse autor, perderia

aparentemente seu status hegemônico em detrimento dos interesses da sociedade civil,

através do estabelecimento de políticas de bem estar social (welfare state). A proposta era de

manutenção do capitalismo através do atendimento dos direitos sociais latentes no período, e,

que ao serem adquiridos pela população, manteriam o caráter predominante do sistema

capitalista. As políticas sociais adentraram o cenário político e transformou as relações entre

Estado, mercado e sociedade civil, na medida em que, proporcionava o alcance de direitos

pelas classes subordinadas ao capital e viabilizava a sobrevivência do seu sistema econômico

(ROSENMANN, 2006).

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Até meados da década de 1960 as ideias keynesianas encontraram respaldo, tendo em

vista a necessidade crescente de expansão do sistema capitalista, e, recebendo seu aval

quanto à atuação estatal intervencionista, uma vez que trazia às classes trabalhadoras o

atendimento de suas demandas, impedindo maiores revoluções em torno das desigualdades

econômicas latentes (ROSENMANN, 2006).

A partir da década de 1970, quando da ocorrência de uma nova crise capitalista

relacionada a demanda por petróleo e seus altos preços, na qual a recessão e o desemprego

aumentaram drasticamente, alargando ainda mais o fosso das desigualdades sociais, novas

estratégias de ordem administrativa e econômica deveriam ser implementadas com fins a

manter a hegemonia capitalista. Para isso, a relação entre Estado e sociedade civil sofre outra

interferência por parte do mercado, uma vez que ressurgem ideias liberais com uma nova

roupagem.

Em termos econômicos os países desenvolvidos passaram por uma reestruturação

produtiva, que consiste, segundo Behring (2008),

Na desregulamentação de direitos, no corte dos gastos sociais, em deixar milhões de pessoas à sua própria sorte e mérito individuais – elemento que também desconstrói as identidades, jogando os indivíduos numa aleatória e violenta luta pela sobrevivência (BEHRING, 2008, p. 37).

O ideário neoliberal se apresentou como saída para a grave crise que assolava inúmeros

países, entre eles Inglaterra e Estados Unidos, onde a intervenção estatal deveria nas relações

sociais e econômicas deveria cessar, dando espaço à individualidade e a reformulação

estratégica do modo de governar. As mudanças eram propostas em todos os níveis, e,

buscavam transformar a própria gestão pública, enxugando-a, desburocratizando-se, limitando

seu campo de atuação, e, principalmente, deixando livre os indivíduos na busca de seus

interesses.

A relação entre Estado e sociedade civil, a partir desse momento, recebe do mercado a

saída para sua liberalização e afrouxamento. Ou seja, as regras mercadológicas serviriam

inclusive para regular a atuação estatal e porque não dizer social, na medida em que permitia

que paradigmas empresariais fossem dispostos como diretrizes de governabilidade. À

sociedade civil caberia o papel de co-responsável pela condução da gestão pública, mediante

ações solidarias de prestação de serviços sociais, ou através da criação de organizações não

governamentais sem fins lucrativos, e, com fins exclusivamente de auxilio aos menos

favorecidos. Vejamos a seguir como se configurou a relação entre sociedade civil e Estado em

terras brasileiras, refletindo sobre as influências neoliberais em sua conformação.

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ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NO CENÁRIO BRASILEIRO

O Estado brasileiro foi caracterizado historicamente, até o século XIX, como

patrimonialista liberal clássico, tendo em vista sua mínima intervenção na ordem social e na

economia do país. A atuação estatal permanece nesses moldes mesmo depois da mudança de

regime em 1889, quando o país deixou de ser gerido por um Imperador e passou a ser

politicamente disputado por oligarquias (FREYRE, 1959).

Nesse cenário não há ainda que se falar em sociedade civil no sentido de um conjunto

organizado de pessoas em prol de interesses comuns, uma vez que seu conceito somente era

conhecido nos países do Atlântico Norte nos quais já existia uma relativa tensão entre o Estado

e a sociedade no que diz respeito aos interesses das classes, frente ao recém instalado

capitalismo. No Brasil, o que predominava era a indissociação entre público e privado, bem

como a sobreposição da propriedade rural na economia e política do país, não existindo

qualquer relação entre o que viria a ser sociedade civil e o Estado, ou seja, não se pensava

nem se discutia acerca do papel da sociedade junto à gestão pública (AVRITZER, 2012).

O cenário político do Brasil no início do século XIX era significativamente privatista, ou

seja, os espaços rurais, através de seus ricos proprietários de terras dominavam o processo

político e se alternavam no poder. Isso trouxe para o país um desenvolvimento excessivo da

esfera privada com a sobreposição dos interesses desta classe nas atividades políticas. A

indiferenciação entre as esferas públicas e privadas nesse período trouxe sérios prejuízos para

uma efetiva relação entre o Estado e a sociedade, impedindo o surgimento e a definição

dessas categorias como interdependentes e necessárias (AVRITZER, 2012).

Diferentemente do que se vinha apresentando acerca do conceito de sociedade civil no

século XIX, nos países do Atlântico Norte, onde havia uma diferenciação acerca das categorias

Estado e sociedade civil, não separando esta última do que viria a ser mercado, no século XX

houve uma ressignificação de ordem tripartite, na qual a sociedade civil surge dissociada do

mercado, e não apenas do Estado. Esta visão tripartite vai sendo dissipada não apenas nos

países do Atlântico Norte, mas em todos aqueles que compartilham do sistema capitalista

(AVRITZER, 2012).

Para Cohen e Arato (1992) o mercado estaria relacionado as ações vinculadas à

produção de bens de consumo, enquanto o Estado seria o elemento burocrático necessário

para a manutenção da paz social e das estruturas de poder, e a sociedade civil seria um

espaço próprio para socialização, interação social e prática de atividades públicas. Esta seria

uma das visões mais utilizadas pelos pensadores acerca da caracterização atual de sociedade

civil. Não sendo, porém, a única, o que veremos adiante.

No tocante ao Brasil do início do século XX, este passou por um processo de urbanização

rápido e forçado, na medida em que estimulou a urbanização acelerada e a saída da

população do campo para a cidade, sem proporcionar à mesma as condições necessárias para

seu desenvolvimento econômico e social adequado. Se em meados da década de 1940 mais

de 70 porcento da população encontrava-se na zona rural, este quadro mudou rapidamente no

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final do século XX, onde mais de 80 porcento das pessoas já se encontravam em espaços

urbanos. Esse processo acelerado e desprovido de planejamento adequado, trouxe sérias

consequências à população brasileira que passou a necessitar de serviços públicos cada vez

mais escassos ou inexistentes. Tem-se desse cenário o combustível para as primeiras

organizações populares em prol da reivindicação de direitos no país, dando origem aos

primórdios da sociedade civil brasileira (SANTOS, 1979).

O aumento da demanda por bens e serviços sociais, através do crescimento desordenado

das cidades e a carência de proteção social por parte do Estado, possibilitou a associação dos

trabalhadores na luta por seus direitos básicos, tais como saúde, educação, água e

saneamento básico, estimulando sua associação em grupos e movimentos organizados. O

processo de distribuição de bens públicos nesse período teve forte influencia das associações

voluntárias, ou seja, ainda era forte os elementos relacionados a filantropia e solidariedade

quando da concessão de direitos sociais (SANTOS, 1979).

Em detrimento dessas necessidades e com o crescimento das demandas sociais, o

Estado passa a incorporar entre outros, elementos burocráticos em sua administração pública,

tornando obrigatório o concurso publico para a composição de sua gestão técnica,

apresentando normas específicas para sua atuação administrativa (SOUSA FILHO, 2013).

A partir de 1964 instaurou-se no país de um regime ditatorial com características

autoritárias, onde os direitos civis e políticos foram restringidos significativamente. Foram 21

anos dos quais o autoritarismo estatal destituiu qualquer possibilidade de se relacionar com a

sociedade civil através da discussão dos os interesses sociais, bem como de possibilitar a

reivindicação de direitos. Qualquer mobilização social pública ou privada era proibida. A

atuação intervencionista do Estado era por ele apresentada como necessária ao

desenvolvimento capitalista, o qual traria para o país os avanços sociais desejados pela

sociedade (GOHN, 2003).

Havia nesse período movimentos organizados que atuavam contra o Estado e o regime

posto, em favor da liberdade de expressão e do retorno das instituições democráticas, e, ainda

que fossem proibidas suas organizações e manifestações, de forma dura, e que fossem

normativamente tratados como criminosos, esta reação social foi preponderante para uma

futura redemocratização do país.

Em meados da década de 1970 o país passou por um processo chamado por alguns

autores de "liberalização" no qual alguns direitos de ordem civil foram reestabelecidos, tais

como a reunir-se publicamente, criar e participar de associações voluntárias. No entanto, no

que diz respeito aos direitos políticos, a restrição perdurou (O'DONNELL e SCHMITTER,

1986).

Tem-se no Brasil, a utilização do termo sociedade civil de modo acentuado a partir do final

da década de 1970, traduzindo todo um processo de reativação do movimento sindical, bem

como a organização e fortalecimento de variadas organizações sociais que objetivavam a

conquista e ampliação de direitos (DURIGUETTO, 2008).

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Essa mobilização social permitiu pensar a democracia para além de uma transição lenta e

gradativa do regime militar, bem como de grupos liberais democráticos que defendiam os

interesses econômicos e políticos em detrimento dos direitos sociais. Sua atuação politizada

fortalecia seus objetivos em prol da renovação política e da sedimentação da democracia

(DURIGUETTO, 2008).

O processo de transição democrática pelo qual passou o país contou com a presença da

sociedade civil, através da atuação das camadas populares organizadas e de suas

reivindicações tanto no que diz respeito participarem do processo político como na

concretização dos direitos solicitados (AVRITZER, 2009).

O retorno dos direitos tais como o de sindicalizar-se ou associar-se em movimentos ou

grupos organizados possibilitou o reestabeleceu de vários sindicatos e associações, entre eles

os de advogados, engenheiros, arquitetos, além de outras classes como a dos trabalhadores

que, nesse período passaram a se organizar sem a intervenção direta do Estado, como ocorria

na década de 1940 (AVRITZER, 2012).

Estado e sociedade civil se relacionavam nesse período dicotomicamente, ou seja, sem

maiores aproximações ou diálogo em torno das demandas sociais e de como o Estado

conduzia sua gestão. Muitas formas de ação coletiva surgiram e foram progressivamente

modificando a maneira de se organizar e associar no país, estimulando o desenvolvimento

político da sociedade com fins a participar ativamente da condução administrativa do país

(AVRITZER, 2009).

A atuação por parte desses grupos organizados enveredava pela seara política e os

mesmos buscavam espaço na cena política do país, tanto na possibilidade de exercício

democrático do voto e escolha de seus representantes, democracia indireta, como na

implementação por parte do Estado de mecanismos de deliberação acerca das políticas

públicas a serem disponibilizadas para a sociedade.

Tem-se como principal característica da sociedade civil brasileira deste período a luta por

autonomia em relação ao Estado, mas com a possibilidade real e efetiva de atuar politicamente

junto do mesmo frente às demandas e interesses sociais. O fato de a sociedade civil brasileira

ter sido relevantemente marcada pela experiência autoritária do regime militar vigente em

1964, permitiu uma espécie de ressurgimento da força social, com fins a opor-se ao

autoritarismo estatal, o que para Avritzer (apud, DAGNINO, 2002, p.9) representou a “efetiva

fundação da sociedade civil no Brasil, já que sua existência anterior estaria fortemente

caracterizada pela falta de autonomia em relação ao Estado”.

Sua organização unificada e focada no combate ao Estado autoritário desempenhou

relevante papel durante todo o percurso de transição democrática, que vai do final da década

de 1970 a meados da década de 1980. Têm-se novos delineamentos em torno do papel da

sociedade civil, passando de um ideário político-estratégico durante o período militar, no qual

os movimentos sociais lutavam por reconhecimento de direitos e se opunham ao regime

autoritário, passando a uma posição mais analítico-teórico, na qual a relação sociedade e

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Estado não são mais vistas como dicotômicas entre sim, mas heterogêneas e relevantes para

a composição e construção democrática (AVRITZER, 1994).

A sociedade civil vai se configurando a partir de então como composta por uma variável

de interesses e objetivos tanto quanto o Estado no campo da cultura, da economia, da política,

etc., pluralizando as concepções de democracia e participação (LAVALLE, 2003).

Chauí (1990) apresenta o entendimento acerca da sociedade civil que regeu grande parte

das análises sobre os movimentos sociais, especialmente até a primeira metade da década de

1980, como um conjunto homogêneo de interesses populares tendo em sua composição

organizações sociais com objetivos e ações heterogêneas, e atuando de modo espontâneo e

com bases solidárias e comunitárias, sem objetivar relacionar-se com o Estado. Nesse sentido,

a democracia seria a expressão da forma de existência dessa sociedade civil, pautada na

liberdade de expressão e na autonomia de atuação dos sujeitos sociais, enquanto renovação

cultural.

Já Coutinho (1989) apresenta a categoria sociedade civil como o conjunto das

organizações e dos sujeitos coletivos fortemente participantes do processo de

redemocratização do país, e em busca de sua hegemonia, em termos de atuação autônoma

em relação ao Estado e contra o Capital, nos moldes descritos por Gramisci (2001). Assim,

coloca a democracia como consequência das lutas e da vontade coletiva da sociedade civil

enquanto movimento organizado de pessoas em prol de um projeto que vai de encontro aos

interesses capitalistas. Nesse sentido seria possível conceber a sociedade civil como detentora

de poderes suficientes para ditar os rumos do Estado, indo de encontro dos preceitos do

Capital. A democracia nesses moldes se sedimentaria e fortaleceria na medida em que os

grupos organizados, respeitadas sua diversidade de interesses e autonomia, convergissem

para uma unificação enquanto projeto político, aumentando seu peso na condução política do

país.

A relação dicotômica entre Estado e sociedade civil apresentada por Chauí (1990) registra

parte do momento histórico vivido por ambas e que fora gradativamente sendo substituído, na

medida em que as bases democráticas no país foram sendo implementadas, o retorno das

eleições diretas, a criação dos conselhos gestores, dos orçamentos participativos, entre outras

instancias participativas.

A atuação da sociedade civil em prol dos interesses dos seus grupos organizados e

através dos espaços de participação por estes conquistados via lutas sociais e implementados

pelo Estado, mudaram seu modo de se relacionar com o mesmo, passando de uma ação

reivindicativa e propositiva, para uma atuação colaborativa (NOGUEIRA, 2011).

Como visto anteriormente, a Constituição de 1988 representou uma relevante acentuação

da participação popular mediante criação de espaços institucionais que permitiriam a

reivindicação de demandas, a deliberação, discussão e implementação de políticas públicas,

sedimentando, ampliando e fortalecendo a democracia (NOGUEIRA, 2011).

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Ocorre que, ainda que tenhamos presenciado avanços não só legislativos no sentido de

viabilizar a participação popular e a aquisição de direitos sociais, a década de 1990 foi

fortemente marcada pelo atuar de um ideário neoliberal, em ascendência nos mais diversos

países capitalistas do globo, o que veremos de modo mais detalhado em tópico posterior.

O neoliberalismo seria um conjunto de ideias políticas surgidas na década de 1970, na

escola do economista Milton Friedman, em resposta à crise mundial ocorrida em 1973, por

conta dos excessivos aumentos no preço do petróleo. Essas ideias repercutiram tanto na

esfera política quanto econômica de diversos países, pregando a mínima intervenção do

Estado na economia. O livre mercado retornaria com força e apoio total da administração

pública, sendo justificado pela necessidade de crescimento econômico e desenvolvimento

social (ROSENMANN, 2006).

Tinha como características principais a defesa dos princípios econômicos, a diminuição

do tamanho do Estado, abertura da economia para entrada de multinacionais, privatização de

empresas públicas etc.. Apesar de valorar a participação da sociedade civil e defender sua

atuação em prol do fortalecimento democrático, apresentava um olhar diferenciado sobre o seu

papel, o qual seria de agente ou parceiro do bem-estar social. Aqui sua atuação seria pró-ativa,

sem maiores embates com o Estado, viria ao seu encontro e com ele atuaria de forma

colaborativa (MONTANO, 2008).

O neoliberalismo econômico trouxe como bandeira a supremacia do mercado, sendo este

eficaz instrumento de alocação de recursos, distribuindo bens, serviços e produtos,

remunerando e valorizando o empenho individual. O mercado seria o centro de eficiência,

justiça e riqueza, acessível a qualquer indivíduo capaz de lutar por seus interesses e direitos.

O conceito de sociedade civil nesse cenário foi disseminado em utilização ao termo

“terceiro setor” atuando em parceria com o Estado, mas fora dele, tendo como fundamento a

solidariedade, a filantropia e o voluntariado. Em meio ao seu caráter para além do Estado e da

economia, a sociedade civil foi lenta e gradativamente sendo despolitizada. Passou a ser

pautada pela atuação particular e individualizada de cunho mais ético do que político.

(DURIGUETTO, 2008).

Nesse sentido, o poder contra-hegemônico descrito por Coutinho (2006) quando da

caracterização da sociedade civil brasileira e seu atuar no período de redemocratização do

país é sufocada pela hegemonia dos interesses econômicos, reestruturando os valores sociais

e transformando o Estado, que passou a atuar de modo ainda mais consistente em prol das

necessidades do capital. A sociedade civil passa a ser apresentada pelo Estado como conjunto

de indivíduos que almejam a concretização de seus interesses particulares, sendo no plano

dos interesses econômicos que as relações sociais e políticas passam a ser reguladas.

O Estado brasileiro, ao reforçar a condução de sua administração em bases econômicas,

delegou a segundo plano as demandas sociais e a intervenção mínima do Estado passou a

ser defendida na perspectiva de melhor saída para o agravamento da crise econômica pela

qual passava o país.

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Nesse sentido as instituições estatais deveriam tornar-se eficientes mediante a utilização

de mecanismos racionais de mercado com uma atuação individual, porém eficiente. Os

espaços de participação populares, coletivos e deliberativos, como os conselhos, por exemplo,

ainda que relevantes no processo de formação democrático do Brasil, e sendo mecanismos de

participação da sociedade civil na construção de uma gestão conjunta, foram e são

constantemente bombardeados por essas ideias de ordem neoliberal, que reforçam as práticas

e comportamentos individualizados e particularistas, que em nada contribuíram para o

fortalecimento da democracia brasileira, mas fortalecem a democracia liberal defendida pelo

ideário neoliberal (DURIGUETTO, 2008).

Assim, essa sociedade civil, nos moldes liberais, para além do Estado, mas a ele aliada

de forma individual e solidária, uma vez que atua pro ativamente quando solicitada, passa a ser

a instancia requisitada pelo próprio Estado para participar institucionalmente dos assuntos

políticos, sociais e econômicos, e dentro de limites e condições por ele impostas

(DURIGUETTO, 2008).

A democracia passa a ser apresentada pelo Estado brasileiro como mecanismo político

possibilitador do exercício das liberdades e autonomias, tendo o mercado como ambiente

legítimo para a aquisição de oportunidades, alcançadas através das aptidões, competências e

habilidades individuais. Para além dessa visão mercadológica e individualista de sociedade civil

defendida pela superestrutura neoliberal, outros pensamentos analítico-teóricos também

convivem no contexto sócio-político da década de 1990 no Brasil. Diversos grupos organizados

se mobilizam em prol do meio ambiente, dos direitos das mulheres, dos direitos humanos, dos

direitos dos homossexuais, etc., denunciando e buscando ampliar os espaços de negociação

de seus direitos.

Os espaços públicos já existentes, tais como, fóruns, audiências públicas, conselhos

passam a ser palco de debates e embates públicos na defesa de direitos em coletividade.

Elementos como justiça e equidade passam a permear as discussões públicas, e ainda que o

Estado direcionasse sua atuação em muitos momentos nos moldes neoliberais, a presença dos

movimentos sociais e de suas reivindicações nestes espaços era perceptível (DURIGUETTO,

2008).

Em consonância com o ideário neoliberal que influenciou relevantemente a condução

política e econômica do país na década de 1990 foi implementado pelo Estado uma espécie de

“reforma gerencial”, tida por seu criador, Bresser Pereira (1995) como necessária para

estabelecer mudanças de cunho institucional-legal, com a modificação normativa e legal em

prol uma melhor gestão. Foram implementadas mudanças de cunho cultural também, onde se

substituiriam valores burocráticos por valores gerenciais, baseados em atuações da

administração privada. Também houve mudanças de cunho gerencial, onde a inovação

administrativa se daria através do fornecimento de serviços públicos que custassem menos

para o Estado, mas que proporcionassem efetiva qualidade.

Segundo Bresser Pereira (1995) os objetivos dessa reforma seriam o aumento da

eficiência e e efetividade administrativa, mediante a descentralização e da utilização de novos

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paramentos de controle gerencial, tais como contábeis, administrativos e de resultado. Além da

utilização do setor privado como parceiro na prestação de serviços tidos como não exclusivos

do Estado. A terceirização passou a ser a pedra de toque da gestão pública nesse período.

Havia também a preponderância de um discurso voltado para a eficiência dos órgãos

estatais e de responsabilização administrativa quando da malversação da função e do erário

público, e para isso, a transparência da atividade administrativa era essencial. A partir dessa

ideia, a atuação administrativa passou a ser evidenciada como obrigatoriamente pública e

transparente, e os órgãos de controle externo, como o Tribunal de Contas, estariam prontos

para fiscalizar e punir quando necessário.

Percebe-se que a década de 1990 no que diz respeito à atuação estatal e sua relação

com a sociedade civil e as demandas sociais, recebeu forte influencia das ideias neoliberais,

provocando inúmeras mudanças, de ordem econômica, política e social, o que repercutiu no

modo como as políticas públicas foram pensadas e implementadas a partir daí.

No que diz respeito à visão analítico teórico acerca do conceito de sociedade civil, tem-se

na perspectiva de Dagnino e Tatagiba (2011, p.1) como sendo,

o espaço ocupado pelos setores organizados da sociedade, tais como os movimentos sociais, organizações não-governamentais e uma multiplicidade de outras organizações, cuja característica mais geral é a necessidade de acessar a esfera pública para a obtenção de seus objetivos. Assim, a sociedade civil é um espaço que se caracteriza pela heterogeneidade e pela presença da disputa entre interesses e projetos em conflito, mais ou menos democráticos, sendo um espaço político por definição.

Essa heterogeneidade e multiplicidade de interesses colocam a sociedade civil como

protagonista da relação com o Estado, e, pode emancipá-la, mediante o exercício de práticas

democráticas de luta e reivindicação de direitos, bem como na sua atuação através dos

espaços de participação em prol da elaboração e implementação de políticas sociais. Ou, pode

contê-la, moldando sua atuação e participação em prol dos interesses do mercado, em

detrimento das necessidades sociais existentes. Seus avanços e retrocessos quanto à sua

relação com o Estado sofre influencias de ordem estrutural, econômica e política, devendo,

pois ser friamente analisada sob pena de mistificar sua relevância e destituí-la de seu poder.

Faz necessário compreender de que modo a sociedade civil foi se comportando na

medida em que o Estado passou a criar espaços de participação e colaboração na gestão

pública em resposta as reivindicações sociais nesse sentido. Essa compreensão perpassa a

análise das variáveis que compuseram o contexto pós redemocratização no Brasil e do modelo

neoliberal latente a partir da década de 1990.

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O CONTROLE SOCIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS OU

ACCOUNTABILITY SOCIETAL

Discute-se atualmente no Brasil em meios acadêmicos, a crescente atuação da sociedade

na fiscalização da gestão pública, mediante participação em espaços públicos destinados a

esse tipo de controle, tendo adquirido relevância crescente a questão da accountability da

própria sociedade civil (LAVALLE, 2011).

A palavra accountability possui origem inglesa e significa responsabilidade, obrigação de

cumprir algo decorrente da autoridade delegada e que só finda ao prestar contas das ações

executadas. Possui aspecto bidimensional, pois, além de envolver a capacidade de resposta

do representante (Estado), também exige a capacidade de fiscalização e punição por parte dos

representados (sociedade civil), revelando, assim, seu caráter institucional e pressupondo a

existência do poder e a necessidade de seu controle (LUCHMANN, 2011).

O agente externo de controle da administração pública, nesse sentido seria o eleitor,

aquele que mediante processo democrático de escolha de seus representantes encontra-se

impelido a fiscalizá-lo. Nessa perspectiva aponta-se três tipos de accountability: vertical,

horizontal e societal, sendo as mesmas respectivamente, correspondentes à,

responsabilização, transparência e prestação de contas (O’DONNEL, 1998).

O’Donnell (1998) afirma que a accountability possui, em sua matriz teórica, elementos

liberais, democráticos e republicanos. O componente liberal diz respeito aos direitos

inalienáveis e garantidos a todos os cidadãos. O elemento democrático estaria diretamente

relacionado ao exercício do voto (accountability vertical). E o elemento republicano traduz-se

na necessidade de cumprimento do dever público e do seu papel de representante. Ocorre

que pensar em uma prestação de contas baseada tão somente nos argumentos acima

mencionados não supre a carência relacionada ao controle da gestão pública. O sistema

representativo não deve concentrar-se apenas no ato de votar e ser votado, ainda que seja um

mecanismo democrático inicial e necessário, deve perdurar através da fiscalização dos atos

dos seus representantes.

A noção de accountability horizontal, defendida por O’Donnell (1998) aponta para a

existência de agências controladoras da atuação governamental que permeiam todos os atos

de gestão, inclusive prevendo sanções legais à conduta lesiva do gestor. Essa visão fortalece a

ideia de uma atuação por parte da sociedade civil que permita sua participação na fiscalização

da gestão pública, indo além dos tradicionais mecanismos de controle através das eleições.

Esse conceito de prestação de contas ou accountability tido por Peruzzotti e Smulovitz

(2002) como societal, traduz-se num mecanismo de controle não eleitoral através de

ferramentas institucionais e não institucionais (ouvidorias, controladorias e ações legais, como

ação civil pública, mandado de segurança coletivo etc.) fundamentadas em atividades da

sociedade civil, objetivando expor as faltas administrativas dos gestores públicos, bem como

questionar os atos de gestão interferindo, inclusive, no direcionamento de verbas públicas.

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Seria este um mecanismo não eleitoral, que viabilizaria espaços institucionais e não

institucionais de participação na fiscalização e controle da gestão e contas públicas. Sua base

está nas variadas ações desenvolvidas por grupos sociais organizados objetivando expor os

erros administrativos, bem como ter peso nas decisões políticas tomadas pelos gestores.

Nesse cenário, o acesso às informações relacionadas à gestão pública contribui para a

fundamentação das ações e denuncias propostas, sendo, pois, a transparência elemento

básico para esse tipo de controle.

A accountability, segundo Luchmann (2011, p. 158), “diz respeito aos processos ou

mecanismos de justificação junto aos representados e que ocorre, nesses casos, de forma

retrospectiva, adquirindo um caráter público e reflexivo”. Trata-se de um processo que combina

representação e participação desenvolvendo-se no tempo e ocorre através das relações entre

representantes e representados, uma vez que o representante prestaria contas continuamente

a seus representados (LUCHMANN, 2011).

A Constituição de 1988 apresenta em seu conteúdo inúmeros espaços de participação na

accountability. Seu artigo 5º, incisos XXXIII e XXXIV, a e b, ao assegurar o direito à informação,

à petição e à certidão, proporcionou no plano normativo a participação no controle social da

gestão e das contas públicas.

