2014 09-03 - ler aprender gn 3 ceb - depois da tempestade, vem a bonança clara loureiro, 9ºc

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Depois da tempestade, vem a bonança Há muito tempo, antes da formação dos continentes, dos países e dos reinos, havia quatro pequenos conjuntos de arquipélagos: Norte, Sul, Este e Oeste. Cada arquipélago era constituído por pequenas ilhas, que governadas independentemente formavam reinos. Era no arquipélago Norte que se encontrava o mais magnífico e invejado reino de todos. Tarsília era a mais bela e próspera terra conhecida. Dos seus campos verdejantes, todo o tipo de culturas se produziam. À beira do rio e do mar, nunca faltaram peixes. Na floresta e nos prados, havia todo o tipo de animais, e assim, durante muitos anos, se viveu muito bem em Tarsília Tarsília mantinha alianças com as outras ilhas de Norte, e sempre que alguém da aliança se encontrasse em apuros, todos os aliados tinham o dever de intervir. A certa altura, o reino vizinho entrou em guerra e, o rei James, dotado de uma coragem infinita e de uma bondade enorme, partiu para a guerra com o exército tarsiliano. Sete meses se passaram e a guerra findou. A ajuda dos tarsilianos foi indispensável para a vitória dos vizinhos, mas tal contribuição abalou por completo Tarsília. O rei James falecera na batalha final e deixara o trono entregue à sua mulher até que o seu filho Thomas atingisse a maioridade. Dez anos se passaram e o dia esperado por todo o país chegou. Agora com dezoito anos de idade, o príncipe Thomas foi coroado rei de Tarsília. Toda a gente gostava de Thomas. Era um jovem alegre, sempre animado, dotado da maior das belezas, e era acima de tudo muito bondoso. Com o melhor dos reinos para governar, muitas esperanças foram depositadas no jovem príncipe, durante toda a sua vida e, quando finalmente chegou o seu aniversário, todo o povo festejou alegremente a coroação do novo rei. Enquanto o seu pai ainda era vivo, Thomas sabia que, quando fosse coroado, queria ser exatamente como ele. Sempre admirara a sua coragem e a sua bondade, mas o que mais queria era ser adorado da maneira como o pai o era. No segundo em que foi nomeado rei, Thomas decidiu que todo o seu reinado teria como único objetivo assegurar uma vida cheia de regalias e vantagens a todos os tarsilianos. Todos os meses, era organizado um banquete exuberante, para o qual o rei convidava todos os seus súbditos, seguido de um baile no palácio. Mensalmente eram também distribuídas certas quantias de dinheiro e de mantimentos para que todo o reino tivesse o conforto assegurado. O rei nunca exigia nada em troca, fazia tudo por boa vontade e era por isso que todo o povo o adorava. Meio ano passou e chegou então o rigoroso inverno. Após poucos dias, já o reino estava totalmente alterado. Nunca Tarsília fora fustigada por tanto frio. Os campos ficaram cobertos de neve e as plantações ficaram congeladas. Os animais e os peixes fugiram para sítios mais quentes, pois se ali continuassem morreriam ao frio.

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Depois da tempestade, vem a bonança

Há muito tempo, antes da formação dos continentes, dos países e dos reinos, havia quatro pequenos

conjuntos de arquipélagos: Norte, Sul, Este e Oeste. Cada arquipélago era constituído por pequenas ilhas,

que governadas independentemente formavam reinos. Era no arquipélago Norte que se encontrava o mais

magnífico e invejado reino de todos.

Tarsília era a mais bela e próspera terra conhecida. Dos seus campos verdejantes, todo o tipo de

culturas se produziam. À beira do rio e do mar, nunca faltaram peixes. Na floresta e nos prados, havia todo o

tipo de animais, e assim, durante muitos anos, se viveu muito bem em Tarsília

Tarsília mantinha alianças com as outras ilhas de Norte, e sempre que alguém da aliança se

encontrasse em apuros, todos os aliados tinham o dever de intervir. A certa altura, o reino vizinho entrou em

guerra e, o rei James, dotado de uma coragem infinita e de uma bondade enorme, partiu para a guerra com o

exército tarsiliano.

