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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS CLÁSSICAS Menêxeno de Platão: Tradução, Notas e Estudo Introdutório Bruna Camara Versão Corrigida São Paulo 2014

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    Menxeno de Plato: Traduo, Notas e Estudo Introdutrio

    Bruna Camara

    Verso Corrigida

    So Paulo

    2014

  • 1

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    Menxeno de Plato: Traduo, Notas e Estudo Introdutrio

    Bruna Camara

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Letras Clssicas do

    Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da

    Universidade de So Paulo

    para a obteno do ttulo

    de Mestre em Letras Clssicas

    Orientador: Prof. Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes

    Verso Corrigida

    So Paulo

    2014

  • 2

    Bruna Camara

    Menxeno de Plato: Traduo, Notas e Estudo Introdutrio

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas do

    Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em

    Letras Clssicas.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:_______________________ Assinatura:___________________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:_______________________ Assinatura:___________________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:_______________________ Assinatura:___________________________

  • 3

    RESUMO

    Esta dissertao tem como objetivo apresentar a traduo do dilogo Menxeno,

    de Plato, acompanhada de notas crticas com o intuito de auxiliar a leitura do texto, e

    de um estudo sobre os principais temas e problemas suscitados pela obra, sobretudo no

    que concerne aos anacronismos e distores presentes na orao fnebre platnica e sua

    possvel relao com o discurso atribudo a Pricles presente no Livro II da Histria da

    Guerra do Peloponeso, de Tucdides.

    Palavras-chave:

    1. Plato 2. Filosofia 3. Retrica 4. Gneros do Discurso 5. Orao Fnebre

    ***

    ABSTRACT

    This dissertation aims to present the translation of Platos Menexenus,

    accompanied by critical notes in order to assist the reading, and a study of the main

    topics and issues raised by the work, especially with regard to the anachronisms and

    distortion in Plato's funeral oration and its possible relation with the speech attributed to

    Pericles present in Book II of the History of the Peloponnesian War, by Thucydides.

    Keywords:

    1. Plato 2. Rhetoric 3. Philosophy 4. Genres of Discourse 5. Funeral Oration

  • 4

    A meu pai, Paulo Camara

  • 5

    Agradecimentos

    FAPESP, pelo valioso auxlio que a bolsa concedida me proporcionou;

    Ao Prof. Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes, pela impecvel orientao, pelas ajudas

    constantes, pelo incrvel profissionalismo que demonstrou ao longo do tempo e por ter

    acreditado sempre em meu trabalho, o que indubitavelmente em muito contribuiu para

    sua realizao. Ademais, agradeo por ter se mostrado to disposto e acessvel, de modo

    a permitir que minha pesquisa tenha se dado de modo leve e prazeroso;

    Ao Prof. Dr. Adriano Machado Ribeiro e ao Prof. Christian Werner, que compuseram a

    banca de qualificao desta dissertao, pelas intervenes feitas e, sobretudo, pelo

    cuidado que demonstraram ao ler minhas palavras, auxiliando-me em pontos de extrema

    importncia para o desenvolvimento de meu trabalho;

    Prof. Dra. Josiane Teixeira Martines, no apenas por compor a banca de defesa de

    minha dissertao, mas tambm pelo imenso cuidado demonstrado na leitura de minha

    pesquisa, pelas observaes pertinentes e pelas palavras todas ditas;

    A Rafael de Souza, amigo e companheiro de tantos dias que passamos, de cus rseos.

    No mais, terei sempre seu amor comigo num lugar chamado Oz;

    A Erick Gustavo Savegnago, pelo amor que me oferece mesmo sendo eu simplesmente

    uma errante. Pela vida que somos juntos e pelos risos infindveis todos os dias, quando

    reinvamos no mesmo espao e tempo. Que seu corao sempre esteja em compasso

    com o meu, de algum modo;

    A Bruno Jardim Rodrigues, pelas danas na sala, por ser minha risada quando eu mal

    consigo esboar sorrisos. Por cada trem, por cada msica, por cada incio e fim de dia

    que compartilhamos nos anos que temos na histria um do outro, e pelas frases soltas,

    tantas, que me tornam mais leve, me fazem ver que, afinal, no h problema que

    persista aps uma boa dose de despretenso;

  • 6

    A caro Francesconi Gatti e Vincius Lacerda, pelas cores que me ofereceram nos

    ltimos tempos de Castelo em risadas sinceras, por terem me oferecido diversos pontos

    de vista, pelas viagens, pela pacincia absurda que demonstraram sempre com minha

    voz gritante;

    A Amanda Cerqueira, minhas vidas todas, a companhia mais incompreensivelmente

    perfeita que pude experimentar nos meus dias, minha completude, meu corao batendo

    noutro corpo. Grata por ter algum na Terra que compreenda que, sabe, prum bom

    viajante, nada distante; prum bom companheiro, no conto dinheiro. Conte comigo, eu

    te sigo para enfrentar o castigo ou ter glrias de um campeo. minha linda, o meu

    caf ficou to sozinho, os meninos passam e eu olho sem ter pra quem mostrar. Me falta

    tu mesmo e teu jeito de me contar. O sol se pe l na pracinha e eu me sentei cantando

    sozinha. Gratido pelos bons momentos e por ter danado a juventude ao meu lado;

    A Pedro Henrique Paschuetto, captulo encantado da minha histria, por cada pedra que

    pulamos juntos, pelas estradas, milhares de estradas de terra, de asfalto. Pela pedra do

    corao. Por seus olhos bonitos, pela vida infinita que me proporcionou ao cruzar o meu

    caminho, pelo zelo que sempre teve mesmo quando eu nunca acreditei ou vi. Ao moo

    de Paranapiacaba, eu sou grata; no meio da neblina sem fim em que mal se podia ver o

    rosto do outro, impossvel calcular o que me faria enxergar: tudo aquilo que eu no

    poderia ver sozinha. Por me aceitar de corao selvagem, bradando que o mundo inteiro

    est naquela estrada ali em frente e que isso belo. Sem-tempo o meu amor;

    A Duerer Guilhermetti de Carvalho, eu no sei exatamente o motivo, talvez por ter-me

    sido agradvel desde o dia primeiro em que chegou. Grata por ter criado um canto novo

    dentro de mim, num corao que j no tinha. Tem agora. Grata por ver trs luas em

    uma, por se encantar com saguis no mato, por me fazer rir por mais de quatro horas,

    incomodando toda a rodovia. Grata pela espontaneidade, pelas conversas boas, pela

    energia, pela disposio, pela verdade, pela vida que me tem sido to cheia de cores;

    A Teleco Teco, minha preciosidade maior, minha descoberta de amor verdadeiro, meu

    corao puro. A ele eu agradeo e dedico os passos, os caminhos que eu ando pela

    simples alegria de ser. Grata por ter me ensinado que amar praticar o desapego e ter a

  • 7

    certeza de que o ser amado est feliz, corre livremente, vive sua natureza conforme se

    deve e com carinho guardado para quando eu chegar;

    memria de Fuxico Xic, pela alegria que me trouxe, por ter me permitido amar,

    cuidar e me doar pelos dias em que esteve comigo;

    A cada um dos que cruzaram meus 27 anos de sonho. Pelos passantes de signos de fogo,

    terra, ar e gua que me ofereceram os elementos que no tenho para seguir a estrada. Se

    hoje sou, sou por vocs terem sido em mim;

    msica, pela inspirao, pela companhia e pelo sentido que d minha vida;

    A Inbia Paulista, Prainha Branca e suas trilhas e runas, a Monte Alegre do Sul e sua

    Cachoeira do Sol, a Limeira e a Paranapiacaba; a So Paulo, por ter me ensinado a ser; a

    Florianpolis, por ter me feito ver de longe o que no se v se muito perto; e com

    especial carinho a Pirenpolis, lugares todos que me sabem to bem e por cujas ruas

    caminho todos os dias de algum modo, percorrendo em sentimentos as estradas daqui

    pra l. Em cada cu, em cada cho, minha alma l deixei;

    Ao amigo que eu esperei a vida toda para reencontrar, pois j temos histrias unidas

    certamente h mais tempo do que se pode pensar. Meu amigo, meu amado, meu

    confidente, minha pureza, eu no faria nada que pudesse tocar em um fio do sentimento

    que temos, e seu cuidado comigo beira o incondicional. Nunca ser possvel unir

    palavras suficientes para demonstrar o amor que tenho, o carinho que sinto. Eu dividiria

    todos os meus dias com Ticiano Curvelo Estrela de Lacerda;

    Por fim, minha famlia. minha irm Carolina Camara, por ter me emprestado um

    pouco de seu talento musical, por ter crescido comigo e por ser meu elo com o passado,

    por gostar de mim ao contrrio, mas ainda assim gostar muito, e deixar isso transparecer

    todos os dias. minha me Maria Rodrigues de Assis, pela alma de princesa, pela

    delicadeza, pela disciplina com que soube me educar, por me amar, simples. A meu pai

    Paulo Camara, por ser o homem mais incrvel que eu poderia pensar em conhecer,

    inigualvel, por ter sido sempre o meu norte. Minha admirao infinita; se fao algo

    na minha vida, por saber que, de algum modo, h sua presena acompanhando e seus

  • 8

    olhos seguindo. Grata por ser ele o meu pai, grata por ter tido ao seu lado uma viagem

    magnfica, inesquecvel. Sinto sua falta todos os dias e todas as horas do dia. No h um

    sol sequer sem que eu pense em v-lo ou ouvi-lo. Ouo, de certo modo, sempre que

    penso, pois sou, sem dvida, parte indissocivel de meu pai. Enquanto houver voc do

    outro lado, aqui do outro eu consigo me orientar.

    Para aquele homem que faz depender de si mesmo todas as coisas que

    conduzem felicidade, ou disso se aproxima, e no fica na dependncia de

    outros homens, cuja boa ou m fortuna foraria tambm a sua prpria

    sorte a oscilar, para ele a vida est disposta da melhor maneira possvel.

    Esse o homem temperante, esse o homem corajoso e prudente.

