2014_brunacamara_vcorr
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
Menxeno de Plato: Traduo, Notas e Estudo Introdutrio
Bruna Camara
Verso Corrigida
So Paulo
2014
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
Menxeno de Plato: Traduo, Notas e Estudo Introdutrio
Bruna Camara
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Letras Clssicas do
Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo
para a obteno do ttulo
de Mestre em Letras Clssicas
Orientador: Prof. Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes
Verso Corrigida
So Paulo
2014
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Bruna Camara
Menxeno de Plato: Traduo, Notas e Estudo Introdutrio
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas do
Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em
Letras Clssicas.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:_______________________ Assinatura:___________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:_______________________ Assinatura:___________________________
Prof. Dr._______________________________________________________________
Instituio:_______________________ Assinatura:___________________________
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RESUMO
Esta dissertao tem como objetivo apresentar a traduo do dilogo Menxeno,
de Plato, acompanhada de notas crticas com o intuito de auxiliar a leitura do texto, e
de um estudo sobre os principais temas e problemas suscitados pela obra, sobretudo no
que concerne aos anacronismos e distores presentes na orao fnebre platnica e sua
possvel relao com o discurso atribudo a Pricles presente no Livro II da Histria da
Guerra do Peloponeso, de Tucdides.
Palavras-chave:
1. Plato 2. Filosofia 3. Retrica 4. Gneros do Discurso 5. Orao Fnebre
***
ABSTRACT
This dissertation aims to present the translation of Platos Menexenus,
accompanied by critical notes in order to assist the reading, and a study of the main
topics and issues raised by the work, especially with regard to the anachronisms and
distortion in Plato's funeral oration and its possible relation with the speech attributed to
Pericles present in Book II of the History of the Peloponnesian War, by Thucydides.
Keywords:
1. Plato 2. Rhetoric 3. Philosophy 4. Genres of Discourse 5. Funeral Oration
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A meu pai, Paulo Camara
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Agradecimentos
FAPESP, pelo valioso auxlio que a bolsa concedida me proporcionou;
Ao Prof. Dr. Daniel Rossi Nunes Lopes, pela impecvel orientao, pelas ajudas
constantes, pelo incrvel profissionalismo que demonstrou ao longo do tempo e por ter
acreditado sempre em meu trabalho, o que indubitavelmente em muito contribuiu para
sua realizao. Ademais, agradeo por ter se mostrado to disposto e acessvel, de modo
a permitir que minha pesquisa tenha se dado de modo leve e prazeroso;
Ao Prof. Dr. Adriano Machado Ribeiro e ao Prof. Christian Werner, que compuseram a
banca de qualificao desta dissertao, pelas intervenes feitas e, sobretudo, pelo
cuidado que demonstraram ao ler minhas palavras, auxiliando-me em pontos de extrema
importncia para o desenvolvimento de meu trabalho;
Prof. Dra. Josiane Teixeira Martines, no apenas por compor a banca de defesa de
minha dissertao, mas tambm pelo imenso cuidado demonstrado na leitura de minha
pesquisa, pelas observaes pertinentes e pelas palavras todas ditas;
A Rafael de Souza, amigo e companheiro de tantos dias que passamos, de cus rseos.
No mais, terei sempre seu amor comigo num lugar chamado Oz;
A Erick Gustavo Savegnago, pelo amor que me oferece mesmo sendo eu simplesmente
uma errante. Pela vida que somos juntos e pelos risos infindveis todos os dias, quando
reinvamos no mesmo espao e tempo. Que seu corao sempre esteja em compasso
com o meu, de algum modo;
A Bruno Jardim Rodrigues, pelas danas na sala, por ser minha risada quando eu mal
consigo esboar sorrisos. Por cada trem, por cada msica, por cada incio e fim de dia
que compartilhamos nos anos que temos na histria um do outro, e pelas frases soltas,
tantas, que me tornam mais leve, me fazem ver que, afinal, no h problema que
persista aps uma boa dose de despretenso;
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A caro Francesconi Gatti e Vincius Lacerda, pelas cores que me ofereceram nos
ltimos tempos de Castelo em risadas sinceras, por terem me oferecido diversos pontos
de vista, pelas viagens, pela pacincia absurda que demonstraram sempre com minha
voz gritante;
A Amanda Cerqueira, minhas vidas todas, a companhia mais incompreensivelmente
perfeita que pude experimentar nos meus dias, minha completude, meu corao batendo
noutro corpo. Grata por ter algum na Terra que compreenda que, sabe, prum bom
viajante, nada distante; prum bom companheiro, no conto dinheiro. Conte comigo, eu
te sigo para enfrentar o castigo ou ter glrias de um campeo. minha linda, o meu
caf ficou to sozinho, os meninos passam e eu olho sem ter pra quem mostrar. Me falta
tu mesmo e teu jeito de me contar. O sol se pe l na pracinha e eu me sentei cantando
sozinha. Gratido pelos bons momentos e por ter danado a juventude ao meu lado;
A Pedro Henrique Paschuetto, captulo encantado da minha histria, por cada pedra que
pulamos juntos, pelas estradas, milhares de estradas de terra, de asfalto. Pela pedra do
corao. Por seus olhos bonitos, pela vida infinita que me proporcionou ao cruzar o meu
caminho, pelo zelo que sempre teve mesmo quando eu nunca acreditei ou vi. Ao moo
de Paranapiacaba, eu sou grata; no meio da neblina sem fim em que mal se podia ver o
rosto do outro, impossvel calcular o que me faria enxergar: tudo aquilo que eu no
poderia ver sozinha. Por me aceitar de corao selvagem, bradando que o mundo inteiro
est naquela estrada ali em frente e que isso belo. Sem-tempo o meu amor;
A Duerer Guilhermetti de Carvalho, eu no sei exatamente o motivo, talvez por ter-me
sido agradvel desde o dia primeiro em que chegou. Grata por ter criado um canto novo
dentro de mim, num corao que j no tinha. Tem agora. Grata por ver trs luas em
uma, por se encantar com saguis no mato, por me fazer rir por mais de quatro horas,
incomodando toda a rodovia. Grata pela espontaneidade, pelas conversas boas, pela
energia, pela disposio, pela verdade, pela vida que me tem sido to cheia de cores;
A Teleco Teco, minha preciosidade maior, minha descoberta de amor verdadeiro, meu
corao puro. A ele eu agradeo e dedico os passos, os caminhos que eu ando pela
simples alegria de ser. Grata por ter me ensinado que amar praticar o desapego e ter a
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certeza de que o ser amado est feliz, corre livremente, vive sua natureza conforme se
deve e com carinho guardado para quando eu chegar;
memria de Fuxico Xic, pela alegria que me trouxe, por ter me permitido amar,
cuidar e me doar pelos dias em que esteve comigo;
A cada um dos que cruzaram meus 27 anos de sonho. Pelos passantes de signos de fogo,
terra, ar e gua que me ofereceram os elementos que no tenho para seguir a estrada. Se
hoje sou, sou por vocs terem sido em mim;
msica, pela inspirao, pela companhia e pelo sentido que d minha vida;
A Inbia Paulista, Prainha Branca e suas trilhas e runas, a Monte Alegre do Sul e sua
Cachoeira do Sol, a Limeira e a Paranapiacaba; a So Paulo, por ter me ensinado a ser; a
Florianpolis, por ter me feito ver de longe o que no se v se muito perto; e com
especial carinho a Pirenpolis, lugares todos que me sabem to bem e por cujas ruas
caminho todos os dias de algum modo, percorrendo em sentimentos as estradas daqui
pra l. Em cada cu, em cada cho, minha alma l deixei;
Ao amigo que eu esperei a vida toda para reencontrar, pois j temos histrias unidas
certamente h mais tempo do que se pode pensar. Meu amigo, meu amado, meu
confidente, minha pureza, eu no faria nada que pudesse tocar em um fio do sentimento
que temos, e seu cuidado comigo beira o incondicional. Nunca ser possvel unir
palavras suficientes para demonstrar o amor que tenho, o carinho que sinto. Eu dividiria
todos os meus dias com Ticiano Curvelo Estrela de Lacerda;
Por fim, minha famlia. minha irm Carolina Camara, por ter me emprestado um
pouco de seu talento musical, por ter crescido comigo e por ser meu elo com o passado,
por gostar de mim ao contrrio, mas ainda assim gostar muito, e deixar isso transparecer
todos os dias. minha me Maria Rodrigues de Assis, pela alma de princesa, pela
delicadeza, pela disciplina com que soube me educar, por me amar, simples. A meu pai
Paulo Camara, por ser o homem mais incrvel que eu poderia pensar em conhecer,
inigualvel, por ter sido sempre o meu norte. Minha admirao infinita; se fao algo
na minha vida, por saber que, de algum modo, h sua presena acompanhando e seus
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olhos seguindo. Grata por ser ele o meu pai, grata por ter tido ao seu lado uma viagem
magnfica, inesquecvel. Sinto sua falta todos os dias e todas as horas do dia. No h um
sol sequer sem que eu pense em v-lo ou ouvi-lo. Ouo, de certo modo, sempre que
penso, pois sou, sem dvida, parte indissocivel de meu pai. Enquanto houver voc do
outro lado, aqui do outro eu consigo me orientar.
Para aquele homem que faz depender de si mesmo todas as coisas que
conduzem felicidade, ou disso se aproxima, e no fica na dependncia de
outros homens, cuja boa ou m fortuna foraria tambm a sua prpria
sorte a oscilar, para ele a vida est disposta da melhor maneira possvel.
Esse o homem temperante, esse o homem corajoso e prudente.
Menxeno, 247e9-248a5
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NDICE
Apresentao ......................................................................................................... p. 10
Captulo 1 Consideraes Gerais Sobre a Orao Fnebre ................................ p. 11
Captulo 2 O Menxeno de Plato ...................................................................... p. 20
Captulo 3 Anacronismos e Distores no Menxeno ........................................ p. 26
Captulo 4 - Anlise Comparativa dos Discursos Fnebres nas Obras de Plato e
Tucdides ............................................................................................................... p. 36
Traduo do Menxeno ......................................................................................... p. 55
Bibliografia ............................................................................................................ p. 74
Anexo Menxeno: Texto em Grego ....................................................................... p. 80
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APRESENTAO
O presente trabalho resultado de minha pesquisa de Mestrado, iniciada com
meu ingresso no Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas, em Agosto de 2011 .