Os estudos acerca do termo controle social possuem origem na sociologia, tendo como

característica principal dispor de mecanismos que regulam a sociedade e determinam a ordem

social, através da submissão dos indivíduos à princípios morais e normas sociais (CORREIA,

2004). Trata-se de uma visão fundamentada na tese de controle do Estado sobre a sociedade,

no qual cabe à aquele proteger a vida dos homens e garantir a paz social.

O pensamento Gramsciano sobre controle social parte de uma relação orgânica entre

sociedade civil e Estado, a qual se configura através da disputa pela hegemonia entre as

classes sociais. A correlação de forças que se manifesta a partir destas disputas é que

determina quem em dado momento histórico exerce o controle social (COUTINHO, 1989).

Divergente aos pensamentos ora apresentados tem-se a visão de Locke sobre controle

social, o qual seria a sociedade fiscalizando e controlando o Estado, sendo, pois uma forma de

fiscalização que ocorre de fora para dentro do Estado, ou seja, a população controlando os

atos de gestão do Estado.

No tocante ao Brasil, a utilização do termo controle social se deu com o advento da

Constituição de 1988, no sentido de a sociedade civil organizada ou não participar da

fiscalização da gestão pública, seja quanto a elaboração, implementação e gestão de políticas

públicas, seja no que diz respeito ao direcionamento das verbas públicas e seu efetivo gasto

(CORREIA, 2004).

Os variados mecanismos de participação da sociedade civil na gestão pública, entre eles

os conselhos, os orçamentos participativos, as audiências públicas, os fóruns, as Ouvidorias e

Controladorias, são considerados como instrumentos de accountability societal ou controle

social, através dos quais é possível que membros da sociedade participem do processo

decisório (SIRAQUE, 2005).

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Enfim, com essas novas institucionalidades e experiências de controle social, pós-

Constituição de 1988, têm-se novos delineamentos em torno do papel da sociedade civil na

relação com o Estado, passando de um ideário político-estratégico, durante o período militar,

no qual os movimentos sociais lutavam por reconhecimento de direitos e opunham-se ao

regime autoritário, para uma posição mais analítico-teórica, na qual a relação sociedade e

Estado passa a ser compreendida considerando a heterogeneidade de ambas e o peso que

possuem para a composição e construção democrática (LUCHMANN, 2011).

Passa-se a conceber a sociedade civil como composta por uma variável de interesses e

objetivos tanto quanto o Estado no campo da cultura e da política, pluralizando as concepções

de democracia e participação (LAVALLE, 2003).

Como dispõe esse autor,

O teor da discussão, hoje, salienta o potencial de sinergia nas relações Estado-sociedade, a relevância de novos espaços de participação, o papel da sociedade civil nas políticas públicas, a emergência de novas institucionalidades e a multiplicação de formas inéditas de representatividade (LAVALLE, 2003, p.92).

Reforçando as análises aqui postas: a Constituição de 1988 referendou a participação da

sociedade civil através da criação de espaços públicos e não tão somente das eleições. Trata-

se da existência normativa de participação paritária do Estado e da sociedade civil (DAGNINO;

TATAGIBA, 2011). Assim,

As inflexões nas formas de atuação dos movimentos sociais, expressa na sua chamada “inserção institucional” e as novas relações que se estabelecem entre eles e o Estado nos seus distintos níveis, exigiu a adoção de novas formas de atuação que, por sua vez, implicaram num difícil processo de aprendizado. O trânsito que desde uma atuação que enfatizava fortemente, de um lado, a dimensão reivindicatória e as estratégias de ação a ela adequadas e, de outro, a mobilização e organização do movimento, para as novas exigências que a participação nos novos espaços trazia, se mostrou um sério desafio para os movimentos (DAGNINO; TATAGIBA, 2011, p.4).

Tem-se, desde então, portanto, o enaltecimento do papel da sociedade civil na

participação e controle dos atos de gestão nas diversas esferas e instâncias governamentais.

Não se trata da substituição das instituições da democracia representativa, mas de sua

complementação, promovendo, na visão de Tatagiba e Teixeira (2006, p.4), “[...] uma nova

arquitetura institucional onde o sistema representativo possa ser fortalecido e tensionado pela

inclusão de mecanismos de participação cidadã”.

Porém é perceptível que o contexto pós-democrático brasileiro, após reconhecer e

inaugurar inúmeros espaços públicos propícios à participação e ao controle social, “não

arquitetou institucionalmente alternativas à reforma do Estado, não os inclui como elementos

de uma renovada arquitetura institucional capaz de oferecer caminhos novos e alternativos à

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reforma do Estado e de garantia de governabilidade” (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006, p.5).

Nesse sentido dizem ainda que

A impressão é que a riqueza das experiências participativas no Brasil, mundialmente reconhecidas, “correm por fora”, ficam na periferia do sistema, afetando pontualmente uma ou outra política setorial, a depender da vontade política dos governos/ou do poder de pressão da sociedade organizada. Elas parecem não induzir ou resultar de uma estratégia mais profunda de articulação entre representação e participação, nos modelos atualmente disponíveis que orientam os processos concretos de reconfiguração (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006, p.5)

Parece-nos que a questão central está na dificuldade de compreender que tipo de

participação foi sendo moldada no contexto brasileiro, pós-Constituição de 1988, diante das

relações existentes entre Estado e sociedade civil na condução da gestão pública.

A criação de espaços públicos de participação, com fins de ampliar a representação e

integrar a sociedade civil à cena pública, ocorreu especialmente sob o ponto de vista normativo

e, sobretudo, pós-Constituição de 1988. Há um rol de previsões e dispositivos constitucionais

que não apenas permite essa participação, como a coloca como peça chave na formação de

um ambiente democrático de fato.

O pluralismo de interesses e de grupos componentes dessa sociedade trouxe para a cena

pública uma nova visão da relação Estado/sociedade civil. Tem-se uma heterogeneidade de

interesses, de ideias e de disputa por poder. É necessário, pois, compreender que, diante de

inúmeras variáveis, esses espaços têm sido utilizados por distintos sujeitos políticos que

buscam posição e reconhecimento, no que diz respeito ao seu papel de agente construtor de

direitos e fiscalizador da gestão pública. E nem sempre a existência desses espaços por si só

significa a consagração de uma relação democrática entre Estado e sociedade civil.

Há que se aperfeiçoar os espaços de participação sem dotá-los de virtuosidade excessiva

como solução para todos os males democráticos. A busca seria por romper os obstáculos

relacionados a dar àqueles a instrumentalidade necessária para tornar viável a construção de

uma relação democrática entre sociedade civil e Estado. O cenário atual acerca da participação

no país encontra-se em franca expansão, recebendo do governo federal incentivos à

colaboração social na condução da gestão (AVRITZER, 2009). A exemplo disso tem-se o PNP,

os conselhos, além de mecanismos de controle e fiscalização da gestão pública (as

ouvidorias).

O desafio está na construção de uma arquitetura institucional na qual o sistema

representativo seja fortalecido e constantemente tensionado pelos mecanismos de participação

da sociedade civil, na busca de seus interesses e objetivos quanto à política desenhada. Trata-

se de uma constante reconstrução do cenário político e gestacional do próprio Estado, que se

compõe e recompõe mediante o jogo de forças dos diversos interesses na sociedade

representados.

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O Brasil, apesar de possuir um conjunto exemplar de mecanismos participacionistas,

sendo estes considerados elementos essenciais no processo de descentralização das políticas

e de aproximação das mesmas ao seu público-alvo, a sociedade, não se integram à própria

estrutura estatal. Ou seja, são criados pelo Estado e seguem procedimentos inerentes a cada

espaço onde serão utilizados, o que dificulta à sociedade conseguir adentrar e colaborar com

uma efetiva atuação democrático-participativa (DURIGUETTO, 2007).

O desafio posto está em diante da institucionalização dos mecanismos de controle social,

compreendê-los para além de sua existência, verificando a fundo até que ponto os mesmos

seriam mecanismos efetivos de participação no controle social, ou se seriam apenas

instrumentos de consentimento da sociedade civil para as decisões estatais (BRAVO;

CORREIA, 2012).

Questões como a forte presença de elementos patrimonialistas, autoritários e clientelistas,

práticas constantes em nosso cenário político, apresentam-se como relevantes obstáculos à

efetiva implementação de uma gestão compartilhada e uma relação efetivamente democrática

entre sociedade civil e Estado (SILVA, 2006).

Conceber o que vem a ser controle social no Brasil perpassa necessariamente pela

superação desses obstáculos, não apenas no plano normativo, mas principalmente no

exercício diário das práticas de participação social, ainda e sob a forte presença de embates e

contradições inerentes à relação Estado e sociedade civil em um contexto plural e capitalista.

AS OUVIDORIAS DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DOS ESTADOS E SEU

PAPEL JUNTO À SOCIEDADE

O exercício da função administrativa no Brasil está sujeito a diversos tipos de controle,

sendo os dois mais importantes e normativamente declarados na Constituição de 1988, o

controle social e o institucional. O primeiro é realizado pela sociedade individualmente ou

através de um órgão do próprio Estado criado para este fim, como no caso das Ouvidorias dos

Tribunais de Contas dos Estados. O segundo é realizado exclusivamente por órgãos da própria

administração pública com fins a regular seu atos (SIRAQUE, 2005).

O controle institucional pode ser interno, quando a fiscalização e supervisão parte de sua

própria estrutura organizacional, ou externo, quando o controle decorre de ente estatal alheio

àquele responsável pela pratica dos atos administrativos. Ou seja, a atividade controlada é

fiscalizada por órgão distinto daquele que praticou o ato administrativo.

A titularidade do controle externo é do Poder Legislativo, sendo exercido através dos

Tribunais de Contas dos Estados, conforme dispõe os artigos 71 e 75 da Constituição Federal

de 1988. Controles externo e interno se complementam em torno de seu objetivo fim, qual seja,

o de fiscalizar os atos de gestão pública.

O controle social se dá na medida em que sob o ponto de vista da própria organização

administrativa do país, em aspectos normativos, existe prescrição legal expressa voltada para

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a atuação da sociedade civil na fiscalização dos atos administrativos, tanto em termos de

serem ou não oportunos, quanto no tocante a serem convenientes para aquele dado momento.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), nº 101/2000 trouxe em seu arcabouço legal a

possibilidade de significativa participação da sociedade civil no processo de elaboração e

implementação do orçamento público, além da possibilidade de fiscalizá-lo, exercendo controle

sobre a sua condução.

Em seu artigo 481, parágrafo único, I, a LRF permite, através de audiências públicas, que

a supracitada participação da sociedade civil organizada ou não ocorra, quando da elaboração

orçamentária do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei

Orçamentária Anual (LOA), sendo obrigatório o acesso às informações relacionadas à sua

execução financeira e orçamentária.

A Lei nº 12.527/2011 intitulada Lei de Acesso à Informação trouxe mais um instrumento

normativo que referenda a participação no controle social da gestão pública, uma vez que

regulamentou especificamente o procedimento de reivindicação da sociedade por informações

relacionadas à administração pública em todas as suas esferas.

No caso específico das contas públicas municipais, o canal de participação

normativamente constituído para o exercício do controle social são as Ouvidorias dos Tribunais

de Contas dos Estados (BRASIL, 2013).

No que diz respeito à participação no controle social das contas públicas estaduais e

municipais, os artigos 74, §2º e 75 da Constituição Federal, regulamenta a possibilidade de

qualquer cidadão denunciar ilegalidades ou irregularidades diretamente aos Tribunais de

Contas. Esse mecanismo proposto normativamente pelo Estado viria a funcionar como

instancia mediadora das relações entre este e a sociedade, e em plano normativo, viabilizando

o controle social das contas públicas.

Registra-se aqui a relevância da criação das Ouvidorias com fins a viabilizar a

apresentação por parte de qualquer cidadão de reclamações ou sugestões relacionadas à

gestão das contas públicas. A denúncia de irregularidades ou ilegalidades na aplicação das

verbas públicas tornou-se possível através da sua existência, o que em tese promoveria maior

efetividade na atuação dos órgãos de controle, no caso os Tribunais de Contas. Resta

compreender se a criação e utilização desse mecanismo de participação no controle social das

contas públicas municipais viabilizam uma relação democrática entre Estado e sociedade civil

ou apenas referenda um transferir de responsabilidades por parte da administração pública.

Como se tem afirmado, houve uma ampliação, no cenário brasileiro, do ideário de

participação da sociedade civil na gestão pública, para o controle social sobre o Estado. O

objetivo seria acompanhar sua gestão e monitorar sua atuação, de modo a garantir sua

eficiência pública, mantendo-o limitado e restrito as suas funções administrativas essenciais,

prática denominada de “prestação de contas” ou accountability (PERUZZOTTI; SMULOVITZ,

2002).

Diante desse contexto, Lavalle (2011, p.96) aponta que

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As teorias centradas na idéia de accountability surgem do inconformismo diante das teorias de autorização, procurando tornar mais exigente o conceito de representação ao denunciar as insuficiências de um ato de consentimento único e introduzir a necessidade de controle e sanções contínuas sobre os representantes.

Assim sendo, a instalação das Ouvidorias dos Tribunais de Contas é apresentada pelo

Estado brasileiro como mecanismo de controle social da gestão pública e vem adquirindo

contornos relevantes, principalmente em países que passaram por processos de

redemocratização, como o Brasil. A reforma administrativa pela qual passou o país favoreceu a

elevação desses espaços de participação da sociedade civil organizada ou não no controle e

fiscalização das contas públicas.

As Ouvidorias dos Tribunais de Contas dos Estados surgem nesse contexto de

aprimoramento do controle e da fiscalização da gestão pública a partir do final da década de

1990 e de lá para cá tem se apresentado como um órgão independente e auxiliar do Poder

Legislativo no exercício normativo do acompanhamento da atuação governamental.

Esse mecanismo de controle dos atos da administração pública possibilitou, ainda que de

modo institucionalizado, um canal de controle direto da sociedade civil relacionado à gestão

pública municipal, estadual e federal. Ou seja, na medida em que permite que qualquer pessoa

possa realizar uma denúncia, inclusive de forma anônima, por telefone, carta, email, etc. Tem-

se através da possibilidade de qualquer pessoa denunciar os atos irregulares dos gestores

públicos nos Tribunais de Contas, mediante contato com os próprios conselheiros ou através

das Ouvidorias existentes nesses órgãos3, o exercício da accountabillity societal, na qual a

participação da sociedade civil está para além da simples escolha de seus representantes, mas

perpassa a sua atuação enquanto gestor tanto no que diz respeito as escolhas que faz, como

relação ao modo como gasta as verbas públicas.

Nesse sentido, Lavalle (2011) traz à tona a relevância da accountability na condução

política do Estado, senão vejamos:

A accountability aparece hoje como uma perspectiva teórica que permite elaborar respostas aos desafios da legitimidade das novas modalidades de representação política, contornando o impasse da autorização como fonte de legitimidade. (LAVALLE, 2011, p. 100).

3 O § 3º, incisos I, II e III do art. 37 da Constituição Federal, estabelece que: “§ 3º A lei disciplinará as formas de participação

do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I- as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, incisos X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública.” (BRASIL, 1988)

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A criação desses espaços viria sobre esse prisma analítico-teórico, ao encontro dos

dispositivos normativos presentes na Constituição Federal, havendo um ganho emergente na

sua existência, na medida em que, para além da existência da norma, abriria mais um canal de

participação da sociedade civil, agora na fiscalização e controle dos atos de gestão e gastos

públicos, tornando mais democráticas as relações entre quem governa e quem é governado

(LAVALLE, 2011).

A criação das Ouvidorias coaduna-se com os interesses do próprio Estado de

institucionalizar o modo como deveria ser controlado socialmente, em prol de uma eficiência

governamental. Além disso, viabilizaria a abertura de novos canais ou espaços participativos,

não apenas na criação, implementação e avaliação de políticas públicas, mas também no

controle social da gestão governamental, o que pode ser utilizado no interesse da sociedade

civil no modo como atua e se relaciona com o Estado.

A essência das Ouvidorias está em estabelecer canal de comunicação entre a sociedade

civil e os Tribunais de Contas, para que estes exerçam sua função de controladores da

administração pública. Estabelece-se, a partir daí, uma política de acompanhamento e controle

por parte da sociedade da atuação governamental, onde o indivíduo é dotado de poder para

atuar no controle e fiscalização de seus representantes. Há que se analisar tal mecanismo sob

o ponto de vista de sua relevância para o fortalecimento das relações entre Estado e sociedade

civil, tendo em vista que preceitos neoliberais apropriam-se constantemente de mecanismos e

espaços tidos como públicos e participacionistas para tão somente justificar a transferência de

responsabilidade estatal para a sociedade.

Seriam, pois as Ouvidorias instrumentos criados com fins a permitir o controle dos atos da

administração pública por parte da sociedade, visando um aprofundamento das relações de

poder entre ela e o Estado, ou mais um espaço no qual as ideias neoliberais de transferência

de responsabilidade do Estado para o indivíduo se configura? Como dito em outras

oportunidades, tanto a participação como o controle social podem e são continuamente

utilizadas pelo ideário neoliberal como elementos relevantes na configuração de seus

interesses em prol do mercado.

Há que se compreender o modo como esses espaços funcionam e quais perspectivas os

mesmos proporcionam efetivamente para a sociedade no tocante a uma atuação democrática

e comprometida com seus interesses políticos, e não meramente mercadológicos.

O que se pode perceber no caso da utilização das Ouvidorias no Brasil, é que as mesmas

devem ser regidas pelo princípio da transparência, que prepondera na a atuação

governamental do país, desde 1988, e consiste na obrigatoriedade de publicização dos atos de

gestão pública, da prestação de contas e da própria condução da atuação governamental.

Cabe aos órgãos de controle externo fiscalizar e apontar as irregularidades existentes, em prol

de uma gestão transparente e eficiente. As Ouvidorias entram nesse cenário, como

instrumento legal de participação da sociedade no controle das contas públicas, na medida em

que permite que as pessoas realizem denúncias voltadas a gestão e gastos públicos.

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Com base nesse princípio, uma série de medidas vem sendo implementadas pelo

governo federal em busca do cumprimento normativo que o mesmo defende, tais como

publicação dos orçamentos, gastos e direcionamento de verbas nas diversas áreas de atuação,

além da criação de portais e sites nos quais disponibilizam as mais variadas informações

acerca da condução administrativa da União, estados e municípios.

No sentido de viabilizar essa política de transparência das contas públicas e gestão

eficiente houve a necessidade de regulamentar o artigo 5º, incisos XIV e XXXIII, acerca do

direito à informação que ainda carecia de norma complementar que dispusesse como essas

informações poderiam ser divulgadas4.

Adiciona-se a isso, o disposto na CF de 1988 em seu artigo 31§ 3º, acerca da

obrigatoriedade de acesso por parte da população às contas anuais dos gestores municipais

viabilizando assim o conhecimento por parte de quem se interesse do como o dinheiro público

está sendo gasto.

O fato de serem as Ouvidorias canais diretos de interação entre Estado e sociedade civil

no que diz respeito à gestão pública, coloca esses espaços em situação de evidencia e permite

compreender seu papel no aprofundamento democrático entre aqueles que alicerçam nossa

sociedade.

Cabe aos controles interno e externo da administração pública, dentro do cenário

apresentado, viabilizar o acesso da sociedade civil às informações necessárias ao exercício da

fiscalização. Esse dever possui duas conotações: uma de vislumbrar a capacidade de resposta

dos governos a sua obrigação de informar e publicizar seus atos; e a outra diz respeito à

possibilidade de a sociedade impor restrições à atuação de seus representantes quando da

constatação de violação de seus deveres (O’DONNEL, 1998).

CONCLUSÃO

Tem-se no Brasil um contexto favorável à participação na accountability societal, na

medida em que as Ouvidorias permitem a aproximação entre a sociedade civil e o Estado no

tocante à sua condução administrativa. Resta-nos compreender a efetiva validade desses

espaços no que diz respeito ao fortalecimento das relações entre Estado e sociedade civil,

verificando se seriam instâncias reais de construção de uma gestão compartilhada, ou apenas

mecanismos criados e conduzidos pelo Estado para controlar a sua própria atuação. Ainda que

4 Os incisos acima citados foram regulamentados pela lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, conhecida como lei de

acesso à informação. Com a aprovação dessa lei que entrou em vigor em maio de 2012, ficou regulamentado o direito ao acesso livre às informações tuteladas pelo gestor público, conforme disposto no artigo 5º da Constituição Federal. Esse marco regulatório convergiu para a ampliação da participação e o fortalecimento dos instrumentos de controle da gestão pública. Trata-se de uma mudança paradigmática na medida em que estabelece a transparência pública como regra e o sigilo como exceção. Segundo o disposto normativo, a solicitação de informações públicas pode ser feita por qualquer cidadão, em qualquer um dos poderes e entes da federação, salvo se estiverem classificadas como sigilosas pelo Estado. Prevê ainda a divulgação proativa das informações de interesse coletivo e geral, através de sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).

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o cenário seja positivo à participação da sociedade civil organizada ou não no controle da

gestão, há que se questionar até que ponto estar-se-ia diante de uma atuação estatal que se

preocupa com sua relação democrática com a sociedade civil, coadunando-a com práticas

reais de controle dos atos de gestão pública.

O controle externo é relevante para consolidar o processo democrático, porém não é

possível desconsiderar a sinergia existente na relação e no jogo de forças entre Estado e

sociedade civil. O aprimoramento dos mecanismos institucionalizados de controle e

fiscalização através da Lei de Acesso à Informação e à transparência pública deve ser

compreendido em um contexto não apenas microinstitucional, mas superestrutural. É

necessário descortinar as relações emergentes nesses espaços de controle da gestão pública

e revelar qual a real conjuntura de sua utilização, diante de um cenário político e

governamental permeado por variáveis sociopolíticas.

As Ouvidorias dos Tribunais de Contas foram apresentadas pelo Estado como

mecanismos promissores de acesso da sociedade civil à gestão pública, na medida em que,

segundo aquele, possibilitam a equalização das relações sociais e ampliam o controle e a

fiscalização direta da sociedade sobre o poder público.

Sua criação, no âmbito dos Tribunais de Contas, pode ser compreendida tanto sob a

perspectiva de possibilitar a ampliação dos mecanismos participativos de controle e

fiscalização da gestão pública, como de uma reestruturação administrativa focada na co-

responsabilização da sociedade. Entretanto, não se pode desconsiderar os obstáculos

existentes à uma efetiva relação democrática ente sociedade civil e Estado, sob pena de cair

na vala comum das análises descritivas acerca da eficiência e eficácia governamental, em

detrimento de um estudo aprofundado sobre os ganhos na construção de bases democráticas

de relacionamento entre Estado e sociedade civil.

Os mecanismos de controle da gestão e contas públicas atualmente em vigor no país,

entre eles as Ouvidorias dos Tribunais de Contas, podem contribuir para a construção de uma

relação democrática entre Estado e sociedade civil, desde que sejam incorporados no plano

político como espaços públicos de efetiva emergência de interesses plurais da sociedade civil.

Não há que se falar em virtuosidade de atores sociais, nem tampouco do próprio Estado, mas,

considerando suas heterogeneidades e seus papéis na construção de relações democráticas,

trazê-los à cena para uma composição compartilhada e não subordinada de interesses.

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O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À SAÚDE COMO UM DEVER

PRESTACIONAL DO ESTADO

André Carvalho Luz1

“É coisa preciosa, a saúde, e a única, em verdade, que merece que em sua procura empreguemos não apenas o tempo, suar, a pena, os bens, mas até a própria vida;

tanto mais que sem ela a vida acaba por torna-se penosa e injusta”. Michel Eyquem de Montaigne

“Democracia com fome, sem educação e saúde para a maioria, é uma concha vazia”.

Nelson Mandela

“A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba”.

Guimarães Rosa

Resumo: O presente trabalho analisa o conceito de Direitos Fundamentais Sociais, com

especial atenção ao direito social à saúde. O tema é dividido, de forma a refletir sobre o

problema da efetividade dos direitos sociais como verdadeiros direitos sociais prestacionais,

em suas perspectivas objetiva e subjetiva. Somado a isto, o intento é demonstrar, em um

primeiro momento, a correlação do Direito Fundamental à saúde caracterizado como

indisponível a vida humana digna.

Palavras-chave: Direitos fundamentais sociais prestacionais. Saúde. Vida. Dignidade da

pessoa humana. Indisponibilidade.

DEFINIÇÃO E CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

termo “direito do homem” e “direito fundamental” consubstanciam que: o primeiro

quanto à origem, correlaciona a direitos válidos a todos os povos, em todas as

épocas, em suma, vinculam-se à natureza humana sem limite de tempo (visão jusnaturalista-

universalista), enquanto que o segundo vocábulo faz referência a direitos do ser humano2,

1 André Carvalho Luz é advogado (sócio do escritório - Jurandy Porto Sociedade de Advogados). Mestre em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa – UAL (Revalidado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN). Especialista em Ciência Jurídico Processuais pela Faculdade Maranhense São José dos Cocais –FMSJC. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB. Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Professor de Direito em cursos de graduação (AESPI, FAPI e FACID–DeVry) e de pós-graduação. É também Diretor de Relações Institucionais e de Eventos da Escola Superior de Advocacia do Piauí - ESA-PI, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Piauí – OAB-PI. Email: [email protected]

2 No mesmo sentido: “Os direitos fundamentalíssimos, antepondo-se à compreensão dos demais direitos fundamentais, correspondem às prerrogativas inerentes à pessoa humana considerada em si mesma”. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. p. 102.

O

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previstos no sistema jurídico-institucional registrados no tempo e em determinado espaço, ou

seja, direitos objetivamente previstos numa determinada ordem jurídica, concreta e em vigor3.

Complementa Ieda Tatiana Cury explicando que não há diferenças entre as expressões

direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais em sentido estrito, contudo, estas

possuem significados diferentes de acordo com a época utilizada. A primeira expressão

bastante empregada pelos jusnaturalistas dos séculos XVII a XIX se reporta ao direito natural e

direito de liberdade decorrentes daquele. Já a segunda é usada em tratados internacionais ao

expressarem as liberdades e direitos, sendo um vocábulo de cunho internacional, e por fim a

terceira, que em sentido estrito se caracteriza como um grupo de normas que zelam pelos

direitos e liberdades garantidos no direito positivo de um Estado, em especial, por seu caráter

básico e fundamentador com limitação espacial e territorial numa ordem jurídica4.

Os direitos fundamentais possuem principalmente dois pontos de vistas importantes: o

primeiro é que este parte de uma premissa mais filosófica, pois garantem ao ser humano a

qualidade de pessoa, uma vez que os exclusivos titulares dos direitos fundamentais são os

indivíduos humanos5; já o segundo ponto de vista refere-se ao início do gozo destes direitos

humanos, pois estes só possuem a titulação de fundamentais quando positivados no

ordenamento jurídico6.

Os direitos fundamentais humanos7 possuem uma inerente ligação com a dignidade

humana e seu objetivo é proteger os bens definidos numa sociedade democrática, por ser

aquela premissa de ordem pública nos dois séculos que se passaram. Tendo, deste modo,

importante componente de cunho moral e jurídico integrante do ordenamento jurídico,

ultrapassando a antiga premissa de ideal a ser seguido e cumprido pelo Estado8.