    Menxeno, 247e9-248a5

  • 9

    NDICE

    Apresentao ......................................................................................................... p. 10

    Captulo 1 Consideraes Gerais Sobre a Orao Fnebre ................................ p. 11

    Captulo 2 O Menxeno de Plato ...................................................................... p. 20

    Captulo 3 Anacronismos e Distores no Menxeno ........................................ p. 26

    Captulo 4 - Anlise Comparativa dos Discursos Fnebres nas Obras de Plato e

    Tucdides ............................................................................................................... p. 36

    Traduo do Menxeno ......................................................................................... p. 55

    Bibliografia ............................................................................................................ p. 74

    Anexo Menxeno: Texto em Grego ....................................................................... p. 80

  • 10

    APRESENTAO

    O presente trabalho resultado de minha pesquisa de Mestrado, iniciada com

    meu ingresso no Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas, em Agosto de 2011 .

    O objetivo principal da dissertao apresentar: (i) a traduo em Portugus do dilogo

    platnico Menxeno a partir do texto grego original, acompanhada de notas crticas a

    fim de agregar informaes leitura para eventuais esclarecimentos de carter histrico,

    filosfico, literrio e/ou lingstico; e (ii) o estudo introdutrio, aludindo aos principais

    problemas levantados pelos estudiosos com o intuito de analisar a fundo algumas

    relaes e questes suscitadas pela obra ao longo do tempo.

    A traduo proposta segue rigor pertinente, sobretudo no que se refere acepo

    dos termos-chaves necessrios ao entendimento da obra platnica. Para tal fim,

    utilizada a edio de J. Burnet (Oxford Classical Texts, 1968).

    O estudo introdutrio, por sua vez, busca elucidar diversos pontos essenciais

    leitura e compreenso devida do texto platnico. Os captulos desenvolvidos tratam (i)

    das consideraes gerais a respeito da orao fnebre enquanto instituio cvica, (ii) do

    dilogo Menxeno em si e sua estrutura, (iii) das distores e anacronismos presentes na

    obra e suas acepes e (iv) da anlise comparativa das oraes fnebres relatadas por

    Plato e por Tucdides, no Menxeno e na Histria da Guerra do Peloponeso,

    respectivamente. Em linhas gerais, a dissertao visa permitir uma leitura crtica da

    obra, de modo que seja possvel relacion-la no espao e no tempo, inseri-la em seu

    contexto e possibilitar uma abordagem capaz de relacionar diversos aspectos do

    fenmeno para uma compreenso mais plena, que considere o discurso fnebre no

    simplesmente como um texto escrito, como um discurso pblico, mas que o entenda em

    seu determinado contexto histrico, poltico e social. As questes levantadas pelo

    estudo, portanto, tem por intuito uma visualizao ampla da obra, para que se possa,

    com maior eficincia, compreender de que maneira Plato tece uma orao fnebre e

    com que intuito se utiliza desse gnero do discurso.

  • 11

    CAPTULO 1

    Consideraes Gerais Sobre a Orao Fnebre

    A orao fnebre, no contexto da oratria poltica de Atenas, tinha como funo

    elogiar os mortos e reiterar o lugar dos homens como cidados atenienses, uma vez que

    a histria da cidade era retomada e exaltada. Apenas um pequeno nmero desses

    discursos chegou posteridade. A orao atribuda a Pricles por Tucdides na Histria

    da Guerra do Peloponeso, datada do final do V ou comeo do sculo IV a.C. (o

    discurso, contudo, teria historicamente ocorrido em 430 a.C., ao final do primeiro ano

    da guerra entre Atenas e Esparta, segundo o relato do historiador)1, a mais

    amplamente conhecida dentre elas. Encontram-se preservadas tambm outras quatro

    oraes fnebres: a de Demstenes, a de Hiprides - ambas datadas da segunda metade

    do sculo IV a.C. -, a escrita por Lsias cerca de 10 anos antes do Menxeno e um

    pequeno fragmento de Grgias, preservado na obra de Dionsio de Halicarnasso.

    Portanto, as cinco oraes aqui citadas compreendem o leque de oraes fnebres que

    nos restaram. Bruce Rosenstock (1994, p. 334) assinala que alguns estudiosos

    questionaram as autorias dos textos de Demstenes e Lsias2, mas em seguida

    acrescenta que, por estar interessado em delinear as convenes do gnero, no se faz

    necessrio se preocupar com questes de autenticidade. No caso do estudo em questo,

    seguimos a metodologia de Rosenstock e, a despeito dos problemas concernentes

    autoria, tambm teremos como foco as informaes presentes nos textos remanescentes,

    independentemente da exatido das informaes sobre sua composio.

    H grandes obstculos existentes na reconstituio do gnero, como o silncio

    no qual se perdeu a maioria dos textos. Por dispormos de um nmero reduzido de

    exemplares, certamente difcil falar em padres ou formas consolidadas de

    composio. No entanto, possvel trabalhar com os pontos de contato existentes entre

    as obras remanescentes. As frmulas recorrentes possibilitam aos estudiosos inferir

    alguns padres quanto ordem dos tpicos e dos contedos das mensagens. No se trata

    de regras fixas e consolidadas pr-estabelecidas, mesmo porque, neste momento

    1 Cf. Thuc. 2.34. 2 Dover (1968, p. 193): A funeral speech, like any enkomion or panegyric, belongs to a genre naturally attractive to anyone interested and skilled in oratory, even entertaining the possibility that he himself or

    anyone else would deliver it at a real state funeral. Consequently, I see no reason why Lysias should not

    have composed the Epitaphios.

  • 12

    histrico, a retrica se apresentava de maneira prtica, por assim dizer, sem que se

    houvesse ainda uma sistematizao terica, como vemos, por exemplo, na Retrica de

    Aristteles e na Retrica a Alexandre.

    No tocante composio de uma orao fnebre, no parece haver campo para

    novidades. Os exemplares que chegaram posteridade demonstram que havia padres a

    serem seguidos. Em sua introduo traduo do discurso fnebre de Demstenes, A.

    Lopes Eire (1985, 281-2), ao tratar da questo da autoria, traz alguns desses aspectos

    sobre os modelos estruturais que orientam o gnero e que, em certa medida, no

    permitem ao orador um exerccio demasiadamente livre de composio. O estudioso

    tece consideraes teis acerca dessa questo, levando em conta que, ao compor o

    discurso fnebre, o autor parece se submeter a alguns padres que permeiam sua

    composio, no lhe cabendo ser original, mas sim corresponder a certas expectativas

    prvias, e acrescenta:

    Por consiguiente, en un espcimen de un gnero tan peculiar y estricto como el discurso

    fnebre, no es extrao encontrar tpicos y coincidencias con las dems [obras] del mismo

    carcter, pero lo que no cabe, precisamente por su marcada ndole particular, es compararlo

    con otro tipo de discurso, ni de la oratoria judicial, ni de la simbulutica, ni de la epidctica,

    a la que el prprio Epitafio pertenece.

    As pues, hay en el discurso fnebre numerosos puntos de contacto con obras similares de

    Lisias y Platn, y tambin se descubren en l claras influencias de Pericles y Tucdides (o

    del Pericles de Tucdides, si se prefiere), de dos personajes, en suma, que haban interesado

    vivamente a Demstenes.

    Embora tenhamos de fato um nmero reduzido de textos, pode-se perceber que

    h determinados parmetros que compem o corpo do elogio e alguns i essenciais

    reformulados em cada discurso, dentro do que conveniente. A questo da

    originalidade de fato no est posta, mas sim o cumprimento de uma determinada

    estrutura, levando-se em conta os pontos de contato existentes entre os textos

    remanescentes. Baseando-se no confronto das oraes fnebres, supe-se uma

    expectativa sobre o gnero que orienta, de certo modo, sua composio, embora no a

    defina por inteiro. H variaes na construo do discurso, mas sem que se afaste em

    demasia dos elementos comuns e habituais de sua ordenao. A importncia est na

    elaborao, na maneira como as questes so conduzidas por cada orador que se dispe

    a compor um discurso, que dever, por sua vez, ser semelhante aos precedentes e

  • 13

    necessariamente novo. H uma estrutura formal recorrente, a partir do que possvel

    inferir uma gama de aspectos provavelmente requeridos; no entanto, a orao fnebre

    varivel, em certa medida, no que se refere maneira como o orador se coloca perante o

    que requerido, e se relaciona diretamente com o contexto histrico e poltico em que

    se insere.

    Muitos estudos tm sido desenvolvidos a respeito das oraes fnebres nas

    ltimas dcadas. Bronwen L. Wickkisier (1999, p.65) assinala:

    Scholarship on the funeral speech, the epitaphios logos, runs in two main streams:

    archaeological and literary. The archaeological approach uses the speeches as evidence for

    the greater event of the public funeral (Jacoby, Clairmont, Morris) while the literary

    examines the speeches as relics of a curious genre and as barometers of the democratic

    movement (Ziolkowski, Loraux, Coventry). The result of the latter approach is a tendency

    to isolate the epitaphios logos from the large event, while the former reduces the oration to

    the status of evidence for reconstructing the funeral ceremony without considering that the

    speech itself says. A recent trend in scholarship has approached the epitaphios logos as a

    ritual unto itself (Carter, Ochs), but has failed to place the component ritual within its larger

    context and explore the responsion between part and whole.

    Desse modo, entende-se que a orao fnebre trata-se no apenas de um gnero

    literrio associado escrita; pelo contrrio, pode-se entend-lo como um discurso

    ativo, com funes e aplicaes prticas, de modo que o estudo do texto no feito

    isoladamente, mas sim em consonncia com a anlise e o estudo de outros aspectos

    histricos que, unidos, se prestam com maior eficcia a nos fazer compreender o

    contexto e a importncia dos rituais fnebres como um todo.