O objetivo principal da dissertao apresentar: (i) a traduo em Portugus do dilogo
platnico Menxeno a partir do texto grego original, acompanhada de notas crticas a
fim de agregar informaes leitura para eventuais esclarecimentos de carter histrico,
filosfico, literrio e/ou lingstico; e (ii) o estudo introdutrio, aludindo aos principais
problemas levantados pelos estudiosos com o intuito de analisar a fundo algumas
relaes e questes suscitadas pela obra ao longo do tempo.
A traduo proposta segue rigor pertinente, sobretudo no que se refere acepo
dos termos-chaves necessrios ao entendimento da obra platnica. Para tal fim,
utilizada a edio de J. Burnet (Oxford Classical Texts, 1968).
O estudo introdutrio, por sua vez, busca elucidar diversos pontos essenciais
leitura e compreenso devida do texto platnico. Os captulos desenvolvidos tratam (i)
das consideraes gerais a respeito da orao fnebre enquanto instituio cvica, (ii) do
dilogo Menxeno em si e sua estrutura, (iii) das distores e anacronismos presentes na
obra e suas acepes e (iv) da anlise comparativa das oraes fnebres relatadas por
Plato e por Tucdides, no Menxeno e na Histria da Guerra do Peloponeso,
respectivamente. Em linhas gerais, a dissertao visa permitir uma leitura crtica da
obra, de modo que seja possvel relacion-la no espao e no tempo, inseri-la em seu
contexto e possibilitar uma abordagem capaz de relacionar diversos aspectos do
fenmeno para uma compreenso mais plena, que considere o discurso fnebre no
simplesmente como um texto escrito, como um discurso pblico, mas que o entenda em
seu determinado contexto histrico, poltico e social. As questes levantadas pelo
estudo, portanto, tem por intuito uma visualizao ampla da obra, para que se possa,
com maior eficincia, compreender de que maneira Plato tece uma orao fnebre e
com que intuito se utiliza desse gnero do discurso.
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CAPTULO 1
Consideraes Gerais Sobre a Orao Fnebre
A orao fnebre, no contexto da oratria poltica de Atenas, tinha como funo
elogiar os mortos e reiterar o lugar dos homens como cidados atenienses, uma vez que
a histria da cidade era retomada e exaltada. Apenas um pequeno nmero desses
discursos chegou posteridade. A orao atribuda a Pricles por Tucdides na Histria
da Guerra do Peloponeso, datada do final do V ou comeo do sculo IV a.C. (o
discurso, contudo, teria historicamente ocorrido em 430 a.C., ao final do primeiro ano
da guerra entre Atenas e Esparta, segundo o relato do historiador)1, a mais
amplamente conhecida dentre elas. Encontram-se preservadas tambm outras quatro
oraes fnebres: a de Demstenes, a de Hiprides - ambas datadas da segunda metade
do sculo IV a.C. -, a escrita por Lsias cerca de 10 anos antes do Menxeno e um
pequeno fragmento de Grgias, preservado na obra de Dionsio de Halicarnasso.
Portanto, as cinco oraes aqui citadas compreendem o leque de oraes fnebres que
nos restaram. Bruce Rosenstock (1994, p. 334) assinala que alguns estudiosos
questionaram as autorias dos textos de Demstenes e Lsias2, mas em seguida
acrescenta que, por estar interessado em delinear as convenes do gnero, no se faz
necessrio se preocupar com questes de autenticidade. No caso do estudo em questo,
seguimos a metodologia de Rosenstock e, a despeito dos problemas concernentes
autoria, tambm teremos como foco as informaes presentes nos textos remanescentes,
independentemente da exatido das informaes sobre sua composio.
H grandes obstculos existentes na reconstituio do gnero, como o silncio
no qual se perdeu a maioria dos textos. Por dispormos de um nmero reduzido de
exemplares, certamente difcil falar em padres ou formas consolidadas de
composio. No entanto, possvel trabalhar com os pontos de contato existentes entre
as obras remanescentes. As frmulas recorrentes possibilitam aos estudiosos inferir
alguns padres quanto ordem dos tpicos e dos contedos das mensagens. No se trata
de regras fixas e consolidadas pr-estabelecidas, mesmo porque, neste momento
1 Cf. Thuc. 2.34. 2 Dover (1968, p. 193): A funeral speech, like any enkomion or panegyric, belongs to a genre naturally attractive to anyone interested and skilled in oratory, even entertaining the possibility that he himself or
anyone else would deliver it at a real state funeral. Consequently, I see no reason why Lysias should not
have composed the Epitaphios.
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histrico, a retrica se apresentava de maneira prtica, por assim dizer, sem que se
houvesse ainda uma sistematizao terica, como vemos, por exemplo, na Retrica de
Aristteles e na Retrica a Alexandre.
No tocante composio de uma orao fnebre, no parece haver campo para
novidades. Os exemplares que chegaram posteridade demonstram que havia padres a
serem seguidos. Em sua introduo traduo do discurso fnebre de Demstenes, A.
Lopes Eire (1985, 281-2), ao tratar da questo da autoria, traz alguns desses aspectos
sobre os modelos estruturais que orientam o gnero e que, em certa medida, no
permitem ao orador um exerccio demasiadamente livre de composio. O estudioso
tece consideraes teis acerca dessa questo, levando em conta que, ao compor o
discurso fnebre, o autor parece se submeter a alguns padres que permeiam sua
composio, no lhe cabendo ser original, mas sim corresponder a certas expectativas
prvias, e acrescenta:
Por consiguiente, en un espcimen de un gnero tan peculiar y estricto como el discurso
fnebre, no es extrao encontrar tpicos y coincidencias con las dems [obras] del mismo
carcter, pero lo que no cabe, precisamente por su marcada ndole particular, es compararlo
con otro tipo de discurso, ni de la oratoria judicial, ni de la simbulutica, ni de la epidctica,
a la que el prprio Epitafio pertenece.
As pues, hay en el discurso fnebre numerosos puntos de contacto con obras similares de
Lisias y Platn, y tambin se descubren en l claras influencias de Pericles y Tucdides (o
del Pericles de Tucdides, si se prefiere), de dos personajes, en suma, que haban interesado
vivamente a Demstenes.
Embora tenhamos de fato um nmero reduzido de textos, pode-se perceber que
h determinados parmetros que compem o corpo do elogio e alguns i essenciais
reformulados em cada discurso, dentro do que conveniente. A questo da
originalidade de fato no est posta, mas sim o cumprimento de uma determinada
estrutura, levando-se em conta os pontos de contato existentes entre os textos
remanescentes. Baseando-se no confronto das oraes fnebres, supe-se uma
expectativa sobre o gnero que orienta, de certo modo, sua composio, embora no a
defina por inteiro. H variaes na construo do discurso, mas sem que se afaste em
demasia dos elementos comuns e habituais de sua ordenao. A importncia est na
elaborao, na maneira como as questes so conduzidas por cada orador que se dispe
a compor um discurso, que dever, por sua vez, ser semelhante aos precedentes e
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necessariamente novo. H uma estrutura formal recorrente, a partir do que possvel
inferir uma gama de aspectos provavelmente requeridos; no entanto, a orao fnebre
varivel, em certa medida, no que se refere maneira como o orador se coloca perante o
que requerido, e se relaciona diretamente com o contexto histrico e poltico em que
se insere.
Muitos estudos tm sido desenvolvidos a respeito das oraes fnebres nas
ltimas dcadas. Bronwen L. Wickkisier (1999, p.65) assinala:
Scholarship on the funeral speech, the epitaphios logos, runs in two main streams:
archaeological and literary. The archaeological approach uses the speeches as evidence for
the greater event of the public funeral (Jacoby, Clairmont, Morris) while the literary
examines the speeches as relics of a curious genre and as barometers of the democratic
movement (Ziolkowski, Loraux, Coventry). The result of the latter approach is a tendency
to isolate the epitaphios logos from the large event, while the former reduces the oration to
the status of evidence for reconstructing the funeral ceremony without considering that the
speech itself says. A recent trend in scholarship has approached the epitaphios logos as a
ritual unto itself (Carter, Ochs), but has failed to place the component ritual within its larger
context and explore the responsion between part and whole.
Desse modo, entende-se que a orao fnebre trata-se no apenas de um gnero
literrio associado escrita; pelo contrrio, pode-se entend-lo como um discurso
ativo, com funes e aplicaes prticas, de modo que o estudo do texto no feito
isoladamente, mas sim em consonncia com a anlise e o estudo de outros aspectos
histricos que, unidos, se prestam com maior eficcia a nos fazer compreender o
contexto e a importncia dos rituais fnebres como um todo.