Sete meses se passaram e a guerra findou. A ajuda dos tarsilianos foi indispensável para a vitória dos

vizinhos, mas tal contribuição abalou por completo Tarsília. O rei James falecera na batalha final e deixara o

trono entregue à sua mulher até que o seu filho Thomas atingisse a maioridade.

Dez anos se passaram e o dia esperado por todo o país chegou. Agora com dezoito anos de idade, o

príncipe Thomas foi coroado rei de Tarsília.

Toda a gente gostava de Thomas. Era um jovem alegre, sempre animado, dotado da maior das

belezas, e era acima de tudo muito bondoso. Com o melhor dos reinos para governar, muitas esperanças

foram depositadas no jovem príncipe, durante toda a sua vida e, quando finalmente chegou o seu aniversário,

todo o povo festejou alegremente a coroação do novo rei.

Enquanto o seu pai ainda era vivo, Thomas sabia que, quando fosse coroado, queria ser exatamente

como ele. Sempre admirara a sua coragem e a sua bondade, mas o que mais queria era ser adorado da

maneira como o pai o era. No segundo em que foi nomeado rei, Thomas decidiu que todo o seu reinado teria

como único objetivo assegurar uma vida cheia de regalias e vantagens a todos os tarsilianos.

Todos os meses, era organizado um banquete exuberante, para o qual o rei convidava todos os seus

súbditos, seguido de um baile no palácio. Mensalmente eram também distribuídas certas quantias de dinheiro

e de mantimentos para que todo o reino tivesse o conforto assegurado. O rei nunca exigia nada em troca,

fazia tudo por boa vontade e era por isso que todo o povo o adorava.

Meio ano passou e chegou então o rigoroso inverno. Após poucos dias, já o reino estava totalmente

alterado. Nunca Tarsília fora fustigada por tanto frio. Os campos ficaram cobertos de neve e as plantações

ficaram congeladas. Os animais e os peixes fugiram para sítios mais quentes, pois se ali continuassem

morreriam ao frio.

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O povo estava apavorado. Não se tinha conhecimento de nenhum inverno que tivesse deixado

consequências tão devastadoras para o reino e nem o próprio rei sabia bem o que havia de fazer. Mas

entretanto, lembrou-se de que nas reservas do palácio se encontravam todos os excedentes da produção

agrícola, o que daria para sustentar a população até conseguir alguma ajuda dos países vizinhos.

O rei foi dirigido até às reservas, porém apanhou uma grande desilusão. Os alimentos que lá se

encontravam não sustentariam todo o reino mais do que um mês, e ainda agora o inverno começara.

Thomas fechou-se no seu quarto e pediu para que ninguém o incomodasse. O rei estava intrigado com

a situação. Era estranho que numa terra como a de Tarsília, onde os invernos sempre foram tão amenos,

fizesse tanto frio e nevasse tanto. Mas mais do que intrigado, o rei sentia-se culpado. Se o rei não tivesse

dado todos aqueles banquetes e todas aquelas festas, o reino teria guardado muitos sustentos e teria

poupado muito dinheiro. Tinha saudades do pai e, naquele momento, presumia que todo o reino tivesse,

porque, se fosse ele a governar, nada disto estaria a acontecer.

As horas passaram e o rei, com a consciência ainda mais pesada que as camadas de neve que

cobriam o reino, acabou por adormecer. Enquanto dormia, apareceu-lhe em sonhos uma figura feminina que

para ele caminhava. Naquela noite, sonhou com a mulher mais bonita que vira em toda a sua vida. Os seus

cabelos brilhavam tanto como os raios de sol, os seus olhos eram mais azuis que o mar e ostentava um

sorriso puro e verdadeiro. Trazia um vestido comprido, todo ele adornado de flores verdadeiras e à sua volta

voavam várias borboletas coloridas. Caminhava graciosamente, como se estivesse a dançar. Há medida que

se aproximava, o rei ia ficando tanto mais nervoso como mais encantado.

Ao aproximar-se do rei, a mulher não pôde deixar de reparar na sua expressão assustada, pelo que

decidiu começar ela a falar.

- Provavelmente não sabe quem eu sou, mas eu sei quem tu és, Thomas.