    Para delinear as formas do gnero, pode-se recorrer, por exemplo, a referncias

    metarretricas, isto , asseres que apresentam reflexes sobre o prprio discurso,

    como a seguinte passagem do Menxeno:

    SCRATES - Certamente, Menxeno, em muitos aspectos pode vir a ser belo morrer em

    guerra. E ainda que algum venha a ter seu fim na pobreza, recebe bela e magnfica

    sepultura; ainda que seja insignificante, recebe louvor da parte de homens sbios e que no

    louvam ao acaso, mas preparam seu discurso por muito tempo. Tais homens louvam de

    maneira to bela que, ao dizer aquilo que cabe e o que no cabe atribuir a cada um, ao ornar

    o discurso com as mais belas palavras, enfeitiam nossas almas. Enaltecem a cidade de

    todas as maneiras e louvam os que pereceram na guerra, todos os nossos antepassados e

  • 14

    tambm a ns mesmos, ainda vivos, de modo que eu, por minha parte, Menxeno, sinto-me

    muitssimo nobre ao ser louvado por eles; (234c-235a8)

    - , ,

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    ,

    Alm de referncias metarretricas que podem nos indicar quais as expectativas

    que orientavam tal gnero de discurso, encontramos indicaes a respeito da

    composio da orao fnebre em Aristteles: na Retrica (1366b-1367a), ele apresenta

    o gnero (ou melhor, sub-gnero) quando fala da retrica epidtica3. Aristteles salienta

    que o belo , por si s, digno de louvor e, por sua vez, objeto da retrica epidtica, cujo

    fim justamente o de enaltecer aquilo sobre o que se fala. Em seguida, tece

    consideraes acerca das coisas que so belas:

    Tambm so belas todas as coisas cujo prmio a honra; e as que visam mais a honra do

    que o dinheiro. Igualmente as coisas desejveis que uma pessoa no faz por amor de si

    mesma; coisas que so absolutamente boas, como as que uma pessoa fez pela sua ptria,

    descuidando embora o seu prprio interesse. (...) So belas as coisas que possvel ter

    depois da morte mais do que durante a vida; pois o que se faz em vida tem um fim mais

    interesseiro. (...) Belos so ainda os actos memorveis, e tanto mais belos quanto mais

    durvel for a memria deles. Tambm os que nos seguem depois da morte, os que a honra

    acompanha, os que so extraordinrios.4

    3 Taylor (1936, p. 42): Funeral orations belong to the type of oratory called by the Greeks epidectic, and demand an artificial elevation of diction and use of verbal ornament avoided in forensic pleading and political speaking. 4 ARISTTELE S. Retrica. Introduo de Manuel Alexandre Jnior. Traduo e Notas de Manuel

    Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Imprensa Nacional da Casa da

    Moeda, 2005, p. 126-7.

  • 15

    , . .

    , ,

    , (...)

    : . (...) ,

    . , ,

    , , : .

    Aqui aparece a raiz da orao fnebre: os feitos em prol da ptria, belos por

    carregarem a bravura e a coragem de sobrepor interesses coletivos a interesses pessoais.

    Num segundo momento, emerge a questo da morte como fator determinante, capaz de

    gerar uma memria positiva por conta, justamente, do ato de dar a vida por um motivo

    considerado nobre. A orao fnebre, em certa medida, contribui justamente para a

    manuteno da memria, glorificando a morte pela ptria. Aristteles, adiante na

    Retrica, define elogio como um discurso que manifesta a grandeza de uma virtude

    ( - 1367b) e, em seguida, aproxima

    o elogio () do conselho (), dizendo que ambos pertencem a uma

    espcie comum, baseando-se no fato de que um advm do outro, e de que possvel

    depreender de um elogio um conselho e vice-versa. Ora, na orao fnebre, h esse

    movimento de fato: um elogio bravura dos homens e cidade como um todo e, em

    seguida, uma exortao aos vivos para que possam manter essas qualidades em suas

    aes futuras, a partir do reconhecimento de seu papel como cidados e de um

    determinado comportamento que se coadune com os belos feitos enaltecidos.

    Ainda na Retrica (1368a), Aristteles fala sobre a amplificao do objeto

    elogiado, ou seja, do ato de coloc-lo acima de outros objetos e de potencializar todas as

    suas qualidades:

    A amplificao enquadra-se logicamente nas formas de elogio, pois consiste em

    superioridade e a superioridade uma das coisas belas. Pelo que, se no possvel

    comparar algum com pessoas de renome, pelo menos necessrio compar-lo com as

    outras pessoas, visto que a superioridade parece revelar a virtude. Entre as espcies comuns

    a todos os discursos, a amplificao , em geral, a mais apropriada aos epidcticos; pois

    estes tomam em considerao as aces por todos aceites, de sorte que apenas resta revesti-

    las de grandeza e beleza.

  • 16

    : ,

    : ,

    , .

    , .

    Aristteles cita o dilogo Menxeno duas vezes na Retrica. O ponto especfico

    trazido tona nos dois momentos o carter do pblico para o qual se faz um

    determinado elogio, o que deve ser levado em conta para que o discurso possa surtir o

    efeito desejado. Tais passagens so as seguintes:

    Na definio de retrica epidtica (1367b8):

    Importa tambm ter em conta as pessoas ante as quais se faz o elogio; pois, como

    Scrates dizia, no difcil elogiar atenienses na presena de atenienses.

    : ,

    .

    Mais adiante, ao retomar o mesmo ponto a respeito do gnero

    (1415b30):

    Nos discursos epidticos, necessrio fazer o ouvinte pensar que partilha do elogio,

    ou ele prprio ou a sua famlia, ou o seu modo de vida, ou pelo menos algo desse

    tipo. Pois verdade o que Scrates afirma no seu discurso fnebre: que no difcil

    louvar os Atenienses diante dos Atenienses, mas sim diante dos Lacedemnios.

    ,

    :

    , ,

    , .

    Outra importante observao o fato de que as oraes fnebres perpassam os

    trs tempos: constroem o passado, apresentam o presente e dispem uma exortao para

    o futuro daqueles que ainda vivem. Ademais, o mbito individual deixado de lado,

    uma vez que os mortos so tratados como um corpo coletivo, todos vistos sob a mesma

  • 17

    tica, pautada na maneira como as mortes se deram e no motivo pelo qual ocorreram. A

    particularidade anulada, e a morte se transforma na oportunidade de se glorificar o

    corpo coletivo da cidade, conforme assinala Nicole Loraux (1986, p. 60-9). Celebrar o

    morto, nesse contexto, tem um sentido poltico que transcende o privado, na medida em

    que a caracterizao de Atenas em tais discursos passa pelo modelo poltico da

    democracia, de modo que o eixo principal a cidade, e no os homens em particular. A

    vida privada de cada um no tem a mesma importncia que seus feitos na esfera pblica.

    Nesse sentido, os funerais oficiais funcionavam, em certa medida, como a

    emanao simblica da plis democrtica. Misturam-se os feitos guerreiros e a

    exaltao do regime, assim como a esfera militar e a poltica. Ocorre aqui o que Loraux

    (1986, p.69) encara como um trplice deslocamento: (1) a exaltao fnebre deixa de ser

    parte apenas das cortes aristocrticas para tornar-se um discurso proferido

    publicamente; (2) no mais um poeta a entoa, mas um orador, figura fortemente

    presente nesse contexto; (3) ademais, h a sada do mbito da mtrica para o da prosa.

    No contexto da democracia, o canto e a lamentao fnebre de outrora, que pertenciam

    ao mbito da poesia, se transformam em em prosa e passam a se calcar no valor

    de Atenas e do cidado ateniense; o epitfio se configura como uma exaltao glria

    coletiva, e no mais glria de um aristocrata proeminente.

    Os discursos fnebres esto associados, portanto, a questes sociais e polticas,

    uma vez que os funerais, enquanto eventos cvicos, no s marcam como reforam as

    caractersticas do momento histrico no qual esto inseridos. As oraes fnebres se

    configuram como um louvor coletivo, e veneram os concidados considerados mais

    valorosos por terem dado suas vidas pelo bem-comum da plis, de modo a demonstrar e

    expressar a grandeza do corpo social perante os seus e perante os outros. Este aspecto

    pode ser explicitado em um excerto da orao fnebre atribuda a Pricles por

    Tucdides. Como sinal de igualdade entre os guerreiros, todos os homens que pereceram

    durante o primeiro ano da Guerra do Peloponeso foram reunidos e enterrados num

    mesmo tmulo, smbolo da unidade democrtica, de uma sociedade que no diferencia

    os indivduos que deram a vida pelo bem coletivo. Isso fica claro na descrio dada por

    Tucdides imediatamente antes do discurso fnebre, atribudo a Pricles, propriamente

    dito:

    (...) os ossos de cada um so postos no atade de sua tribo; um atade vazio, coberto por

    um plio, tambm levado em procisso, reservado aos desaparecidos cujos cadveres no

  • 18

    foram encontrados para o sepultamento. (...) os atades so postos no mausolu oficial,

    situado no subrbio mais belo da cidade; l so sempre sepultados os mortos em guerra,

    exceo dos que tombaram em Maratona que, por seus mritos excepcionais, foram

    enterrados no prprio local da batalha. (Thuc. 2.34. 3-5)5

    .

    , . (...)

    , ,

    , :

    .

    H, no enterro e na celebrao coletiva, uma apropriao desses mortos pela

    cidade, enriquecendo sua honra e valor. Verifica-se, por conta do cunho coletivo das

    cerimnias, a anulao de qualquer distino que se possa fazer entre os guerreiros. A

    honra coletiva traz consigo essa necessidade do anonimato; entende-se que as batalhas

    opem coletividades. A glria vira um conceito poltico, e a orao fnebre passa a ser

    um elogio a Atenas, diante do qual o prprio louvor aos mortos se torna secundrio. O

    discurso fnebre visto como coroamento do ato nobre de perecer em combate, em

    favor da causa coletiva, e mais explica e exorta do que consola. So dois elogios

    presentes nas oraes fnebres: o do corpo coletivo de homens de guerra e o de Atenas,

    que concorrem para um mesmo fim. A glria dos mortos passa pela glria da plis e

    dela necessita, inclusive, para existir. O discurso fnebre composto em tom mais

    militar e guerreiro do que propriamente lamurioso; tem-se um discurso militar que

    enaltece os feitos blicos e os valores pblicos.

    Um importante ponto a ser tratado a presena do outro no contexto dos

    funerais pblicos. A amplitude do discurso transpassa a cidadania: participam tambm

    mulheres, crianas, estrangeiros6. A cidade demonstra uma abertura democrtica nesse

    sentido, e h a clara inteno de impressionar estrangeiros, aliados, amigos e

    adversrios reais e potenciais, que podem acompanhar a cerimnia e o discurso. A

    presena e a importncia deles, no entanto, se d na medida em que faz emergir a

    magnitude ateniense. Como exemplo, podemos citar dois momentos: no discurso

    presente na obra de Tucdides, Pricles (2.36.4) anuncia que falar aos estrangeiros

    5 Os excertos traduzidos do texto de Tucdides presentes neste trabalho so todos parte da seguinte obra:

    TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso. Trad. Mrio da Gama Kury. 4 ed, Braslia; Editora

    Universidade de Braslia, 2001. 6 A questo da presena do estrangeiro nos ritos funerais aparece em ambas as obras. Cf. Thuc. 2.34.4;

    36.4 e Menex. 235b.