Para delinear as formas do gnero, pode-se recorrer, por exemplo, a referncias
metarretricas, isto , asseres que apresentam reflexes sobre o prprio discurso,
como a seguinte passagem do Menxeno:
SCRATES - Certamente, Menxeno, em muitos aspectos pode vir a ser belo morrer em
guerra. E ainda que algum venha a ter seu fim na pobreza, recebe bela e magnfica
sepultura; ainda que seja insignificante, recebe louvor da parte de homens sbios e que no
louvam ao acaso, mas preparam seu discurso por muito tempo. Tais homens louvam de
maneira to bela que, ao dizer aquilo que cabe e o que no cabe atribuir a cada um, ao ornar
o discurso com as mais belas palavras, enfeitiam nossas almas. Enaltecem a cidade de
todas as maneiras e louvam os que pereceram na guerra, todos os nossos antepassados e
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tambm a ns mesmos, ainda vivos, de modo que eu, por minha parte, Menxeno, sinto-me
muitssimo nobre ao ser louvado por eles; (234c-235a8)
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Alm de referncias metarretricas que podem nos indicar quais as expectativas
que orientavam tal gnero de discurso, encontramos indicaes a respeito da
composio da orao fnebre em Aristteles: na Retrica (1366b-1367a), ele apresenta
o gnero (ou melhor, sub-gnero) quando fala da retrica epidtica3. Aristteles salienta
que o belo , por si s, digno de louvor e, por sua vez, objeto da retrica epidtica, cujo
fim justamente o de enaltecer aquilo sobre o que se fala. Em seguida, tece
consideraes acerca das coisas que so belas:
Tambm so belas todas as coisas cujo prmio a honra; e as que visam mais a honra do
que o dinheiro. Igualmente as coisas desejveis que uma pessoa no faz por amor de si
mesma; coisas que so absolutamente boas, como as que uma pessoa fez pela sua ptria,
descuidando embora o seu prprio interesse. (...) So belas as coisas que possvel ter
depois da morte mais do que durante a vida; pois o que se faz em vida tem um fim mais
interesseiro. (...) Belos so ainda os actos memorveis, e tanto mais belos quanto mais
durvel for a memria deles. Tambm os que nos seguem depois da morte, os que a honra
acompanha, os que so extraordinrios.4
3 Taylor (1936, p. 42): Funeral orations belong to the type of oratory called by the Greeks epidectic, and demand an artificial elevation of diction and use of verbal ornament avoided in forensic pleading and political speaking. 4 ARISTTELE S. Retrica. Introduo de Manuel Alexandre Jnior. Traduo e Notas de Manuel
Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Imprensa Nacional da Casa da
Moeda, 2005, p. 126-7.
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Aqui aparece a raiz da orao fnebre: os feitos em prol da ptria, belos por
carregarem a bravura e a coragem de sobrepor interesses coletivos a interesses pessoais.
Num segundo momento, emerge a questo da morte como fator determinante, capaz de
gerar uma memria positiva por conta, justamente, do ato de dar a vida por um motivo
considerado nobre. A orao fnebre, em certa medida, contribui justamente para a
manuteno da memria, glorificando a morte pela ptria. Aristteles, adiante na
Retrica, define elogio como um discurso que manifesta a grandeza de uma virtude
( - 1367b) e, em seguida, aproxima
o elogio () do conselho (), dizendo que ambos pertencem a uma
espcie comum, baseando-se no fato de que um advm do outro, e de que possvel
depreender de um elogio um conselho e vice-versa. Ora, na orao fnebre, h esse
movimento de fato: um elogio bravura dos homens e cidade como um todo e, em
seguida, uma exortao aos vivos para que possam manter essas qualidades em suas
aes futuras, a partir do reconhecimento de seu papel como cidados e de um
determinado comportamento que se coadune com os belos feitos enaltecidos.
Ainda na Retrica (1368a), Aristteles fala sobre a amplificao do objeto
elogiado, ou seja, do ato de coloc-lo acima de outros objetos e de potencializar todas as
suas qualidades:
A amplificao enquadra-se logicamente nas formas de elogio, pois consiste em
superioridade e a superioridade uma das coisas belas. Pelo que, se no possvel
comparar algum com pessoas de renome, pelo menos necessrio compar-lo com as
outras pessoas, visto que a superioridade parece revelar a virtude. Entre as espcies comuns
a todos os discursos, a amplificao , em geral, a mais apropriada aos epidcticos; pois
estes tomam em considerao as aces por todos aceites, de sorte que apenas resta revesti-
las de grandeza e beleza.
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Aristteles cita o dilogo Menxeno duas vezes na Retrica. O ponto especfico
trazido tona nos dois momentos o carter do pblico para o qual se faz um
determinado elogio, o que deve ser levado em conta para que o discurso possa surtir o
efeito desejado. Tais passagens so as seguintes:
Na definio de retrica epidtica (1367b8):
Importa tambm ter em conta as pessoas ante as quais se faz o elogio; pois, como
Scrates dizia, no difcil elogiar atenienses na presena de atenienses.
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Mais adiante, ao retomar o mesmo ponto a respeito do gnero
(1415b30):
Nos discursos epidticos, necessrio fazer o ouvinte pensar que partilha do elogio,
ou ele prprio ou a sua famlia, ou o seu modo de vida, ou pelo menos algo desse
tipo. Pois verdade o que Scrates afirma no seu discurso fnebre: que no difcil
louvar os Atenienses diante dos Atenienses, mas sim diante dos Lacedemnios.
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Outra importante observao o fato de que as oraes fnebres perpassam os
trs tempos: constroem o passado, apresentam o presente e dispem uma exortao para
o futuro daqueles que ainda vivem. Ademais, o mbito individual deixado de lado,
uma vez que os mortos so tratados como um corpo coletivo, todos vistos sob a mesma
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tica, pautada na maneira como as mortes se deram e no motivo pelo qual ocorreram. A
particularidade anulada, e a morte se transforma na oportunidade de se glorificar o
corpo coletivo da cidade, conforme assinala Nicole Loraux (1986, p. 60-9). Celebrar o
morto, nesse contexto, tem um sentido poltico que transcende o privado, na medida em
que a caracterizao de Atenas em tais discursos passa pelo modelo poltico da
democracia, de modo que o eixo principal a cidade, e no os homens em particular. A
vida privada de cada um no tem a mesma importncia que seus feitos na esfera pblica.
Nesse sentido, os funerais oficiais funcionavam, em certa medida, como a
emanao simblica da plis democrtica. Misturam-se os feitos guerreiros e a
exaltao do regime, assim como a esfera militar e a poltica. Ocorre aqui o que Loraux
(1986, p.69) encara como um trplice deslocamento: (1) a exaltao fnebre deixa de ser
parte apenas das cortes aristocrticas para tornar-se um discurso proferido
publicamente; (2) no mais um poeta a entoa, mas um orador, figura fortemente
presente nesse contexto; (3) ademais, h a sada do mbito da mtrica para o da prosa.
No contexto da democracia, o canto e a lamentao fnebre de outrora, que pertenciam
ao mbito da poesia, se transformam em em prosa e passam a se calcar no valor
de Atenas e do cidado ateniense; o epitfio se configura como uma exaltao glria
coletiva, e no mais glria de um aristocrata proeminente.
Os discursos fnebres esto associados, portanto, a questes sociais e polticas,
uma vez que os funerais, enquanto eventos cvicos, no s marcam como reforam as
caractersticas do momento histrico no qual esto inseridos. As oraes fnebres se
configuram como um louvor coletivo, e veneram os concidados considerados mais
valorosos por terem dado suas vidas pelo bem-comum da plis, de modo a demonstrar e
expressar a grandeza do corpo social perante os seus e perante os outros. Este aspecto
pode ser explicitado em um excerto da orao fnebre atribuda a Pricles por
Tucdides. Como sinal de igualdade entre os guerreiros, todos os homens que pereceram
durante o primeiro ano da Guerra do Peloponeso foram reunidos e enterrados num
mesmo tmulo, smbolo da unidade democrtica, de uma sociedade que no diferencia
os indivduos que deram a vida pelo bem coletivo. Isso fica claro na descrio dada por
Tucdides imediatamente antes do discurso fnebre, atribudo a Pricles, propriamente
dito:
(...) os ossos de cada um so postos no atade de sua tribo; um atade vazio, coberto por
um plio, tambm levado em procisso, reservado aos desaparecidos cujos cadveres no
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foram encontrados para o sepultamento. (...) os atades so postos no mausolu oficial,
situado no subrbio mais belo da cidade; l so sempre sepultados os mortos em guerra,
exceo dos que tombaram em Maratona que, por seus mritos excepcionais, foram
enterrados no prprio local da batalha. (Thuc. 2.34. 3-5)5
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H, no enterro e na celebrao coletiva, uma apropriao desses mortos pela
cidade, enriquecendo sua honra e valor. Verifica-se, por conta do cunho coletivo das
cerimnias, a anulao de qualquer distino que se possa fazer entre os guerreiros. A
honra coletiva traz consigo essa necessidade do anonimato; entende-se que as batalhas
opem coletividades. A glria vira um conceito poltico, e a orao fnebre passa a ser
um elogio a Atenas, diante do qual o prprio louvor aos mortos se torna secundrio. O
discurso fnebre visto como coroamento do ato nobre de perecer em combate, em
favor da causa coletiva, e mais explica e exorta do que consola. So dois elogios
presentes nas oraes fnebres: o do corpo coletivo de homens de guerra e o de Atenas,
que concorrem para um mesmo fim. A glria dos mortos passa pela glria da plis e
dela necessita, inclusive, para existir. O discurso fnebre composto em tom mais
militar e guerreiro do que propriamente lamurioso; tem-se um discurso militar que
enaltece os feitos blicos e os valores pblicos.
Um importante ponto a ser tratado a presena do outro no contexto dos
funerais pblicos. A amplitude do discurso transpassa a cidadania: participam tambm
mulheres, crianas, estrangeiros6. A cidade demonstra uma abertura democrtica nesse
sentido, e h a clara inteno de impressionar estrangeiros, aliados, amigos e
adversrios reais e potenciais, que podem acompanhar a cerimnia e o discurso. A
presena e a importncia deles, no entanto, se d na medida em que faz emergir a
magnitude ateniense. Como exemplo, podemos citar dois momentos: no discurso
presente na obra de Tucdides, Pricles (2.36.4) anuncia que falar aos estrangeiros
5 Os excertos traduzidos do texto de Tucdides presentes neste trabalho so todos parte da seguinte obra:
TUCDIDES, Histria da Guerra do Peloponeso. Trad. Mrio da Gama Kury. 4 ed, Braslia; Editora
Universidade de Braslia, 2001. 6 A questo da presena do estrangeiro nos ritos funerais aparece em ambas as obras. Cf. Thuc. 2.34.4;
36.4 e Menex. 235b.