Estes direitos vinculam-se a liberdade e dignidade humana, como valores históricos e

filosóficos, possuindo um significado universal inerente como ideal da pessoa humana, sendo

esta manifestada pela primeira vez com a revolução francesa na famosa Declaração dos

Direitos do Homem de 17899.

Outras expressões conforme lição de Jorge Horácio Gentile:

“Derechos Humanos”, “Derechos del Hombre”, “Derechos Naturales”, “Derechos Innatos”, “Derechos Individuales”, “Derechos Fundamentales”, “Derechos Morales”, “Derechos Públicos Subjetivos”, “Derechos Subjetivos”, “Libertades

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes: Direito Constitucional. Coimbra, Almedina. 7ª ed. 5ª reimpressão. 2003. p.393. 4 CURY, Ieda Tatiana. Direito fundamental à saúde: Evolução, Normatização e Efetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2005. p. 1. 5 “Todo direito fundamental, no direito brasileiro, é também individual e, nesta medida, seu núcleo é intangível (CF art. 60,

par. 4º)”. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 209-210. 6 CURY, Ieda Tatiana. Op. Cit. p. 2. 7 No mesmo sentido: “Direitos Fundamentais do Homem (...). No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se

trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem, significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 32ª ed. revisada e atualizada. São Paulo: Malheiros. 2009. p.178.

8 CURY, Ieda Tatiana. Op. Cit. p. 3. 9 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15 ed. Malheiros, 2004, p.562.

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Fundamentales” o “Libertades Públicas”, se usan indistintamente para referirse a estos derechos enumerados o no enumerados por las constituciones, las declaracioenes y los tratados internacionales o las leyes que lo reconocem10.

Tais significados e outros11 são importantes, e tais expressões deverão ser utilizadas

como sinônimo de direitos sociais fundamentais, dado ao objeto do presente estudo.

CARL SCHMITT apud BONAVIDES define os direitos fundamentais utilizando critérios

(formais e materiais). Pelo critério formal, direitos fundamentais são considerados como os

direitos ou garantias nomeados e especificados em um documento de cunho constitucional,

possuindo como características serem possuidor de um maior grau de garantia ou de

segurança, levando-se em conta a dificuldade de mudanças destes (nunca mudar – imutáveis,

ou, uma mudança dificultada, quórum especial e somente por emenda à Constituição).

Enquanto que, ao utilizarmos o critério material para identificar os direitos fundamentais, estes

variam conforme os valores, princípios, ideologia, modalidade de Estado que a carta maior

consagra, tendo cada Estado definido seus próprios e específicos direitos fundamentais12. No

mesmo sentido temos que os direitos fundamentais de primeira geração, compreendem os

direitos e garantias políticas e individuais (liberdades públicas) que surgiram por meio da

instituição da Carta Magna13.

BULOS entende:

Direitos fundamentais são o conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos inerente à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna livre e igualitária, independente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social. Sem os direitos fundamentais, o homem não vive, não convive, e, em alguns casos, não sobrevive. (...)14.

Ao tempo, que define que direitos fundamentais (liberdades pública) em sentido amplo

como um:

(...) conjunto de normas constitucionais que consagram limitações jurídicas aos Poderes Públicos, projetando-se em três dimensões: civil (direitos da pessoa humana), política (direito de participação na ordem democrática) e econômico-social (direitos econômicos sociais). (...) cumprem as finalidades de defesa e de instrumentalização. Como direitos de defesa, permitem o ingresso em juízo para proteger bens lesados, proibindo os Poderes Públicos de invadirem a esfera privada dos indivíduos. No posto de direitos instrumentais, consagram princípios informadores de toda a ordem jurídica (legalidade, isonomia, devido processo legal etc.), fornecendo-lhes os mecanismos de tutela (mandado de segurança, habeas corpus, ação popular etc.). A finalidade instrumental das liberdades

10 GENTILE, Jorge Horacio. El Fundamento de Los Derechos Humanos.In Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC. n. 6. JUL/DEZ. São Paulo. 2005. p. 57.

11 “diferentes rótulos, tais como direitos humanos fundamentais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, direitos naturais, liberdades fundamentais, liberdades públicas etc.”. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 56/2007. – São Paulo: Saraiva, 2008. p.404.

12 BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p.561. 13 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2011. p.34. 14 BULOS, Uadi Lammêngos. Op. Cit. p.404.

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públicas permite ao particular reivindicar do Estado: o cumprimento de prestações sociais (saúde, educação, lazer, moradia etc.)”15.

Robert Alexy demonstra a estrutura dos direitos fundamentais iniciando o conceito de

norma de direito fundamental. Explica que o conceito de norma por ser uma expressão

utilizada com vários significados e fonte de intermináveis polêmicas, adota sua concepção

semântica de normas16, buscando distinguir “normas” e “enunciado normativo” sendo que,

aquelas exprimem um dever ser por expressões deônticas (pode, proibido e deve), e que toda

norma pode ser difundida por meio de um enunciado normativo, e caso tenha expressão

deôntica, será considerado enunciado deôntico17. As normas de direito fundamental são

somente algumas que estão previstas na Constituição18, utilizando critérios materiais,

estruturais e ou formais, estes mais convenientes19, para identificá-los20. Ao passo que

estabelece um conceito de disposições conforme previstos nos enunciados formulados nos art.

1º a 19 da Lei Fundamental Alemã, além de outros previstos nos artigos 20, §4º, 33, 38,

101,103 e 104, que conferem direitos individuais21. Estas normas de direito fundamental podem

estruturalmente expor-se como regras ou como princípio22.

Os princípios são normas com um alto grau de generalização23 e apresentam-se como

mandados de otimização24 (normas prima facie), são normas que possuem comandos para

cumprimento na maior extensão possível (dentro das possibilidades fáticas e jurídicas)25. Já as

regras são normas com um baixo grau de generalidade26, e que só podem ou não serem

cumpridas, possuindo deste modo, determinações que deverão se realizar apenas nas

possibilidades fáticas e jurídicas possíveis, delimitadas e fixadas na norma, o que significa uma

diferenciação qualitativa e não de grau27.

CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS (DIREITOS

PRESTACIONAIS)

Na Constituição Brasileira, são proclamados como direitos fundamentais sociais em seu

artigo 6º: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e a infância e a assistência aos desamparados28.

15 BULOS, Uadi Lammêngos. Idem. p.404-405. 16 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:

Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 1993, reimpressão de 2002. Capítulo II.p.53. 17 Idem. Ibidem. 18 ALEXY, Robert.Op. Cit. p.62. 19 “Más conveniente que la fundamentación del concepto de norma de derecho fundamental sobre criterios materiales y/o

estructurales es su vinculación con un criterio formal, que apunte a la forma de la pósitivización”. ALEXY, Robert. Idem.p.65.

20 ALEXY, Robert. Idem. p.63. 21 ALEXY, Robert. Idem. p.65. 22 ALEXY, Robert. Idem. p.81. 23 ALEXY, Robert. Idem. p.83. 24 ALEXY, Robert. Idem. p.86 25 ALEXY, Robert. Idem. p.82. 26 ALEXY, Robert. Idem. p.83. 27 ALEXY, Robert. Idem. p.87. 28 MORAES, Alexandre de. Op. Cit. p.208.

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Estes direitos fundamentais possuem em comum a mesma origem principio lógica, qual

seja, o princípio da dignidade da pessoa humana, que seria nada além de que o

reconhecimento no ordenamento jurídico à positivação dos direitos e garantias fundamentais29.

Consideram-se os direitos fundamentais sociais como direitos a ação positiva em sentido

amplo, ao explicar a fórmula “DabG” que se figurar (a) como uma pessoa física titular do

direito, (b) o Estado como titular da obrigação, e como objeto do direito (G), há uma ação

positiva, visualizando-se assim um direito a ações positivas30, que se subdividem consoante à

natureza da prestação devida: a) direitos à prestação fática31, e b) direitos a uma ação

normativa32. Afirma ainda, que todo direito a ação positiva é um direito à prestação, se

apresentando como contrapartida do conceito de direito de defesa, que remete a uma omissão

obrigatória por parte do Estado33, sendo que neste tipo de direito o que está ordenado é a

omissão de ação, e naquele o que se ordena é a proteção e não a ação eleita como forma de

cumpri-la34.

Os direitos às prestações em sentido amplo constituem-se como direitos subjetivos

constitucionais e podem ser divididos em 3 grandes grupos: a) direito a proteção35; b) direito à

organização e procedimento36, subdividido em: b1) as competências de direito privado37; b2) os

procedimentos judiciais e administrativos38 b3) a organização em sentido estrito39; e, b4) a

formação da vontade Estatal40, e, c) diretos a prestações em sentido estrito41.

SARLET propõe uma conceituação acerca dos direitos fundamentais, levando em conta a

reunião de critérios formas e materiais, tornando assim um conceito aberto, dizendo:

Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido

29 SARLET, Ingo Wolfgang.A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 97. Apud “Cf. J. C. Vieira de Andrade, Direitos Fundamentais. p. 83 e ss.”.

30 ALEXY, Robert. Op. Cit. p.187. 31 “Se trata de un derecho a una acción positiva fáctica cuando se supone un derecho de un propietario de una escuela

privada a recibir ayuda estatal a través de subvenciones, se fundamenta un derecho a un mínimo vital o se considera una "pretensión individual del ciudadano a la creación de plazas de estudio". El hecho de que la realización de este tipo de derechos se lleve a cabo" de una forma en algún modo jurídica no altera enñadáfel carácter del derecho como un derecho a una acción táctica. Para realización del derecho es indiferente la forma como ella se lleve a cabo. Lo decisivo es únicamente que después de la realización de la acción, el propietario de la escuela privada disponga de medios suficientes: el necesitado, de las condiciones mínimas de existencia y el que desea estudiar, de una plaza de estúdios”. ALEXY, Robert. Idem. p.195.

32 ALEXY, Robert. Idem. p.195. 33 ALEXY, Robert. Idem. p.427. 34 ALEXY, Robert. Idem. p.446-447. 35 “Los derechos a protección pueden tener como objeto cosas muy diferentes. El espectro se extiende desde la protección

frente a acciones de homicidio del tipo clásico, hasta la protección frente a los peligros del uso pacífico de la energia atómica. No sólo la vida y la salud son bienes posibles de protección, sino todo aquello que, desde aspectos

iusfundamentales. es digno de ser protegido, por ejemplo, la dignidad, la libertad, la familia y la propiedad. Nó menos variadas son las formas posibles de protección. Ellas abarcan, por ejemplo, la protección através de normas del derecho penal, de normas del derecho procesal, de acciones administrativas y de la actuación fáctica”. ALEXY, Robert. Idem. p. 436.

36 ALEXY, Robert. Idem. p.457. 37 ALEXY, Robert. Idem. p.468. 38 ALEXY, Robert. Idem. p.472. 39 ALEXY, Robert. Idem. p.474. 40 ALEXY, Robert. Idem. p.481. 41 ALEXY, Robert. Idem. p.430.

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material), integrados ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura do Catálogo)42.

Não restam dúvidas de que os direitos sociais são fundamentais, tendo como

característica de verdadeiras liberdades positivas, com a obrigatoriedade de observância no

Estado Social de Direito, que buscando a melhoria dos hipossuficientes visam à concretização

de uma igualdade social, consagrado pelo art. 1º, IV da CF/88 como fundamento do Estado

Democrático43.

Contudo, a aplicação das normas previstas no texto Constitucional resta-se claramente

não condizente na realidade social, conforme lição de José Fernando de Farias Castro:

Se, por um lado, a Constituição de 1988 anuncia normas pautadas em princípios e valores de um Estado Democrático de Direito, por outro, essas normas não foram efetivadas. A não efetivação dessas normas deve-se a vários fatores estruturais de nossa sociedade, mas sem dúvida, um desses fatores é determinado pelo profundo enraizamento de uma cultura jurídica descompromissada com valores democráticos. No Brasil, verificamos a ausência de uma cultura constitucional que se reflete no atual esvaziamento dos fundamentais direitos sociais da Constituição de 1988. Os direitos sociais estão sendo colocados em questão pelos neoliberais não porque não são vistos como valores políticos fundamentais. Além disso, a ausência de uma cultura constitucional vai de par com a inexistência de uma cultura democrática; temos uma democracia de baixa intensidade, que se revela pelo abismo perverso existente entre princípios constitucionais fundamentais e a realidade social, entre cidadãos e sub cidadãos, entre incluídos e excluídos44.

Tal situação também se deve ao fato de que a Assembleia Constituinte brasileira redigiu

um aglomerado heterogêneo e abrangente de direitos sociais, que em virtude da péssima

sistematização de normas pela técnica legislativa daquela acabou por acarretar vários

problemas na compreensão de que estes são considerados como fundamentais45.

Neste sentido citamos a lição de FARIAS CASTRO46, entendendo que a democracia que

for capaz de pronunciar diretrizes universais com o particular, dissenso com o consenso e

diversidade com unidade, pois somente com efetividade de valores substantivos no cotidiano,

tais como, liberdade, solidariedade e diversidade que se constrói o que ele chama de

democracia complexa, não se esquecendo de levar em conta que no Brasil, há um abismo

perverso entre os princípios constitucionais fundamentais e a realidade social47.

42 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 82. 43 MORAES, Alexandre de. Op. Cit. p.206. 44 FARIAS CASTRO, José Fernando de: Os Desafios da Democracia. in Revista Brasileira de Direito Constitucional. N.3

jan/jun. 2004. Editora Método. 2004. p.421. 45 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do

Consumidor. Ano 16, nº 61 Jan-mar. 2007. BRASILCON. p. 95. 46 FARIAS CASTRO, José Fernando de: Op. Cit. p.401. 47 Concluindo que: “a sociedade brasileira é marcada historicamente, pela exclusão política, social e econômica, que nega

diariamente a existência de um espaço público democrático, a investigação sobre a questão da Constituição deve levar em conta a especificidade da sociedade brasileira, principalmente um dos problemas do nosso sistema jurídica atual: o da não

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DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À SAÚDE COMO DIREITO DE

PRESTAÇÃO

Robert Alexy define os direitos a prestações em sentido estrito como normas de direitos

fundamentais, cujo cumprimento exija por parte do Estado uma ação em favor do titular do

direito nela previsto (bem material ou um serviço), por exemplo, o direito ao trabalho, a

habitação e a educação48.

Os direitos a prestações em sentido estrito podem estar explicitamente previstos ou

podem ser “adscriptos” interpretativamente, sendo que esta interpretação é criada pela

jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, dizendo quais são os direitos

fundamentais sociais garantidos pela Lei Maior Alemã, por não serem expressamente

declarados49. Tal problema não se visualiza na Constituição Brasileira, pois em seu art. 6º

declara expressamente dos direitos sociais, bem como outros que asseguram a melhoria da

condição social do art. 7º a 11. Estes direitos à prestação em sentido estrito podem ser

subdivididos consoantes critérios teóricos e estruturais de 3 formas: i) normas de direitos

prestacionais que confere direitos subjetivos e normas que obrigam o Estado objetivamente; ii)

normas de direito prestacionais que vinculam (normas de conteúdo programáticas) e normas

que não vinculam (normas sem conteúdo programáticas), e iii) normas prestacionais como

regras e normas prima facie, ou seja, como princípios50.

CANOTILHO, com base nos ensinamentos de ALEXY, entende que os direitos originários

à prestação caracterizam-se como verdadeiras imposições de cunho Constitucional, implicando

ainda num parâmetro de interpretação das normas legais, consoante os ditames de uma

“Constituição social econômica e cultural”, e principalmente, nos casos de inércia do Poder

Público, para criação de mecanismos para criação e efetivação destes direitos, o que pode

acarretar em omissões inconstitucionais, por não desenvolver ou diminuir o alcance dos

direitos sociais, econômicos e culturais51.

A responsabilidade do Estado, no agir de suas tarefas econômicas, sociais e culturais, por

assegurar aos cidadãos prestações de cunho existencial com vista ao acesso deste a saúde,

ensino, segurança etc., e, no instante que tais medidas vão ocorrendo de forma imediata

constata-se o direito de igual ingresso, obtenção e utilização de todas as instituições públicas

criadas para tais fins, bem como o direito a igual quota-parte, no sentido de prestações, à

saúde, educação dentre outros direitos prestacionais a todas as pessoas. Ao passo que estes

se configuram, como direitos derivados a prestações, entendidos como igual participação nas

quotas participação elaboradas e executadas pelo Poder Público, consolidando-se como

direitos subjetivos, na medida em que exercem a função de barrar atos deste que tenha por fim

efetividade de muitos princípios contidos na Constituição de 1988, principalmente aqueles que se referem à justiça social, aos direitos sociais à cidadania e a solidariedade.FARIAS CASTRO, José Fernando de:Idem. p.401.

48 ALEXY, Robert. Op. Cit. p.482. 49 ALEXY, Robert. Idem.p.483. 50 ALEXY, Robert. Idem. p.484. 51 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit.p.477-478.

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a eliminação, sem compensação ou alternativa do núcleo essencial já obtido por estes direitos,

sob a proteção da cláusula de proibição de evolução reacionária ou retrocesso social52.

O princípio da “vedação ao retrocesso” não está proclamado textualmente na

Constituição, procede do entendimento do sistema jurídico-constitucional, que em suma diz,

que caso uma Lei regularmente determinando preceito constitucional, instituindo direitos se

incorporando ao patrimônio jurídico do cidadão, este direito não poderá mais ser suprimindo

por arbitrariedade posterior do Poder Público53.

Levando-se em consideração o tino jurídico-subjetivo dos direitos sociais,

independentemente de serem apresentados como fundamentais ou não, reconhece de forma

incontestável ao titular do direito, direitos defensivos (negativos) que oferecem uma dimensão

positiva, pois sua efetivação só ocorre com o agir do Estado e da sociedade, enquanto que os

direitos a prestação (positivos) também firma-se sua ação numa dimensão negativa, a fim de

evitar que tal ato do Estado, entidades sociais e de particulares, ocasione danos, conforme

tutelados pela Constituição54.

Estes direitos fundamentais (sociais) traduzem-se por sua dimensão social da cidadania,

pois, possuem em seus dispositivos a garantia de dos indivíduos participarem da riqueza

produzida em sociedade. E seu gozo e usufruto dependem exclusivamente da eficiente

máquina administrativa do Poder executivo, com vista a reduzir as desigualdades55 inerentes

ao capitalismo, com o intuito de assegurar um mínimo de bem estar a todos, implementando-se

justiça social56.

Deste modo, os direitos fundamentais sociais possuem conteúdos ‘promocionais, são

aqueles que exigem exatamente prestações positivas pelo Estado, logo, no mínimo, ficam

minguados em sua efetivação’57. Percebe-se então que os direitos sociais prestacionais estão

vinculados intimamente às atividades desempenhadas pelo Estado Social, que busca a correta

e equitativa distribuição e redistribuição dos bens na sociedade58, pois em essência almejam e

buscam a real igualdade (diferente da igualdade sem liberdade) a todos que somente ocorrerá

com o fim das desigualdades59, podendo afirmar-se, neste contexto, que, em certa medida, a

liberdade e a igualdade são efetivadas por meio dos direitos fundamentais sociais60.

52 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Idem. p.478-479. 53 BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e possibilidades da

Constituição Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.152. 54 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do

Consumidor. Ano 16, nº 61 Jan-mar. 2007. BRASILCON. p. 96. 55 Complementando: “Os direitos sociais, como direitos de segunda dimensão, convém lembrar, são aqueles que exigem do

Poder Público uma atuação positiva, uma forma atuante na implementação da igualdade social dos hipossuficientes”. TAVARES, André Ramos. Op. Cit. p.827

56 CURY Ieda Tatiana. Op. Cit. p. 19-20. 57 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. Revista Latino-Americana de

Estudos Constitucionais, n. 5, jan./jun.2005. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 454. 58 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 202. “Cf. G.

Haverkate, Verfassungslehre, PP. 258 e ss., que também denomina o Estado social como Estado da redistribuição (Staat der Umverteilung)”.

59 SARLET, Ingo Wolfgang. Idem. p. 199. “Cf., J. Miranda, in: CDCCP. nº 1 (1992), p. 200”. 60 SARLET, Ingo Wolfgang. Ibid, Ibidem.

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No caso brasileiro, a fim de assegurar uma maior efetividade aos direitos sociais

fundamentais, sobreveio à emenda constitucional nº 31 de 14.12.2000, que aumentando o

leque de objetivos fundamentais da República, estabelece, também, a erradicação da pobreza

e da marginalização, a fim de reduzir as desigualdades sociais e regionais, para garantir a

todos os brasileiros acesso a uma subsistência digna, por meio de ações relativas à

suplementação alimentares, habitação, educação, reforço de renda familiar, à saúde, e outros

programas destinados à melhoria da qualidade de vida61.

DIREITOS PRESTACIONAIS, NAS PERSPECTIVAS JURÍDICO-

SUBJETIVA E JURÍDICO-OBJETIVA

As normas Constitucionais relativas aos direitos sociais previstas em seu corpo material

reconhecem o princípio da democracia econômica, social e cultural62, não só como princípio

objetivo que submete o Estado a adotar medidas, mas principalmente como princípio

fundamental de pretensões subjetivas, por parte dos cidadãos63, da mesma forma que a CF/88.

Constitui também o princípio da democracia econômica e social um artifício vital no

momento e forma de interpretação dos direitos fundamentais em conformidade com a

constituição, submetendo-se, portanto, a este princípio todos os poderes do Estado na

persecução de seus atos, constituindo-se desta forma, uma fonte de avaliação destas ações

em harmonia à carta maior64.A interpretação deverá ocorrer conforme a Constituição,

possuindo um caráter de obrigatoriedade neste ato, por parte de todo o Poder Público, e no

caso em que haja discricionariedade para atuação deste, deverá não fugir do espírito que

abarca o princípio da democracia econômica, social e cultural, constituindo como medida

vinculativa neste exercício arbitrário e como linha de direção obrigatória. Importante ressaltar

que o princípio da democracia econômica, social e cultural, assume feição de imposição da

Carta Maior, além de que se encontra plasmado em diferentes preceitos garantidores de

direitos subjetivos do cidadão, possuindo dimensão objetiva, que vincula imediatamente o

Legislador, bem como uma dimensão subjetiva, nos casos em que haja conflitos, havendo a

prevalência dos direitos econômicos, sociais e culturais entre outros direitos65.

61 MORAES, Alexandre de. Op. Cit.. p.208. 62 “O princípio democrático não se compadece com uma compreensão estática de democracia. Antes de mais, é um processo

de continuidade transpessoal, irredutível a qualquer vinculação do processo político a determinadas pessoas. Por outro lado, a democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e activa, oferecendo aos cidadãos a

possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de participação crítica no processo político, condições de igualdade económica, política e social (cfr. CRP, art. 9.°ld). Neste sentido se podem interpretar os preceitos constitucionais que apontam para a transformação da República portuguesa numa sociedade livre, justa e solidária (art. 1.°), para a realização da democracia económica, social e cultural (art. 2.°) e para a promoção do bem estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como para a efectivação de direitos económicos, sociais e culturais mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais (art. 9.°ld). CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit. p.289.

63 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Idem. p. 397 64 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Idem. p.290-291. 65 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Idem. p.341-344.

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Segundo BARROSO, o vocábulo direito deve ser reservado na Constituição pra fins de

identificação de situações caracterizadas do ponto de vista jurídico como direitos subjetivos, ou

seja, direitos que dão a faculdade ao jurisdicionado de exigir prontamente determinado bem

jurídico, que no caso, dos direitos constitucionais há em contrapartida o dever jurídico de

cumprimento pelo Estado ou qualquer outro sujeito, e nas ocasiões em que ocorrer sua

violação, surge para o titular deste direito, uma pretensão, que poderá ser exercitável através

de uma ação proposta ao Poder Judiciário66.

As normas Constitucionais consagradoras dos direitos sociais possuem uma dimensão

subjetiva67, por serem inerentes ao espaço de existência do indivíduo, que independe da sua

justicialidade e execução imediata, além de uma dimensão objetiva, caracterizado por

imposição ao Poder Legislativo (obrigando este a atuar positivamente a fim de concretizá-los

materialmente) e pela natureza de fornecimento de prestações aos cidadãos, valor advindo do

caráter subjetivo deste na execução a fim de cumprir os mandamentos institucionais, não se

confundindo como uma mera norma programática, citando como exemplo o direito à saúde,

que independentemente dos comandos Constitucionais que garante sua eficácia (Criação do

Serviço Nacional de Saúde em Portugal – Acórdão do Tribunal Constitucional Lusitano, de nº

39/84) e das prestações providenciadas (medicamentos, tratamentos etc.) pelo Poder Público,

a fim de se garantir o atendimento ao mesmo direito68. No mesmo sentido69.

Em linhas gerais, as variações que existem, quanto ao objeto do direito subjetivo

fundamental baseiam-se nos seguintes fatores: a) a liberdade da pessoa como indivíduo não é

garantida de forma universal; b) há de forma evidente disparidade quanto ao alcance da

postulação dos direitos quanto ao indivíduo, em especial, as prestações sociais materiais; c) a

complexidade intrínseca dos direitos fundamentais, pois garantem liberdades, anseios e

poderes de múltiplas naturezas, pelo fato de terem diversos destinatários70.

Conquanto se visualize de forma mais clara a subjetividade dos direitos fundamentais

clássicos de liberdades, no sentido de sua exigibilidade, não se pode concebê-lo apenas

nestes tipos de direitos fundamentais, diminuindo esta característica do restante do todo o

conjunto destes, como os direitos de igualdade, in casu, os direitos fundamentais sociais71.

O DIREITO FUNDAMENTAL (SOCIAL) À SAÚDE (VIDA) COMO DIREITO

FUNDAMENTAL (PRESTACIONAL) E INDISPONÍVEL

66 BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.288

67 Reconhecendo no mesmo sentido: SILVA, José Afonso da.Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª ed. 3º tiragem.

São Paulo: Malheiros. 2009. p.151-152. 68 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. Cit. p.476-477. 69“ Portanto, se na dimensão subjetiva os direitos fundamentais (individuais ou sociais) delimitam esferas individuais de

proteção em face do Estado e de terceiros, configurando-se como mandatos de abstenção, na dimensão objetiva eles atuam como normas objetivas criadoras de deveres para o Estado, ou seja, como mandatos de otimização, a serem cumpridos na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas” VALLE, André Rufino. A Estrutura das Normas de Direitos Fundamentais: Repensando a Distinção entre Regras, Princípios e Valores. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília – UNB, 2006. p. 194-196

70 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. pág.150. 71 SARLET, Ingo Wolfgang. Idem .Ibdem.

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Primeiramente devemos conceituar o direito a saúde72, que só há pouco fora elevado a

condição de direito fundamental do homem. Este direito por decorrência lógica do direito à vida,

se assume na manutenção e proteção contra fatos indevidos que possa acarretar o

esvaziamento deste direito, na ordem jurídica, assegura-se em casos de doenças o direito do

ser humano, a ter perante o Estado um tratamento condigno de acordo com a atual práxis

médica, independentemente de sua situação econômica73. Em mesmo sentido74.

O direito à vida75, como todo princípio (prima facie), deverá ser realizado na medida em

que apresente maior eficácia possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes,

afirmando que: “en general, que El reconocimiento de derechos subjetivos significa una medida

mayor de realización que La sanción de meros mandados objetivos”76.