  • 19

    assim como aos cidados, mas dirige a exortao e o consolo somente para os

    atenienses (pais, filhos, amigos e esposas); e Scrates, no dilogo de Plato (235b1-8),

    anuncia a presena dos embora deixe claro que h, por trs do discurso, a

    inteno de louvar os atenienses diante deles mesmos, como dito neste excerto: quando

    algum argumenta na presena daqueles mesmos a quem est louvando, no

    admirvel que parea bem falar (

    , - 235d7-8). Ainda se tratando da presena e da

    relevncia do outro nos discursos fnebres, deve-se ressaltar que a plis referida e

    elogiada nestes discursos parece ter adversrios sempre satisfeitos com sua condio e

    que ressaltam, em suas atitudes, a excelncia ateniense. Logo, dizer que todos

    reconhecem o valor da plis um topos presente em ambos os textos. Pricles afirma

    que Atenas a nica cidade naquele contexto que jamais suscitou irritao nos inimigos

    que a atacaram (

    - Thuc. 2.41.3). Scrates, por sua vez, diz que

    os inimigos de Atenas, mesmo depois de terem combatido contra seus homens, tecem

    mais elogios sua temperana e virtude do que amigos o fazem aos seus prprios

    amigos. (

    : Menex. 243a5-7). J o apelo posteridade, que ocorre

    na ltima parte do discurso em forma de exortao aos que sobreviveram, dirigido

    primordialmente aos seus concidados (Loraux, 1994, p. 99-100).

  • 20

    CAPTULO 2

    O Menxeno de Plato

    O interesse pelo dilogo Menxeno tem crescido recentemente entre os

    principais estudiosos da filosofia platnica. Durante boa parte do sc. XX ele foi

    negligenciado, tendo em vista as dificuldades existentes para que se pudesse

    desenvolver uma leitura satisfatria do dilogo. Trata-se, por assim dizer, de um escrito

    repleto de dificuldades e complexidades. Charles Kahn (1963, p. 220) o define como o

    escrito mais enigmtico de Plato. Pouca ateno tem sido dada obra por diversos

    motivos, sobretudo por carregar consigo ambiguidades, anacronismos e questes para as

    quais trabalhoso obter respostas definitivas. Stephen G. Salkever (1993, p. 133) atribui

    essa negligncia por parte dos estudiosos dificuldade de se medir a ironia da

    personagem Scrates que permeia o texto. Em seus estudos, tanto Kahn quanto Salkever

    reiteram e concluem, por fim, que o texto no deve ser entendido simplesmente como

    uma pardia ou stira, mas sim como uma reflexo jocosa feita para oferecer um ponto

    de partida a partir do qual deve-se pensar os discursos polticos.

    Com efeito, Plato dialoga em sua obra com diferentes gneros de discurso j

    previamente estabelecidos, rompendo as barreiras entre o texto que ele prprio escreve e

    aqueles com os quais indireta ou diretamente estabelece uma determinada ligao.

    Mikhail Bakhtin (1984, p. 189 apud NIGHTINGALE, 1995, p. 6) afirma, sobre essa

    relao intrnseca entre os gneros:

    [the author of a hybrid text] make[s] use of someone elses discourse for his own

    purposes, by inserting a new semantic direction into a discourse which already has, and

    which retains, an intention of its own. Such a discourse (...) must be perceived as belonging

    to someone else. In one discourse, two semantic intentions appear, two voices.

    O Menxeno um exemplo dessa relao intergenrica, uma vez que traz cena

    o discurso fnebre e se apropria de suas estruturas por um vis diferente. Nightingale

    (1995, p. 5) observa:

    It should be emphasized that Plato targets genres that have currency in classical Athens

    genres which make some claim to wisdom or authority. Not surprisingly, then, when Plato

    engages with a given genre of discourse, his stance is usually adversarial. As I will argue,

  • 21

    Plato uses intertextuality as vehicle for criticizing traditional genres of discourse and, what

    is more important, for introducing and defining a radically different discursive practice,

    which calls philosophy.

    O gnero parodiado ou ironizado, portanto, serve a certos propsitos de Plato

    em cada contexto especfico em que esse fenmeno acontece. No caso do Menxeno, a

    reconstruo da orao fnebre a partir de seus prprios elementos carrega consigo um

    projeto platnico de exposio de certas deficincias retricas. O texto pode ser

    encarado como um comentrio jocoso a respeito do momento poltico vivenciado por

    Atenas, se o entendermos como uma mera pardia das oraes fnebres, que eram, por

    sua vez, eventos cvicos cuja funo poltica era de extrema importncia no contexto da

    democracia ateniense do final do sc. V a.C. e comeo do sc. IV a.C., como analisado

    na seo anterior. Todavia, o dilogo pode ser lido no apenas por esse vis negativo:

    possvel tratar a obra como uma exposio de opinies, a partir do momento em que ela

    prope reflexes acerca das possibilidades e dos limites da poltica democrtica ento

    vigente.

    Uma das preocupaes de Plato ao desenvolver a orao fnebre parece ser a

    exposio das deficincias dos rtores e polticos contemporneos. A escolha da orao

    como gnero a ser desenvolvido pode ser explicada, segundo Lucinda Coventry (1989,

    p. 02), pelo fato de as caractersticas dos oradores, alvos da crtica platnica, estarem

    claramente presentes em tais discursos. Para a autora, o epitfio como gnero tem o

    carter essencialmente poltico e o Menxeno ilustra a necessidade da filosofia para a

    poltica e as consequncias de ignor-la. Scrates est falando sua prpria cidade e,

    para tal, utiliza uma linguagem e uma forma que a cidade, num mbito geral, parece

    compreender consideravelmente melhor do que a linguagem do dilogo socrtico e do

    .

    O discurso de Scrates relata a histria de Atenas em termos brilhantes, de sua

    origem autctone Paz de Antlcidas, no fim da guerra de Corinto em 386 a.C., ocasio

    para o funeral pblico. O dilogo em questo tem incio quando Scrates encontra

    Menxeno vindo da Assemblia dos cidados e informado pelo rapaz que os homens

    discutiam a respeito da orao fnebre que deveria ser realizada, e decidiam quem seria

    o poltico ideal para desempenhar tal funo. A partir da, Scrates se prope a fazer um

    discurso fnebre e, para tal, compe trs partes distintas: um preldio, identificando o

    discurso como requerido pela lei ateniense; uma orao para os homens mortos e para

  • 22

    Atenas; e uma exortao consolatria aos vivos. Vassiliki Frangeskou (1999, p. 319)

    demonstra que, a partir do dilogo platnico, pode-se de fato compreender de que modo

    eram compostas as oraes fnebres naquele contexto, uma vez que, aps a abertura,

    verifica-se o louvor aos que pereceram na guerra, seguido de uma srie de conselhos aos

    vivos - aos filhos dos mortos, em forma de exortao, e aos pais, em forma de

    consolao. Em outras palavras, dever-se-ia esperar de uma orao fnebre essas trs

    partes distintas: um louvor inicial contextualizando o discurso, um elogio a fim de que a

    grandeza e nobreza da cidade fossem exaltadas e, por fim, a exortao (uma seo de

    carter pedaggico) e a consolao.

    Sandrine Berges (2007, p. 218) prope uma diviso do dilogo em quatro partes

    principais: (i) a evocao de Scrates para que, a despeito de sua condenao retrica,

    fosse possvel desenvolver um discurso digno e vlido; (ii) a origem de Atenas e dos

    atenienses7; (iii) uma histria da cidade com traos de anacronismo e reviso; e (iv) uma

    exortao aos viventes, numa espcie de prosopopia, como se falasse na voz dos

    mortos em guerra, parte esta que Berges considera ser a mais obviamente filosfica.

    Sobre este ltimo momento da orao, Rosenstock (1994, p. 336) ressalta:

    After the historical narrative, Socrates turns to offer remarks to the assembled city, and

    especially to the parents and children of the dead. In these final words he adopts the

    rhetorical trope of prosopopeia, speaking in the voice of the dead, first to their sons, then to

    their parents. This is the section of the oration which, as I mentioned above, Dionysius of

    Halicarnassus (Dem. 30), in agreement with other critics, identifies as the best part of the

    speech.

    As concluses centrais a respeito de como os atenienses devem conduzir suas

    vidas so ditas como se estivessem na voz dos homens mortos em guerra, como fica

    evidente neste trecho do discurso:

    Irei relatar a vs as coisas que escutei deles prprios e aquilo que eles mesmos diriam agora

    a vs de bom grado se pudessem faz-lo, tendo como testemunho o que eles outrora

    disseram. Mas necessrio que considereis as coisas que direi agora como se estivsseis

    ouvindo de vossos prprios pais. (246c5-9)

    7 Michael F. Carter (1991, p. 221) ressalta que o incio do discurso de Scrates leva seus ouvintes de volta

    a suas razes comuns, com a celebrao de sua origem e de seu lugar especial no cosmos. Trata-se de um

    tempo de lamentao: Scrates explica e justifica o evento que conduziu a esta lamentao. Dessa

    maneira, segundo o autor, se estabelece um princpio ordenado para a situao catica do presente.

  • 23

    , .

    :

    H uma mudana de tom no momento da exortao reconhecida pela maior parte

    dos estudiosos do dilogo, como observa Coventry (1989, p. 05). Scrates tira a

    mscara de um orador vivo, cessa a narrao de fatos propriamente dita e incita a

    suposta audincia ao comprometimento com a virtude8. Essa passagem destoa, em

    alguns aspectos, do restante do texto, e considerada por Nightingale (1995, p. 12)

    como no-pardica, pois a mistura de gneros parece ter outra finalidade que no

    propriamente a ironia, mas sim uma crtica positiva:

    In the non-parodic passages, Plato remains open to the possibility that a genre may in fact

    make positive contribution to the philosophers enterprise. Instead of rejecting traditional

    genres out of hand, Plato opts to explore the potentialities as well as the liabilities of these

    discursive practices. (...) As this ambivalence reveals, Plato did not fix the boundaries of

    philosophy once and for all. Perhaps he sensed that philosophy is not well served by a

    permanent and closed border.