-
19
assim como aos cidados, mas dirige a exortao e o consolo somente para os
atenienses (pais, filhos, amigos e esposas); e Scrates, no dilogo de Plato (235b1-8),
anuncia a presena dos embora deixe claro que h, por trs do discurso, a
inteno de louvar os atenienses diante deles mesmos, como dito neste excerto: quando
algum argumenta na presena daqueles mesmos a quem est louvando, no
admirvel que parea bem falar (
, - 235d7-8). Ainda se tratando da presena e da
relevncia do outro nos discursos fnebres, deve-se ressaltar que a plis referida e
elogiada nestes discursos parece ter adversrios sempre satisfeitos com sua condio e
que ressaltam, em suas atitudes, a excelncia ateniense. Logo, dizer que todos
reconhecem o valor da plis um topos presente em ambos os textos. Pricles afirma
que Atenas a nica cidade naquele contexto que jamais suscitou irritao nos inimigos
que a atacaram (
- Thuc. 2.41.3). Scrates, por sua vez, diz que
os inimigos de Atenas, mesmo depois de terem combatido contra seus homens, tecem
mais elogios sua temperana e virtude do que amigos o fazem aos seus prprios
amigos. (
: Menex. 243a5-7). J o apelo posteridade, que ocorre
na ltima parte do discurso em forma de exortao aos que sobreviveram, dirigido
primordialmente aos seus concidados (Loraux, 1994, p. 99-100).
-
20
CAPTULO 2
O Menxeno de Plato
O interesse pelo dilogo Menxeno tem crescido recentemente entre os
principais estudiosos da filosofia platnica. Durante boa parte do sc. XX ele foi
negligenciado, tendo em vista as dificuldades existentes para que se pudesse
desenvolver uma leitura satisfatria do dilogo. Trata-se, por assim dizer, de um escrito
repleto de dificuldades e complexidades. Charles Kahn (1963, p. 220) o define como o
escrito mais enigmtico de Plato. Pouca ateno tem sido dada obra por diversos
motivos, sobretudo por carregar consigo ambiguidades, anacronismos e questes para as
quais trabalhoso obter respostas definitivas. Stephen G. Salkever (1993, p. 133) atribui
essa negligncia por parte dos estudiosos dificuldade de se medir a ironia da
personagem Scrates que permeia o texto. Em seus estudos, tanto Kahn quanto Salkever
reiteram e concluem, por fim, que o texto no deve ser entendido simplesmente como
uma pardia ou stira, mas sim como uma reflexo jocosa feita para oferecer um ponto
de partida a partir do qual deve-se pensar os discursos polticos.
Com efeito, Plato dialoga em sua obra com diferentes gneros de discurso j
previamente estabelecidos, rompendo as barreiras entre o texto que ele prprio escreve e
aqueles com os quais indireta ou diretamente estabelece uma determinada ligao.
Mikhail Bakhtin (1984, p. 189 apud NIGHTINGALE, 1995, p. 6) afirma, sobre essa
relao intrnseca entre os gneros:
[the author of a hybrid text] make[s] use of someone elses discourse for his own
purposes, by inserting a new semantic direction into a discourse which already has, and
which retains, an intention of its own. Such a discourse (...) must be perceived as belonging
to someone else. In one discourse, two semantic intentions appear, two voices.
O Menxeno um exemplo dessa relao intergenrica, uma vez que traz cena
o discurso fnebre e se apropria de suas estruturas por um vis diferente. Nightingale
(1995, p. 5) observa:
It should be emphasized that Plato targets genres that have currency in classical Athens
genres which make some claim to wisdom or authority. Not surprisingly, then, when Plato
engages with a given genre of discourse, his stance is usually adversarial. As I will argue,
-
21
Plato uses intertextuality as vehicle for criticizing traditional genres of discourse and, what
is more important, for introducing and defining a radically different discursive practice,
which calls philosophy.
O gnero parodiado ou ironizado, portanto, serve a certos propsitos de Plato
em cada contexto especfico em que esse fenmeno acontece. No caso do Menxeno, a
reconstruo da orao fnebre a partir de seus prprios elementos carrega consigo um
projeto platnico de exposio de certas deficincias retricas. O texto pode ser
encarado como um comentrio jocoso a respeito do momento poltico vivenciado por
Atenas, se o entendermos como uma mera pardia das oraes fnebres, que eram, por
sua vez, eventos cvicos cuja funo poltica era de extrema importncia no contexto da
democracia ateniense do final do sc. V a.C. e comeo do sc. IV a.C., como analisado
na seo anterior. Todavia, o dilogo pode ser lido no apenas por esse vis negativo:
possvel tratar a obra como uma exposio de opinies, a partir do momento em que ela
prope reflexes acerca das possibilidades e dos limites da poltica democrtica ento
vigente.
Uma das preocupaes de Plato ao desenvolver a orao fnebre parece ser a
exposio das deficincias dos rtores e polticos contemporneos. A escolha da orao
como gnero a ser desenvolvido pode ser explicada, segundo Lucinda Coventry (1989,
p. 02), pelo fato de as caractersticas dos oradores, alvos da crtica platnica, estarem
claramente presentes em tais discursos. Para a autora, o epitfio como gnero tem o
carter essencialmente poltico e o Menxeno ilustra a necessidade da filosofia para a
poltica e as consequncias de ignor-la. Scrates est falando sua prpria cidade e,
para tal, utiliza uma linguagem e uma forma que a cidade, num mbito geral, parece
compreender consideravelmente melhor do que a linguagem do dilogo socrtico e do
.
O discurso de Scrates relata a histria de Atenas em termos brilhantes, de sua
origem autctone Paz de Antlcidas, no fim da guerra de Corinto em 386 a.C., ocasio
para o funeral pblico. O dilogo em questo tem incio quando Scrates encontra
Menxeno vindo da Assemblia dos cidados e informado pelo rapaz que os homens
discutiam a respeito da orao fnebre que deveria ser realizada, e decidiam quem seria
o poltico ideal para desempenhar tal funo. A partir da, Scrates se prope a fazer um
discurso fnebre e, para tal, compe trs partes distintas: um preldio, identificando o
discurso como requerido pela lei ateniense; uma orao para os homens mortos e para
-
22
Atenas; e uma exortao consolatria aos vivos. Vassiliki Frangeskou (1999, p. 319)
demonstra que, a partir do dilogo platnico, pode-se de fato compreender de que modo
eram compostas as oraes fnebres naquele contexto, uma vez que, aps a abertura,
verifica-se o louvor aos que pereceram na guerra, seguido de uma srie de conselhos aos
vivos - aos filhos dos mortos, em forma de exortao, e aos pais, em forma de
consolao. Em outras palavras, dever-se-ia esperar de uma orao fnebre essas trs
partes distintas: um louvor inicial contextualizando o discurso, um elogio a fim de que a
grandeza e nobreza da cidade fossem exaltadas e, por fim, a exortao (uma seo de
carter pedaggico) e a consolao.
Sandrine Berges (2007, p. 218) prope uma diviso do dilogo em quatro partes
principais: (i) a evocao de Scrates para que, a despeito de sua condenao retrica,
fosse possvel desenvolver um discurso digno e vlido; (ii) a origem de Atenas e dos
atenienses7; (iii) uma histria da cidade com traos de anacronismo e reviso; e (iv) uma
exortao aos viventes, numa espcie de prosopopia, como se falasse na voz dos
mortos em guerra, parte esta que Berges considera ser a mais obviamente filosfica.
Sobre este ltimo momento da orao, Rosenstock (1994, p. 336) ressalta:
After the historical narrative, Socrates turns to offer remarks to the assembled city, and
especially to the parents and children of the dead. In these final words he adopts the
rhetorical trope of prosopopeia, speaking in the voice of the dead, first to their sons, then to
their parents. This is the section of the oration which, as I mentioned above, Dionysius of
Halicarnassus (Dem. 30), in agreement with other critics, identifies as the best part of the
speech.
As concluses centrais a respeito de como os atenienses devem conduzir suas
vidas so ditas como se estivessem na voz dos homens mortos em guerra, como fica
evidente neste trecho do discurso:
Irei relatar a vs as coisas que escutei deles prprios e aquilo que eles mesmos diriam agora
a vs de bom grado se pudessem faz-lo, tendo como testemunho o que eles outrora
disseram. Mas necessrio que considereis as coisas que direi agora como se estivsseis
ouvindo de vossos prprios pais. (246c5-9)
7 Michael F. Carter (1991, p. 221) ressalta que o incio do discurso de Scrates leva seus ouvintes de volta
a suas razes comuns, com a celebrao de sua origem e de seu lugar especial no cosmos. Trata-se de um
tempo de lamentao: Scrates explica e justifica o evento que conduziu a esta lamentao. Dessa
maneira, segundo o autor, se estabelece um princpio ordenado para a situao catica do presente.
-
23
, .
:
H uma mudana de tom no momento da exortao reconhecida pela maior parte
dos estudiosos do dilogo, como observa Coventry (1989, p. 05). Scrates tira a
mscara de um orador vivo, cessa a narrao de fatos propriamente dita e incita a
suposta audincia ao comprometimento com a virtude8. Essa passagem destoa, em
alguns aspectos, do restante do texto, e considerada por Nightingale (1995, p. 12)
como no-pardica, pois a mistura de gneros parece ter outra finalidade que no
propriamente a ironia, mas sim uma crtica positiva:
In the non-parodic passages, Plato remains open to the possibility that a genre may in fact
make positive contribution to the philosophers enterprise. Instead of rejecting traditional
genres out of hand, Plato opts to explore the potentialities as well as the liabilities of these
discursive practices. (...) As this ambivalence reveals, Plato did not fix the boundaries of
philosophy once and for all. Perhaps he sensed that philosophy is not well served by a
permanent and closed border.
Se aplicssemos esse argumento de Nightingale para o caso especfico do
Menxeno, poderamos dizer que Plato recorre a outro gnero no apenas para ironizar
e trazer tona os problemas nele presentes, mas tambm para mostrar como possvel
servir-se de um discurso tipicamente democrtico em prol de seu pensamento filosfico,
fazendo emergir questes que, na sua viso, so de fato relevantes, como o
comportamento verdadeiramente virtuoso do cidado (246e-247d6).