Já o direito à vida77, no ordenamento jurídico brasileiro, está previsto no caput do art. 5º

da Constituição da República Federativa do Brasil de 198878, de onde na doutrina concebe-se

a vida humana, por um conjunto de elementos integrados de ordem materiais (físicos e

psíquicos) e imateriais (espirituais), considerada como fonte primária de todos os outros bens

jurídicos, onde no seu envolvimento conceitual abrange: a) dignidade da pessoa humana; b)

direito à privacidade; c) direito a integridade físico-corporal; d) integridade moral, e; e) direito à

existência que consiste no “direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida,

de permanecer vivo”79.

72 “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. O sistema único de saúde, integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público executa as ações de serviço público de saúde”. PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.p.970.

73 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 32ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros. 2009. p. 308. 74 “o direito à vida é o mais elementar dos direitos fundamentais; sem vida, nenhum outro direito pode ser fruído, ou sequer

cogitado. Não se resume o direito à vida, entretanto, ao mero direito à sobrevivência física. Lembrando que o Brasil tem com fundamento a dignidade da pessoa humana, resulta claro que o direito fundamental em apreço abrange o direito a uma existência digna, tanto sob o aspecto espiritual, quanto material (garantia do mínimo necessário a uma existência digna, corolário do Estado Social Democrático)”. PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Op. Cit. p.108.

75 Complementa: “O conteúdo da vida assume duas vertentes. Traduz-se, em primeiro lugar, no direito de permanecer existente, e, em segundo lugar no direito a um adequado nível de vida. (...) Ademais, é preciso assegurar um nível mínimo de vida, compatível com a dignidade humana. Isso inclui o direito à alimentação adequada, à moradia (art. 5º, XXIII), ao vestuário, à saúde (art. 196), à educação (art. 205), à cultura (art. 215) e ao lazer (art. 217). O direito à vida cumpre, neste último sentido, por meio de um aparato estatal que ofereça amparo à pessoa que não disponha de recursos aptos a seu sustento, propiciando-lhe uma vida saudável”. TAVARES, André Ramos. Op. Cit. p.569.

76 ALEXY, Robert. Op. Cit. p.440. 77 “O Direito a vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida,

portanto o direito de continuar vivo, como também o direito de ter uma vida digna. (...) ou seja, o direito a uma vida digna garantindo-se as necessidades vitais básicas do ser humano e proibindo qualquer tratamento indigno, como a tortura, penas de caráter perpétuo, trabalhos forçados, cruéis etc.” LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Método, mar. 2007.p.701.

78 “art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” BRASIL, Constituição (1988), promulgada em 5 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível

em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/constitui%C3%A7ao_compilado.htm>. Acesso em 01.05.2016. 79 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 32ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros. 2009. p.198.

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Conforme BULOS, o Supremo Tribunal Federal entende e considera o direito à vida como

o mais relevante de todos os direitos80, elucidando ainda que:

seu significado constitucional é amplo, porque ele se conecta com outros, a exemplo dos direitos à liberdade, à igualdade, à dignidade, à segurança, à propriedade, à alimentação, ao vestuário, ao lazer, à educação, à saúde, (...). Sem a proteção incondicional do direito à vida, os fundamentos da República Federativa do Brasil não se realizam. Daí a Constituição proteger todas as formas de vida, inclusive a uterina81.

Portanto, o direito à vida possui duplo aspecto: numa perspectiva biológica é traduzido

como direito à integridade física e psíquica (incluso o direito à saúde, vedação à pena de

morte, proibição do aborto etc.); e em sentido mais amplo, visualiza-se como o direito ao

acesso a condições mínimas materiais e espirituais necessárias a uma existência digna

inerente à pessoa humana, abrangendo, inclusive, a proteção da vida intrauterina82.

Consoante à lógica do art. 5º, §1º da Constituição Brasileira83, os direitos sociais devem

ser entendidos no sentido de aplicar-lhes o máximo de efetividade e eficácia possível na

espera procedimental para sua otimização e, ajustado pela casta de princípios fundamentais à

luz do caso concreto, ou seja, os direitos sociais, inclusive de cunho prestacionais, são dotados

de eficácia, por conseguinte, de aplicação imediata, contudo sua eficácia e efetividade não

deverão ser igualmente atendida84.

A eficácia diz respeito a uma aptidão e estado de potência que o direito fundamental

(social à saúde) de produzir efeitos concretos, reais e imediatas da norma a ser cumprido, já a

efetividade deve ser compreendida como a concretização no âmbito fático e jurídico, que

corresponde precisamente à noção de eficácia social85.

Luiz Roberto Barroso ilumina que a eficácia social ocorre quando o comando normativo é

concretizado, ou seja, passa a ser uma força operativa no mundo dos fatos, já a efetividade

refere-se à realização do direito no desempenho concreto da função social que exerce, ou seja,

pela materialização dos preceitos legais, também no mundo dos fatos, simbolizando a mais

íntima e possível relação do dever-ser da norma e o ser da realizada social86.

Por conseguinte, o não cumprimento do mínimo existencial por parte do Estado acaba por

constituir uma agressão aos direitos fundamentais sociais, pois repercute de forma a não

80 BULOS, Uadi Lammêgo. Op. Cit. p.413. 81 BULOS, Uadi Lammêgo. Idem. p.413-414. 82 PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Op.Cit. p.109. 83 “§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. BRASIL, Constituição (1988),

promulgada em 5 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/constitui%C3%A7ao_compilado.htm>. Acesso em 01.05.2016.

84 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais Sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do Consumidor, ano 16, nº 561, jan-mar/2007. BRASILCON. p.99.

85 GALIDO, Bruno. Direitos Fundamentais. Análise de sua concretização constitucional. 1ª ed. 4ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2006. p.165.

86 BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.82-83.

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assegurar ao princípio da dignidade humana, contradizendo o que a Constituição Federal

prevê87.

Resta-se, desta forma, inaceitável a ideia de que existe norma desprovida de

operacionalidade e eficácia, as então chamadas normas programáticas, tendo em vista, que

prevalece o entendimento de que as produções dos efeitos de todas as normas constitucionais

deverão cumprir o fim a que estas se propõem, pois somente considera-se vida constitucional a

“efetividade da norma”88, a fim de evitar se transformar em ‘literatura de prateleira enfeitada’89.

O direito fundamental à saúde, na Constituição brasileira, deve ser entendido numa

obrigação em que o:

Estado deve promover políticas sociais e econômicas destinadas a possibilitar o acesso universal igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Ademais, deve preocupar-se igualmente com a prevenção de doenças e outros agravos, mediante a redução dos riscos (art. 166 e 188, II. Por fim, o tema relaciona-se diretamente com a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade, que pressupõem o Estado-garantidor, cujo dever é assegurar o mínimo de condições básicas para o indivíduo viver e desenvolver-se90 (em itálico conforme autor).

A eficácia do direito fundamental social à saúde reflete-se no acesso à saúde, sendo a

saúde entendida pelo Poder Constituinte como a garantia do bem-estar (físico, mental e

espiritual) do homem, somando-se ao fato de que por ser a vida humana o bem supremo

amparado na Carta Magna, deverá ir muito além da simples ausência de afecções e doenças91.

CONCLUSÃO

Portanto, resta-se incontroverso, neste pequeno trabalho, com fulcro na doutrina até

então exposta (sem querer adentrar e aprofundar sobre outros aspectos, neste momento), que

o direito social à saúde é considerado como um direito fundamental de caráter prestacional e

indisponível.

Possui eficácia e efetividade jurídica plena e direta em face do Estado, ante a violação do

princípio da dignidade da pessoa humana, toda vez que não seja assegurado o mínimo

existencial, por ser considerado o núcleo essencial daquele.

Conclui-se que o Estado brasileiro possui a obrigação Constitucional de proteger a vida

(assegurando o acesso à saúde) a toda pessoa humana, bem como possui o dever de garantir

87 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Op. Cit. p. 459. 88 “A Efetividade foi o rito de passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse

de ser uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduzia em proveito para a cidadania”. BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.355.

89 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Op. Cit. p. 450. 90 TAVARES, André Ramos. Op. Cit. p.844. 91 BULOS, Uadi Lammêngos. Op. Cit. p.1287-1288.

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a todos a eficácia na sociedade a prestação deste direito fundamental, para salvaguardar a

vida do ser humano com um mínimo de dignidade.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. 1993, reimpressão de 2002. BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas – Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15 ed. Malheiros, 2004. BRASIL. Constituição (1988), promulgada em 5 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/constitui%C3%A7ao_compilado.htm>. Acesso em 01.05.2016. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 56/2007. – São Paulo: Saraiva, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Almedina. 7ª ed. 5ª reimpressão. 2003. CURY, Ieda Tatiana. Direito fundamental à saúde: Evolução, Normatização e Efetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. FARIAS CASTRO, José Fernando de: Os Desafios da Democracia. in Revista Brasileira de Direito Constitucional. N.3 jan/jun. 2004. Editora Método. 2004. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002. GALIDO, Bruno. Direitos Fundamentais. Análise de sua concretização constitucional. 1ª ed. 4ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2006. GENTILE, Jorge Horacio. El Fundamento de Los Derechos Humanos. In Revista Brasileira de Direito Constitucional - RBDC. n. 6. JUL/DEZ. São Paulo. 2005. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11. ed. rev., atual. E ampl. – São Paulo: Editora Método, mar. 2007. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27 ed. São Paulo: Atlas, 2011. PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O mínimo existencial e o princípio da reserva do possível. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 5, jan./jun.2005. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. ________. Direitos Fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do Consumidor. Ano 16, nº 61 Jan-mar. 2007. BRASILCON. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª ed. 3º tiragem. São Paulo: Malheiros. 2009. ________. Curso de Direito Constitucional Positivo, 32ª ed. revisada e atualizada. São Paulo: Malheiros. 2009.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,

2010.

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A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA FÍSICA COMO FORMA DE DESENVOLVIMENTO HUMANO

Auricelia do Nascimento Melo1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo mostrar a inclusão previdenciária das

pessoas com deficiência física como forma de desenvolvimento humano, bem como analisar o

modelo de atenção social aos deficientes, tendo por base a Convenção sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência da ONU, que foi ratificada pelo Brasil em 2008. A declaração diz no

seu artigo primeiro que deficiência não é apenas o que o olhar médico descreve, mas

principalmente a restrição à participação plena provocada pelas barreiras sociais. Partindo

dessa análise o trabalho relaciona a inclusão previdenciária dos deficientes como forma de

concretizar os direitos que asseguram uma aposentadoria digna àqueles que são segurados da

previdência social e desde a promulgação da Constituição de 1988 careciam de dispositivo

legal que regulamentasse tal direito. A problemática enfrentada passa pela condição do

assistencialismo que o Estado dispensava aos deficientes, até os dias atuais com uma nova

visão abordada pelo modelo de atenção social, evidenciando a capacidade jurídica dos

deficientes, a necessidade do reconhecimento de direitos e da responsabilidade dessas

pessoas, para que possam integrar o processo de desenvolvimento e crescimento econômico.

Para a realização do trabalho a metodologia empregada foi a análise da legislação brasileira, a

Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, doutrina e artigos relacionados ao

tema.

Palavras-chave: Inclusão previdenciária. Desenvolvimento Humano. Deficiência- Inclusão.

INTRODUÇÃO

e início pretende-se evidenciar a previdência como política de seguridade social,

considerando-se que geralmente as pessoas que recebem os benefícios

previdenciários são de baixa renda e, consequentemente, sobrevivem destes rendimentos.

Enfatiza-se o papel da Constituição de 1988 ao universalizar os benefícios para os

trabalhadores da cidade e do campo, salientando que a busca do equilíbrio financeiro não deve

desconsiderar esse aspecto social no contexto amplo da seguridade social como um conjunto

de políticas sociais importantes na garantia da justiça social do país.

As pessoas que possuem algum tipo de deficiência são como quaisquer outras, com

peculiaridades, contradições e singularidades. São seres humanos que lutam pelos seus

direitos, pela autonomia individual e desejam uma efetiva participação e inclusão na sociedade,

1 Doutoranda em Direito Constitucional (UNIFOR). Professora Assistente da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Professora do Centro Universitário Uninovafapi. Advogada. Email: [email protected]

D

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por isso existe a necessidade de políticas públicas e sociais que possam propiciar a dignidade

humana a essas pessoas.

Nessa perspectiva, o Brasil dispõe de uma legislação que avança para assegurar os

direitos das pessoas com deficiência e ratificou em 2008 a Convenção sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas. Em 2013 ficou pronta a Lei

Complementar 142/2013, que regulamenta a aposentadoria das pessoas deficientes e o

Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de julho de 2015).

O presente estudo tem como objetivo analisar o desenvolvimento e a partir dele verificar a

evolução e resguardo dos direitos das pessoas com deficiência na legislação brasileira, de

maneira específica a inclusão previdenciária dessas pessoas e como o Instituto Nacional do

Seguro Social (INSS), que é a autarquia responsável por pagar os benefícios previdenciários,

vem atuando na concessão desses benefícios.

Não é forçoso lembrar que a deficiência faz parte do ciclo de vida do ser humano, pois

pode ser provocado por incidentes do dia a dia, ou ainda ocorrer em decorrência do

envelhecimento provocando restrições de mobilidade. Diniz (2007, p. 8) afirma que “a

concepção de deficiência como uma variação normal da espécie humana foi uma criação

discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo fora da

norma”.

As Constituições brasileiras disciplinaram no início de maneira tímida os direitos das

pessoas com deficiência. A Constituição de 1934 trouxe de forma embrionária a proteção de

pessoas com deficiência, sendo que na Constituição de 1946 fez menção à garantia

previdenciária e no Texto Constitucional de 1967 (art. 175, §4º), foi disposta de maneira

expressa a normatização de lei para regular a educação de pessoas com deficiência.

De maneira mais concreta a inserção de direitos para pessoas com deficiência acontece

logo após a segunda guerra mundial, com a consolidação de diplomas modernos, nos quais

houve um compromisso, na verdade uma necessidade do Estado de promover a proteção das

pessoas com deficiência.

A Constituição de 1988 trata dos direitos das pessoas com deficiência ao longo de vários

artigos, em 1989 foi aprovado a Lei 7.853 que dispõe sobre o apoio e a integração social das

pessoas com deficiência, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas

pessoas e disciplina a atuação do Ministério Público, sendo que as políticas públicas ganham

maior efetividade com o decreto que ratificou a Convenção da Organização das Nações Unidas

(ONU) e de maneira mais especifica em 2013 foi confeccionada a Lei Complementar nº 142 de

maio de 2013, que regulamentou o art. 201§1º no tocante à aposentadoria das pessoas com

deficiência.

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O MODELO DE PROTEÇÃO SOCIAL E OS DEFICIENTES

O sistema de Seguridade Social implementado pela Constituição Federal de 1988, apesar

de uma nomenclatura semelhante à proposta pelo Plano Beveridge (Inglaterra, 1942), possui

diferenças marcantes, agregando elementos ao modelo bismarckiano2, até então

preponderante, características do modelo beveridgeano de Seguridade Social.O Sistema de

Proteção Social instituído pela Constituição de 1988 ampliou o horizonte de atuação do Estado

visando a promoção do bem-estar e justiça sociais para toda a sociedade, através de um

sistema de proteção nas áreas de saúde, assistência e previdência social, que juntos integram

a chamada Seguridade Social.

Historicamente se elegeu os direitos sociais atinentes à saúde, assistência e previdência

social como sendo os mais relevantes para a proteção da vida e dignidade da pessoa humana.

A dignidade é a força motriz do sistema, apta a justificar seu existir e a impulsionar seus

movimentos sincrônicos.

Analisada sob um ponto de vista sistemático, a dignidade, objetivo final da Seguridade

Social, se entrelaça com outros preceitos e princípios constitucionais, atingindo uma

perspectiva peculiar. O primeiro destes preceitos constitucionais que permeiam e amoldam a

dignidade é o primado do trabalho.

O trabalho constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º,

inciso IV da CF), sendo ainda considerado um direito social (artigo 6º da CF) e a base da

ordem social (artigo 193 da CF), cujos objetivos são o bem-estar e a justiça sociais. Nesta

perspectiva, a busca da dignidade dentro da ordem social tem como objetivo a conservação e

concretização do trabalho. Para a implementação da segurança social e econômica da

população, um dos pontos fundamentais é o trabalho que corresponde a uma ferramenta de

inclusão social que dignifica o homem.

A definição de deficiência não está relacionada à falta de um membro, nem à redução da

visão ou da audição. O que a caracteriza são as dificuldades que as pessoas com alguma

alteração física ou mental encontram em se relacionar ou se integrar na sociedade. A

deficiência não deve ser entendida como sinônimo de doença, pois é fenômeno social que

surge com maior ou menor incidência a partir das condições de vida de uma sociedade, de sua

forma de organização, da atuação do Estado3, do respeito aos direitos humanos e dos bens e

serviços disponíveis para a população (MAIOR, 2005, p. 25-30).

2 O modelo bismarckiano de proteção social surge entre os anos de 1883 e 1889 na Prússia (atual Alemanha) e simboliza o

nascimento da chamada Previdência Social, técnica de proteção que garante o direito a prestações reparadoras ao verificar-se um dado evento danoso, antes que este possa determinar o estado de indigência ou privação do segurado.

3 A Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência promove ações para a garantia e defesa de direitos de pessoas deficientes. Na esfera federal têm-se: Programa Nacional de Direitos Humanos; Programa de qualificação de Trabalhadores para Pessoas Deficientes; Política Nacional de Informática na Educação; Política Nacional de Integração da Pessoa com Deficiência.

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Pode-se dizer que o Estado ao atribuir novo paradigma ao princípio da igualdade é

marcado pela superação da simples proibição de discriminação às minorias, na visão de

Quaresma (2010, p. 941):

A partir de uma visão mais dinâmica acerca do principio da igualdade, impondo ao Estado, exigências de ações positivas, tanto pelos particulares, quanto pelo próprio poder público, em favor destas mesmas minorias discriminadas, retrata o momento de transição do estado liberal para o estado social, desde ao coletivo e difuso e o primado da atualidade dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, são etapas do processo de evolução do homem diante de sua vida em sociedade produtiva, digna e respeitosa.

Para Diniz et al.(2009, p. 73), o reconhecimento do corpo com impedimentos como

expressão da diversidade humana é recente e ainda um desafio para as sociedades

democráticas e para as políticas públicas. A autora explica que apenas recentemente as

demandas das pessoas deficientes foram reconhecidas como uma questão de direitos

humanos.

A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência da ONU é um divisor de

águas nesse movimento, pois institui um novo marco de compreensão da deficiência,

reconhece o tema como questão de justiça (DINIZ et al., 2009, p. 74).

Conforme preleciona Araújo e Araújo (2014), um dos instrumentos importantes de

formação das políticas públicas é o Conselho de onde partem as discussões importantes para

a proteção dos interesses de todos do grupo. Dentro de uma análise detalhada para a questão

da efetividade de medidas para a inclusão do deficiente, o desenvolvimento nacional não pode

ser feito de forma a olhar apenas a questão do deficiente como a necessidade de aumento de

empregos, mas é preciso crescer economicamente pensando no todo.

As políticas públicas só podem ser aceitas como adequadamente cumprida quando

houver sua verificação a partir de critérios objetivos, não basta implementar de qualquer forma

há necessidade de efetividade no cumprimento.(Araújo e Araújo, 2014).

Para a inclusão previdenciária das pessoas com deficiência, além da determinação

constitucional já existente, restava ao legislador a confecção da norma regulando um aspecto

determinante que é a questão da aposentadoria, situação que foi normatizada pela Lei

Complementar 142/2013, além das formas de integração para a atividade a ser realizada,

fornecendo meios de trabalho adequados, a partir disso existe uma efetiva proteção aos

direitos.

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A CAPACIDADE JURÍDICA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

A noção de capacidade jurídica inclui dois elementos: a capacidade de ser titular de um

direito e a capacidade de constituir e exercer o direito, que abrange a possibilidade de acesso

aos tribunais em caso de desrespeito desses direitos. Ambos os elementos são essenciais ao

conceito de capacidade jurídica. Disso deriva o fato de que o reconhecimento da capacidade

jurídica de qualquer grupo ou indivíduo impõe o reconhecimento dos dois elementos.

O desconhecimento da capacidade jurídica de uma pessoa ou grupo de pessoas se

traduz na negação tanto do direito à personalidade jurídica quanto à capacidade de constituí-lo

e de seu exercício. Em muitas jurisdições, quando se tentou atacar as normas relativas à

capacidade, por serem discriminatórias, o resultado foi sua substituição legislativa que

normalmente traz um reconhecimento simbólico dos direitos do grupo excluído, mas que na

prática, apesar do reconhecimento da capacidade para ser titular de direitos, seguem negando

a capacidade de exercê-los.

Em relação aos direitos da pessoa com deficiência, a Convenção das Nações Unidas

sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência afirma em seu art. 12 que:

Os Estados partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida. Os Estados partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício legal de sua capacidade legal. Os Estados partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a s vontades e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflitos de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstancias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente independente e imparcial.

Pelo que se pode verificar, a norma é bem clara ao explicitar a capacidade jurídica das

pessoas com deficiência. Essa disposição da Convenção constata o que vem sendo

implementado pelo modelo social, segundo Diniz (2007, p. 79), para primeira compreensão do

modelo social da deficiência, a garantia da igualdade entre pessoas com e sem impedimentos

corporais não deve se resumir à oferta de bens e serviços biomédicos, pois a deficiência é

essencialmente uma questão de direitos humanos.

A partir dessa análise, pode-se verificar que o modelo social vê a deficiência para além do

deficiente, como um resultado do modo como a sociedade está organizada. Enfoca as

barreiras sociais que precisam ser removidas para que o deficiente possa assumir o controle

de sua vida. A tese central do modelo social permitiu o deslocamento do tem da deficiência dos

espaços domésticos para a vida pública. A deficiência não é matéria de vida privada ou de

cuidados familiares, mas uma questão de justiça (NUSSBAUM, 2007, p. 35).

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É de fundamental importância destacar que a Convenção dos Direitos das Pessoas com

Deficiência assinalou a mudança da assistência para direitos, introduziu o idioma da igualdade

para conceder o mesmo e o diferente a pessoas com deficiências, reconheceu a autonomia

com apoio para pessoas com deficiência, e, sobretudo, tornou a deficiência uma parte da

experiência humana, para a professora a Convenção tentou remediar a profunda discriminação

reconhecendo que todos os indivíduos com deficiências são pessoas perante a lei, elas tem

poder de gerir seus próprios assuntos.

A ASSISTÊNCIA SOCIAL E OS DEFICIENTES FÍSICOS

A seguridade social, segundo Ibrahim (2011, p. 15) pode ser conceituada como a rede

protetiva formada pelo Estado e por particulares, com contribuições de todos, incluindo parte

dos beneficiários dos direitos, no sentido de estabelecer ações para o sustento de pessoas

carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando a manutenção de um

padrão de vida digna. Dentro da seguridade social está a saúde, a assistência e a previdência

social.

De acordo com a Constituição, a assistência social será prestada a quem dela necessitar

(art. 203), assim o requisito para o auxílio assistencial é a necessidade do assistido. Dentre os

objetivos da assistência social está a habilitação e a reabilitação de pessoas com deficiência e

a promoção de sua integração à vida comunitária e a garantia de 1(um) salário mínimo de

benefício mensal à pessoa com deficiência (art. 2º da Lei nº 8742/93).

Conforme a descrição de Ibrahim (2011, p. 14), a concessão do benefício assistencial,

nessa hipótese, justifica-se a partir do princípio da dignidade humana, o qual possui como

núcleo essencial, plenamente sindicável, o mínimo existencial, isto é, o fornecimento de

recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano.

O Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC/LOAS) corresponde à garantia

de um salário mínimo, mensal, à pessoa com deficiência, que comprove não possuir meios de

prover a própria manutenção e também não possa ser provida por sua família.

Tem direito ao benefício a pessoa com deficiência, de acordo com o art. 20 da Lei nº

8742/93, que tenha impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou

sensorial os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena

e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, que produza

efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.

A lei ainda explicita que o requerente deve ser brasileiro nato ou naturalizado, residente e

domiciliado no Brasil, que não receba qualquer outro benefício no âmbito da seguridade social

ou de outro regime, nacional ou estrangeiro, inclusive o seguro-desemprego, salvo o da

assistência médica e a pensão especial de natureza indenizatória. Também pode requerer o

indígena com deficiência, que não receba qualquer outro benefício no âmbito da seguridade

social ou de outro regime, salvo o da assistência médica.

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Somente possuem direito ao benefício aqueles cuja renda familiar ou grupo familiar

mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo, é permitida a acumulação do benefício

com a remuneração advinda do contrato de aprendizagem pela pessoa com deficiência está

limitada ao prazo máximo de dois anos.

A condição de acolhimento em instituições de longa permanência, assim entendido como

hospital, abrigo ou instituição congênere não prejudica o direito do portador de deficiência ao

recebimento do Benefício de Prestação Continuada instituído pela Lei Orgânica da Assistência

Social. É importante esclarecer que o beneficio assistencial é intransferível e, portanto não gera

pensão aos dependentes, além de não receber o abono anual (13º salário) e não estar sujeito a

descontos de qualquer natureza.

Será suspenso o benefício se a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada,

inclusive na condição de microempreendedor individual, desde que comprovada a relação

trabalhista ou a atividade empreendedora.

A PREVIDÊNCIA SOCIAL E OS DIREITOS DAS PESSOAS COM

DEFICIÊNCIA

A previdência social faz parte do tripé da seguridade social e está disposta na

Constituição Federal e se organiza sob a forma de regime geral de caráter contributivo e de

filiação obrigatória, dentre os benefícios que presta aos segurados, está a aposentadoria para

as pessoas com deficiência física.

No Brasil a legislação previdenciária, que tem por base a Constituição Federal, explicita

os direitos que resguardam as pessoas com deficiência física, especialmente no art. 201§1º diz

que:

É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar.

O dispositivo constitucional ainda utiliza a disposição “pessoas com deficiência”, que após

a Convenção da ONU, verifica-se que a nomenclatura internacionalmente adequada é pessoa

com deficiência, segundo Araújo (2010, p.912), esse é o termo mais adequado, pois a pessoa

não porta, não conduz a deficiência, ela lhe é própria.

A Constituição Federal, sem dúvida, robustece a proteção aos deficientes, ao prever a

reserva de vagas em concursos públicos4, que na visão de Araújo (2010, p. 915), é uma

4 Constituição Federal, art. 37, VIII: “ a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras

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política pública bem determinada que viu na possibilidade de pessoas deficientes ingressarem

no serviço público, uma forma de compensação pelos discriminados pelas políticas

governamentais.

Outro aspecto importante de inclusão das pessoas com deficiência está na Lei 8213/91

em seu artigo 93 que trata das cotas para deficientes nas empresas:

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I - até 200 empregados............................................................2%; II - de 201 a 500.......................................................................3%; III - de 501 a 1.000...................................................................4%; IV - de 1.001 em diante. ..........................................................5%.

Ao passo que também contemplou na parte que trata da Previdência Social, os requisitos

para a aposentadoria das pessoas com deficiência, sendo que a regulamentação dessa norma

demandou muito tempo, pois só depois de 25 anos de promulgação da Constituição, é que a lei

complementar ficou pronta.