    Se aplicssemos esse argumento de Nightingale para o caso especfico do

    Menxeno, poderamos dizer que Plato recorre a outro gnero no apenas para ironizar

    e trazer tona os problemas nele presentes, mas tambm para mostrar como possvel

    servir-se de um discurso tipicamente democrtico em prol de seu pensamento filosfico,

    fazendo emergir questes que, na sua viso, so de fato relevantes, como o

    comportamento verdadeiramente virtuoso do cidado (246e-247d6).

    Salkever (1993, p. 135) assinala que essa personificao dos mortos em guerra

    no encontrada nas oraes fnebres dos scs. V e IV a.C. que se conservaram at os

    dias de hoje, o que seria, portanto, uma particularidade do Menxeno. O autor prope,

    na sequncia de seu artigo, (1993, pp.136-141), uma diviso do dilogo em trs partes:

    Abertura: dilogo entre Scrates e Menxeno (234a-236d);

    8 Dean-Jones (1995, p. 55): According to the Meno (99e-100a), a man who could achieve this [inspire to

    acquire true virtue] among the living would be like Teiresias among the dead, a solid reality among shadows.

  • 24

    O epitfio propriamente dito (236d-249c), subdividido em trs partes: (i) a

    importncia histrica das pessoas e do regime poltico de Atenas; (ii) uma

    narrativa dos feitos atenienses desde os tempos remotos at o seu momento

    presente; e (iii) uma exortao aos atenienses de seu tempo;

    Eplogo: novamente um breve dilogo entre Scrates e seu interlocutor (249d-e).

    O confronto com os outros textos restantes nos permite certas inferncias acerca

    do gnero, e as divises aqui expostas parecem sugerir que Scrates segue a ordem

    estrutural de uma orao fnebre, quando comparada s demais suprstites. No entanto,

    embora na forma o discurso v ao encontro dos outros exemplares de oraes fnebres

    que nos restam, h uma diferena na inteno: Scrates critica a mensagem das outras

    oraes e oferece uma forma alternativa de caracterizar a virtude ateniense. O propsito

    aparentemente irnico de Plato ao trazer tona problemas de carter principalmente

    poltico amparado ainda pela possvel conexo existente entre o Menxeno e o

    discurso fnebre atribudo a Pricles por Tucdides (2.35-46)9, que ser tratado em

    captulo posterior. As particularidades de seu discurso, no entanto, tornam o Menxeno

    uma obra controversa e repleta de questes ainda a serem trabalhadas e esclarecidas.

    Charles Kahn (1963, p. 220) detecta cinco principais problemas encontrados no texto,

    nos quais se pautam muitos dos comentrios e questes levantadas por outros

    estudiosos:

    1 Por que Scrates confere a autoria a Aspsia, preceptora de Pricles?10

    2 Por que o anacronismo to evidente?11

    3 Por que a distoro sistemtica da histria ateniense12?

    9 Michael Carter (1991, p.219) assinala que a ao de parodiar ou ironizar algo pressupe que haja um

    conhecimento pleno do objeto. Segundo o autor, possvel satirizar devidamente uma obra a partir do

    momento em que se pode domin-la, em certa medida. A ironia vlida justamente por conseguir captar

    o objeto e faz-lo ser visto por outro vis. 10 Essa aproximao ser tratada adiante, em tpico especfico, por trazer consigo uma srie de questes a

    serem esclarecidas. 11

    Bruce Rosenstock interroga a esse respeito logo no incio de seu artigo:

    During the course of his show-piece Funeral Oration, Socrates narrates a (rather touched-up) version of Athenian history which terminates with the King's Peace of 387/6. This is a

    rather glaring anachronism, considering that Socrates (and Aspasia, of course) had been

    dead for over a decade by the time of the King's Peace. Why does Plato have Socrates

    speak about historical developments which take place much after his death? (1994, p. 331)

  • 25

    4 Por que Plato escreve uma orao fnebre afinal?

    5 Se o texto consiste em uma piada jocosa, como diz Scrates, ou uma stira

    ou pardia da retrica contempornea, como a maioria dos estudiosos modernos

    acredita, por que mais tarde foi levado to a srio a ponto de Ccero afirmar que

    o discurso era lido anualmente na ocasio da cerimnia anual fnebre pblica?13

    Dentre as questes levantadas, sero trabalhadas por este estudo as concernentes

    ao anacronismo presente na obra e possibilidade de se relacionar de diversas maneiras

    o discurso socrtico orao fnebre atribuda a Pricles por Tucdides (2.35-46). Os

    demais problemas acima enumerados sero tratados conforme se fizer necessrio, como

    auxlio para o entendimento desses dois tpicos principais.

    12

    Uma usual distoro minimizar as contribuies de qualquer outra cidade grega, especialmente

    Esparta, nas guerras prsicas. As distores foram elencadas e demonstradas cuidadosamente por M. M.

    Henderson em seu artigo Plato's Menexenus and the Distortion of History, Acta Clssica, n 18 (1975): 25-46. Essa questo especfica ser tratada adiante neste estudo de forma mais detalhada. 13

    Dean-Jones (1995, p. 51) assinala a passagem de Ccero (Or. 151) em que o autor afirma que essa

    orao fora to bem recebida que era ainda discursada uma vez por ano em Atenas no sc. I d.C. Scrates

    emula um discurso de maneira to acurada que de fato lhe so dados crditos e seu discurso encarado

    como sendo modelo, motivado pela sua prpria opinio e viso dos fatos. plenamente compreensvel, para Dean-Jones, que os atenienses achem o discurso de Scrates agradvel, uma vez que a histria de

    Atenas narrada em termos excelentes de glria e honra, desde sua origem autctone at a Paz de

    Antlcidas e o fim da Guerra de Corinto, ocasio para o funeral composto no Menxeno. No entanto, cabe

    ressaltar que, a despeito do testemunho de Ccero, trata-se de uma anedota, e no de um fato histrico. O

    importante aqui que Ccero acentua precisamente o aspecto srio do discurso.

  • 26

    CAPTULO 3

    Anacronismos e Distores no Menxeno

    A verossimilhana cronolgica no parece ser a maior preocupao de Plato ao

    escrever os dilogos. Os anacronismos platnicos no eram to agressivos a ponto de

    desorientar os leitores mais novos, como sugere Dean-Jones (1995, p. 52), e podem ser

    entendidos como parte do propsito humorstico e crtico do autor.

    Importante notar, primeiramente, que h uma questo interna ao prprio texto.

    Os discursos fnebres, como j vimos, so desenvolvidos e declamados num contexto

    pblico. Alm de serem parte integrante do prprio momento poltico democrtico

    ateniense, os discursos eram proferidos publicamente e passavam pelo crivo da

    audincia, sendo pautados, pelo que se pode inferir pelas semelhanas entre os

    exemplares do gnero, em expectativas e diretrizes prprias. Ora, no Menxeno Scrates

    discursa num contexto privado, estando ele e Menxeno a ss, como fica claro nesta

    passagem:

    SCRATES Pois bem, de fato devo te agradar; se me pedisses para danar tirando a

    roupa, por pouco no o faria para te agradar, uma vez que estamos sozinhos. (236c10-d1)

    - , ,

    , , .

    O paradoxo emerge no prprio momento da enunciao socrtica. O privado e o

    pblico, no contexto da performance da orao, aparecem sem delimitaes. Scrates

    entoa sua orao sob condies paradoxais, e em seguida veremos como tambm sua

    narrativa se mostra distorcida no que diz respeito aos fatos e cronologia.

    A principal questo a respeito do anacronismo que permeia o texto gira em torno

    da data dramtica do dilogo, que pode ser fixada a partir das referncias presentes no

    prprio texto: h eventos que se estendem da Guerra de Corinto Paz de Antlcidas

    (245d6-246a1), o Tratado de Paz firmado entre gregos e persas em 387 a.C., que ps

    fim Guerra de Corinto. Tal referncia remonta, portanto, a mais de uma dcada aps a

    morte de ambos, Scrates e Aspsia.14 O anacronismo principal advm, portanto, do

    fato de Scrates relatar eventos que nem ele nem Aspsia vivenciaram. Os principais

    14 Dodds, 1990, p. 24.

  • 27

    estudiosos desta obra platnica se deparam necessariamente com esse problema, uma

    vez que se trata de uma questo central e intrnseca ao prprio texto. Lucinda Coventry

    (1989, p. 04) diz que uma possvel explicao para o notrio anacronismo do Menxeno

    reside na preocupao de Plato com o discurso fnebre como um .

    Scrates apresentado como se estivesse vivo cerca de 13 anos aps a data de sua

    morte; o fato de o leitor ter conhecimento desse anacronismo e perceb-lo com

    facilidade constitui um importante elemento para a leitura do dilogo. O anacronismo,

    assim como a introduo de Aspsia, teria vrias funes para a interpretao do

    dilogo, segundo o argumento da estudiosa. Em relao ao interesse de Plato em usar o

    epitfio para explorar os defeitos da poltica ateniense, Coventry acredita que possvel

    encarar a escolha do gnero como uma maneira de ilustrar mais claramente essas

    imperfeies. O anacronismo torna-se uma vantagem, e estabelece uma ligao entre as

    deficincias polticas que se pretende elucidar e os mtodos e princpios da retrica,

    utilizados a favor da prpria crtica. Ao fazer Scrates se referir a eventos dos quais nem

    ele nem Aspsia poderiam ter conhecimento, Plato apresenta o epitfio como um

    exemplo supremo do hbito dos oradores de prepararem discursos muito tempo antes da

    necessidade de sua composio, por haver uma frmula previsvel, como se pode

    perceber nesta fala de Scrates:

    Cada um deles tem discursos j preparados e, ademais, no de modo algum difcil

    improvisar sobre esse assunto. Pois se fosse necessrio falar bem dos atenienses na

    presena de peloponsios, ou dos peloponsios na presena de atenienses, seria necessrio

    um bom orador para persuadir e obter renome. No entanto, quando algum argumenta na

    presena daqueles mesmos a quem est louvando, no admirvel que parea falar bem.

    (235d)

    ,

    .

    ,

    : ,

    .

    A indiferena que a prtica retrica, por veszes, demonstra para com a verdade -

    que deixa de ser um ponto primordial para o discurso - contrasta com os interesses da

    filosofia, e nessa indiferena que parecem residir as negligncias polticas. Tanto na

    data dramtica como na escolha do epitfio como forma, a preocupao com a retrica e

  • 28

    com a poltica pode ser notada (Coventry, 1989, p.4). Alm disso, Scrates afirma que

    desenvolver uma orao nada mais seria do que louvar atenienses diante de Atenas, isto

    , louvar um corpo coletivo presente. As distores dos fatos no texto de Plato

    aparecem no provvel intuito de reforar a possibilidade de que, numa histria ateniense

    de Atenas, pode-se entoar o que bem quiser, pois h licena neste contexto para

    omisses e revises histricas exageradas.