Salkever (1993, p. 135) assinala que essa personificao dos mortos em guerra
no encontrada nas oraes fnebres dos scs. V e IV a.C. que se conservaram at os
dias de hoje, o que seria, portanto, uma particularidade do Menxeno. O autor prope,
na sequncia de seu artigo, (1993, pp.136-141), uma diviso do dilogo em trs partes:
Abertura: dilogo entre Scrates e Menxeno (234a-236d);
8 Dean-Jones (1995, p. 55): According to the Meno (99e-100a), a man who could achieve this [inspire to
acquire true virtue] among the living would be like Teiresias among the dead, a solid reality among shadows.
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24
O epitfio propriamente dito (236d-249c), subdividido em trs partes: (i) a
importncia histrica das pessoas e do regime poltico de Atenas; (ii) uma
narrativa dos feitos atenienses desde os tempos remotos at o seu momento
presente; e (iii) uma exortao aos atenienses de seu tempo;
Eplogo: novamente um breve dilogo entre Scrates e seu interlocutor (249d-e).
O confronto com os outros textos restantes nos permite certas inferncias acerca
do gnero, e as divises aqui expostas parecem sugerir que Scrates segue a ordem
estrutural de uma orao fnebre, quando comparada s demais suprstites. No entanto,
embora na forma o discurso v ao encontro dos outros exemplares de oraes fnebres
que nos restam, h uma diferena na inteno: Scrates critica a mensagem das outras
oraes e oferece uma forma alternativa de caracterizar a virtude ateniense. O propsito
aparentemente irnico de Plato ao trazer tona problemas de carter principalmente
poltico amparado ainda pela possvel conexo existente entre o Menxeno e o
discurso fnebre atribudo a Pricles por Tucdides (2.35-46)9, que ser tratado em
captulo posterior. As particularidades de seu discurso, no entanto, tornam o Menxeno
uma obra controversa e repleta de questes ainda a serem trabalhadas e esclarecidas.
Charles Kahn (1963, p. 220) detecta cinco principais problemas encontrados no texto,
nos quais se pautam muitos dos comentrios e questes levantadas por outros
estudiosos:
1 Por que Scrates confere a autoria a Aspsia, preceptora de Pricles?10
2 Por que o anacronismo to evidente?11
3 Por que a distoro sistemtica da histria ateniense12?
9 Michael Carter (1991, p.219) assinala que a ao de parodiar ou ironizar algo pressupe que haja um
conhecimento pleno do objeto. Segundo o autor, possvel satirizar devidamente uma obra a partir do
momento em que se pode domin-la, em certa medida. A ironia vlida justamente por conseguir captar
o objeto e faz-lo ser visto por outro vis. 10 Essa aproximao ser tratada adiante, em tpico especfico, por trazer consigo uma srie de questes a
serem esclarecidas. 11
Bruce Rosenstock interroga a esse respeito logo no incio de seu artigo:
During the course of his show-piece Funeral Oration, Socrates narrates a (rather touched-up) version of Athenian history which terminates with the King's Peace of 387/6. This is a
rather glaring anachronism, considering that Socrates (and Aspasia, of course) had been
dead for over a decade by the time of the King's Peace. Why does Plato have Socrates
speak about historical developments which take place much after his death? (1994, p. 331)
-
25
4 Por que Plato escreve uma orao fnebre afinal?
5 Se o texto consiste em uma piada jocosa, como diz Scrates, ou uma stira
ou pardia da retrica contempornea, como a maioria dos estudiosos modernos
acredita, por que mais tarde foi levado to a srio a ponto de Ccero afirmar que
o discurso era lido anualmente na ocasio da cerimnia anual fnebre pblica?13
Dentre as questes levantadas, sero trabalhadas por este estudo as concernentes
ao anacronismo presente na obra e possibilidade de se relacionar de diversas maneiras
o discurso socrtico orao fnebre atribuda a Pricles por Tucdides (2.35-46). Os
demais problemas acima enumerados sero tratados conforme se fizer necessrio, como
auxlio para o entendimento desses dois tpicos principais.
12
Uma usual distoro minimizar as contribuies de qualquer outra cidade grega, especialmente
Esparta, nas guerras prsicas. As distores foram elencadas e demonstradas cuidadosamente por M. M.
Henderson em seu artigo Plato's Menexenus and the Distortion of History, Acta Clssica, n 18 (1975): 25-46. Essa questo especfica ser tratada adiante neste estudo de forma mais detalhada. 13
Dean-Jones (1995, p. 51) assinala a passagem de Ccero (Or. 151) em que o autor afirma que essa
orao fora to bem recebida que era ainda discursada uma vez por ano em Atenas no sc. I d.C. Scrates
emula um discurso de maneira to acurada que de fato lhe so dados crditos e seu discurso encarado
como sendo modelo, motivado pela sua prpria opinio e viso dos fatos. plenamente compreensvel, para Dean-Jones, que os atenienses achem o discurso de Scrates agradvel, uma vez que a histria de
Atenas narrada em termos excelentes de glria e honra, desde sua origem autctone at a Paz de
Antlcidas e o fim da Guerra de Corinto, ocasio para o funeral composto no Menxeno. No entanto, cabe
ressaltar que, a despeito do testemunho de Ccero, trata-se de uma anedota, e no de um fato histrico. O
importante aqui que Ccero acentua precisamente o aspecto srio do discurso.
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26
CAPTULO 3
Anacronismos e Distores no Menxeno
A verossimilhana cronolgica no parece ser a maior preocupao de Plato ao
escrever os dilogos. Os anacronismos platnicos no eram to agressivos a ponto de
desorientar os leitores mais novos, como sugere Dean-Jones (1995, p. 52), e podem ser
entendidos como parte do propsito humorstico e crtico do autor.
Importante notar, primeiramente, que h uma questo interna ao prprio texto.
Os discursos fnebres, como j vimos, so desenvolvidos e declamados num contexto
pblico. Alm de serem parte integrante do prprio momento poltico democrtico
ateniense, os discursos eram proferidos publicamente e passavam pelo crivo da
audincia, sendo pautados, pelo que se pode inferir pelas semelhanas entre os
exemplares do gnero, em expectativas e diretrizes prprias. Ora, no Menxeno Scrates
discursa num contexto privado, estando ele e Menxeno a ss, como fica claro nesta
passagem:
SCRATES Pois bem, de fato devo te agradar; se me pedisses para danar tirando a
roupa, por pouco no o faria para te agradar, uma vez que estamos sozinhos. (236c10-d1)
- , ,
, , .
O paradoxo emerge no prprio momento da enunciao socrtica. O privado e o
pblico, no contexto da performance da orao, aparecem sem delimitaes. Scrates
entoa sua orao sob condies paradoxais, e em seguida veremos como tambm sua
narrativa se mostra distorcida no que diz respeito aos fatos e cronologia.
A principal questo a respeito do anacronismo que permeia o texto gira em torno
da data dramtica do dilogo, que pode ser fixada a partir das referncias presentes no
prprio texto: h eventos que se estendem da Guerra de Corinto Paz de Antlcidas
(245d6-246a1), o Tratado de Paz firmado entre gregos e persas em 387 a.C., que ps
fim Guerra de Corinto. Tal referncia remonta, portanto, a mais de uma dcada aps a
morte de ambos, Scrates e Aspsia.14 O anacronismo principal advm, portanto, do
fato de Scrates relatar eventos que nem ele nem Aspsia vivenciaram. Os principais
14 Dodds, 1990, p. 24.
-
27
estudiosos desta obra platnica se deparam necessariamente com esse problema, uma
vez que se trata de uma questo central e intrnseca ao prprio texto. Lucinda Coventry
(1989, p. 04) diz que uma possvel explicao para o notrio anacronismo do Menxeno
reside na preocupao de Plato com o discurso fnebre como um .
Scrates apresentado como se estivesse vivo cerca de 13 anos aps a data de sua
morte; o fato de o leitor ter conhecimento desse anacronismo e perceb-lo com
facilidade constitui um importante elemento para a leitura do dilogo. O anacronismo,
assim como a introduo de Aspsia, teria vrias funes para a interpretao do
dilogo, segundo o argumento da estudiosa. Em relao ao interesse de Plato em usar o
epitfio para explorar os defeitos da poltica ateniense, Coventry acredita que possvel
encarar a escolha do gnero como uma maneira de ilustrar mais claramente essas
imperfeies. O anacronismo torna-se uma vantagem, e estabelece uma ligao entre as
deficincias polticas que se pretende elucidar e os mtodos e princpios da retrica,
utilizados a favor da prpria crtica. Ao fazer Scrates se referir a eventos dos quais nem
ele nem Aspsia poderiam ter conhecimento, Plato apresenta o epitfio como um
exemplo supremo do hbito dos oradores de prepararem discursos muito tempo antes da
necessidade de sua composio, por haver uma frmula previsvel, como se pode
perceber nesta fala de Scrates:
Cada um deles tem discursos j preparados e, ademais, no de modo algum difcil
improvisar sobre esse assunto. Pois se fosse necessrio falar bem dos atenienses na
presena de peloponsios, ou dos peloponsios na presena de atenienses, seria necessrio
um bom orador para persuadir e obter renome. No entanto, quando algum argumenta na
presena daqueles mesmos a quem est louvando, no admirvel que parea falar bem.
(235d)
,
.
,
: ,
.
A indiferena que a prtica retrica, por veszes, demonstra para com a verdade -
que deixa de ser um ponto primordial para o discurso - contrasta com os interesses da
filosofia, e nessa indiferena que parecem residir as negligncias polticas. Tanto na
data dramtica como na escolha do epitfio como forma, a preocupao com a retrica e
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28
com a poltica pode ser notada (Coventry, 1989, p.4). Alm disso, Scrates afirma que
desenvolver uma orao nada mais seria do que louvar atenienses diante de Atenas, isto
, louvar um corpo coletivo presente. As distores dos fatos no texto de Plato
aparecem no provvel intuito de reforar a possibilidade de que, numa histria ateniense
de Atenas, pode-se entoar o que bem quiser, pois h licena neste contexto para
omisses e revises histricas exageradas.