Foi aprovada em 8 de maio de 2013, a Lei Complementar nº 142, que regulamenta a

aposentadoria das pessoas com deficiência. A regulamentação desse direito ocorre como uma

exigência da CDPD, pois o deficiente goza de capacidade legal e desempenha como as outras

pessoas suas atividades laborais, estava faltando dispositivo legal para efetivar a garantia de

sua aposentadoria conforme preceito constitucional.

A pessoa com deficiência tem direito a igualdade de condições como as demais pessoas

em todos os aspectos da vida, ele necessita de mecanismos de apoio, pois as dificuldades

enfrentadas podem ter origem em suas limitações pessoais ou nas barreiras construídas no

seu entorno.

É necessário deixar claro que a Lei Complementar nº 142/2013 só se aplica aos

benefícios requeridos e com direito a partir do dia 4 de dezembro de 2013. Benefícios com

datas anteriores à vigência da Lei Complementar nº 142/2013, não se enquadram nesse direito

e nem têm direito à revisão. As pessoas com deficiência terão a redução da idade de cinco

anos, no caso da aposentadoria por idade. Já na aposentadoria tempo de contribuição, a

vantagem é a redução do tempo de contribuição em dois anos, seis anos ou 10 anos, conforme

o grau de deficiência.

Dessa forma, a Lei garante ao segurado da Previdência Social, com deficiência, o direito

à aposentadoria por idade aos 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher, e à aposentadoria

por tempo de contribuição com tempo variável, de acordo com o grau de deficiência (leve,

moderada ou grave) avaliado pelo INSS.

de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.

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Os beneficiários da Lei Complementar 142/2013, são aqueles segurados da Previdência

Social com deficiência intelectual, mental, física, auditiva ou visual. A pessoa com deficiência

precisa para solicitar a aposentadoria ao INSS, em primeiro lugar, a realização da perícia, para

fins de comprovação da deficiência e do grau e os critérios que serão averiguados, como ser

segurado do Regime Geral da Previdência Social, ter deficiência na data do

agendamento/requerimento, a partir de 4 de dezembro de 2013, a idade mínima de 60 anos, se

homem, e 55 anos, se mulher e ainda comprovar a carência de 180 meses de contribuição.

Para a aposentadoria por tempo de contribuição os critérios para ter o direito ao benefício

parte do pressuposto de que o segurado tenha a deficiência há pelo menos dois anos na data

do pedido de agendamento, deve comprovar carência mínima de 180 meses de contribuição e

constatar o tempo mínimo de contribuição, conforme o grau de deficiência, sendo que para

deficiência leve são 33 anos de tempo de contribuição, se homem, e 28 anos, se mulher.

Para a deficiência atestada como moderada, são 29 anos de tempo de contribuição, se

homem, e 24 anos, se mulher, sendo a deficiência considerada grave são 25 anos de tempo de

contribuição, se homem, e 20 anos, se mulher. Importante destacar que os demais períodos de

tempo de contribuição, como não deficiente, se houver, serão convertidos proporcionalmente.

Segundo o INSS para classificar a deficiência do segurado com grau leve, moderado ou

grave, será realizada a avaliação pericial médica e social, a qual esclarece que o fator limitador

é o meio em que a pessoa está inserida e não a deficiência em si, remetendo à Classificação

Internacional de Funcionalidades (CIF).

A CIF foi aprovada em 2001 e antecipa o principal desafio político na definição de

deficiência proposta pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: o

documento estabelece critérios para mensurar as barreiras e a restrição de participação social.

Para Diniz (2007, p. 53):

Até a publicação da CIF, a Organização Mundial de Saúde adotava uma linguagem estritamente biomédica para a classificação dos impedimentos corporais, por isso o documento é considerado um marco na legitimação do modelo social no campo da saúde pública e dos direitos humanos.

A CIF surge, então, após um longo processo de reflexão sobre as potencialidades e os

limites dos modelos biomédico e social da deficiência. Em uma posição de diálogos entre os

dois modelos, a proposta do documento é lançar um vocabulário biopsicossocial para a

descrição dos impedimentos corporais e a avaliação das barreiras sociais e da participação.

O segurado será avaliado pela perícia médica, que vai considerar os aspectos funcionais

físicos da deficiência, como os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo e as

atividades que o segurado desempenha. Já na avaliação social, serão consideradas as

atividades desempenhadas pela pessoa no ambiente do trabalho, casa e social. Ambas as

avaliações, médica e social, irão considerar a limitação do desempenho de atividades e a

restrição de participação do indivíduo no seu dia a dia.

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Para avaliar o grau de deficiência, o Ministério da Previdência Social e o INSS, com

participação das entidades de pessoas com deficiência, adequaram um instrumento para ser

aplicado nas avaliações da deficiência dos segurados. Esse instrumento, em forma de

questionário, levará em consideração o tipo de deficiência e como ela se aplica nas

funcionalidades do trabalho desenvolvido pela pessoa, considerando também o aspecto social

e pessoal.

Pelo disposto acima é relevante destacar a importância da lei para programar a

aposentadoria das pessoas com deficiência, visto que estava pendente de regulamentação

desde a Constituição de 1988. O INSS esclarece que a avaliação das barreiras externas será

feita pelo perito médico e pelo assistente social do INSS, por meio de entrevista com o

segurado e, se for necessário, com as pessoas que convivem com ele. Se ainda restarem

dúvidas, poderão ser realizadas visitas ao local de trabalho e/ou residência do avaliado, bem

como a solicitação de informações médicas e sociais (laudos médicos, exames, atestados,

laudos do Centro de Referência de Assistência Social - CRAS, entre outros).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre temas que desperta interesse e provoca relações de proximidade, o

desenvolvimento e o crescimento caminham próximos, pois é difícil falar em desenvolvimento

sem falar no crescimento econômico. A partir dessa constatação, surge a necessidade de

implementação por parte do Estado de medidas que possam dar efetividade à proteção das

pessoas com deficiência.

Com a criação da Lei Complementar que regulamenta a aposentadoria das pessoas com

deficiência, foi reconhecido um direito importante para aqueles que ingressavam no mercado

de trabalho sendo portador de algum tipo de deficiência. A verificação da deficiência será feita

durante a perícia médica. Uma das grandes dificuldades é fazer a prova não só da deficiência,

mas das dificuldades que o segurado encontrou para conseguir trabalhar.

Até o momento da elaboração da lei, os deficientes passaram por grandes dificuldades

para interação no mercado de trabalho, por preconceito, ou até mesmo por falta de condições

das empresas adaptarem esses profissionais em seus postos de trabalho.

Pelo disposto ao longo desse estudo verificou-se que a preocupação com os deficientes

físicos remonta ao pós-segunda guerra mundial, momento a partir do qual diversos países

passaram a se preocupar com uma legislação que pudesse assegurar direitos e exercício de

direitos. No Brasil a legislação tratou de maneira assistencial os deficientes, mais com o passar

do tempo pode-se constatar a evolução da legislação no e a partir da adoção do modelo social

da deficiência olhar para a deficiência como uma questão de direitos humanos.

A pessoa que adquire ou nasce com lesão (ausência parcial ou total de um membro ou

mecanismo corporal defeituoso), tem o acesso à sociedade através de meios dificultosos, pois

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ela deveria expressar sua forma corporal de estar no mundo, considerando que essa é uma

das várias possibilidades para a existência humana.

O modelo social da deficiência, ao resistir à redução da deficiência aos impedimentos,

ofereceu novos instrumentos para a transformação social e a garantia de direitos. Não era a

natureza que oprimia, mas a cultura da normalidade, que descrevia alguns corpos como

indesejáveis5.

Com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Física das Nações

Unidas, ratificada no Brasil em 2008, houve um significativo avanço, pois o Estado passou a

nortear suas políticas sociais de maneira a garantir os direitos dos deficientes. Um exemplo

dessas ações foi a aprovação da Lei Complementar nº 142/13 que explica a aposentadoria das

pessoas com deficiência, norma que estava pendente de regulação desde a Constituição de

1988, pois os deficientes que trabalham são segurados e não podiam ter que cumprir as

exigências para os demais segurados, já que a própria Constituição lhes garantiu critérios

diferenciados para a aposentadoria.

Dessa forma, reconhecendo os direitos das pessoas trabalhadoras que são deficientes, o

Brasil assegura a plena cidadania a essas pessoas que possuem capacidade de construir e

exercer direitos, pois a maior dificuldade para elas é justamente a conscientização da

sociedade em desenvolver uma cultura inclusiva, a partir daí haverá uma propulsão de

desenvolvimento, pois as pessoas deficientes estão inseridas dentro do mercado de trabalho,

com direitos legitimamente reconhecidos, o que pressupõe um crescimento na qualidade de

vida dessas pessoas.

REFERÊNCIAS

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5 Debora Diniz (Maceió) é uma antropóloga, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, membro da diretoria da International Association of Bioethics, do Council on Health Research for Development da International Women´s Health Coallition.

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DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Braziliense, 2007. DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. dos. Deficiência, direitos humanos e justiça. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, n. 11, p. 65-78, 2009. Disponível em: <http://www.surjournal.org/conteudos/getArtigo11.php?artigo=11,artigo_03.htm>. Acesso em: 14/jun.2014 IBRAHIM, F. Z. Curso de Direito Previdenciário. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2015. KERTZMAN, I. Curso Prático de Direito Previdenciário. 8. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. MAIOR, I. M. M. L. Saúde. In: Instituto Paradigma. É perguntando que se aprende: a inclusão das pessoas om deficiência. Instituto Paradigma. São Paulo: Áurea Editora, 2005, p. 25-30. (MAIOR, 2005, p. 25-30). NUSSBAUM, M. Las Fronteras de La justicia: consideraciones sobre la exclusion. Barcelona: Paidos Iberica Ediciones, 2007. PIOVESAN, F. Temas de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. POMPEU, Gina Vidal(coord). Direito Constitucional nas relações econômicas: entre o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. In ARAÚJO, Cintia Rejane Moller de; ARAÚJO, Luiz Alberto David. Desenvolvimento e inclusão social como metas inseparáveis para o estado brasileiro: a necessária verificação da efetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 349-366. QUARESMA, R. A pessoa portadora de necessidades especiais e a sua inclusão. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coords.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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UM ATAQUE GERAL AO PÓS-POSITIVISMO – versão curta

Francisco de Sousa Vieira Filho1

“O presente pertence aos pragmáticos. O futuro é dos utopistas.” João Baptista Herkenhoff

Direito e Utopia, [s.l.]

“A distinção entre regras e princípios virou moda. (...) A separação entre as espécies normativas como que ganha foros de unanimidade. E a unanimidade termina por semear não mais o conhecimento crítico

das espécies normativas, mas a crença de que elas são dessa maneira, e pronto.” Humberto Ávila

Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. p. 18.

“Aqui estamos interessados em dados dessa espécie, brutalmente elementares e cuja indestrutibilidade tem sido admitida tacitamente até mesmo pelos seguidores mais extremados e rebuscados do

historicismo.” Hannah Arendt

Entre o Passado e o Futuro. p. 296

“Omnia mutantur, nihil interit”(Tudo muda, nada por inteiro) Aforismo Romano

“É, contudo, necessário haver, além do princípio da mudança, um pormenor (detáil) do que muda, que

produza, por assim dizer, a especificação e variedade [...] Este pormenor (detáil) deve envolver uma multiplicidade na unidade ou no simples porque, realizando-se toda mudança natural gradativamente,

sempre alguma coisa muda e outra permanece.” LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm.

Os Princípios da Filosofia ditos a Monadologia. p. 108.

“No espírito unânime dos povos, uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum.”

Ferdinand Lassale A Essência da Constituição, p. 24.

Resumo: O presente capítulo consubstancia uma crítica ao Neoconstitucionalismo, enquanto

movimento, e ao Pós-positivismo, enquanto corrente filosófica que o secunda. E quem

pretenda criticá-los, desconsiderando sejam mesmo grandes brasões em torno dos quais se

agregam teorias as mais várias, algumas díspares, outras até antípodas e incompatíveis,

correria o risco de ‘mirar na mosca e acertar o elefante’. É por tais razões que a presente crítica

se centra, sobretudo, na versão/vertente de Robert Alexy. O título nos remete ao embate entre

Ronald Dworkin e Herbert Hart, donde Dworkin, ao optar por atacar o Positivismo, empreendeu

um ataque geral à versão/vertente ‘hartiana’. A bem da verdade, as ideias aqui contidas

surgiram como um subtema de nossa dissertação de mestrado, ‘A Dimensão Ontológica da

Dignidade da Pessoa Humana no Estado Democrático de Direito’, como que um spin-off da

mesma e excetos de ideias periféricas ali contidas, mas que não constituíam o tema central da

1 Francisco de Sousa Vieira Filho é advogado em Teresina-PI, militando sobretudo na área trabalhista. Especialista em Direito Constitucional pelo LFG (2012). Mestre em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (2014), revalidado no Brasil pela UFRN (2015). Professor em faculdades públicas e particulares em Teresina, ministrando, entre outras disciplinas: Direito Constitucional I, II e III, Direito Contratual I, II e III, Internacional Público, Internacional Privado, Filosofia Geral e Jurídica, Metodologia da Pesquisa Jurídica, TCC, Empresarial I, Medicina Legal e Criminologia. Email: [email protected]

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análise de então, bem como consistindo ainda, em alguma medida, fruto de discussões e

debates que levantamos em sala de aula com nossos alunos. A ideia inicial era fazê-lo na

forma de ensaio, o que tornaria o texto mais fluido e a leitura mais interessante, mas, em face

das dimensões e do corpo que o trabalho tomou, foi-nos forçoso fazer remissão técnica a

autores que corroborassem e/ou confirmassem as proposições aqui lançadas. Ainda assim,

optamos por evitar citações diretas – que, quando imprescindíveis, foram feitas em notas de

rodapé – no afã de manter a dinâmica de leitura o menos entrecortada possível. O que

propomos, então, e em linhas gerais, é que seja princípio, ao menos aqueles que se adequem

à perspectiva fundante, aquilo que, parcela mínima que seja, sobrevive à mudança (devir), e

que mantém a identidade sistêmica (unidade mínima mantenedora do padrão organizacional e

da estrutura) de tal ou qual secção do saber (in casu: de tal ou qual sistema, e mais

apropriadamente do Direito). Tal proposição não desconsidera a mutação jurídica dos

sistemas, mas conflita a proposta com o fato de que, em mudando, um Ordenamento não

possa fazê-lo por inteiro, a fim de que o mesmo não deixe de ser o que é passando a ser outro,

por não conservar nada do que fora outrora – se é que possa haver mudança categórica

nestes termos, afora as que, no caso de um dado Ordenamento Jurídico, se dão por via

revolucionária ou por nova Assembleia Constituinte (mas que culminam fatalmente com sua

extinção e o surgimento de um outro, e completamente novo). Assim, aquilo que persiste, no

contexto daquilo que muda dentro de um sistema, aquilo que define um sistema como tal, é

que seria princípio.

Palavras-chave: Princípio. Sistema. Ciência. Direito. Normatização. Normatividade.

uando pensamos no termo e na ideia princípio, a primeira coisa que nos vêm à

mente, e a própria etimologia da palavra já nos assevera, é que princípio, por uma

obviedade semântica que parece cegar aos mais doutos, significa início e começo2. O início ou

o começo de um sistema qualquer, sobretudo de um sistema de conhecimentos, como o início

ou o começo de um edifício, é precisamente sua base, seu alicerce, os pilares que o sustem,

sua fundação, seu fundamento3. E ‘princípio’ será exatamente o fio condutor de toda a presente

análise e é nele que se encerra o cerne de todas as críticas ora levantadas ao Pós-positivismo

e, por via de consequência, como veremos adiante, ao Neoconstitucionalismo também.

Os primeiros a se utilizarem do termo princípio no Ocidente foram os filósofos gregos pré-

socráticos, os chamados filósofos da natureza, cosmologistas ou “físicos”. Eles se utilizaram,

para tanto, da palavra arkhé (αρχή), que significa princípio, ordem, unidade ou governo4. E,

embora nos possa soar à primeira vista como desconhecida, utilizamos a palavra arkhé há

muito. Encontramos arkhé em anarquia, em monarquia e em oligarquia, apenas para citar

exemplos; donde anarquia seria ausência de princípio, ordem, unidade e governo; monarquia

2 Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. p. 639. 3 Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito.p. 61. 4 Cf. GHIRALDHELLI, Paulo. Aula 2: Pré-socráticos: cosmologia e metafísica. Disponível em:

<http://casadeplatao.blogspot.com/2007/05/aula-2-pr-socrticos-cosmologia.html> Acesso em: 16 de maio de 2007.

Q

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seria princípio, ordem, unidade e governo advindos de um só; e Oligarquia seria princípio,

ordem, unidade e governo ditados por poucos. Bem assim, princípio-arkhé é o que há de mais

importante num sistema, sua base, seu alicerce e precisamente seu fundamento, dando-lhe

unidade, ordem e regendo-o.

A palavra kosmos, do grego, significa o todo harmoniosamente organizado ou ordenado5.

O cosmo seria o sistema primeiro e maior que engloba todos os demais. Também do grego é a

palavra systema ou syn-istemi6, significando o composto, o construído, aquilo que é ordenado e

organizado segundo princípios. Assim, não se pode falar de princípio, enquanto elemento que

confere ordem, unidade e governa, sem falar no sistema ao qual ele ordena, garante unidade e

rege. A derrocada de princípios significaria a derrocada de todo o sistema ao qual tais

princípios dão unidade, ordenam, regem e são mesmo seus fundamentos, seus pilares de

sustentação. Os chamados Direitos Fundamentais, não à toa, são direitos de natureza principio

lógica, constituindo aquilo que há de mais elevado e importante num Ordenamento Jurídico. E,

destoando das leis, genericamente falando, não são criações legislativas, não são produto da

cultura, antes apresentam-se como descobertas históricas.

Neste tocante, perdurou durante considerável lapso, a crença de que houvesse cisão

precisa e inconteste entre ciências exatas e naturais, de um lado, e ciências humanas, de

outro; mais precisamente entre physise nomos. O duelo entre os paradigmas da pré-

modernidade e modernidade versus a pós-modernidade traduziu-se exatamente no diapasão

physis e nomos.O polo da physis, busca o que é por natureza, aquilo que seria, ou tenderia a

ser, imutável e absoluto (ou pelo menos mais estável), e universal (senão ao menos geral),

intentando encontrar a “unidade na multiplicidade”, aquilo que é comum naquilo que é vário, o

que une e caracteriza os membros de um dado grupo, categoria ou gênero.Tal polo estaria

ligado à proposta ‘fundacionista’, intentando encontrar o fundamento para as coisas. E buscar o

fundamento nada mais é que buscar o princípio, a base, o alicerce fundante. O outro polo, o do

nomos, perquire o que advém do pano de fundo cultural; aquilo que seria mutável, contingente,

particular, diverso, plural, etc, traduzindo-se numa busca ‘anti-fundacionista’, ou seja,

apregoando o relativismo, o caráter transitório e a mutabilidade das coisas. Em suma, a physis

se traduziria pela busca daquilo que é natural e, portanto, ‘descoberta’, ao passo que o nomos

enfoca o que é produto da cultura e, portanto, ‘criação humana’ 7.

Ora, as ciências exatas e naturais normalmente são associadas à physis, como ciências

da descoberta. Isaac Newton, por exemplo, não criou a lei da gravitação universal – ele a

descobriu. Maças já caíam antes de Newton, mas foi preciso o gênio de um Newton para

enxergar nisso uma lei natural que engloba a todos os corpos, ‘que une o que é vário’, que

divisa ‘unidade na multiplicidade’, que se aplica a todos os corpos. Contudo, mesmo neste

5 Idem. Ibidem. 6 Cf. FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. O Conceito de Sistema no Direito: uma investigação histórica a partir da obra jusfilosófica

de Emil Lask. p. 9. 7 Cf. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. O Conceito de Princípio entre a Otimização e a Resposta

Correta: aproximações sobre o problema da fundamentação e da discricionariedade das decisões judiciais a partir da fenomenologia hermenêutica. p. VII em diante.

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campo, onde quase tudo é descoberta, persiste alguma porção, diminuta que seja, que é

criação humana. Por exemplo, quando dizermos que a água, nas condições normais de

temperatura e pressão (CNTP) ferve a 100ºC, temos a ideia de estarmos diante de uma

informação certa e precisa, uma certeza científica; todavia, o que o termômetro mede não é a

temperatura de fervura da água, mas o equilíbrio entre a água e o termômetro, afora que graus

célsius é uma escala, uma unidade de medida criada por homens, uma criação humana e

cultural (nomos), a despeito de se encontrar no polo da physis (da descoberta).No mesmo

sentido, Shakespeare, ao indagar, pela boca de sua Julieta, diria: “o que é uma rosa? Acaso se

lhe déssemos outro nome ela perderia seu perfume, seu frescor?”8

Mas vamos além: tal qual no campo da physis existe uma porção – diminuta que seja – de

nomos, no campo próprio ao nomos também há de existir uma porção – por menor que seja –

de physis. Senão vejamos: sabemos que as normas são, normalmente, criações legislativas,

criações culturais humanas, nomos, pois. O Direito, mesmo sendo uma ciência nomotética, há

de ter, ele também, algo prêt-a-porter, nem tudo nele sendo criação humana ou produto da

cultura. Os mesmos Direitos Fundamentais a que já nos reportamos em linhas supra, ditos de

natureza principiológica, possuem uma série de características, a saber: historicidade,

inalienabilidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade, universalidade, etc. Interessa-nos a

primeira delas, que nos reporta ao fato de que tais direitos surgiram historicamente, de que

foram descobertos e reconhecidos historicamente e de que, como a história continua a se

desenrolar, fatalmente irão surgir outros além destes que já conhecemos. Não se trata, pois, de

um direito criado pelo legislador, mas de algo que surgiu, fruto de uma ambiência história que

seja, mas de algo que foi descoberto, e que, portanto, encontra-se no polo da physis.O próprio

texto das primeiras Cartas que explicitaram tais Direitos em seu estágio embrionário (na

chamada primeira geração) já afirmava, principiando quase sempre com o mesmo dizer

uníssono: “nós, representantes do povo, aqui reunidos (...) ‘reconhecemos’ que todos os

homens são iguais em Dignidade, sem distinção de raça, cor, credo, opção política, filosófica,

religiosa...” Assim, trata-se de algo que surgiu e foi descoberto num contexto histórico dado e

que é próprio de cada ente humano pelo simples fato de ser um ente humano, algo que pode

ser respeitado ou desrespeitado, é óbvio, mas que nunca pode ser ofertado ou mesmo retirado,

porque inato. Como vemos, princípios são descobertas e não criações humanas, mesmo

aqueles das ditas ciências humanas9.

Pois bem, de há muito se perpetuava o duelo, por alguns dito até anacrônico, entre

Jusnaturalismo e Juspositivismo, e que culminou com a vitória desta última corrente, talvez

porque mais precisa, menos utópica, tecnicamente mais viável, mais simples, mais pragmática,

etc. E, no meio deste embate, também é protagonista a ideia de princípio, como veremos.

Sabemos que as muitas escolas Jusnaturalistas propunham a existência de um Direito

Natural, ora provindo da Natureza, ora da Divindade, ora da Razão, ora fruto da História, etc.,

8 SHAKESPEARE. Romeu e Julieta. [s.l.]. 9 Cf. por exemplo:DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. [s.l.]. No mesmo sentido, o professor Gomes Canotilho,

citando Dworkin: “...direito – e, desde logo, o Direito Constitucional – descobre-se, mas não se inventa.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional. p. 191.

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todas defendendo que ‘o Direito seria uma tentativa de realização da Justiça’, divergindo no

exato tocante sobre o que viria a ser Justiça. No mesmo sentido, a despeito do sem-número de

escolas diversas que englobamos dentro do brasão Juspositivismo, podemos delinear pontos

comuns unindo todas elas. O primeiro deles poderia ser o lema e a proposição de que ‘só

pertença ao Direito o que for norma’. O segundo seria que, sendo início e começo, princípio

antecede norma, que por sua vez antecede regra. Ora, a despeito de vir antes de norma, de

anteceder e ter primazia, princípio não seria norma, e, portanto, “não faria parte” da esfera do

Direito, não seria juridicamente aplicável como fundamento autônomo de decisões. Para o

positivista ‘em gênero’ (se assim podemos nos expressar), um juiz da área Penal ou um juiz da

área Civil, por exemplo, deveriam aplicar o Direito Penal e o Direito Civil, respectivamente e

tão-só. Princípios, para o Positivismo, seriam afeitos, via de regra, à seara Constitucional,

como um norte ou um farol, sem qualquer aplicabilidade prática.

Ocorre que, mesmo no seio dos muitos “positivismos”, existe situação em que o julgador

poderá julgar sem ter por base normas quaisquer, o que faz eco ainda hoje nas entrelinhas do

art. 4.º da nossa LINDB, a apregoar que, havendo lacuna legal, o juiz se valerá da analogia,

dos costumes e dos princípios gerais do direito10. Na teoria, princípio antecede norma; na

prática, só aplicam princípio em ultimíssimo caso, quando de lacuna, não sanada por analogia,

nem por costume. É que, segundo a lógica Positivista, princípios seriam meros elementos

supridores de lacunas ou, quando muito, balizas interpretativas, nunca fundamentos

autônomos de decisão, como já vimos. Mas o que dizer de situação em que a eventual lacuna

não seja sanada nem por analogia, nem por costumes, tampouco por princípios? É aí que,

segundo a perspectiva positivista, abre-se espaço para a ‘discricionariedade’, ou seja, há

margem para que o julgador julgue sem qualquer fundamento normativo, senão por suas

próprias convicções, gerando um estado de insegurança ou de incerteza jurídica. Ora, foi

exatamente para combater a discricionariedade no ato de julgar que surgiu a proposta Pós-

positivista, além de, é claro, para conferir aplicabilidade a princípios. Muitos foram os

precursores desta Escola (Esser, Crisafulli, Boulanger, Guastini, etc.11), mas só houve rigor

sistêmico maior, sobretudo em dois nomes: Ronald Dworkin e Robert Alexy12. Dworkin, o

primeiro deles, havia assumido a cátedra de Filosofia e Teoria do Direito, em Harvard, que

havia sido de Herbert Hart, este último um Positivista. E, para introduzir ideias novas, Dworkin

propôs um ‘Ataque ao Positivismo’ (daí a ousadia do título do presente artigo, que, guardadas

as devidas proporções, tem a mesma pretensão que a de Dworkin, mas com viés oposto, o de

criticar o Pós-positivismo). Mas, como diria Millôr Fernandes, o inventor do alfabeto foi, ele

também, um analfabeto13,e, por isso, Dworkin tampouco se poderia ter rotulado de Pós-

positivista ou Neoconstitucionalista, já que até mesmo os termos, então, sequer existiam14. Ele

10 Cf.BRASIL. DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm> Acesso em: 08 de Abril de 2015. 11 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. pp. 243-244 e 255 a 259. 12 Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. In: Revista Latino Americana

de Estudos Constitucionais, vol. 1, 2003, pp. 607 a 630. Nota 60 13 Cf. FERNANDES, Millôr. O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr. p. 35. 14 “Os adeptos do neoconstitucionalismo buscam embasamento no pensamento de juristas que se filiam a linhas bastante

heterogêneas, como Ronald Dworkin, Robert Alexy, Peter Häberle, Gustavo Zagrebelsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago

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se encontrava no ‘olho do furacão’ no qual surgia algo novo, algo a que ele dava seu precioso

contributo, algo que não tinha nome, mas que surgia para combater a discricionariedade dentro

do Positivismo, bem como para dar maior força, cogência ou aplicabilidade aos princípios.