    Para Kahn (1963, p. 227), o anacronismo, em certo sentido, d a chave para a

    compreenso do dilogo15, pois mostra aquilo com que Plato no concordava na

    prtica oratria e na poltica ateniense: a concepo do discurso retrico como

    ferramenta, capaz de servir a qualquer propsito, a despeito das conseqncias

    benficas ou nocivas que podem advir de sua prtica. Berges (2007, p. 219) assinala que

    a terceira parte do dilogo, segundo a diviso que ela mesma prope (239a5-246a), traz

    um curioso anacronismo e uma histria fortemente revisada de Atenas, mas a autora no

    adentra a fundo essa questo, uma vez que apresenta um outro vis de anlise do texto.

    J Dean-Jones perpassa o tema diversas vezes em seu estudo: ela assinala (1995, p. 51),

    logo no incio de seu artigo, que, dada a viso platnica da poltica do sculo V a.C.

    construda ao longo de suas obras, difcil pensar que Plato tenha sido fiel a seu

    pensamento na escolha dos termos utilizados na composio da orao, sobretudo no

    que se refere descrio da histria de Atenas e de sua magnitude. A autora sugere que

    de fato h distores que concorrem para que se possa causar uma determinada reao

    no ouvinte. A data dramtica e o orador do discurso, embora no possam coexistir,

    constroem um anacronismo fundamental para o entendimento do propsito irnico de

    Plato, no intuito provvel de enfatizar seu desdm pela prtica retrica nos moldes em

    que ela desempenhada em Atenas neste momento. Dean-Jones (1995, p. 56) tambm

    afirma que o anacronismo traz tona a questo sobre quem est vivo e quem est morto.

    Toda a orao fnebre se refere a pessoas mortas: Scrates, Aspsia, os combatentes da

    guerra. O fato de que ocorrncias posteriores morte de Scrates sejam referidas no

    texto traz uma gama de questes, dentre elas aquela que o prprio Scrates coloca no

    incio do dilogo, ao dizer que existem frmulas prontas para se compor um discurso

    fnebre e que no difcil faz-lo, pois mesmo antes de serem requeridos os oradores j

    dispem de oraes prontas (235d2-3), num questionamento semelhante ao colocado

    15 Quanto relevncia do aspecto irnico do texto para seu possvel propsito crtico, Bruce Rosenstock

    (1994, p. 338) parece concordar ao dizer: In fact, I would argue that the anachronism holds the key to understanding the significance of the Funeral Oration.

  • 29

    por Coventry (1989, p. 04) tratado acima. Por fim, a autora diz que Plato apresenta

    Scrates 13 anos aps sua morte como uma forte presena, como influncia capaz de

    guiar os homens ao verdadeiro conhecimento e virtude. Ao fazer isso, Plato mostraria

    que as questes colocadas por Scrates e as verdades por ele buscadas permanecem no

    cotidiano de Atenas, muito embora ele tenha sido condenado morte pela prpria

    cidade anos antes.

    Susan D. Collins e Devin Stauffer (1999, p. 90) se referem brevemente a essa

    temtica em nota de rodap, levantando a seguinte questo: is Socrates speaking from

    the grave, or is he predicting the future?. Bruce Rosenstock (1994, p. 331) aborda esse

    problema, desmembrando ainda mais a cronologia ao argumentar e estruturar seu artigo

    a partir da crena de que Scrates est morto ao discursar, e se utiliza inclusive de uma

    passagem de Nicole Loraux para ilustrar seu ponto de vista, na qual a autora diz:

    After I had finished this book, P. Vidal-Naquet suggested to me that the dramatic date of

    the Menexenus (386) makes the dialogue between Aspasia and Socrates, both of whom had

    long been dead, a dialogue between ghosts. A dialogue of ghosts on the speech to the dead,

    denounced as an illusion because it carries the Athenians to the Islands of the Blessed: the

    parodic intention becomes multiplied to infinity! This certainly throws some light on the

    celebrated "anachronism" that has so puzzled critics.16

    Salkever (1993, p. 135) tambm assinala que as referncias histricas que

    contextualizam o momento da enunciao do dilogo como sendo um momento

    posterior Paz de Antlcidas, mais de uma dcada aps a morte de Scrates e de

    Aspsia, tornam o anacronismo do Menxeno ainda mais considervel que o presente no

    Grgias17. Plato comps um dilogo, na viso de Salkever, que se auto-apresenta, a

    princpio, como uma fico, como uma inveno platnica. No h possibilidade de o

    leitor acreditar nem mesmo na aproximao histrica precisa do dilogo. O autor

    assinala tambm que h notveis omisses, uma particularmente grande: Scrates nos

    conta a histria da Atenas do sculo V a.C. sem absolutamente mencionar o Imprio

    Ateniense, sem celebrar as ousadas proezas dos atenienses, como acontece em

    Tucdides. Seu discurso no s relega a batalha de Salamina ao segundo lugar em

    importncia, aps Maratona, dentre as Guerras Prsicas, como tambm trata Salamina,

    16 LORAUX, Nicole. The invention of Athens: The funeral oration in the classical city. Translated by

    Alan Sheridan. Harvard University Press, 1986, p. 466, nota 303. 17 A respeito das questes referentes data de composio do Grgias e sua relao com os fatos

    histricos, cf. Dodds, 1990, p. 17-30.

  • 30

    juntamente com Maratona, meramente como indcios de que os gregos podiam se

    defender por si mesmos contra os persas deixando de lado o carter extraordinrio da

    batalha naval em Salamina, relatando-a apenas brevemente. J Tucdides (1.74) e Lsias

    (Epitfio, 32-46) reforam a importncia de Salamina em seus relatos enlevados. O

    leitor que se baseasse apenas no relato de Plato, segundo Salkever (1993, p. 139),

    nunca saberia que a Guerra do Peloponeso fora de certo modo relacionada ao medo da

    hegemonia ateniense na Hlade; segundo as informaes presentes no Menxeno

    (243b), a causa do carter terrvel e inesperado da guerra fora a inveja dos outros

    helenos em relao a Atenas. Numa viso geral do dilogo, m sorte e motivos torpes

    conspiraram para produzir derrotas desmerecidas para os atenienses. As vitrias como

    Maratona e Salamina so tratadas completamente como instrumentos para preservar a

    liberdade, mais do que memorveis por elas mesmas; do mesmo modo, nada a respeito

    de qualquer uma das derrotas ou sofrimentos na guerra parece memorvel.

    Dentre os estudos a esse respeito, encontra-se o artigo de M. M. Henderson,

    Plato's Menexenus and the Distortion of History (Acta Clssica, N. 18, 1975, pp. 25-

    46), em que as questes do anacronismo e das distores presentes no texto de Plato

    so tratadas de maneira particular e detalhada. Logo de incio, Henderson localiza a

    enunciao do discurso fnebre de Scrates, e ressalta, como os outros autores, que a

    histria de Atenas contada tendo como encerramento a Paz de Antlcidas, em 386 a.C.

    (245d6-246a1). Como no aparecem fatos posteriores, basta-lhe para concluir que o

    momento da enunciao do discurso pode ser considerado como o momento

    imediatamente posterior a esse acordo de paz.

    Henderson assinala que naturalmente as Guerras Prsicas aparecem, no

    Menxeno, como uma luta pela liberdade (239d-241e), mas que o resto da histria de

    Atenas deliberadamente distorcida para que se possa construir uma viso mais nobre

    do passado da cidade, e que o Menxeno exagera na tendncia do discurso fnebre de

    reivindicar para Atenas todo o crdito nas guerras contra os persas, distorcendo a

    histria: poucos de seus fracassos so admitidos. O autor atenta, ainda, para o fato de

    que devemos ser cautelosos para no tomar como erros deliberados aqueles erros

    menores que se do devido ou confiana na memria ou necessidade de simplificar a

    narrativa em prol de sua vivacidade.18 De todo modo, segundo Henderson (1975, p. 38),

    18 Charles Kahn (1963, p-p. 224-5) atenta para a mesma questo:

  • 31

    no se pode considerar todas as inexatides histricas no Menxeno como propositadas

    - pois algumas omisses podem ter outras razes, como o prprio desconhecimento de

    Plato acerca do fato com exatido -, com exceo das trs principais mencionadas por

    Kahn (1963, p. 225): (a) a descrio da constituio poltica de Atenas como uma

    aristocracia; (b) a omisso de todas as referncias ao Imprio do sculo V19; e (c) a

    insistncia na hostilidade de Atenas para com os persas na Guerra de Corinto.

    A primeira distoro (a) importante assinalada por Kahn (1963, p. 225)

    evidencia o fato de Scrates descrever o regime poltico ateniense como uma

    aristocracia, em que as pessoas conferem postos e cargos de governo aos que parecem

    ser em cada caso os melhores (238d6); sua igualdade de nascimento os impele a buscar

    tambm a igualdade pela lei, e a no se submeterem uns aos outros por nenhuma razo,

    a no ser pela reputao de virtude e prudncia. (239a-36). Sobre o uso reiterado do

    verbo nessas passagens sobre a constituio poltica de Atenas, Kahn (p. 226)

    assinala:

    The repeated use of in this passage on the constitution is clearly intentional and has

    been interpreted as evidence of the sly insincerity of Plato's praise. But the theory of

    rhetoric expounded in the Gorgias is a better clue to Plato's intention than modern

    suspicions of satire or caricature. Plato does play with Thucydides' formulas here, but the

    intended effect is not primarily comic. That is clear from Plato's principle of selection: he

    has chosen just those features of the Athenian constitution which point, or can be twisted a

    bit in order to point, in the direction of Plato's own political aspirations.

    Kahn no enxerga este ponto como uma pardia, mas sim como apenas uma

    tendncia protrptica. A nfase em questes referentes ao verbo aponta para as

    deficincias (do ponto de vista platnico) at mesmo das melhores caractersticas da

    Constituio de Atenas; mesmo onde a eleio conforme o mrito (por exemplo, para

    The minor misstatements of fact in the Menexenus call for no comment: the Athenian

    public did not expect a high level of accuracy; the orator relied upon his memory and

    was always ready to simplify a narrative for the sake of vividness or of higher praise.