Para Kahn (1963, p. 227), o anacronismo, em certo sentido, d a chave para a
compreenso do dilogo15, pois mostra aquilo com que Plato no concordava na
prtica oratria e na poltica ateniense: a concepo do discurso retrico como
ferramenta, capaz de servir a qualquer propsito, a despeito das conseqncias
benficas ou nocivas que podem advir de sua prtica. Berges (2007, p. 219) assinala que
a terceira parte do dilogo, segundo a diviso que ela mesma prope (239a5-246a), traz
um curioso anacronismo e uma histria fortemente revisada de Atenas, mas a autora no
adentra a fundo essa questo, uma vez que apresenta um outro vis de anlise do texto.
J Dean-Jones perpassa o tema diversas vezes em seu estudo: ela assinala (1995, p. 51),
logo no incio de seu artigo, que, dada a viso platnica da poltica do sculo V a.C.
construda ao longo de suas obras, difcil pensar que Plato tenha sido fiel a seu
pensamento na escolha dos termos utilizados na composio da orao, sobretudo no
que se refere descrio da histria de Atenas e de sua magnitude. A autora sugere que
de fato h distores que concorrem para que se possa causar uma determinada reao
no ouvinte. A data dramtica e o orador do discurso, embora no possam coexistir,
constroem um anacronismo fundamental para o entendimento do propsito irnico de
Plato, no intuito provvel de enfatizar seu desdm pela prtica retrica nos moldes em
que ela desempenhada em Atenas neste momento. Dean-Jones (1995, p. 56) tambm
afirma que o anacronismo traz tona a questo sobre quem est vivo e quem est morto.
Toda a orao fnebre se refere a pessoas mortas: Scrates, Aspsia, os combatentes da
guerra. O fato de que ocorrncias posteriores morte de Scrates sejam referidas no
texto traz uma gama de questes, dentre elas aquela que o prprio Scrates coloca no
incio do dilogo, ao dizer que existem frmulas prontas para se compor um discurso
fnebre e que no difcil faz-lo, pois mesmo antes de serem requeridos os oradores j
dispem de oraes prontas (235d2-3), num questionamento semelhante ao colocado
15 Quanto relevncia do aspecto irnico do texto para seu possvel propsito crtico, Bruce Rosenstock
(1994, p. 338) parece concordar ao dizer: In fact, I would argue that the anachronism holds the key to understanding the significance of the Funeral Oration.
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por Coventry (1989, p. 04) tratado acima. Por fim, a autora diz que Plato apresenta
Scrates 13 anos aps sua morte como uma forte presena, como influncia capaz de
guiar os homens ao verdadeiro conhecimento e virtude. Ao fazer isso, Plato mostraria
que as questes colocadas por Scrates e as verdades por ele buscadas permanecem no
cotidiano de Atenas, muito embora ele tenha sido condenado morte pela prpria
cidade anos antes.
Susan D. Collins e Devin Stauffer (1999, p. 90) se referem brevemente a essa
temtica em nota de rodap, levantando a seguinte questo: is Socrates speaking from
the grave, or is he predicting the future?. Bruce Rosenstock (1994, p. 331) aborda esse
problema, desmembrando ainda mais a cronologia ao argumentar e estruturar seu artigo
a partir da crena de que Scrates est morto ao discursar, e se utiliza inclusive de uma
passagem de Nicole Loraux para ilustrar seu ponto de vista, na qual a autora diz:
After I had finished this book, P. Vidal-Naquet suggested to me that the dramatic date of
the Menexenus (386) makes the dialogue between Aspasia and Socrates, both of whom had
long been dead, a dialogue between ghosts. A dialogue of ghosts on the speech to the dead,
denounced as an illusion because it carries the Athenians to the Islands of the Blessed: the
parodic intention becomes multiplied to infinity! This certainly throws some light on the
celebrated "anachronism" that has so puzzled critics.16
Salkever (1993, p. 135) tambm assinala que as referncias histricas que
contextualizam o momento da enunciao do dilogo como sendo um momento
posterior Paz de Antlcidas, mais de uma dcada aps a morte de Scrates e de
Aspsia, tornam o anacronismo do Menxeno ainda mais considervel que o presente no
Grgias17. Plato comps um dilogo, na viso de Salkever, que se auto-apresenta, a
princpio, como uma fico, como uma inveno platnica. No h possibilidade de o
leitor acreditar nem mesmo na aproximao histrica precisa do dilogo. O autor
assinala tambm que h notveis omisses, uma particularmente grande: Scrates nos
conta a histria da Atenas do sculo V a.C. sem absolutamente mencionar o Imprio
Ateniense, sem celebrar as ousadas proezas dos atenienses, como acontece em
Tucdides. Seu discurso no s relega a batalha de Salamina ao segundo lugar em
importncia, aps Maratona, dentre as Guerras Prsicas, como tambm trata Salamina,
16 LORAUX, Nicole. The invention of Athens: The funeral oration in the classical city. Translated by
Alan Sheridan. Harvard University Press, 1986, p. 466, nota 303. 17 A respeito das questes referentes data de composio do Grgias e sua relao com os fatos
histricos, cf. Dodds, 1990, p. 17-30.
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juntamente com Maratona, meramente como indcios de que os gregos podiam se
defender por si mesmos contra os persas deixando de lado o carter extraordinrio da
batalha naval em Salamina, relatando-a apenas brevemente. J Tucdides (1.74) e Lsias
(Epitfio, 32-46) reforam a importncia de Salamina em seus relatos enlevados. O
leitor que se baseasse apenas no relato de Plato, segundo Salkever (1993, p. 139),
nunca saberia que a Guerra do Peloponeso fora de certo modo relacionada ao medo da
hegemonia ateniense na Hlade; segundo as informaes presentes no Menxeno
(243b), a causa do carter terrvel e inesperado da guerra fora a inveja dos outros
helenos em relao a Atenas. Numa viso geral do dilogo, m sorte e motivos torpes
conspiraram para produzir derrotas desmerecidas para os atenienses. As vitrias como
Maratona e Salamina so tratadas completamente como instrumentos para preservar a
liberdade, mais do que memorveis por elas mesmas; do mesmo modo, nada a respeito
de qualquer uma das derrotas ou sofrimentos na guerra parece memorvel.
Dentre os estudos a esse respeito, encontra-se o artigo de M. M. Henderson,
Plato's Menexenus and the Distortion of History (Acta Clssica, N. 18, 1975, pp. 25-
46), em que as questes do anacronismo e das distores presentes no texto de Plato
so tratadas de maneira particular e detalhada. Logo de incio, Henderson localiza a
enunciao do discurso fnebre de Scrates, e ressalta, como os outros autores, que a
histria de Atenas contada tendo como encerramento a Paz de Antlcidas, em 386 a.C.
(245d6-246a1). Como no aparecem fatos posteriores, basta-lhe para concluir que o
momento da enunciao do discurso pode ser considerado como o momento
imediatamente posterior a esse acordo de paz.
Henderson assinala que naturalmente as Guerras Prsicas aparecem, no
Menxeno, como uma luta pela liberdade (239d-241e), mas que o resto da histria de
Atenas deliberadamente distorcida para que se possa construir uma viso mais nobre
do passado da cidade, e que o Menxeno exagera na tendncia do discurso fnebre de
reivindicar para Atenas todo o crdito nas guerras contra os persas, distorcendo a
histria: poucos de seus fracassos so admitidos. O autor atenta, ainda, para o fato de
que devemos ser cautelosos para no tomar como erros deliberados aqueles erros
menores que se do devido ou confiana na memria ou necessidade de simplificar a
narrativa em prol de sua vivacidade.18 De todo modo, segundo Henderson (1975, p. 38),
18 Charles Kahn (1963, p-p. 224-5) atenta para a mesma questo:
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no se pode considerar todas as inexatides histricas no Menxeno como propositadas
- pois algumas omisses podem ter outras razes, como o prprio desconhecimento de
Plato acerca do fato com exatido -, com exceo das trs principais mencionadas por
Kahn (1963, p. 225): (a) a descrio da constituio poltica de Atenas como uma
aristocracia; (b) a omisso de todas as referncias ao Imprio do sculo V19; e (c) a
insistncia na hostilidade de Atenas para com os persas na Guerra de Corinto.
A primeira distoro (a) importante assinalada por Kahn (1963, p. 225)
evidencia o fato de Scrates descrever o regime poltico ateniense como uma
aristocracia, em que as pessoas conferem postos e cargos de governo aos que parecem
ser em cada caso os melhores (238d6); sua igualdade de nascimento os impele a buscar
tambm a igualdade pela lei, e a no se submeterem uns aos outros por nenhuma razo,
a no ser pela reputao de virtude e prudncia. (239a-36). Sobre o uso reiterado do
verbo nessas passagens sobre a constituio poltica de Atenas, Kahn (p. 226)
assinala:
The repeated use of in this passage on the constitution is clearly intentional and has
been interpreted as evidence of the sly insincerity of Plato's praise. But the theory of
rhetoric expounded in the Gorgias is a better clue to Plato's intention than modern
suspicions of satire or caricature. Plato does play with Thucydides' formulas here, but the
intended effect is not primarily comic. That is clear from Plato's principle of selection: he
has chosen just those features of the Athenian constitution which point, or can be twisted a
bit in order to point, in the direction of Plato's own political aspirations.
Kahn no enxerga este ponto como uma pardia, mas sim como apenas uma
tendncia protrptica. A nfase em questes referentes ao verbo aponta para as
deficincias (do ponto de vista platnico) at mesmo das melhores caractersticas da
Constituio de Atenas; mesmo onde a eleio conforme o mrito (por exemplo, para
The minor misstatements of fact in the Menexenus call for no comment: the Athenian
public did not expect a high level of accuracy; the orator relied upon his memory and
was always ready to simplify a narrative for the sake of vividness or of higher praise.