Assim, para lançar um ataque geral ao Positivismo15, Dworkin escolheu a versão de Herbert

Hart, quando um alvo específico se fez necessário. No mesmo sentido, o alvo necessário e

específico da presente empresa é Alexy, como mais e mais ficará claro em linhas que se

seguem.

Pois bem, Dworkin e Hart passaram a travar um duelo de ideias, utilizando-se do jornal da

universidade para tanto. A cada artigo que um deles lançava defendendo suas ideias, o outro

as replicava. Ao final de tudo, Dworkin coligiu as propostas contidas nos artigos que escreveu

em seu embate com Hart e publicou seu The Model of Rules I e seu The Model of Rules II (o

Modelo de Regras I e o Modelo de Regras II), que viriam a se ampliar no seu livro Taking

Rights Seriously – Levando os Direitos a Sério.

Dworkin alterou a ordem anteriormente proposta pelos Positivistas de que princípios

antecederiam normas, que, por, sua vez antecederiam as regras [P>N>R], tomando

emprestada dos precursores a ideia de que Norma seria um gênero e Princípios e Regras as

espécies deste gênero: Princípios Normas.

Regras

Propor princípio como espécie do gênero norma, ‘forçaria’, então, os adeptos do

Positivismo, para quem só pertence ao Direito o que é norma, a aplicarem princípios. O certo é

que Dworkin compreendia que havia uma zona ‘gris’ e uma zona ‘preto e branco’. A esta última

ele chamou easy cases (casos fáceis). Para Dworkin, regras conflitam e o conflito de regras se

soluciona pelo “tudo ou nada” (all-or-nothing fashion)16. Aplica-se aí a hermenêutica tradicional,

a subsunção: ‘lei posterior revoga lei anterior’; ‘lei especial prevalece sobre lei geral’, etc (lex

posterior derogat priori; Lex specialis derogat generali, etc). Regras seriam, portanto, normas

concludentes; duas regras com objetos opostos não poderiam conviver, ao mesmo tempo, no

mesmo Ordenamento, uma delas havendo de ser revogada (ab-rogada ou derrogada). À zona

gris Dworkin chamou de hard cases (casos difíceis), uma vez que princípios, sendo a base, o

fundamento e o alicerce do Ordenamento, não poderiam ser revogados, a colisão não se

podendo solucionar pelo ‘tudo ou nada’.17

A preocupação de Dworkin era finalística, ele queria encontrar meios para atingir um

julgamento justo, preocupando-se com o ‘fechamento’18, não somente solucionar o problema

dos hard cases. Para ele, um julgamento justo nunca seria aquele em que o julgador decide

Nino, e nenhum destes se define hoje, ou já se definiu, no passado, como neoconstitucionalista. (...)” SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: NOVELINO, Marcelo. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Teoria da Constituição. pp. 31/68.

15 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério.p. 35. (No original: “I want to make a general attack on positivism, and I shall use H. L. A. Hart´s version as a target, when a particular target is need.” DWORKIN, Ronald. The Model of Rules I, In: Taking Rights Seriously. Cambridge: Havard University Press, 1977.)

16 Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos à Sério. passim. 17 Idem. Ibidem. 18 Cf. STRECK, Lênio. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas da Possibilidade à

Necessidade de Respostas Corretas em Direito. p. 163 e segs.

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baseado em suas próprias convicções, de forma discricionária. A resposta estaria na

‘construção do caso concreto’, na consideração dos princípios. Afora isso, a discricionariedade

(forte ou fraca), que é admitida ‘em gênero’ pelos Positivistas, esbarraria com a integridade e

unidade do sistema jurídico, ou seja, com a completude do sistema. As lacunas, que

eventualmente existam numa visão pontual (ou micro), desaparecem quando da adoção de

uma perspectiva sistêmica (ou macro).

O que Hart chama de liberdade do juiz para decidir casos difíceis, Dworkin entende que o

juiz esteja inovando o Direito, mais propriamente, legislando (atividade de criação e não de

interpretação) e ferindo a segurança e a certeza jurídicas. E o Direto, para Dworkin, é

fundamentalmente interpretação, sem espaço para a discricionariedade. Entende que, como o

juiz não foi eleito pela comunidade, não seria um legislador legítimo, não prestando contas à

sociedade quanto a este seu fazer atípico. E, se o jus dicere, a atividade do ‘dizer o direito’ se

confunde com a atividade legiferante (aceita pelos Positivistas quando houvesse lacunas),

seria forçoso concluir pela impossibilidade de se exigir conduta prévia dos cidadãos, já que a

lei-do-juiz é posterior, ferindo os princípios da legalidade e a da anterioridade. Dworkin entende

que a colisão seria virtual, contingente a uma visão não-integral, nem unitária do sistema e que

existiriam padrões prévios (inclusive extralegais) que obrigariam (dispondo de força

vinculativa), dos quais o julgador não pode nunca arredar: tais padrões, parâmetros e guias

são, justamente, os princípios.19

A diferença entre princípios e regras, segundo Dworkin, seria de peso (weight), de

importância, uma diferença lógica. Tal dimensão de peso é ausente nas regras, já que, a elas,

se aplica conceitos como validade e invalidade. Um princípio ‘vencido’ na colisão não pode

nunca deixar de pertencer ao sistema (revogação), nunca se tornará inválido, já que é base,

fundamento e alicerce, daí a colisão só existir num caso concreto. E, para Dworkin, em todo e

qualquer caso concreto, só existe uma única resposta correta, uma resposta que só se

encontra fazendo-se uso da unidade, integridade e também do romance em cadeia (chain

novel). Ao uso destes três complicados métodos, Dworkin nomeia ‘construção do caso

concreto’. E por não ser tarefa simples obter o resultado justo, a ‘única resposta correta’, usa

em sua obra a figura do juiz Hércules. Mas a resposta correta, não surge no sentido de uma

pretensão de obra mítica, utópica ou irrealizável. Dworkin evidencia mesmo os mecanismos

desta unidade e integridade da comunidade (ou sociedade), face a existência de princípios

superiores frente aos quais a desobediência implicaria em falta de coerência sistêmica20.Cada

caso concreto é singular (único) e, portanto, merecedor de uma resposta igualmente singular

(única) e devida (correta), com pretensões universalizáveis (na esteira do pensamento de

Kant), eis que visa, tanto quanto possível, atingir um consenso de abrangência tal que supere e

ultrapasse o entendimento de cada uma das partes isoladamente (como também rezam

Gadamer e Habermas)21. Neste sentido, Dworkin se aproxima da razão comunicativa de

19 Cf. DWORKIN. Ronald. Levando os Direitos à Sério. pp. 27 a 28, 50 a 63 e passim. 20 Cf. DWORKIN, Ronald. O império do Direito. pp. 202 e 272. 21 Cf. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – Estudos de Teoria Política. p. 21 e segs.

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Habermas, donde a racionalidade e a legitimidade dos argumentos de uma norma (verificáveis

pelos destinatários, ou seja, uma norma em que prevaleça a ‘anterioridade’ e não a inovação

da discricionariedade) dependeria (ainda que contribua para) de uma aceitação do

entendimento a ser partilhado pelos participantes do discurso, que, para Dwokin, é a própria

comunidade, sendo tanto mais justo o resultado quanto tenha poder de convencimento para

toda a comunidade22.

Neste contexto, a neutralidade do julgador é vista, por Dworkin, como uma ficção jurídica

do Positivismo. Para ele, primeiro, o julgador deve descer do pedestal e admitir que sua voz,

sua opinião, suas concepções e crenças tenham igual peso que os argumentos ofertados pelas

partes. Crer que o juiz não tenha a tendência de querer impor suas ideias, seus princípios,

suas raízes educacionais na sentença é um mito. E, caso ele assim o faça, embora com

fundamento legal, estaria agindo com discricionariedade, e incorrendo no vício racionalizante23,

de – já tendo a resposta previamente – apenas buscar o fundamento a posteriori,24o que é

indesejável. Segundo, o juiz deve buscar fundamentos na jurisprudência e na Constituição,

admitindo-os com o mesmo peso que suas próprias considerações. E, por último, o juiz deve

chamar todos os atores do discurso ao palco (sendo o juiz apenas um deles), para integrarem

o diálogo em condições de igualdade, partindo da ideia de que o julgador deve ouvir as partes

e todos os setores da sociedade envolvidos com a questão ou que possam trazer algo a

esclarecê-la. Estes três passos constituem a unidade, integridade e o romance em cadeia. Ao

final, mesmo a mais renitente ‘parte vencida’ há de considerar, se permitir prevalecer o bom-

senso, que o resultado foi justo25. Eis, em suma, a proposta de Ronald Dworkin.

A proposta de Alexy encontra-se no exato extremo oposto da de Dworkin. Para usar o

termo cunhado pelo prof. Lênio Streck, a preocupação de Alexy é com a “abertura”26, com o

uso de uma técnica simples e viável a poder solucionar a colisão de princípios. É por isso que,

quanto aos casos fáceis, Alexy e Dworkin são acordes, não paira dúvida, mas, quanto aos

casos difíceis, suas concepções são diametralmente opostas.

Alexy propõe que princípios seriam ‘razões prima facie’27e ‘mandados de otimização’28. O

primeiro termo remeteria ao fato de que princípios seriam normas cuja colisão só ocorre diante

de uma situação prática, diante de um caso concreto, não sendo revogados ou alijados do

22 “[...] a pré-compreensão paradigmática do direito em geral só pode colocar limites à indeterminação do processo de decisão iniciado teoricamente e garantir uma medida suficiente de segurança jurídica, se for compartilhada intersubjetivamente por todos os parceiros de direito e expressar uma autocompreensão constitutiva para a identidade da comunidade jurídica.” HABERMAS, Op. Cit. p. 278.

23“ ...a racionalidade corre o risco constante, caso não mantenha vigilante autocrítica quanto ao risco de cair na ilusão racionalizadora. Isso significa que a verdadeira racionalidade não é apenas teórica, apenas crítica, mas também autocrítica”. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. p. 24.

24 Denunciam tal estado de coisas: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – Estudos de teoria política. Trad. George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.,passim; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. Vol. I, tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997. p.316 a 317 e 321; BULYGIN, Eugenio. Alexy´s Thesis of the Necessary connection between Law and Morality, Ratio Juris, vol. 13, N. 2, 2000, p. 133-137, conforme ainda ROVER, A. J; SERBENA Cesar Antonio e CELLA, José Renato Graziero. Conexões entre moral e direito sob um ponto de vista lógico. In: Revista Brasileira de Filosofia, Volume: 232, 2009, p. 247-256.

25 Cf. IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e Discricionariedade. Lua Nova, nº 61, 2004. p. 108. 26 Cf. STRECK, Lênio. Op. Cit. p. 163 e segs. 27 Ver: HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – Estudos de Teoria Política. pp. 98-101. 28 Ver: SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção.” In: Revista Latino

Americana de Estudos Constitucionais, vol. 1, 2003, pp. 607 a 630.

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sistema, uma vez que, em abstrato (no texto da lei), permanecem no sistema. Assim, a

proposta de Alexy é a de que princípios são relativos ou relativizáveis29. O segundo termo

remete ao fato de que princípios seriam Standards ou normas que prescrevem algo que deve

ser realizado na maior medida possível, mas sem discernir que elementos objetivos (que meios

técnicos) determinem qual princípio prevaleceria na colisão (quais as razões para a correção

na adoção de um enunciado de preferência), nem em que medida isto se daria. Ainda que diga

que o juiz decidiria tendo em conta as possibilidades fáticas, sociais e jurídicas, firma exato a

discricionariedade do julgador, sob o manto da nebulosa ideia de que ‘o caso concreto é que

dirá’30.

Os princípios, diferentes das regras, é o que propõe Alexy, possuiriam um núcleo duro,

uma dimensão inatacável e intangível, um núcleo mínimo. A otimização de um princípio, a

despeito de, na maior medida possível, sempre deve ter em conta a preservação do ‘núcleo

mínimo’ do princípio “derrotado” na colisão. A proporcionalidade atua neste sentido e, por isso,

deve ser utilizada em todo e qualquer caso de colisão, em todo e qualquer julgamento,

portanto. Alexy adota‘teoria relativa’, segundo a qual o núcleo mínimo de cada princípio só

deva ser definido após a colisão.31Ora, se temos algo que, dentro de todo e cada princípio, é

intangível e inatacável, um minimum inviolável, e que deve ser preservado a qualquer custo, o

que ocorreria acaso esperássemos a colisão para definirmos o que seria este algo?!

Obviamente, o núcleo mínimo já teria sido atingido, já tenha sido violado.

O método proposto por Alexy para determinar que princípio prevalece sobre outro,

quando da colisão, é a ‘ponderação’ (ou sopesamento). Trata-se de atividade restrita do juiz

(intérprete autêntico), de modo que, quem decide, quem determina, quem diz qual princípio

prevalece sobre o outro é o juiz32, sendo desnecessária uma análise do sistema, o único ator

do processo acaba sendo o juiz. Assim, o que se pode observar é que a discricionariedade, em

Alexy, ao invés de ser combatida, se amplia, uma vez presente em todo e qualquer caso de

colisão de princípios.

Para Alexy, princípios estariam mais afeitos à Moral e regras seriam mais atinentes ao

Direito. E a simples proposição de que princípios seriam espécies do gênero norma33 marcaria

a aproximação entre Direto e Moral, segundo entende Alexy. A ideia é que o discurso jurídico

seria um subsistema do discurso moral. A razão prática jurídica seria um caso especial da

argumentação prática (Moral). E Alexy resume sua aproximação entre Direito e Moral com o

conceito de ‘Justiça como Correção’, que – grosso modo – se resume na ideia de que, tendo

feito uso do método da ponderação, o juiz se convence de que tomou a decisão correta, bem

diferente da ‘tese da única resposta correta’ adotada por Dworkin, que prioriza, não o

29 Cf. ALEXY, Robert. Teoría de Los Derechos Fundamentales. passim. 30 Cf. GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. p. 318 e 332. eCf. GRAU,

Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. p. 198. 31 Cf. ALEXY, Robert. Op. Cit. passim. 32 “Alexy construiu um procedimento artificial, um discurso justificador da decisão judicial que continua asseverando a tese da

discricionariedade que já se encontrava presente em teorias positivistas, como a de Hans Kelsen.” (...) OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Op. Cit.. p. VII.

33 Idem. pp. 86-89.

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autoconvencimento do julgador, mas o convencimento social. As regras do discurso, em Alexy,

enfocariam, tão-somente, a necessidade de que haja um minimum de racionalidade no

discurso jurídico, focando o procedimento (abertura) e alheando-se de preocupar-se com o

resultado (fechamento).

Por fim, Alexy acaba propondo que princípios podem ser equiparados a valores

(axiologia), fazendo equiparar direitos a bens (interesses); e bens podem ser transacionados

no contexto do proceder jurídico ou usados como moeda de troca no jogo democrático. Valores

apontam para o que pode ser considerado melhor, enquanto normas apontam para o devido. E

Alexy não precisa em que direção aponte este melhor valorativo a que as normas principio

lógicas se equiparariam: se o melhor individual, se o melhor para as partes, se o melhor sob a

perspectiva do julgador ou o melhor social, etc. – permeando sua teorização de um caráter

vago, além de confundir principiologia (ontologia) com axiologia.

A diferença entre princípios e regras, na forma proposta por Alexy, seria uma diferença na

estrutura morfológica e tampouco se consegue depreender disto seja uma diferença de

natureza ou de qualidade, como foi sua intenção inicial propor. É que resta sofrível à razão

compreender como é possível que princípios e regras possuam naturezas diferentes (Moral e

Direito), se ambos pertencem ao mesmo gênero, o normativo. Não fosse tudo, ou bem algo é

regra ou bem algo se define como princípio, esta cisão é categórica e determinante da lógica

interna da teorização de Alexy34. Contudo, esbarra na Dignidade da Pessoa Humana, o

calcanhar de Aquiles de toda a sua teorização. Primeiro, porque, e Alexy mesmo admite, a

Dignidade ora se comporta como regra, ora se comporta como princípio, sem que ele forneça

indicações de quando se dê um caso ou outro. Segundo, porque, e Alexy também admite,

‘existe uma série de condições sob as quais o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, com

um alto grau de certeza, precede a todos os demais princípios’35, o que significa que ela

rechaçaria todo e qualquer princípio quando da colisão; e, dando-se in abstracto, em desprezo

ao caso concreto, ou seja: em todo e qualquer caso, ela teria prevalência sobre os demais

princípios36, quando, segundo seu teorema da ponderação, princípios são relativos ou

relativizáveis (otimizáveis), mas, para ela, o teorema da colisão não seria aplicável.37

Ora, é de sabença geral que o chamado Pós-positivismo, enquanto filosofia, constitui o

embasamento teórico-filosófico do Neoconstitucionalismo38, enquanto corrente, de tal modo

que não sejam poucos que os tomem por sinônimos, ou como duas faces de uma mesma

moeda. Todavia, Neoconstitucionalismo, Constitucionalismo Pós-moderno e/ou Pós-positivismo

são gigantescos brasões que enquadram, numa só esfera, teses as mais várias, por vezes

contrárias, e até mesmo díspares39 ou inconciliáveis40, como se de um mesmo gênero se

34 Idem.p. 87. 35 ALEXY, Robert. Op. Cit. p. 109. 36 Cf. ATIENZA, Manuel. Entrevista a Robert Alexy. Disponível em:

<www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01372719768028837422802/doxa24/doxa24_28.pdf> Acesso em: 19 de junho de 2007. in: Revista Doxan.° 24. Alicante, 2001. p. 678.

37 Cf. ALEXY, Robert. Op. Cit. p. 106. 38 Cf. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. p. 71, 74 e 76. 39 Neste sentido, ver: SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: NOVELINO,

Marcelo. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Teoria da Constituição. Salvador: Jus Podivm, 2009, pp. 31-

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tratassem. E o termo Neoconstitucionalismo é relativamente recente e não é empregado no

debate constitucional norte-americano, tampouco naquele que se trava na Alemanha –

conceito forjado na Espanha e na Itália.41 Nestes termos, pretender criticar o Pós-positivismo

como um todo, ou mesmo o Neoconstitucionalismo como um todo, é correr o risco de ‘alvejar a

mosca e atingir o elefante’. Assim, ante a todas as críticas já feitas e aquelas que serão, na

impossibilidade de mirar o todo, o alvo será a vertente de Alexy, pelas razões já dadas.

O primeiro ponto a levantarmos seria o fato de que o pensamento Pós-

positivista/Neoconstitucionalista é dito pragmatista, ou seja, filia-se à proposição de que se

deva buscar soluções para a vida prática. Todavia, a alteração do locu de princípios, antes

antecedendo normas, para agora ocuparem posição secundária, como espécies do gênero

norma, consiste em mudança meramente teórica, e, obviamente, em nada prática (pragmática),

como deveria ser o mote da corrente ora combatida.

Não fosse tudo, tal mudança – a transposição de princípios do início e do começo, para

uma posição secundária, após normas – fere a própria etimologia da palavra princípio, a qual, a

despeito da alegada plurivocidade do termo, indubitavelmente alberga o significado básico de

início e começo, sendo agora tomado como algo secundário, posterior à norma.

Um terceiro ponto a considerarmos é que o prefixo ‘Pós’, de Pós-positivismo pressupõe

uma ruptura, uma superação do Positivismo, como algo novo e melhor, pretensa síntese

hegeliana do Jusnaturalismo e do Juspositivismo. No entanto, ao transladar princípios a

espécies do gênero norma, o Pós-positivismo/Neoconstitucionalismo muito mais reforça do que

supera o lema e o mote Positivista de que ‘só pertença ao Direito aquilo que for norma’.Trata-

se de uma nova roupagem, uma faceta outra e renovada do Positivismo, tal qual há paralelo

similar entre o Liberalismo e o Neoliberalismo.

Mas vejamos além: no contexto Positivista, a discricionariedade era pontual (quando de

lacunas não-sanadas pela via integrativa) e o Pós-positivismo, na versão de Robert Alexy,

parece ampliá-la em muito, já que, em todo e qualquer caso de colisão, o julgador decide de

forma plenamente discricionária.

Por fim, o outro objetivo principal do Pós-positivismo (já vimos) era, exato, o de conferir

maior força a princípios, habilitando-os como fundamentos autônomos de decisão. Todavia, a

simples aposição teórica de que princípios sejam espécies do gênero norma, por si só, não tem

o condão de conferir a princípios maior força, cogência ou aplicabilidade, havendo regras

(normas em sentido estrito) – e de sobejo – que, a despeito mesmo desta sua condição própria

de norma, não possuem força (cogência), não se aplicam. Ser norma, portanto, guardaria

pouca sinonímia com ter força, cogência ou aplicabilidade.

Bem, existem críticas outras, muitas aliás, mas preferimos nos ater a estas e encerrar a

presente análise, questionando a adoção acrítica de teorias e entendimentos estrangeiros, sem

68. 40 A tal respeito, Vigílio Afonso da Silva explicita: “Esse sincretismo metodológico, em termos simples, consiste na adoção de

teorias incompatíveis, como se compatíveis fossem.” SILVA, Virgílio Afonso da.Op. Cit., Loc. Cit. 41 Cf. SARMENTO, Daniel. Op. Cit. Loc. Cit.

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qualquer adaptação à realidade jurídica pátria, no que poderíamos ladear a versão do Pós-

positivismo de Alexy, à aplicação da Teoria do Domínio do Fato na Ação Penal 470 (vulgo

Mensalão) ou à diferenciação entre texto e norma no contexto da Constituição de 1988, o que

certamente fomentará um futuro debate, em posterior artigo nosso.

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GRANDES PROJETOS DO GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO, DESENVOLVIMENTO REGIONAL E VIOLAÇÃO AOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Maria Sueli Rodrigues de Sousa 1

Sebastião Patrício Mendes da Costa2

Resumo: Este trabalho busca analisar as possíveis violações a princípios constitucionais,

dentre os quais o direito a propriedade, pelos grandes projetos do governo federal brasileiro,

especificamente, a Ferrovia Transnordestina e as Hidrelétricas do Rio Parnaíba. Os processos

de desapropriação presentes na execução dessas grandes obras, ao invés de produzir

desenvolvimento regional, estão provocando na prática o enfraquecimento das populações que

residem nesses locais, através, por exemplo, das indenizações subdimensionadas.

Palavras-chave: Direito Constitucional. PAC. Propriedade.

INTRODUÇÃO

Programa de Aceleração do Crescimento - PAC é iniciativa do governo federal

brasileiro instituído em 2007 com o objetivo de criar e executar grandes obras de

infraestrutura para promover o desenvolvimento acelerado do país. Buscando realizar obras

estruturantes como fomento ao desenvolvimento como crescimento e com este a geração de

empregos, o PAC, segundo dados do Governo Federal Brasileiro, dobrou a quantidade de

investimentos públicos em obras consideradas fundamentais para o crescimento do país3.

Visto como um dos diferenciais que ajudaram o Brasil a enfrentar a crise financeira

mundial de 2008 e 2009, esse programa garantiu crescimento da economia e, com isso,

emprego e renda, o que permitiu a continuidade do consumo de bens mesmo durante o

período mais severo da crise financeira mundial recente.

Em 2011, o programa entrou numa segunda fase, o PAC 2, com a mesma orientação do

programa inicial, ou seja, realizar obras estruturantes para criar as condições de uma melhor

condição de vida para a população brasileira.

Nesse trabalho, analisaremos algumas dessas obras estruturantes do PAC frente a

direitos e garantias constitucionais, em especial o direito a propriedade, como a Ferrovia

Transnordestina e as Hidrelétricas do Rio Parnaíba que estão sendo executadas com o intuito

de gerar condições de desenvolvimento da região Nordeste do Brasil, considerada uma região

com baixos índices de desenvolvimento humano (IDH). Ocorre, porém, que ao invés de

1 Professora adjunta da Universidade Federal do Piauí-UFPI, campus Teresina-PI, Brasil. Doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UFPI. Bacharela em Direito pela UESPI. Bacharela em Ciências Sociais pela UFPI. Advogada. Email: [email protected].

2 Professor efetivo da Universidade Federal do Piauí-UFPI, campus de Teresina-PI, Brasil. Doutorando em Direito pela PUC/RS. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Mestre em Antropologia e Arqueologia pela UFPI. Bacharel em Direito pela UnB. Advogado. Email: [email protected].

3 http://www2.planalto.gov.br/

O

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proporcionar o desenvolvimento para as populações dessa região, na prática está acontecendo

violação aos direitos constitucionais dos habitantes dessas regiões, promovidas por órgãos

governamentais e corroboradas por decisões do Poder Judiciário que não respeitam um justo

preço e um contraditório efetivo quando da realização dessas obras, seja nas audiências

públicas seja nos procedimentos de desapropriação que chegam ao cúmulo de permitir

indenizações em quantias irrisórias, algumas no valor de R$5,00 (cinco reais), que

concretamente representam um abuso governamental frente às populações dessas regiões e

violação princípio da propriedade.

Analisaremos os procedimentos de desapropriação para a execução das obras da

Ferrovia Transnordestina e para a construção das Hidrelétricas do Rio Parnaíba, assim como

as violações a direitos causadas a essas populações por essas desapropriações.

A partir de reclamação de indenizações subdimensionadas de comunidades quilombolas,

de lentidão em processos de desapropriação para a reforma agrária e deslocamento de

população para a criação de unidades de conservação, a equipe de pesquisa coordenada pela

Profª. Dra. Maria Sueli Rodrigues de Sousa, da UFPI, uma das autoras deste trabalho, produziu

um amplo relatório sobre os critérios para indenização em processos de desapropriação de

imóveis rurais no Piauí. A partir do relatório, estudaremos a execução das obras da Ferrovia

Transnordestina e a construção das Hidrelétricas do Rio Parnaíba, considerando

especificamente as desapropriações por declaração de utilidade pública.

O desenvolvimento regional das áreas mais pobres do país passa necessariamente pelo

desenvolvimento das populações que residem naquele lugar. Pensar em obras estruturantes

sem considerar o fator humano é contraditório à medida que se busca promover o

desenvolvimento à custa do enfraquecimento de populações que residem nesses locais

tradicionalmente, algumas dessas populações consideradas como povos quilombolas. Como

harmonizar o desenvolvimento regional e o desenvolvimento das populações que residem há

muito tempo nessas regiões e assim efetivar o mandamento de desenvolvimento regional

estabelecido no artigo 3º, III da Constituição Federal.

Essa discussão passa essencialmente por uma reestruturação do próprio procedimento

desapropriatório que busca um justo preço para a terra ou benfeitoria realizada. Como buscar

um justo preço, que é calculado através de uma análise do preço de mercado, se as terras e

benfeitorias nas regiões de algumas dessas grandes obras não retratam a importância da terra

que é simbolizada não apenas por um bem de mercado, mas com uma série de significados

que vão além de uma precificação comum, ou seja, como precificar terra de subsistências de

pequenos proprietários no Nordeste brasileiro, se o valor de mercado é ínfimo diante da

importância que essa terra revela para os seus proprietários iniciais, aliás, se essas terras de

agricultura familiar nem mesmo estão no mercado? Questões como essas serão analisadas

nesse trabalho que buscará compreender de que forma o procedimento de desapropriações

nessas áreas podem permitir variações de preços enormes de um Estado da federação para

outro, preços que podem variar muito se a terra é de uma empresa ou se pertence a um

pequeno produtor rural.