    For example, Plato ignores the role of the Plataeans at Marathon and states that no Greek

    city offered to send aid except Sparta. Such inaccuracies have been qualified as "flagrant

    lies" and seen as clear proof of satirical intent. Similar misstatements of fact in the

    Menexenus only show that it is a funeral oration, and not a work of historical research. It is

    not in such details but in the larger distortions that a conscious intent must be looked for.

    19 Pode-se notar, pelo que Henderson observa (1975, p. 40), que no h nenhuma tentativa de explicar as

    origens da Guerra do Peloponeso (242c), presumivelmente porque isso demandaria referncias ao Imprio

    ateniense.

  • 32

    generais), os que governam so aqueles considerados os melhores pela populao, no

    necessariamente aqueles que de fato so melhores:

    Enquanto uns chamam este regime de democracia, outros o chamam conforme lhes apraz;

    mas , na verdade, uma aristocracia com a aprovao da maioria. Pois reis ns sempre

    tivemos; eles o so ora por sua linhagem, ora por eleio. Mas o poder da cidade , na

    maior parte das vezes, da maioria, que concede as magistraturas e a autoridade aos que

    parecem ser em cada caso os melhores; (238d1-7)

    , , ,

    . :

    , :

    , .

    Essa descrio da constituio democrtica, assim como o relato que encobre

    todos os erros cometidos por Atenas na Guerra do Peloponeso, considerada irnica

    por Kahn, mas de uma ironia socrtica num sentido real: no em sua forma, j que

    Scrates no orador, mas em sua proposta. A ironia composta para levar o cidado

    ateniense para fora de sua auto-admirao complacente, para coloc-lo num estado

    mental mais crtico, oferecendo-lhe um vislumbre da socrtica, pedindo-lhe,

    indiretamente, para considerar por um momento qual o verdadeiro mrito que

    realmente permite que um homem governe.

    Quanto ao segundo item (b), Kahn (1963, p. 226) acredita que a razo pela qual

    Plato no trata do Imprio Ateniense justamente o fato de ele no ter elogios

    poltica imperialista; logo, sendo a orao fnebre campo de elogio, seria imprprio

    atacar Atenas nesta ocasio. Sua escolha, portanto, silenciar a esse respeito. Outra

    explicao a essa questo dada por Henderson (1975, p. 46):

    But another explanation - one consistent with the view that what Plato is attacking is the

    pretentiousness of Athenian political oratory - is possible even here; loss of her empire was

    a sore point in 386 BC; to mention that empire, except in a roundabout way, would have

    been to admit the disaster of its loss. And, as Plato knew only too well, Athenian oratory

    tended to avoid mentioning uncomfortable truths.

    Por fim, a terceira maior discrepncia apontada por Kahn no relato histrico

    presente no Menxeno a nfase dada hostilidade de Atenas para com os persas no

  • 33

    contexto da Guerra de Corinto. Aqui a questo da declarao histrica falsa

    inseparvel do prximo item da lista (c): o bvio anacronismo em mencionar a Paz de

    Antlcidas, que data de 386 a.C., num discurso atribudo a Scrates e Aspsia:

    The question now is not one of bygone history but of Athenian policy in the preceding eight

    to ten years, and of the moral and political choices confronting Athens in 386 B.C. It is

    here, and in the immediately following address of the dead warriors to their sons, that Plato

    speaks most vividly and directly to his fellow citizens; and it is here, I suggest, that the real

    meaning of the speech must be found. The Menexenus will then be seen essentially as an

    almost Demosthenic appeal to the Athenians of 386 to prove themselves worthy of the

    noblest traditions of their city. Plato does not shrink before the anachronistic reference,

    since without it the appeal could not be clearly addressed to his contemporaries. It would be

    no exaggeration to say that the anachronistic reference to the treaty of 386, even more than

    the echoes of Thucydides and the satirical mention of Pericles, gives the key to the entire

    speech. (KAHN, 1963, p. 226-7)

    Plato deixa claro na introduo ao dilogo (234c-235d) que as oraes fnebres

    exageram em seu elogio a Atenas, e no discurso ele demonstra essa tendncia. No

    Menxeno, as crueldades atenienses so idealizadas, enquanto as conquistas e vitrias

    dos aliados e dos inimigos so minimizadas. Quanto a essas inexatides menos

    expressivas, Henderson (1975, p. 39) as separa das distores mais significativas, e

    acredita que alguns dos erros histricos do Menxeno podem ser desinteressados, mas

    outros so muito numerosos e muito crassos para serem considerados dessa maneira.

    Plato reserva toda a glria das Guerras Prsicas para Atenas e, conforme

    assinala Henderson (1975, p. 39-40), distorce a histria de tal maneira que uma

    demonstrao de seus erros comparada com os outros oradores ir corroborar para que

    se considere a distoro como deliberada. Temos, por exemplo, o fato do Menxeno no

    mencionar as Termpilas; Plato deliberadamente, ao que parece, se restringe a honrar

    Atenas. O fato de que a valentia dos espartanos nas Termpilas mencionada nas outras

    oraes fnebres que lidam com as faanhas dos ancestrais em detalhes deve mostrar

    que a omisso de Plato deliberadamente contrria ao procedimento normal.

    Henderson afirma tambm que, no Menxeno, Plato fez da expedio Siclia

    um exemplo de (243a3), minimizando o desastre dessa forma. Plato distorce

    a histria para fazer os desastres parecerem desmerecidos e frutos do acaso, de uma

    possvel m-sorte. O tratamento do resto da guerra do Peloponeso igualmente

    enganoso. Enquanto ele se refere batalha naval no Helesponto (243a), onde em um dia

  • 34

    os atenienses capturaram todas as naus inimigas, no h meno ao desastre de

    Egosptamos, que finalmente fez Atenas sucumbir. A derrota no admitida em

    nenhum momento. Os menores erros podem at no ter tanta importncia; o que

    realmente assombroso para Henderson, no entanto, a declarao feita por Plato em

    243d 1-2:

    vencemos no apenas aquela batalha naval, mas tambm o resto da guerra.

    , :

    Parece, num primeiro momento, no haver sentido nessa distoro, visto que

    Plato admite, na seqncia (245d9-246a1), que Atenas perdeu a guerra. Parece que

    Plato est deliberadamente reconstruindo a histria ao demonstrar que ela foi derrotada

    apenas por dissenses internas: Atenas foi responsvel pela sua prpria derrota, e seus

    adversrios no tm mrito nem mesmo por seus fracassos.

    Henderson trata tambm da exortao de Scrates, dizendo que a ltima seo

    do discurso, que consiste na mensagem dos mortos (246d-248d7) e na exortao

    adicional de Scrates (248d-249c10), parece ter um tom diferente. Haveria, assim, a

    apropriao dos elementos da exortao em favor de uma determinada postura

    defendida pela personagem Scrates. Embora possa ser em parte uma pardia da

    consolatio tradicional ao fim dos epitfios20, a exortao parece servir, na verdade, para

    refletir as ideias genunas de Plato21. Essa parte do discurso, portanto, no apresenta

    uma pardia propriamente, mas uma apropriao dos elementos exortativos, servindo a

    uma concepo de retrica que contribua para a promoo da virtude dos cidados.

    Segundo o autor (1975, p.45), possvel encontrar elementos em todas as sees para

    embasar uma interpretao do discurso como um ataque oratria, ainda que com um

    tom diferenciado em cada uma delas.

    20 Cf. Thuc. 2.46; Lisias, Epit. 71-80; Hiprides, Epit. 41-43; Demstenes, Epit. 37. 21

    Dean-Jones (1995, p. 52) afirma que a orao fnebre presente no Menxeno no se trata

    absolutamente de um discurso de Aspsia ou de qualquer outro orador, mas sim de um discurso

    tipicamente socrtico, sobretudo a ltima parte, a exortao aos sobreviventes: this part of the speech is recognizably Socratic in tone, exhorting the living to virtue in terms which recall the theory of the Unity

    of the Virtues. Even those scholars who claim that any similarity to Socratic or Platonic philosophy is

    illusory recognize a change in tone in the consolatio. The problem then is to explain how Plato expected

    his readers to recognize the first and second parts of the same dialogue as rhetorical satire and serious

    protreptic respectively. The answer lies in appreciating the significance of the anachronism and its

    position in the oration, and in correctly identifying Socrates' interlocutor in the frame of the oration.

  • 35

    possvel concluir, sobretudo a partir do artigo de Henderson, que nenhuma

    outra orao suprstite compreende um nmero to grande de eventos histricos quanto

    a de Plato; nenhuma pode rivalizar com o Menxeno tampouco no nmero ou grau de

    erros, omisses e distores. Plato insiste na virtude de Atenas no passado, distorcendo

    deliberadamente a histria para mostrar seus questionamentos. A reviso da histria

    ateniense e a exaltao e criao - das faanhas em detrimento dos reveses no

    ocorrem apenas pelo fato de a orao fnebre no ser lugar de celebrar desastres: a

    prpria escolha do gnero e o tratamento dado sua forma e ao seu contedo parecem

    fazer parte do intuito platnico de apresentar as deficincias do gnero retrico e, por

    fim, demonstrar que possvel utilizar as estruturas do discurso fnebre em prol de uma

    exortao virtude e busca pela filosofia.

  • 36

    CAPTULO 4

    Anlise Comparativa dos Discursos Fnebres

    nas Obras de Plato e Tucdides

    Tratamos, no captulo anterior, dos problemas relativos aos anacronismos e s

    distores que permeiam o Menxeno. No entanto, h ainda um outro tpico de extrema

    importncia no estudo da orao fnebre atribuda a Scrates: sua ligao com o

    discurso presente na Histria da Guerra do Peloponeso de Tucdides, atribudo a

    Pricles. Embora apresente pontos de contato tambm com os outros discursos fnebres

    que restaram, o Menxeno parece estabelecer uma conexo particular com a orao de

    Pricles por diversos motivos. Tal conexo tem sido observada nos estudos a respeito

    do dilogo.