For example, Plato ignores the role of the Plataeans at Marathon and states that no Greek
city offered to send aid except Sparta. Such inaccuracies have been qualified as "flagrant
lies" and seen as clear proof of satirical intent. Similar misstatements of fact in the
Menexenus only show that it is a funeral oration, and not a work of historical research. It is
not in such details but in the larger distortions that a conscious intent must be looked for.
19 Pode-se notar, pelo que Henderson observa (1975, p. 40), que no h nenhuma tentativa de explicar as
origens da Guerra do Peloponeso (242c), presumivelmente porque isso demandaria referncias ao Imprio
ateniense.
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generais), os que governam so aqueles considerados os melhores pela populao, no
necessariamente aqueles que de fato so melhores:
Enquanto uns chamam este regime de democracia, outros o chamam conforme lhes apraz;
mas , na verdade, uma aristocracia com a aprovao da maioria. Pois reis ns sempre
tivemos; eles o so ora por sua linhagem, ora por eleio. Mas o poder da cidade , na
maior parte das vezes, da maioria, que concede as magistraturas e a autoridade aos que
parecem ser em cada caso os melhores; (238d1-7)
, , ,
. :
, :
, .
Essa descrio da constituio democrtica, assim como o relato que encobre
todos os erros cometidos por Atenas na Guerra do Peloponeso, considerada irnica
por Kahn, mas de uma ironia socrtica num sentido real: no em sua forma, j que
Scrates no orador, mas em sua proposta. A ironia composta para levar o cidado
ateniense para fora de sua auto-admirao complacente, para coloc-lo num estado
mental mais crtico, oferecendo-lhe um vislumbre da socrtica, pedindo-lhe,
indiretamente, para considerar por um momento qual o verdadeiro mrito que
realmente permite que um homem governe.
Quanto ao segundo item (b), Kahn (1963, p. 226) acredita que a razo pela qual
Plato no trata do Imprio Ateniense justamente o fato de ele no ter elogios
poltica imperialista; logo, sendo a orao fnebre campo de elogio, seria imprprio
atacar Atenas nesta ocasio. Sua escolha, portanto, silenciar a esse respeito. Outra
explicao a essa questo dada por Henderson (1975, p. 46):
But another explanation - one consistent with the view that what Plato is attacking is the
pretentiousness of Athenian political oratory - is possible even here; loss of her empire was
a sore point in 386 BC; to mention that empire, except in a roundabout way, would have
been to admit the disaster of its loss. And, as Plato knew only too well, Athenian oratory
tended to avoid mentioning uncomfortable truths.
Por fim, a terceira maior discrepncia apontada por Kahn no relato histrico
presente no Menxeno a nfase dada hostilidade de Atenas para com os persas no
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contexto da Guerra de Corinto. Aqui a questo da declarao histrica falsa
inseparvel do prximo item da lista (c): o bvio anacronismo em mencionar a Paz de
Antlcidas, que data de 386 a.C., num discurso atribudo a Scrates e Aspsia:
The question now is not one of bygone history but of Athenian policy in the preceding eight
to ten years, and of the moral and political choices confronting Athens in 386 B.C. It is
here, and in the immediately following address of the dead warriors to their sons, that Plato
speaks most vividly and directly to his fellow citizens; and it is here, I suggest, that the real
meaning of the speech must be found. The Menexenus will then be seen essentially as an
almost Demosthenic appeal to the Athenians of 386 to prove themselves worthy of the
noblest traditions of their city. Plato does not shrink before the anachronistic reference,
since without it the appeal could not be clearly addressed to his contemporaries. It would be
no exaggeration to say that the anachronistic reference to the treaty of 386, even more than
the echoes of Thucydides and the satirical mention of Pericles, gives the key to the entire
speech. (KAHN, 1963, p. 226-7)
Plato deixa claro na introduo ao dilogo (234c-235d) que as oraes fnebres
exageram em seu elogio a Atenas, e no discurso ele demonstra essa tendncia. No
Menxeno, as crueldades atenienses so idealizadas, enquanto as conquistas e vitrias
dos aliados e dos inimigos so minimizadas. Quanto a essas inexatides menos
expressivas, Henderson (1975, p. 39) as separa das distores mais significativas, e
acredita que alguns dos erros histricos do Menxeno podem ser desinteressados, mas
outros so muito numerosos e muito crassos para serem considerados dessa maneira.
Plato reserva toda a glria das Guerras Prsicas para Atenas e, conforme
assinala Henderson (1975, p. 39-40), distorce a histria de tal maneira que uma
demonstrao de seus erros comparada com os outros oradores ir corroborar para que
se considere a distoro como deliberada. Temos, por exemplo, o fato do Menxeno no
mencionar as Termpilas; Plato deliberadamente, ao que parece, se restringe a honrar
Atenas. O fato de que a valentia dos espartanos nas Termpilas mencionada nas outras
oraes fnebres que lidam com as faanhas dos ancestrais em detalhes deve mostrar
que a omisso de Plato deliberadamente contrria ao procedimento normal.
Henderson afirma tambm que, no Menxeno, Plato fez da expedio Siclia
um exemplo de (243a3), minimizando o desastre dessa forma. Plato distorce
a histria para fazer os desastres parecerem desmerecidos e frutos do acaso, de uma
possvel m-sorte. O tratamento do resto da guerra do Peloponeso igualmente
enganoso. Enquanto ele se refere batalha naval no Helesponto (243a), onde em um dia
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os atenienses capturaram todas as naus inimigas, no h meno ao desastre de
Egosptamos, que finalmente fez Atenas sucumbir. A derrota no admitida em
nenhum momento. Os menores erros podem at no ter tanta importncia; o que
realmente assombroso para Henderson, no entanto, a declarao feita por Plato em
243d 1-2:
vencemos no apenas aquela batalha naval, mas tambm o resto da guerra.
, :
Parece, num primeiro momento, no haver sentido nessa distoro, visto que
Plato admite, na seqncia (245d9-246a1), que Atenas perdeu a guerra. Parece que
Plato est deliberadamente reconstruindo a histria ao demonstrar que ela foi derrotada
apenas por dissenses internas: Atenas foi responsvel pela sua prpria derrota, e seus
adversrios no tm mrito nem mesmo por seus fracassos.
Henderson trata tambm da exortao de Scrates, dizendo que a ltima seo
do discurso, que consiste na mensagem dos mortos (246d-248d7) e na exortao
adicional de Scrates (248d-249c10), parece ter um tom diferente. Haveria, assim, a
apropriao dos elementos da exortao em favor de uma determinada postura
defendida pela personagem Scrates. Embora possa ser em parte uma pardia da
consolatio tradicional ao fim dos epitfios20, a exortao parece servir, na verdade, para
refletir as ideias genunas de Plato21. Essa parte do discurso, portanto, no apresenta
uma pardia propriamente, mas uma apropriao dos elementos exortativos, servindo a
uma concepo de retrica que contribua para a promoo da virtude dos cidados.
Segundo o autor (1975, p.45), possvel encontrar elementos em todas as sees para
embasar uma interpretao do discurso como um ataque oratria, ainda que com um
tom diferenciado em cada uma delas.
20 Cf. Thuc. 2.46; Lisias, Epit. 71-80; Hiprides, Epit. 41-43; Demstenes, Epit. 37. 21
Dean-Jones (1995, p. 52) afirma que a orao fnebre presente no Menxeno no se trata
absolutamente de um discurso de Aspsia ou de qualquer outro orador, mas sim de um discurso
tipicamente socrtico, sobretudo a ltima parte, a exortao aos sobreviventes: this part of the speech is recognizably Socratic in tone, exhorting the living to virtue in terms which recall the theory of the Unity
of the Virtues. Even those scholars who claim that any similarity to Socratic or Platonic philosophy is
illusory recognize a change in tone in the consolatio. The problem then is to explain how Plato expected
his readers to recognize the first and second parts of the same dialogue as rhetorical satire and serious
protreptic respectively. The answer lies in appreciating the significance of the anachronism and its
position in the oration, and in correctly identifying Socrates' interlocutor in the frame of the oration.
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possvel concluir, sobretudo a partir do artigo de Henderson, que nenhuma
outra orao suprstite compreende um nmero to grande de eventos histricos quanto
a de Plato; nenhuma pode rivalizar com o Menxeno tampouco no nmero ou grau de
erros, omisses e distores. Plato insiste na virtude de Atenas no passado, distorcendo
deliberadamente a histria para mostrar seus questionamentos. A reviso da histria
ateniense e a exaltao e criao - das faanhas em detrimento dos reveses no
ocorrem apenas pelo fato de a orao fnebre no ser lugar de celebrar desastres: a
prpria escolha do gnero e o tratamento dado sua forma e ao seu contedo parecem
fazer parte do intuito platnico de apresentar as deficincias do gnero retrico e, por
fim, demonstrar que possvel utilizar as estruturas do discurso fnebre em prol de uma
exortao virtude e busca pela filosofia.
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CAPTULO 4
Anlise Comparativa dos Discursos Fnebres
nas Obras de Plato e Tucdides
Tratamos, no captulo anterior, dos problemas relativos aos anacronismos e s
distores que permeiam o Menxeno. No entanto, h ainda um outro tpico de extrema
importncia no estudo da orao fnebre atribuda a Scrates: sua ligao com o
discurso presente na Histria da Guerra do Peloponeso de Tucdides, atribudo a
Pricles. Embora apresente pontos de contato tambm com os outros discursos fnebres
que restaram, o Menxeno parece estabelecer uma conexo particular com a orao de
Pricles por diversos motivos. Tal conexo tem sido observada nos estudos a respeito
do dilogo.