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O direito fundamental a propriedade no Estado Democrático de Direito e o seu tratamento

pelos tribunais e na Constituição Federal de 1988 serão examinados, além de fazermos uma

breve explanação das principais questões presentes na temática desapropriação para

entendermos de forma concreta como as grandes obras citadas, a Ferrovia Transnordestina e

as Hidrelétricas do Rio Parnaíba (principalmente a Hidrelétrica de Castelhano) no Piauí

prejudicam a população dessas regiões em especial as populações tradicionais e os grupos

quilombolas.

Para isso buscaremos entender o direito fundamental da propriedade no Estado

Democrático de Direito (SARLET, 2011), sendo necessária uma breve evolução história da

noção de propriedade a partir de estudos de Ciências Sociais, em especial, de Antropologia.

Verificaremos ao final se essas obras de infraestrutura estão realmente garantindo

desenvolvimento a essas regiões ou se na verdade estão aumentando as desigualdades

dessas populações que perdem suas terras com as benfeitorias, sem uma indenização

realmente justa, e que acabem tendo uma piora no nível de vida. Será a própria cidadania

violada nesse procedimento? Questões como essas serão abordadas a seguir.

DIREITO FUNDAMENTAL A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL

EVOLUÇÃO DO DIREITO A PROPRIEDADE

A discussão sobre se a propriedade privada é uma instituição histórica é bastante ampla,

tendo em vista que ela poderia ser abordada sob os mais diversos aspectos. Nesse sentido far-

se-á uma abordagem visando firmar que a propriedade nasce das relações concretas entre os

homens e esses estão, objetivamente, situados historicamente (GASSEN, 2012).

Assim, para que se possa fazer um pequeno resgate da história da propriedade privada é

importante que se note como alguns autores entendem a História. Fustel de Coulanges, autor

de A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma, por

exemplo, entende que “a história não estuda apenas os fatos materiais e as instituições, seu

verdadeiro objeto de estudo é a alma humana: a história deve propor-se a conhecer o que essa

alma acreditou, pensou e sentiu nas diferentes idades da vida do gênero humano”

(COULANGES, 1975, p. 163). Afirma esse autor que se a natureza física exerce influencia

sobre a história dos povos, as crenças do homem possuem uma influencia ainda maior.

Friedrich Engels, por sua vez, nega que as crenças humanas tenham esse papel

preponderante na construção das instituições. Para ele são as condições de vida reais e as

mudanças ocorridas na produção pelo alargamento das fontes de subsistência, que moldaram

e ainda hoje moldam as instituições.

Ao abordarmos a propriedade primitiva e antiga, percebemos que as comunidades

gentílicas estavam organizadas basicamente em grupos familiares, clãs e tribos, em que a

propriedade coletiva dessas comunidades tinha em sua base o entendimento de que a

comunidade predominava sobre o individuo. Assim, a terra pertencia ao grupo, tanto aos vivos

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quanto aos mortos, visto que nesses tempos acreditava-se que os mortos permaneciam de

certa forma ligados à sua condição terrena. À propriedade é dada a característica de algo

sagrado, pois a relação que existia entre o grupo e a terra era permeada por relação mística

(COULANGES, 1975).

Fustel de Coulanges afirma em A cidade antiga, que, quando os homens viviam em tribos

familiares, o culto aos antepassados mortos gerava um culto de cunho essencialmente

doméstico, a qual era hereditária. Havia a crença de que após a morte haveria uma segunda

existência, a qual não seria totalmente desvencilhada do mundo dos vivos, daí toda a

ritualização com as oferendas, o fogo sagrado e etc. Coulanges afirma que foi esse culto

doméstico ensinou o homem a apropriar-se da terra e a assegurar seu direito sobre ela. Cada

família tinha seus próprios deuses, que eram os antepassados, que só a ela protegiam. Daí o

culto ser de propriedade exclusiva de cada família juntamente com a terra que compõe a área

de cultivo. Segundo Coulanges:

A família está vinculada ao altar e este, por sua vez, encontra-se fortemente ligado ao solo; estreita relação se estabeleceu, portanto, entre o solo e a família. Ai deve ser sua residência permanente, que jamais abandonará, a não ser quando alguma força superior a isso a constranja. Como o lar, a família ocupará sempre este lugar. O lugar pertence-lhe; é sua propriedade, propriedade não de um único homem, mas de uma família, cujos diferentes membros devem vir, um após outro, nascer e morrer ali (COULANGES, 1975, p. 50).

Como a religião doméstica estava intrinsecamente ligada ao espaço territorial, a

propriedade da terra era tida como inalienável. Como a família não podia renunciar ao culto dos

antepassados, não podia também renunciar à terra onde habitam os vivos e os mortos da

família. O fato de os antepassados de uma família terem sido sepultados em um dado território

faz com que aquela família se veja ligada àquela terra de maneira permanente. A partir desse

fato é que Coulanges conclui que a religião, e não as leis, garantiu, em princípio, o direito de

propriedade.

Coulanges acredita também que a humanidade vive em um constante progresso

intelectual. Daí, após o surgimento da religião doméstica, o passo seguinte foi a criação de um

culto da cidade, que encaminhou a humanidade para o ápice da crença, que é o cristianismo. E

com a organização da propriedade política territorial, passa-se a privilegiar o indivíduo em face

da propriedade, ou seja, o individuo particular passa a ser o centro referencial. Estabelece-se

também a distinção entre propriedade pública e propriedade privada.

Friedrich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado expõe os

estudos de Lewis H. Morgan, o qual apresenta uma nova base para o estudo da história

primitiva ao afirmar que o desenvolvimento se dá por mudanças ocorridas na produção, pelo

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alargamento das fontes de subsistência, e não mais, como se entendia antes, por

representações religiosas4.

A história para Marx e Engels é um processo complexo de luta de classes, do

desenvolvimento das forças produtivas, das forças políticas de dominação e das relações de

produção. E para eles a história se desenrola não apenas no ambiente da elite, mas também

na sociedade civil.

Para Marx e Engels, em A ideologia alemã, “cada uma das fases da divisão do trabalho,

determina também a relação dos indivíduos entre si no que respeita ao material, ao

instrumento e ao produto do trabalho” (MARX e ENGELS, 2006, p. 17). Para eles, tanto a

divisão do trabalho, quanto a propriedade privada são expressões idênticas. A divisão do

trabalho enuncia-se em relação à atividade desenvolvida pelos homens, ao passo que a

propriedade privada refere-se ao produto dessas atividades. Para Marx e Engels, há ainda uma

relação entre os instrumentos de produção e as formas de propriedade.

Marx e Engels afirmam que a divisão social do trabalho é umas das principais forças da

história. Para eles, a propriedade entre os povos antigos era essencialmente fundiária, isto

tanto na propriedade tribal quanto na estatal posterior. Na propriedade estatal, quando da

formação das cidades nas quais viviam juntas várias tribos, o direito dos indivíduos era apenas

de posse da terra, a propriedade era basicamente estatal. Já a propriedade tribal na idade

média desenvolve-se em várias fases (propriedade fundiária feudal, propriedade móvel

corporativa, capital manufatureira) até o capital moderno (condicionado pela concorrência em

nível mundial e pela grande indústria), em que a propriedade privada moderna corresponde ao

estado moderno, que foi, no seu entender, adquirido gradualmente pelos proprietários privados.

A cidade antiga é sem dúvidas um importante suporte para o entendimento de com surgiu

a propriedade privada, apesar de colocar no centro desse surgimento as crenças cultivadas

pelos homens primitivos. Não se pode negar o importante papel assumido pela religião, pelas

crenças, em todos os tempos como uma força capaz de influenciar um determinado modo de

produção. Todavia, não se pode colocá-las como centro da força motriz da humanidade.

As leis agrárias que surgiram no tempo das revoluções que são retratadas por Coulanges

são fruto de inúmeros conflitos de classe em torno dessas propriedades fundiárias, sejam

4 Na obra A sociedade primitiva, Morgan realiza um trabalho antropológico com uma análise etnológica e histórica tentando entender a sociedade humana e explicar o progresso através de períodos étnicos sucessivos. Apesar de ter sido publicada em 1877, a obra representa uma evolução à época, trabalhando, inclusive, aspectos étnicos e não de raça. Aliás, criticar a visão etnocêntrica é outro atributo do livro. Morgan propõe-se, por exemplo, a estudar a sociedade Azteca para promover essa relativização buscando trabalhar conceitos existentes e demonstrar que a sociedade Azteca possui uma formação diferente da formação européia. Realiza ainda um estudo da história da humanidade e de seu progresso através de avanços sucessivos em períodos étnicos distintos. Os períodos étnicos são a base em que se estrutura o livro Sociedade Antiga. São eles: a selvageria, a barbárie e a civilização. Para Morgan, os seres humanos teriam uma única origem, seguindo caminhos idênticos. Desta forma, por exemplo, a história das tribos da América representaria a história dos antepassados dos americanos em condições semelhantes.

Esse progresso realiza-se devido a invenções, descobertas e instituições civis e políticas que representam uma evolução no pensamento. Essa evolução aconteceu principalmente devido ao desenvolvimento gradual de idéias como: os meios de subsistência, o governo, a linguagem, a família, a religião, a vida doméstica, a arquitetura e a propriedade. Esse livro foi base para os estudos de Engels.

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conflitos entre eupátridas e tetas no caso grego, seja entre patrícios e plebeus no caso romano,

o que mostra que não há um caráter de sacralidade na relação dos indivíduos com a terra.

Coulanges não admite que a religião possa ter sido usada para legitimar os privilégios de uma

classe em relação à outra, o domínio do homem pelo homem, mas ele relata que foram poucas

as vezes que a religião incomodou a classe que em um dado momento se caracterizava como

classe dominante.

Engels, por sua vez, analisa a historia da propriedade privada sob o prisma da produção

material dos meios de vida. E ao analisar as revoluções ocorridas nos tempos primitivos em

Grécia e em Roma, chega à conclusão de que o mesmo Estado que cria mecanismos para a

concentração da propriedade, também é capaz de positivar juridicamente as reivindicações

advindas das classes despossuídas, dominadas.

Vale considerar ainda no quesito memória da propriedade privada e sua proteção duas

empirias: a da Carta Magna inglesa e a das revoluções burguesas que resultaram no

paradigma ocidental da racionalidade moderna jurídica e que transformaram a materialidade da

propriedade em abstração, ou seja, a propriedade deixa de ser identificada pelo uso e

ocupação e passa a ser matéria regulada por normas gerais e abstratas em forma de registro,

o que se configura como exercício de uma liberdade para usar determinada coisa material ou

imaterial.

Comparato (1999) refere que a Carta Magna de 15 de junho de 1215 foi uma pressão dos

proprietários, os barões feudais, contra o Rei João, também conhecido como João Sem-Terra

para que este assinasse a carta com reconhecimento de direitos dos proprietários como

condição para cessar a hostilidade dos barões que protestavam contra os abusos na cobrança

de impostos e outras invasões do poder soberano nas propriedades.

Na Inglaterra, a supremacia do rei sobre os barões feudais, reforçada durante todo o séc. XII, enfraqueceu-se no início do reinado de João Sem-Terra, a partir da abertura de uma disputa com um rival pelo trono e o ataque vitorioso do rei francês, Felipe Augusto, contra o ducado da Normandia, pertencente ao monarca inglês por herança dinástica. Tais eventos levaram o rei da Inglaterra a aumentar as exações fiscais contra os barões, para o financiamento de suas campanhas bélicas. Diante dessa pressão tributária, a nobreza passou a exigir periodicamente, como condição para o pagamento de impostos, o reconhecimento formal de seus direitos (COMPARATO, 1999, p. 59).

Cabe destacar que não se tratava de uma propriedade acessível a todas as pessoas, mas

a propriedade da nobreza, dos barões e que não verificou qualquer contrato social como um

acordo, mas como pressão a que o rei cedia por não poder enfrentar o poder rebelado, mas é

possível considerar pelo menos uma troca entre reconhecimento de direito das liberdades

subjetivas de ação (HABERMAS, 1997) pelos impostos. Trata-se de moldura histórica para a

primeira geração de direitos humanos e de direitos fundamentais, provavelmente, o único

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direito efetivamente fundamental considerando que os demais são condições para o exercício

das liberdades, dentre estas o direito de propriedade.

O outro empírico é o das revoluções burguesas que resultou em duas referências para os

direitos fundamentais e direitos humanos: a experiência francesa e a experiência americana ou

dos Estados Unidos da América.

Da experiência americana com as declarações de direitos, em especial, as liberdades, ou

as consideradas liberdades negativas a que cabe o papel do poder soberano não o de intervir,

mas o de se abster, pode-se destacar: a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776; a

Declaração de Independência dos Estados Unidos da América também de 1776 e a

Constituição dos Estados Unidos de 1787 (COMPARATO, 1999).

O primeiro documento já seguiu o paradigma do instituído na experiência inglesa: a

declaração dos seres como igualmente livres para o exercício das liberdades dentre estas a de

ser proprietário, cabendo ao poder soberano assegurar o exercício das liberdades.

a Declaração da Virginia expressa com nitidez os fundamentos democráticos, reconhecimento de direitos natos de toda a pessoa humana, os quais não podem ser alienados ou suprimidos por uma decisão política (COMPARATO, 1999, p. 98).

Da experiência francesa, destaca-se a Declaração de Direitos da Revolução Francesa,

surgida em agosto de 1789, que na afirmação de direitos impõe limites ao poder soberano em

relação aos cidadãos (COMPARATO, 1999).

As duas empirias referidas têm em comum a declaração de direitos tais como: princípio

da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, princípio da legalidade, liberdade religiosa e

livre manifestação do pensamento.

Considerando o direito de propriedade como umas das liberdades subjetivas de ação,

cabe destacar que o projeto iluminista que reconhecia como direitos as liberdades, incluía

como condições para o exercício das liberdades a de ser membro do contrato social, o direito

de petição em caso de violação dos direitos e o direito de participar como membro da

comunidade política, daí serem estes igualmente direitos fundamentais (HABERMAS, 1997).

Discorrer sobre marcos históricos da propriedade serve para que se entenda que o

surgimento da propriedade privada e sua concentração nas mãos de poucos se faz por

homens concretos, situados historicamente, além de fazer com que se compreendam as varias

formas que a propriedade assume.

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PROPRIEDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E NA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

O aprendizado com a história fez concluir que o exercício das liberdades como

proprietários com plena abstenção do Estado conduz a um nível de concorrência tal que

configura guerras pelo poder de ser proprietário, o que levou a impor pelo menos dois limites: a

de que cabe ao Estado intervir a partir de uma racionalidade discursiva garantindo condições

sociais, técnicas e ecológicas para o exercício das liberdades (HABERMAS, 1997) e que a

propriedade exerça função social. Eis o arcabouço do passa a figurar como Estado

Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito proporcionou ao direito à propriedade novos contornos,

novas percepções políticas, econômicas e sociais. A noção de propriedade ganha nova visão e

após a Constituição Federal de 1988, há uma maior abrangência do Direito Público na sua

percepção. Presente logo no artigo 5º, dos direitos e garantias fundamentais, o direito de

propriedade localiza-se entre a liberdade e a segurança. Segundo PAGANI (2009), isso

ocorreria porque a propriedade é garantia de liberdade e de segurança para o ser humano,

pois resguarda seus bens diante de uma possível necessidade. Tal direito de propriedade,

porém, não é absoluto e goza de limitações, inclusive, legais para impedir abusos e possíveis

prejuízos a coletividade. Locke (2006), em o Segundo Tratado sobre o Governo Civil, já

chamava a atenção para o mau uso da propriedade e até o desperdício como uma de suas

limitações. Não se pode entender a propriedade como fruto de interesses eminentemente

privados, mas agora como interesse público, pois cabe ao Estado controlar o seu exercício e

garantir a sua função social. A propriedade atualmente é entendida como um direito subjetivo,

mas não é absoluto, pois o seu exercício deve estar de acordo com a sua função social.

Essas características são próprias do Estado Democrático de Direito (SARLET, 2011),

que se fundamenta na justiça social, na igualdade, na legalidade e no princípio da soberania

popular. A propriedade, agora, não pode ser compreendida como realização apenas de

interesses individuais, mas deve considerar aspectos sociais, dentre os quais os ambientais e

econômicos. O tratamento jurídico desse direito que era fundamentalmente de direito privado

passa a ser primordialmente de direito público. Ou seja, o direito a propriedade é assegurado a

todos os cidadãos, mas apenas se a propriedade exercer a sua função social.

A tendência futura é de humanização do direito de propriedade, ressaltando a função social, e implementando novas formas de propriedade privada e coletiva, que assegurem, ao mesmo tempo, a dignidade, a liberdade, a segurança e a solidariedade de todos (PAGANI, 2009, p. 51)

A chamada Constituição Cidadã foi criada numa ampla participação popular que buscava

expressar a instituição de uma nova ordem, agora democrática, buscando a realização da

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cidadania e da justiça social. A Constituição Federal de 1988 realizou diversos avanços em

várias áreas, e no caso do direito a propriedade não foi diferente, apresentando dispositivos

que de forma clara visavam os chamados fins sociais.

A presença do direito a propriedade e de sua função social já no artigo 5º da Constituição

preconiza o intuito do legislador constituinte em proteger tal direito. Garantem o direito a

propriedade e a sua função social:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, nos termos seguintes: XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Segundo Facchini Netto (2013), é importante ressaltar que a Constituição de 1988 inseriu

a função social da propriedade com princípio regulador da ordem econômica e social, como

estabelece o seu artigo 170, III.

Há na sociedade agora uma preocupação no exercício do direito à propriedade que deve

atender aos interesses individuais, mas preocupar-se com o contexto social em que se insere

essa propriedade. A propriedade e sua função social estão ligadas a questões sociais e

econômicas, por isso a função social é um dos princípios fundamentais da ordem econômica,

como define o art. 170, III, da Constituição:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade;

Há outros momentos na Constituição que a função social é evidenciada, como

estabelecidos no art. 173, § 1º, I e a função social das empresas estatais; art. 182, § 2º e a

função social da propriedade urbana; art. 184 e a desapropriação-sanção do imóvel rural que

não cumpre a sua função social; artigo 185, parágrafo único e a previsão para tratamento

favorável aos imóveis rurais que cumprem a função social e o art.186 que recomenda os

critérios da função social.

É claro, portanto, que a função social da propriedade passa a integrar o próprio direito de

propriedade, a partir do entendimento do legislador constituinte. A legislação

infraconstitucional, com esse entendimento, deve ser interpretada com a vinculação da

propriedade privada a sua função social. Com afirma Facchini Neto,

Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social, porém, assume também uma função positiva, no sentido de que a disciplina das formas de

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propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento, dentre os quais dignidade de cada cidadão e o desenvolvimento de todas as potencialidades inerentes à sua personalidade (FACCHINI NETO, 2013, p. 316).

Em caso de conflito entre a função social e a função econômica da propriedade, deve

prevalecer a função social. Essas funções do Poder Público estão ligadas a essa nova ótica

sobre a propriedade, visando interesses individuais, mas acima de tudo buscando interesses

da coletividade. Para esse objetivo, pode o Poder Público até intervir na propriedade quando o

interesse público estiver ameaçado. No dizer de Pagani,

O direito de propriedade trata de um direito real de natureza subjetiva pelo qual o sujeito exercita, sobre alguma coisa material ou imaterial suscetível de valor econômico, os poderes de usar, gozar, dispor e ainda reaver de quem injustamente a possuir ou deter. Todavia, este direito de propriedade já não é mais absoluto, porque está condicionado a atender a função social da propriedade (PAGANI, 2009, p. 58-59).

DESAPROPRIAÇÃO

Quando tratamos de intervenção estatal na propriedade, a desapropriação provavelmente

é a forma mais drástica, uma vez que afeta a propriedade no seu caráter perpétuo e de forma

irrevogável. Através dela, o poder público toma do seu titular o domínio da propriedade, a fim

de vinculá-la a algum interesse público, baseando-se em alguma necessidade ou utilidade

pública ou num interesse social.

Para Carlos Alberto Molinaro (2013), desapropriação é conceito de Direito Público e

Revela-se como direito subjetivo público atribuído ao Estado em suas dimensões políticas (União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal), exercitado diretamente ou por terceiros (delegados), nos limites de sua formatação legal, sempre preenchidos os pressupostos de sua subjetivação (MOLINARO, 2013, p. 320)

Segundo Hely Lopes Meirelles, desapropriação é definida como

transferência compulsória da propriedade particular (ou pública de entidade de grau inferior para superior) para o Poder Público ou seus delegados, por utilidade ou necessidade pública ou, ainda, por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro (CF, art. 5º, XXIV), salvo as exceções constitucionais de pagamento em títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, no caso de área urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada (CF, art. 182, §4º, III), e de pagamento em títulos da dívida agrária, no caso de Reforma Agrária, por interesse social (CF, art. 184)” (MEIRELLES, Hely, 2002, p.436).

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Em suma, é uma modalidade de intervenção Estatal na propriedade privada (em exceção,

atendendo aos devidos requisitos, na propriedade pública também), consistindo em um

procedimento administrativo através do qual o Poder Público (ou seus delegados) subtrai do

particular algum bem. Necessária a prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública

ou interesse social, além do pagamento de justa indenização – em regra, em dinheiro.

Fundamenta-se constitucionalmente no art. 5º, XXIV (CF/88), cujo teor, orienta que “a lei

estabelecerá o procedimento para a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou

por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos

previstos nesta Constituição”.

A própria Constituição (motivo este da ressalva, na parte final do inciso XXIV do artigo

exposto) autoriza a desapropriação mediante o pagamento de indenização em títulos da dívida

pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, para o caso de área urbana

não edificada, subutilizada ou não utilizada, como instrumento de política urbana (CF, art. 182,

§4º, III); e de pagamento em títulos da dívida agrária, no caso de reforma agrária, por interesse

social (CF, art. 184).

Uma modalidade especial de desapropriação é prevista na Carta Magna, ainda, no seu

art. 243, denominada de expropriação. Recaindo sobre as glebas de terras de qualquer região

do País onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, sem qualquer

indenização ao proprietário.

A Lei Geral da Desapropriação consiste no Decreto-Lei nº 3.365/41, aplicando-se tanto

para desapropriações por utilidade pública quanto por interesse social – ambos fundidos como

utilidade pública, no referido decreto. Sobre as hipóteses de interesse social, entretanto, é a Lei

nº 4.132/62 que as fundamenta.

Ademais, a Lei Complementar nº 76/93 (com alterações introduzidas pela Lei

Complementar nº 88/96) dispõe sobre o procedimento especial da desapropriação por

interesse social para fins de reforma agrária, de competência exclusiva da União.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), por sua vez, regula a desapropriação por

interesse social, em sanção ao proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não

utilizado, de competência exclusiva dos Municípios, como instrumento de política urbana.

Por fim, cumpre ressaltar a Lei nº 8.257/91, que regula a exploração de glebas onde

foram localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, sem qualquer indenização ao seu

proprietário.

O procedimento administrativo em que se orienta a desapropriação se realiza em duas

fases: uma fase declaratória e outra executória.

A primeira fase consiste na indicação da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse

social do bem, além das próprias características do bem objeto da restrição.

A fase executória, por sua vez, consiste na fixação do preço (que é a justa indenização) e

a efetivação da transferência do bem para o domínio do expropriante. Ela pode se dar

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extrajudicialmente, no caso do proprietário aceitar o preço ofertado, ou judicialmente –

propositura da Ação judicial de Desapropriação – se houver discordância.

Na fase declaratória, sem a declaração expropriatória não é possível passar para a fase

executória, é a fase que deflagra o procedimento de desapropriação, permitindo sua tramitação

regular. Nesta fase, não há transferência de propriedade, sendo que se resguardam todos os

poderes, inerentes ao proprietário.

É por meio da declaração que se irá indicar o sujeito passivo da desapropriação, a

necessidade ou utilidade pública ou o interesse social do bem, assim como a destinação

específica que se dará a ele, juntamente com a sua identificação.

Apenas as entidades políticas são competentes para dar início ao procedimento de

desapropriação, salvo quando a lei atribua esta competência para outra entidade da

Administração Pública Indireta – como ocorre com a ANEEL (Agência Nacional de Energia

Elétrica), relativamente às áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários,

permissionários e autorizatários de energia elétrica (art. 10 da Lei nº 9.074/95 – redação dada

pela Lei nº 9.648/98).

São efeitos da fase declaratória: a) Sujeitar o imóvel à força expropriatória do estado; b)

Fixar o “estado” do bem, significando que as benfeitorias feitas a partir dali só serão

indenizadas caso sejam necessárias; c) Permite ao Estado o direito de entrar no imóvel

declarado (art. 7º do CL 3.365/41), podendo recorrer ao auxílio de força policial; d) Fixação do

termo inicial para o prazo de caducidade da declaração – 05 anos quando o fundamento for a

necessidade ou utilidade pública e 02 anos quando for para fins de reforma agrária.

Já na fase executória, efetiva-se a transferência do bem expropriado, integrando o

patrimônio público.

Podem executar a desapropriação tanto as entidades jurídicas competentes para a sua

declaração como as entidades que agem por delegação do Poder Público, compreendendo as

autarquias, fundações instituídas e mantidas pelo poder Público, as empresas públicas e

sociedades de economia mista, as concessionárias e permissionárias de serviços públicos.

Esta fase executória, como já fora explicitado, pode ser tanto extrajudicial (ou

administrativa) como judicial. A fase extrajudicial é a que ocorre amigavelmente, neste caso,

em acordo quanto ao valor da indenização, lavra-se o termo de acordo, registrando-se, se

imóvel o bem, no registro de cartórios.

Já a fase judicial tem início com a ação de desapropriação (procedimento previsto nos

arts. 11 a 30 DL 3.365/41), aplicável às desapropriações por necessidade pública e também

por interesse social. A petição inicial conterá a oferta de preço e será instruída com um

exemplar do contrato, ou jornal oficial que houver publicado o decreto de desapropriação, e a

planta ou descrição dos bens e suas confrontações.

No caso o expropriante alegar urgência, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse

dos bens, tendo ele depositado quantia calculada nos moldes do §1º do art. 15, do DL

3.365/41.

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A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço,

de modo que qualquer outra ação deverá ser decidida por ação direta (art. 20, DL 3.365/41).

Findo o prazo da contestação e não havendo concordância expressa quanto ao preço, o perito

judicial apresentará laudo no cartório em até 5 dias, pelo menos, antes da audiência de

Instrução e Julgamento. Nela, ao encerrar o debate, o juiz decidirá o preço da indenização.

MODALIDADES DE DESAPROPRIAÇÃO

Além das possibilidades elencadas no art. 5º, XXIV, da CF, quais sejam, a

desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, a Carta Magna prevê

outras possibilidades de desapropriação. De competência privativa, entretanto, de certas

entidades:

a) Desapropriação para fins de reforma agrária

Este é um tipo de desapropriação-sanção, cujo alvo é o imóvel rural que não esteja

cumprindo a sua função social. Está prevista no art. 184 da CF é da competência privativa da

União desapropriar por interesse social, mediante previa e justa indenização em títulos da

dívida agrária, com cláusulas de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte

anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

O decreto que declara o imóvel como interesse social, para fins de reforma agrária,

autoriza a União a propor ação de desapropriação. É executada pelo Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária – INCRA, que é uma autarquia federal vinculada ao Ministério

da Agricultura e executor da reforma agrária no país. São isentos de impostos federais,

estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de

reforma agrária (art. 184, §5º).