    Primeiramente, faz-se necessrio tecer consideraes pertinentes acerca da obra

    de Tucdides, mais especificamente acerca da construo da figura de Pricles ao longo

    do texto. A respeito da vida de Pricles, Harvey Yunis (1996, p. 63) ressalta que

    dispomos de informaes e relatos acerca de seus feitos que nos permitem vislumbrar

    suas posies polticas e sua maneira de exercer o poder. Embora se possa inferir, em

    algumas ocasies, qual a posio poltica de Pricles, ele no deixou nenhum material

    escrito22, o que nos impede de saber ao certo de que maneira se dirigia aos atenienses ou

    o que de fato discursou. Hornblower (2003, p. 295) tambm toca na questo da

    autenticidade:

    The essential difficulty, however, is one which affects all the speeches in Thucydides to a

    greater or lesser degree, the question of authenticity. Are we to think of the speech as a

    Thucydidean invention in which case the supposed novelties cannot be laid at the door of

    the historical Pericles or as a record of what Pericles actually said?

    Yunis (1996, p. 61) afirma que escrever um relato da guerra permitiu a

    Tucdides apresentar seu modelo de retrica poltica. Ele trata os discursos pblicos

    presentes na obra como um meio de o autor mostrar sua viso sobre a retrica. Para ele,

    parece haver, paralelamente funo de manter certo rigor histrico, a inteno de

    22 Yunis, 1996, p. 64: A few quotations or paraphrases from his speeches had occasionally been remembered and written down by someone else after a speech was delivered; eight such remembered

    fragments have survived from atiquity.

  • 37

    construir um projeto, uma ideia de democracia. Neste momento, o autor recorre

    Plato:

    we do not expect Plato to be historically accurate and we do not care whether he is or not;

    we want to understand how the arguments contribute to Platos political-rhetorical theory,

    which may, it is true, involve some historical knowledge. Clearly Thucydides is a historian

    in a way that Plato is not; but on the subject of political rhetoric Thucydides too can be

    treated primarily as a thinker for whom history is raw material to be shaped in the

    presentation of a coherent theory. (YUNIS, 1996, p. 61)

    Yunis demonstra que Tucdides, de certa maneira, subverte a tradio

    estabelecida: no segue risca a opinio anti-democrtica. Ao invs de seguir esta

    comum rejeio ao modelo poltico, ele defende Pricles e suas decises, e culpa os

    lderes democrticos posteriores a Pricles - e suas decises - pelos desastres que

    acometeram os atenienses:

    Thucydides declares a turning point in Athens fortunes after Pericles death (2.65.5-7):

    Athens reached the height of her greatness under Pericles leadership; his policy for

    conducting the war was sound, but after his death the Athenians abandoned that policy, and

    pursuing private goals rather than the public good they endagered the polis. Thucydides

    then delivers the argument concerning political leadership, asserting a definitive split

    between Pericles and the succeding politicians (2.65.8-10). (YUNIS, 1996, p. 67)

    Tucdides, ao anunciar a morte de Pricles, declara que, naquele momento,

    houve uma mudana na sorte ateniense. Ele defende a postura poltica de Pricles e

    afirma que, aps sua morte, os governantes no foram capazes de manter suas polticas,

    levando em considerao os interesses pessoais ao invs dos pblicos, prejudicando,

    portanto, a cidade. Tucdides ento assegura a diferena existente entre a poltica de

    Pricles e a dos seus sucessores. Cabe a reproduo do trecho todo, para que possamos

    ter em mente como Tucdides se refere a Pricles enquanto governante:

    Com efeito, enquanto Pricles esteve testa da cidade em tempo de paz, seguiu uma

    poltica moderada e a manteve segura, e foi sob seu governo que Atenas atingiu o auge de

    sua grandeza; depois, quando comeou a guerra, parece que ele estimou realisticamente a

    magnitude da fora da cidade. Pricles sobreviveu dois anos e seis meses ao incio da

    guerra; depois de sua morte foi ainda mais admirado pelo valor de suas previses quanto

    mesma. De fato, ele havia aconselhado os atenienses a manterem uma poltica defensiva, a

  • 38

    cuidarem de sua frota e a no tentarem aumentar o seu imprio durante a guerra. Eles,

    porm, agiram contrariamente a tudo isto e, mais ainda, em assuntos aparentemente alheios

    guerra foram levados por ambies pessoais e cobia a adotar polticas nocivas a si

    mesmos e aos seus aliados; enquanto produziram bons resultados, tais polticas trouxeram

    honras e proveito somente a cidados isolados, mas quando comearam a fracassar foram

    altamente prejudiciais a toda a cidade na conduo da guerra. A razo do prestgio de

    Pricles era o fato de sua autoridade resultar da considerao de que gozava e de suas

    qualidades de esprito, alm de uma admirvel integridade moral; ele podia conter a

    multido sem lhe ameaar a liberdade, e conduzi-la ao invs de ser conduzido por ela, pois

    no recorria adulao com o intuito de obter a fora por meios menos dignos; ao

    contrrio, baseado no poder que lhe dava a sua alta reputao, era capaz de enfrentar at a

    clera popular. Assim, quando via a multido injustificadamente confiante e arrogante, suas

    palavras a tornavam temerosa, e quando ela lhe parecia irracionalmente amedrontada,

    conseguia restaurar-lhe a confiana. Dessa forma Atenas, embora fosse no nome uma

    democracia, de fato veio a ser governada pelo primeiro de seus cidados23. Seus sucessores,

    todavia, equivalentes uns aos outros mas cada um desejoso de ser o primeiro, procuravam

    sempre satisfazer aos caprichos do povo e at lhe entregavam a conduo do governo. Por

    se tratar de uma grande cidade no comando de todo um imprio, muitos erros resultaram

    dessa atitude, especialmente a expedio Siclia, cujo fracasso se deveu menos a um erro

    na apreciao das foras contra as quais os atenienses iriam combater do que

    incompetncia daqueles que a ordenaram; estes, com efeito, ao invs de tomarem medidas

    adequadas de apoio s primeiras tropas enviadas, entregaram-se a intrigas pessoais com o

    objetivo de obter o comando do povo, e, conseqentemente, alm de cuidarem das

    operaes militares com menos energia, pela primeira vez introduziram na cidade a

    discrdia civil. Apesar de tudo, mesmo depois do desastre na Siclia, onde perderam no

    somente seu exrcito mas tambm a maior parte de sua frota, e no obstante as dissenses

    reinantes na cidade, os atenienses ainda enfrentaram durante dez anos os inimigos que j

    tinham, reforados ento pelos sicilianos, mais a maior parte de seus antigos aliados, ento

    revoltados, e logo depois Ciros, filho do Rei, que se juntou aos peloponsios e lhes

    forneceu dinheiro para a sua frota, e s foram vencidos por causa das desavenas pessoais

    23 Esta passagem pode se tratar de um possvel ponto de contato com a maneira como o Scrates

    platnico trata a democracia em sua orao fnebre:

    Enquanto uns chamam este regime de democracia, outros o chamam conforme lhes apraz;

    mas , na verdade, uma aristocracia com a aprovao da maioria. Pois reis ns sempre

    tivemos; eles o so ora por sua linhagem, ora por eleio. Mas o poder da cidade , na

    maior parte das vezes, da maioria, que concede as magistraturas e a autoridade aos que

    parecem ser em cada caso os melhores; (238d1-7)

    , , ,

    . :

    , :

    , .

  • 39

    entre seus dirigentes em meio s dissenses internas que os levaram runa. No podiam

    ter bases mais slidas as afirmaes de Pricles ao tempo de suas previses no sentido de

    que sua cidade poderia vencer facilmente a guerra contra os peloponsios sozinhos. (Thuc.

    2.65-66)

    Neste excerto, se delineia, em linhas gerais, a imagem da figura poltica de

    Pricles que Tucdides pretende transmitir a seus leitores. Para Yunis, os trs discursos

    atribudos a Pricles presentes na obra de Tucdides funcionam como formas de reiterar

    tais opinies. O autor apresenta uma descrio de cada um dos discursos e os distingue,

    de modo a tentar compreender de que maneira o autor constri a figura de Pricles:

    In comparison with other Thucydidean speeches, those attributed to Pericles reveal few

    stylistics distinctions that could by themselves define their ostensible power to instruct.

    Rather, Thucydides notion of instructive rhetoric is determined primarily by political

    function. Pericles speeches form a coherent group, demonstrating under a variety of

    circumstances the power of instructive rhetoric to render the demos capable of mature,

    conscientious, consistent decision-making. (YUNIS, 1996, p. 77)

    Adiante, Yunis (1996, p. 77) afirma que Tucdides utiliza o primeiro discurso

    (1.140-44) para retratar uma democracia eficiente, e o prprio contexto em que

    localizam-se as palavras de Pricles permite que o autor apresente o orador da maneira

    como lhe parece ser adequada:

    The situation is formally uncomplicated: the polis is about to decide its policy on a clearly

    recognized, basic question: how should the Athenians respond to Spartan ambassadors who

    are demanding concessions? The task facing the rhetor is likewise formally uncomplicated

    explain the demos the policy that he has devised as best serving Athens interests and

    persuade them to adopt it. (...) An Assembly convened for the purpose described by

    Thucidides creates the opportunity to introduce Pericles as the authoritative rethor at a

    momento of high drama and to display him adressing the question comprehensively and

    conclusively.

    O segundo discurso de Pricles presente em Tucdides justamente a orao

    fnebre (2.35-46). Yunis (1996, pp. 79-80) o caracteriza como sendo o premente

    exemplo de retrica poltica instrutiva na literatura grega, e afirma:

  • 40

    Pericles uses the occasion to impart (...) a lesson that is unpleasant at all times and

    especially harsh to some modern sensibilities but nevertheless fundamental for ancient

    political life: the citizens must be ready to sacrifice their lives for the polis. (...) Pericles

    argues that the Athenians must be ready to die not merely in defense of the polis - an

    unexceptional demand but for its greater glory; and in typical Athenian manner he uses a

    public speech addressed to all citizens to convince them of the absolute nature of that

    obligation.

    Por fim, o terceiro discurso tratado por Yunis (1996, p. 83) como sendo o

    resultado do curso de eventos iniciados pelo primeiro discurso:

    Having earlier displayed Pericles smoothly instituting the war policy under optimal

    circumstances, Thucydides now displays him struggling to revive it in the midst of crisis;

    Thucydides account would not have been complete had either case been lacking. In the

    ideal Athens of the funeral oration, steady democratic conviction had been posited as a

    product of instructive rhetoric (II.40.3); that is precisely what is called into question when

    the Athenians are on