Primeiramente, faz-se necessrio tecer consideraes pertinentes acerca da obra
de Tucdides, mais especificamente acerca da construo da figura de Pricles ao longo
do texto. A respeito da vida de Pricles, Harvey Yunis (1996, p. 63) ressalta que
dispomos de informaes e relatos acerca de seus feitos que nos permitem vislumbrar
suas posies polticas e sua maneira de exercer o poder. Embora se possa inferir, em
algumas ocasies, qual a posio poltica de Pricles, ele no deixou nenhum material
escrito22, o que nos impede de saber ao certo de que maneira se dirigia aos atenienses ou
o que de fato discursou. Hornblower (2003, p. 295) tambm toca na questo da
autenticidade:
The essential difficulty, however, is one which affects all the speeches in Thucydides to a
greater or lesser degree, the question of authenticity. Are we to think of the speech as a
Thucydidean invention in which case the supposed novelties cannot be laid at the door of
the historical Pericles or as a record of what Pericles actually said?
Yunis (1996, p. 61) afirma que escrever um relato da guerra permitiu a
Tucdides apresentar seu modelo de retrica poltica. Ele trata os discursos pblicos
presentes na obra como um meio de o autor mostrar sua viso sobre a retrica. Para ele,
parece haver, paralelamente funo de manter certo rigor histrico, a inteno de
22 Yunis, 1996, p. 64: A few quotations or paraphrases from his speeches had occasionally been remembered and written down by someone else after a speech was delivered; eight such remembered
fragments have survived from atiquity.
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construir um projeto, uma ideia de democracia. Neste momento, o autor recorre
Plato:
we do not expect Plato to be historically accurate and we do not care whether he is or not;
we want to understand how the arguments contribute to Platos political-rhetorical theory,
which may, it is true, involve some historical knowledge. Clearly Thucydides is a historian
in a way that Plato is not; but on the subject of political rhetoric Thucydides too can be
treated primarily as a thinker for whom history is raw material to be shaped in the
presentation of a coherent theory. (YUNIS, 1996, p. 61)
Yunis demonstra que Tucdides, de certa maneira, subverte a tradio
estabelecida: no segue risca a opinio anti-democrtica. Ao invs de seguir esta
comum rejeio ao modelo poltico, ele defende Pricles e suas decises, e culpa os
lderes democrticos posteriores a Pricles - e suas decises - pelos desastres que
acometeram os atenienses:
Thucydides declares a turning point in Athens fortunes after Pericles death (2.65.5-7):
Athens reached the height of her greatness under Pericles leadership; his policy for
conducting the war was sound, but after his death the Athenians abandoned that policy, and
pursuing private goals rather than the public good they endagered the polis. Thucydides
then delivers the argument concerning political leadership, asserting a definitive split
between Pericles and the succeding politicians (2.65.8-10). (YUNIS, 1996, p. 67)
Tucdides, ao anunciar a morte de Pricles, declara que, naquele momento,
houve uma mudana na sorte ateniense. Ele defende a postura poltica de Pricles e
afirma que, aps sua morte, os governantes no foram capazes de manter suas polticas,
levando em considerao os interesses pessoais ao invs dos pblicos, prejudicando,
portanto, a cidade. Tucdides ento assegura a diferena existente entre a poltica de
Pricles e a dos seus sucessores. Cabe a reproduo do trecho todo, para que possamos
ter em mente como Tucdides se refere a Pricles enquanto governante:
Com efeito, enquanto Pricles esteve testa da cidade em tempo de paz, seguiu uma
poltica moderada e a manteve segura, e foi sob seu governo que Atenas atingiu o auge de
sua grandeza; depois, quando comeou a guerra, parece que ele estimou realisticamente a
magnitude da fora da cidade. Pricles sobreviveu dois anos e seis meses ao incio da
guerra; depois de sua morte foi ainda mais admirado pelo valor de suas previses quanto
mesma. De fato, ele havia aconselhado os atenienses a manterem uma poltica defensiva, a
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cuidarem de sua frota e a no tentarem aumentar o seu imprio durante a guerra. Eles,
porm, agiram contrariamente a tudo isto e, mais ainda, em assuntos aparentemente alheios
guerra foram levados por ambies pessoais e cobia a adotar polticas nocivas a si
mesmos e aos seus aliados; enquanto produziram bons resultados, tais polticas trouxeram
honras e proveito somente a cidados isolados, mas quando comearam a fracassar foram
altamente prejudiciais a toda a cidade na conduo da guerra. A razo do prestgio de
Pricles era o fato de sua autoridade resultar da considerao de que gozava e de suas
qualidades de esprito, alm de uma admirvel integridade moral; ele podia conter a
multido sem lhe ameaar a liberdade, e conduzi-la ao invs de ser conduzido por ela, pois
no recorria adulao com o intuito de obter a fora por meios menos dignos; ao
contrrio, baseado no poder que lhe dava a sua alta reputao, era capaz de enfrentar at a
clera popular. Assim, quando via a multido injustificadamente confiante e arrogante, suas
palavras a tornavam temerosa, e quando ela lhe parecia irracionalmente amedrontada,
conseguia restaurar-lhe a confiana. Dessa forma Atenas, embora fosse no nome uma
democracia, de fato veio a ser governada pelo primeiro de seus cidados23. Seus sucessores,
todavia, equivalentes uns aos outros mas cada um desejoso de ser o primeiro, procuravam
sempre satisfazer aos caprichos do povo e at lhe entregavam a conduo do governo. Por
se tratar de uma grande cidade no comando de todo um imprio, muitos erros resultaram
dessa atitude, especialmente a expedio Siclia, cujo fracasso se deveu menos a um erro
na apreciao das foras contra as quais os atenienses iriam combater do que
incompetncia daqueles que a ordenaram; estes, com efeito, ao invs de tomarem medidas
adequadas de apoio s primeiras tropas enviadas, entregaram-se a intrigas pessoais com o
objetivo de obter o comando do povo, e, conseqentemente, alm de cuidarem das
operaes militares com menos energia, pela primeira vez introduziram na cidade a
discrdia civil. Apesar de tudo, mesmo depois do desastre na Siclia, onde perderam no
somente seu exrcito mas tambm a maior parte de sua frota, e no obstante as dissenses
reinantes na cidade, os atenienses ainda enfrentaram durante dez anos os inimigos que j
tinham, reforados ento pelos sicilianos, mais a maior parte de seus antigos aliados, ento
revoltados, e logo depois Ciros, filho do Rei, que se juntou aos peloponsios e lhes
forneceu dinheiro para a sua frota, e s foram vencidos por causa das desavenas pessoais
23 Esta passagem pode se tratar de um possvel ponto de contato com a maneira como o Scrates
platnico trata a democracia em sua orao fnebre:
Enquanto uns chamam este regime de democracia, outros o chamam conforme lhes apraz;
mas , na verdade, uma aristocracia com a aprovao da maioria. Pois reis ns sempre
tivemos; eles o so ora por sua linhagem, ora por eleio. Mas o poder da cidade , na
maior parte das vezes, da maioria, que concede as magistraturas e a autoridade aos que
parecem ser em cada caso os melhores; (238d1-7)
, , ,
. :
, :
, .
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entre seus dirigentes em meio s dissenses internas que os levaram runa. No podiam
ter bases mais slidas as afirmaes de Pricles ao tempo de suas previses no sentido de
que sua cidade poderia vencer facilmente a guerra contra os peloponsios sozinhos. (Thuc.
2.65-66)
Neste excerto, se delineia, em linhas gerais, a imagem da figura poltica de
Pricles que Tucdides pretende transmitir a seus leitores. Para Yunis, os trs discursos
atribudos a Pricles presentes na obra de Tucdides funcionam como formas de reiterar
tais opinies. O autor apresenta uma descrio de cada um dos discursos e os distingue,
de modo a tentar compreender de que maneira o autor constri a figura de Pricles:
In comparison with other Thucydidean speeches, those attributed to Pericles reveal few
stylistics distinctions that could by themselves define their ostensible power to instruct.
Rather, Thucydides notion of instructive rhetoric is determined primarily by political
function. Pericles speeches form a coherent group, demonstrating under a variety of
circumstances the power of instructive rhetoric to render the demos capable of mature,
conscientious, consistent decision-making. (YUNIS, 1996, p. 77)
Adiante, Yunis (1996, p. 77) afirma que Tucdides utiliza o primeiro discurso
(1.140-44) para retratar uma democracia eficiente, e o prprio contexto em que
localizam-se as palavras de Pricles permite que o autor apresente o orador da maneira
como lhe parece ser adequada:
The situation is formally uncomplicated: the polis is about to decide its policy on a clearly
recognized, basic question: how should the Athenians respond to Spartan ambassadors who
are demanding concessions? The task facing the rhetor is likewise formally uncomplicated
explain the demos the policy that he has devised as best serving Athens interests and
persuade them to adopt it. (...) An Assembly convened for the purpose described by
Thucidides creates the opportunity to introduce Pericles as the authoritative rethor at a
momento of high drama and to display him adressing the question comprehensively and
conclusively.
O segundo discurso de Pricles presente em Tucdides justamente a orao
fnebre (2.35-46). Yunis (1996, pp. 79-80) o caracteriza como sendo o premente
exemplo de retrica poltica instrutiva na literatura grega, e afirma:
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Pericles uses the occasion to impart (...) a lesson that is unpleasant at all times and
especially harsh to some modern sensibilities but nevertheless fundamental for ancient
political life: the citizens must be ready to sacrifice their lives for the polis. (...) Pericles
argues that the Athenians must be ready to die not merely in defense of the polis - an
unexceptional demand but for its greater glory; and in typical Athenian manner he uses a
public speech addressed to all citizens to convince them of the absolute nature of that
obligation.
Por fim, o terceiro discurso tratado por Yunis (1996, p. 83) como sendo o
resultado do curso de eventos iniciados pelo primeiro discurso:
Having earlier displayed Pericles smoothly instituting the war policy under optimal
circumstances, Thucydides now displays him struggling to revive it in the midst of crisis;
Thucydides account would not have been complete had either case been lacking. In the
ideal Athens of the funeral oration, steady democratic conviction had been posited as a
product of instructive rhetoric (II.40.3); that is precisely what is called into question when
the Athenians are on