A desapropriação para fins de reforma agrária não atinge a pequena e média propriedade

rural, assim definida em lei, desde que o seu proprietário não possua outra, nem a propriedade

seja produtiva, nos moldes do art. 186 da Constituição Federal.

b) Desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana

Está prevista no art. 182, §4º da Constituição Federal, sendo uma desapropriação-

sanção, cujo alvo é o imóvel urbano que não esteja cumprindo a sua função social, ou seja,

não estejam atendendo às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressa no

plano diretor.

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Apenas os Municípios podem proceder a essa desapropriação. Podendo exigir que se

promova seu adequado aproveitamento, sob pena de, sucessivamente: i) parcelamento ou

edificação compulsórios; ii) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo

no tempo; iii) desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão

previamente aprovado pelo Senado Federal, com prazo de resgate de dez anos, em parcelas

anuais, sucessivas, assegurados o valor real da indenização e juros legais.

A lei nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, regulou os arts. 182 e 183 da Constituição

Federal e disciplinou a desapropriação como instrumento de política urbana.

A lei municipal específica para a área incluída no plano diretor poderá determinar o

parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado,

subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e prazos para implementação da

referida obrigação. Em caso de descumprimento das condições e dos prazos, o Município

procederá a aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU)

progressivo no tempo.

Depois de cumpridos 05 anos de IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido

a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à

desapropriação do imóvel, com pagamento de títulos da dívida pública.

SUJEITOS ATIVOS E PASSIVOS DA DESAPROPRIAÇÃO

Nos termos do Decreto-Lei 3.365/41 podem ser sujeitos ativos da desapropriação por

utilidade pública a União, os Estados-membros, o Distrito Federal, os Municípios e os

Territórios (art. 2º).

Quanto à desapropriação por interesse social, além dessas entidades, em competência

comum, é privativo ao Município a desapropriação a que s refere o art. 182; à União, a que se

refere o art. 184.

O art.3º, entretanto, afirma que os concessionários de serviços públicos e as entidades,

de um modo geral, que exerçam funções delegadas podem promover desapropriações,

mediante expressa autorização, que deverá constar em lei ou contrato.

Em contrapartida, o sujeito passivo é o expropriado, sendo este pessoa natural ou

jurídica, de direito público ou privado.

PRESSUPOSTOS

A necessidade pública, a utilidade pública ou o interesse social são os pressupostos

constitucionais da desapropriação. A necessidade é orientada pela indispensabilidade da

desapropriação; a utilidade pública, quando esta desapropriação é conveniente e, por fim,

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existe interesse social quando se objetiva redistribuir a pobreza, alcançando as camadas mais

pobres da sociedade.

O Decreto-Lei fundiu os pressupostos de necessidade pública e utilidade pública em um

só: utilidade pública.

Alguns casos de utilidade pública, segundo o Decreto-Lei 3.365/41: i) a segurança

nacional, ii) a defesa do Estado, iii) o socorro público em caso de calamidade, iv) a salubridade

pública, v) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de

meios de subsistência, vi) o aproveitamento industrial das minas e jazidas minerais, das águas

e da energia hidráulica, vii) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de

saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais, viii) a exploração ou conservação dos

serviços públicos.

Qualquer bem pode ser desapropriado: a) bens móveis e imóveis; b) coisas incorpóreas,

como direitos, ações; c) bens públicos e privados.

Quanto ao espaço aéreo e ao subsolo, em regra, não se desapropriam. Entretanto, caso

sua utilização resulte em prejuízo patrimonial do proprietário, em caso excepcional, pode-se

desapropriar, em consonância com o art. 2º, §1º do Decreto-Lei 3.365/41.

Segundo o § 2º do mesmo artigo os bens que pertencem aos Estados, Municípios, Distrito

Federal e Territórios podem ser desapropriados pela União; e os do Município, pelo Estado.

Entretanto, é necessária prévia autorização legislativa do órgão legislador da entidade

expropriante.

Uma empresa particular controlada pela União também pode ser desapropriada, mas,

para isso, é necessário ter autorização prévia do Presidente da República.

A Constituição Brasileira é expressa ao definir que a indenização deve ser justa, prévia e

em dinheiro. Como já fora explicado, faz algumas ressalvas, quanto àquelas hipóteses pagas

com títulos públicos. Teoricamente, procura abarcar tudo o que o proprietário perdeu e deixou

de ganhar: danos emergentes e lucros cessantes.

Compreende também os juros compensatórios, que se destinam a “compensar” o

proprietário da privação antecipada da posse.

Ademais, abrange os juros de mora, que se destinam a recompor a perda decorrente do

atraso no efetivo pagamento da indenização fixada.

Também é devida a correção monetária, calculada a partir do laudo de avaliação do bem.

Além disso, a sentença que fixar o valor da indenização quando este for maior que o

preço que fora oferecido irá condenar o desapropriante a pagar os honorários advocatícios,

segundo §1º do art. 27 do Decreto-Lei 3.365/41.

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DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA

Cumpre ressaltar a desapropriação indireta, ou apossamento administrativo, que é aquela

que se realiza sem as formalidades legais. Na verdade, trata-se de um esbulho estatal, que

ocorre quando o Poder Público interfere na propriedade sem prévia ação ou prévio título. É ato

ilícito, e dá direito à defesa por meio de ações possessórias.

Entretanto, se houver sido dado um fim aquela propriedade, por exemplo, transformado

em uma escola, não poderá mais se reaver, resolvendo-se a lide através das perdas e danos.

DIREITOS DOS DESAPROPRIADOS

Por fim, cumpre ressaltar alguns direitos ante o poder da desapropriação. Primeiro, o de

exigir que ela ocorra de acordo com a lei, além do direito de retrocessão5 e do direito de

extensão.

A retrocessão é o direito de pedir o bem de volta, caso ele não seja destinado ao que

havia sido declarado na desapropriação. Surge, portanto, quando ocorre um desvio de

finalidade.

Vale lembrar que segundo o art. 35 do Decreto-Lei, uma vez o bem expropriado

incorporado aos bens da Fazendo Pública, não pode mais ser objeto de reivindicação, devendo

se resolver qualquer lide através das perdas e danos.

O direito à extensão, por sua vez, é aquele que permite ao expropriado exigir que a

desapropriação abranja a parte do bem que não foi incluída no ato declaratório, visto a sua

inutilidade fracionada.

OS GRANDES PROJETOS DO GOVERNO FEDERAL: A FERROVIA

TRANSNORDENSTINA E AS HIDRELÉTRICAS DO RIO PARNAÍBA NO

PIAUÍ

O Nordeste brasileiro está inserido numa conjuntura política nacional que alimenta uma

situação histórica e econômica pautada por políticas públicas que buscam garantir obras de

infraestrutura essenciais para o desenvolvimento regional a partir do incentivo e do fomento de

investimentos da seara privada. Essas políticas são a reprodução de um quadro de políticas

5 REsp 853713 / SP, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN. DJ 30/03/2010: “3. A retrocessão (pretendida pelos recorrentes) é o direito de o particular exigir a devolução de seu imóvel expropriado.

Essa pretensão somente é válida em caso de tredestinação ilícita, quando o expropriante deixa de dar ao bem destinação que atenda, genericamente, ao interesse público.

8. Ainda que houvesse tredestinação ilícita (não verificada no caso em análise), seria inviável a retrocessão, por conta da incorporação do imóvel ao patrimônio público, resolvendo-se tudo em perdas e danos (desde que comprovados), nos termos do art. 35 do DL 3.365/1941.”

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sociais que violam direitos e garantias fundamentais, dentre as quais o direito a propriedade, e

que determinam de forma obrigatória o deslocamento de populações, inclusive tradicionais,

indígenas e quilombolas, a partir de processos de desapropriação.

Nesse universo situam-se a desapropriação por utilidades pública nas obras do PAC,

especificamente, a Ferrovia Transnordestina e as Hidrelétricas do Rio Parnaíba, objetos de

análise desse trabalho.

A FERROVIA TRANSNORDESTINA

A Ferrovia Transnordestina ligará os municípios de Eliseu Martins, no estado do Piauí, ao

Porto de Suape, em Pernambuco, e ao Porto do Pecém, no Ceará, atravessando o território

dos Estados do Piauí, Ceará e Pernambuco. Essa obra de infraestrutura do PAC tem como

meta, segundo o Governo Federal, dentre outras, desenvolver o agronegócio na região. Em

2013, uma pesquisa realizada pela UFPI e patrocinada pelo Ministério da Justiça produziu um

amplo relatório que buscava compreender os critérios adotados pelo PAC para precificar a

terra nua e as benfeitorias das terras que seriam desapropriadas para a execução dessa

grande obra6.

Ao se analisar os processos de desapropriação em tramitação no Poder Judiciário do

Piauí, o relatório indicou uma presença de 558 processos de desapropriação. Entre 2008 e

2009 foram depositados 95,5% das indenizações; 93,2% foram imitidos na posse, com a

expedição de 32,5% dos alvarás. Dos 558 lotes de terras 32 correspondiam a terras públicas e

526 a terras particulares. Dentre essas terras privadas, chama à atenção a presença de 19

propriedades pertencentes a comunidades remanescentes de quilombos.

Quanto às indenizações, verificou-se que os preços variam entre R$ 200,00 (duzentos

reais) e R$ 1.000,00 (mil reais). Num determinado lote, terras próximas tiveram uma variação

de preços extremamente alta, variando de R$ 11,13 a R$ 5.528,00.

No que se diz respeito às benfeitorias, a maioria das indenizações está entre R$ 3,00 e

R$ 500,00. Na cidade de Paulistana-PI, por exemplo, temos uma variação da terra nua de

R$ 5,39 a R$ 7.717,28 e as benfeitorias variam de R$ 186,28 a R$ 29.724,16. Em Simplício

Mendes, a variação dos preços da terra nua varia entre R$ 4,95 e R$ 3.106,00. Já nas

benfeitorias, a variação está entre R$ 161,32 e R$ 182.551,46. Essas duas cidades localizam-

se no semiárido piauiense e, apesar do preço baixo das terras, percebemos muita variação.

Numa análise mais geral, percebe-se um valor maior das terras de cerrado onde se localizam

as grandes produções de soja, com uma indenização mais alta.

6 SOUSA, Maria Sueli (coord.) Relatório - Critérios para indenização em processos de desapropriação de imóveis rurais.

Departamento de Ciências Jurídicas da UFPI. Teresina, 2013.

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O que se percebe é que apesar de todas as terras já terem sido avaliadas, quase todos

os processos ajuizados, as indenizações já cumpridas na maior parte e as imissões na posse

já praticamente liberadas na totalidade, não temos a mesma velocidade com a liberação dos

alvarás, que tem a lentidão justificada pela morosidade do judiciário.

Quantos aos critérios de avaliação, a equipe de pesquisa foi informada que os laudos são

fundamentados em critérios técnicos de pesquisa de mercado através do Banco do Nordeste e

das EMATERs locais. A pesquisa em cartórios não é feita, pois estes não possuem valores

atualizados. Segundo a equipe, a alta dos preços pela chegada da Transnordestina não é

considerada, pois acontecem após a desapropriação. Em caso de contestação de valores, ao

invés de nomeação de peritos judiciais, o juiz determina que a mesma equipe que fez o laudo

de vistoria e avaliação refaça o laudo, ao invés de nomear peritos judiciais.

Os baixos preços foram justificados pelo pequeno tamanho das terras desapropriadas e

pela localização, na maior parte delas, no semiárido, que é pouco fértil e muito seco. Percebe-

se que a desapropriação por utilidade pública para a construção da Transnordestina não

cumpriu as normas do Manual de Diretrizes para Desapropriação do DNIT uma vez que não

seguiu rotinas indicadas, não houve a fase administrativa. Houve ainda a delegação da

desapropriação para órgãos estaduais, ou seja, não foram serviços de avaliação e

levantamento cadastral que foram delegados, mas a própria desapropriação na sua fase

executória.

Nota-se ainda que não houve a existência de processo administrativo, sendo realizada a

desapropriação totalmente no Poder Judiciário e não apenas quando não houvesse acordo na

fase administrativa. Tivemos então a supressão da fase administrativa da desapropriação,

confusão sobre o pólo ativo, violação ao devido processo legal, ao contraditório, supressão da

perícia judicial em nome da celeridade e ainda a preocupação com a definição do preço justo

no caso de agricultura familiar.

O laudo de avaliação feito por oficial de justiça indica o proprietário, o interessado, o

objeto (se terra, região ou benfeitoria) de avaliação e objetivos, além da metodologia utilizada

para avaliar terra bruta (não trabalhada, com ou sem vegetação natural – ABNT NBR nº14653-

3), terra nua (terra sem produção vegetal ou vegetação natural - ABNT NBR nº14653-3), as

benfeitorias e o valor da indenização com as considerações finais. A metodologia usada para

avaliar a terra nua e bruta foi o Método de Quantificação de Custos, utilizando-se o Banco do

Nordeste e as EMATERs locais como fonte de pesquisa.

O que se verifica nas análises dos laudos é que há uma supremacia do poder do Estado

frente ao cidadão que não consegue questionar a desapropriação num primeiro momento e

que a avaliação não enxerga o outro com as suas diferenças. O laudo é feito utilizando-se uma

racionalidade técnica que não percebe o trabalho e a realidade do trabalhador rural.

No Ceará, a Transnordestina teve as suas desapropriações executadas pela Secretaria

de Infraestrutura do Governo do Estado e pelas empresas Metrofor e Emprol, contratadas para

elaborar os laudos. Nesse Estado, o Judiciário já concedeu a imissão na posse para a última

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etapa das desapropriações e para acelerar, a SEINFRA está reforçando equipes

interdisciplinares de apoio junto aos indenizados.

Segundo o relatório,

É possível concluir quanto à desapropriação por utilidade pública pelo DNIT para a Ferrovia Transnordestina: que o DNIT atuou na fase declaratória, a fase executória foi conveniada com os Estados, havendo a informação de que o DNIT de Brasília aferia os cálculos, o que parece ser pouco provável, considerando a quantidade de processos em cada Estado e o pouco tempo em que transcorreu todo o processo, menos de dois anos; no Piauí, foi dispensada a perícia judicial para o contraditório, tendo sido substituída pela repetição da avaliação no caso de não concordância com o valor; a fase executória completamente transcorrida no Judiciário em nome da celeridade e da garantia do contraditório; que, sob a alegação de delegação de competência para o Governo do Estado, o pólo ativo da desapropriação passou a figurar como União representada pela Procuradoria Estadual; os critérios identificados foi o preço justo pago previamente, sendo este definido como o valor de mercado, porém o bem da agricultura familiar, em regra, não está no mercado e a visão do avaliador não consegue aferir os usos dados aos bens desapropriados, em regra, é visto como área não explorada, até mesmo para aquelas que dispõem de benfeitorias que atestam a exploração da terra, como o caso da terra destocada, o resultado está na produção de valores irrisórios para a desapropriação referente a agricultura familiar (SOUSA, 2013, p. 45-46).

É possível referir quanto às conclusões empíricas da pesquisa dois quadros teóricos: a

relação autonomia pública e autonomia privada (HABERMAS, 1997) e interpretação do direito

como integridade que demanda a criação interpretativa do direito referido por Sousa ett all

(2014) ao referir-se a Dworkin, considerando que cabe ao intérprete das normas a:

(...) tarefa é garantidora, não criadora. Ele deve buscar a única resposta correta, por meio de uma atitude interpretativa que almeja alcançar a superação de lacunas e imprecisões do ordenamento pré-existente. A resposta não é dada às claras, mas pode ser construída argumentativamente, através de uma interpretação construtiva num exercício reflexivo de resgate de precedentes (...) [e] o Direito, na visão do autor, não constitui apenas um apanhado de regras, mas deve ser considerado como uma integridade entre regras e princípios, no qual as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que combinam elementos voltados tanto para o passado como para o futuro, interpretando a prática jurídica como uma política em processo de desenvolvimento (SOUSA et al, 2014, p. 5).

Tomar o direito para além do apanhado de regras implica interpretar sua integridade como

tarefa urdidora das cisões e refazedora dos “nós” das relações sociais pelo acionamento de um

comprometimento de manutenção dos laços sociais pela renovação dos “contratos sociais”

revividos em cada conflito para o qual se busca solução oriunda da desistência das vias de

fato.

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Desapropriar em nome de uma utilidade pública não discutida, não compreendida e com

revelação omitida ou não submetida ao contraditório não se prefigura no fazer demandado pelo

direito comprometido com os processos de integração social. No caso apresentado, o

acionamento como direito nem como mera força de expressão parece se configurar. Relaciona-

se mais com contexto enfrentado pelos barões da Inglaterra medieval quando impuseram a

Carta Magna do que algo que possa lembrar contrato, acordo, Constituição.

O ato de desapropriar é tão definitivo que se torna não apropriado chamar de processo de

desapropriação o que ocorre na fase executória da desapropriação, já citado, em razão de não

ser objeto da ação a desapropriação propriamente dita, mas apenas a indenização ou o

descontentamento com a indenização.

O outro quadro teórico, autonomia pública e autonomia privada com Habermas (1997),

leva a compreender as conclusões empíricas da pesquisa já referida como antagonismo entre

os dois interesses. Cabe referir com Habermas (1997) que não se trata de antagonismo e se

assim for considerado será com o fim meramente identificatório, discernidor de um e do outro,

como ocorre com claro e escuro, em que quando um desparece, o outro não tem mais razão

em existir, o que leva o autor a referir a um processo de cooriginariedade entre os dois, o que

permitir referir que nega um é negar os dois e que cabe aos processos de desapropriação

considerar e respeitar os dois, mas não numa perspectiva salomônica (DWORKIN, 2007), mas

de garantia dos dois e não autorização de violar um em nome da garantia dos dois, por isso a

positivação da exigência de indenizar previamente.

O aspecto em nada foi considerado nesta provavelmente em nenhum caso de

desapropriação nos moldes do estudado na pesquisa como no caso referido a seguir.

HIDRELÉTRICAS DO RIO PARNAÍBA

No âmbito do desenvolvimento energético, no Estado do Piauí, consta como obras do

PAC a construção de 5 hidrelétricas no Rio Parnaíba. Com uma extensão de 1.850km, esse rio

separa dos estados do Piauí e Maranhão. As desapropriações por declaração de utilidade

pública para fins de infraestrutura energética foram de responsabilidade da Agencia Nacional

de Energia Elétrica – ANEEL, diretamente ligada ao Ministério de Minas e Energia. No caso

das hidrelétricas, há noticias na mídia afirmando do questionamento junto ao Tribunal de

Contas da União – TCU sobre as desapropriações e valores das indenizações, pois haveria

uma discrepância de preços em relação a outros Estados.

Diante de um aumento da demanda energética identificada pelo Operador Nacional do

Sistema Elétrico, não há dúvidas da necessidade de investimentos para uma maior oferta de

energia. A oferta de energia passa necessariamente pela construção de barragens, usinas e

linhas de transmissão. A construção das cinco hidrelétricas do Rio Parnaíba teve início a partir

da elaboração do inventário hidrelétrico do desse rio, feito pela CHESF em 2003. O leilão para

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a construção das hidrelétricas foi realizado em 2011, mas não houve compradores. Retomado

em 2012, o leilão novamente não contou com propostas. Apesar dos laudos do Estudo de

Impactos Ambientais (EIA) apresentados ao IBAMA para o licenciamento em 2008, o Ministério

Público Federal no Piauí ajuizou, em 2011, Ação Civil Pública para impedir os leilões das

barragens sob a alegação de supostas irregularidades e inconsistências presentes nos estudos

de viabilidade ambiental.

No caso das Hidrelétricas, segundo o relatório da UFPI, a CHESF usa o solo e as

benfeitorias para quantificar o valor do imóvel rural. Mas a CHESF no Piauí não conta com

pessoal especializado para fazer as avaliações. E que utiliza como parâmetro da avaliação os

critérios utilizados por outras instituições, principalmente o INCRA e o Ministério de Integração.

Nesses casos, normalmente os processos são solucionados na via administrativa e apenas

cerca de 10% dos processos de desapropriação da CHESF se resolvem pela via judicial. Não

há negociação, se o preço ofertado for discutido, a questão se resolverá judicialmente.

Segundo o relatório, haveria um certo entendimento do Poder Judiciário que o preço indicado

pela CHESF seria o justo e grande parte dos processos tem o preço ofertado pela CHESF

mantido pelo judiciário.

Ocorre, porém, que no caso desses empreendimentos hidrelétricos, há um descompasso

legal, pois institutos importantes na desapropriação não foram adequadamente utilizados. Há

uma falta de diálogo flagrante entre o consórcio responsável pelas barragens e as

comunidades ribeirinhas que são praticamente excluídas de qualquer participação mais efetiva

no processo decisório sobre essas grandes obras. A audiência pública para o licenciamento

ambiental foi o único espaço, na prática, de diálogo entre as partes envolvidas nessa obra, e

deve-se salientar que a participação deveria ser feita de forma escrita, mas grande parte dos

envolvidos e futuramente atingidos pelas barragens não tem acesso a escrita. Temos uma

ausência de diálogo e a supremacia do interesse público acaba sendo utilizada como meio

encobrir interesses empresariais na instalação dessas obras no Piauí.

O caso da Hidrelétrica Castelhano é mais grave, pois a sua construção vai obrigar o

deslocamento compulsório de populações tradicionais e até quilombolas como é o caso da

comunidade Riacho dos Negros. Mais uma vez, o desenvolvimento prometido pelo Governo

Federal com as obras do PAC acaba por violar direitos, e nesse caso, direito de comunidades

que devem ter seus modos de vida protegidos constitucionalmente. Obrigar o deslocamento

dessas comunidades, sem um diálogo efetivo, sem uma proteção jurídica proporcionada por

uma defensoria pública estruturada é manter essas comunidades vulneráveis a qualquer

determinação estatal sobre suas terras e sua identidade.

E mais uma vez a vulnerabilidade não se configura como um típico problema da

racionalidade moderna, conformada nas promessas da modernidade, mas se assemelha a

desproteções anteriores a todas as garantias de todo e qualquer “contrato social” ou acordo

constitucional, tomando como referência a alteração produzida na modernidade e mais

evidenciado no paradigma do Estado Democrático de Direito com a transferência dos

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fundamentos metafísicos e unipersonalizados do poder soberano para um entendimento de

soberania popular.

No arcabouço do Estado democrático de direito, soberania popular e direitos humanos

também são cooriginários (HABERMAS, 1997). Um pressupõe o outro! Não falamos em

soberania popular sem a garantia dos direitos humanos / direitos fundamentais e vice-versa. E

partindo do pressuposto, Habermas reconstrói a teoria de direitos humanos/direitos

fundamentais com a ruptura da concepção de gerações, etapas, fases dos direitos humanos,

mas que são todos ao mesmo tempo e que não há a garantia de um com a violação de outro. A

violação de um, viola todos.

A reconstrução da teoria dos direitos humanos/direitos fundamentais retoma e reconstrói

a concepção de que os direitos fundamentais são as liberdades subjetivas de ação, ou o direito

a ter direitos e que as demais garantias são condições para o gozo das liberdades negativas ou

direitos subjetivos e por isso essas condições são também direitos fundamentais. São elas: o

direito de pertencimento à comunidade política, o direito de petição, o direito de participar e as

condições sociais, técnicas e ambientais (HABERMAS, 1997).

Além do considerado, vale referir que os direitos fundamentais são estruturantes da

constituição, junto com as seguintes outras estruturas: fundação do Estado/nação, divisão dos

poderes e organização institucional do Estado. E que os direitos fundamentais pressupõem o

cidadão. E quem é o cidadão? O sujeito constitucional! Aquele que só é submetido ao poder

soberano por que é autor da constituição (HABERMAS, 1997). E que se for apenas o

submetido, não há que se falar nem em democracia, nem constitucionalismo nem em direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento de regiões brasileiras, como a região Nordeste, passa

necessariamente pelo desenvolvimento de sua população. Permitir indenizações de valores

irrisórios nas desapropriações de terras e benfeitorias para a construção de grandes obras de

infraestrutura é uma contradição, pois o surgimento de obras estruturantes termina por obrigar

que o sertanejo não tenha condições de sobrevivência, uma vez que perdem suas terras com

suas benfeitorias e recebem uma indenização que não é capaz de permitir fazê-lo sobreviver

dignamente juntamente com sua família. A participação do Poder Judiciário torna essa situação

ainda mais grave. Inicialmente por se permitir a atuação desse poder para justificar

indenizações irrisórias, uma atuação que exige o poder público para justificar um preço tão

aviltante. Também porque na prática percebe-se, que nesses processos, o Judiciário atua

como um chancelador da Administração Pública.

Como garantir um contraditório efetivo se essas populações sequer são assistidas por

uma defensoria equipada? Há regiões com menos de um defensor público por comarca. Como

permitir uma decisão justa se a presença do Estado nem mesmo permite níveis de educação e

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saúde adequados? Até o procedimento escrito de defesa se torna castrador de direitos de

populações que, em grande parte, são analfabetas ou analfabetas funcionais.

Esses processos de desapropriação significam diretamente uma violação ao direito a

propriedade, pois as instituições envolvidas não conseguem quantificar de forma justa o preço

de terras quando estas são para subsistência de famílias de pequenos produtores rurais. Negar

isso significa violar também o fundamento de cidadania, que está presente em nossa

Constituição Federal no artigo 1º, II.

Viola-se também a Constituição Federal quando esses grandes projetos, concretamente,

não diminuem a desigualdade regional. Se o desenvolvimento do Nordeste passa pela

execução de obras estruturantes de infraestrutura, não podemos descartar que o

desenvolvimento da região deve ser seguido necessariamente pelo desenvolvimento das

populações que há muito tempo lá residem e que precisam de um preço realmente justo de

suas terras e benfeitorias para que tenham minimamente condições de vida digna, como é o

caso de populações tradicionais e quilombolas.

Como sugerido no relatório produzido pela UFPI, algumas mudanças legislativas devem

ser implementadas, dentre as quais destacamos a inserção de mecanismos democráticos de

garantam a definição da utilidade pública anterior à Declaração por Utilidade Pública, a

obrigatoriedade de critérios para definir o preço justo de imóveis que considerem a visão do

sertanejo e não apenas uma lógica focada exclusivamente no preço de mercado, a avaliação

dos impactos da desapropriação junto à população atingida e a adoção de medidas que

diminuam os impactos das remoções compulsórias.

A garantia do contraditório efetivo só será realizada com um acesso dessas populações

atingidas aos níveis mínimos de educação e saúde, além de uma Defensoria Pública equipada

e com um número suficiente de Defensores. Medidas como essas são fundamentais para

garantir o desenvolvimento e o direito à propriedade nessas situações, ou com diria Carlos

Alberto Molinaro,

A Constituição de 1988, pelo legislador constituinte, muito incorporou das contribuições trazidas pelas correntes doutrinárias e pelo direito pretoriano mais inovador, tendentes a indenizar todos os sacrifícios de bens e direitos, impostos pelo poder público, e susceptíveis de uma compensação econômica. (MOLINARO, 2013, p. 321)

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