- Creio que nunca nos encontrámos, eu ter-me-ia lembrado. – respondeu o rei muito intrigado.

- Sou Natura, a deusa ancestral de Tarsília e vim em auxílio ao teu reino. Muito antes de os teus

antepassados povoarem esta terra, já eu era por ela responsável. A tarefa que me foi proposta era apenas

manter o equilíbrio natural em todo o reino, de modo a que este fosse habitável. No dia em que os teus

antepassados cá chegaram, voltei para o pé dos outros deuses. Antes de partir, tive que jurar que sempre

que o reino precisasse de mim eu ajudaria. Há muitos anos que já não venho cá, mas recentemente tomei

conhecimento da vossa situação e aqui estou eu.

O rei permaneceu calado, durante algum tempo. Então, as lendas sobre a misteriosa deusa protetora

eram verdadeiras. Nunca pensara na hipótese de Natura existir mesmo, pois não seria de todo o primeiro

mito que ouvia. Quando estava mesmo para responder, o rei acordou.

Acima de tudo, o rei ficou desapontado. Como era possível um sonho parecer tão real? De qualquer

maneira, é escusado pensar nos sonhos depois de estarmos acordados. O rei levantou-se da cama, calçou

os chinelos, vestiu o roupão e afastou as cortinas da janela. Não podia acreditar. As nuvens, a neve e o vento

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tinham desaparecido. Não, não era possível numa noite, toda a paisagem se ter alterado tão drasticamente. E

foi então que o rei se lembrou do sonho. Será que tudo aquilo tinha sido trabalho de Natura? Se calhar foi por

isso que o sonho pareceu tão real, se calhar o sonho tinha sido mesmo real.

Desceu as escadas apressadamente, pronto para tomar o seu pequeno-almoço e, mal se sentou na

mesa, foi informado pelo seu conselheiro que estava no portão do palácio uma jovem que dizia precisar

urgentemente de falar com o rei. Como era hábito seu, Thomas foi ao portão receber a visita e qual foi o seu

espanto quando viu ali, mesmo à sua frente, a deusa Natura, desta vez certamente real. Ao reconhecê-la,

mandou imediatamente que abrissem os portões e acompanhou-a até ao palácio.

Continuava bela, mas um tanto diferente. Ao contrário da noite anterior, trazia um vestido pobre, sujo e

todo esfarrapado. Para além disso, na noite anterior demonstrava um notável à vontade com o rei, mas agora

agia timidamente e raramente abriu a boca no caminho para o palácio. Mandou que lhe arranjassem o melhor

quarto e pusessem ao seu dispor tudo aquilo de que ela precisasse. Meia hora mais tarde, Natura encontrou-

se com o rei no seu escritório, já devidamente arranjada e com todo o seu esplendor restaurado.

- Desculpe, se teve que esperar por mim! – exclamou imediatamente o rei – Mas só há pouco tempo é

que acordei.

- O que importa é que me recebeu – respondeu Natura, com um sorriso amável nos lábios – Ainda se

lembra de mim?

- Como me poderia eu esquecer? Nunca um sonho me pareceu tão real e confesso-lhe que fiquei

desapontado, quando finalmente acordei. Contudo, quando abri a janela e pude observar as mudanças na

paisagem, uma alegria enorme invadiu o meu coração. O meu reino está a salvo graças a si. Estou-lhe

eternamente agradecido.

O rei não parava de sorrir e os seus olhos brilhavam continuamente. Mas, ao proferir estas últimas

palavras, tanto ele como a deusa ficaram de faces coradas.

- Fico realmente feliz por ver tanta determinação, mas o seu reino ainda não está a salvo – anunciou

Natura, agora menos sorridente – Eu posso ter restaurado o clima de Tarsília, mas não tenciono trazer de

volta o alimento. Vai ter que ser o seu povo a cultivar de novo. Mal habituados como estão, a ideia de ter que

trabalhar arduamente de novo não lhes deve agradar, mas a responsabilidade de os motivar é do Thomas. Se

tudo correr bem, brevemente os animais e peixes voltarão e Tarsília estará de novo em pleno equilíbrio.

- Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Prometo-o.

-Então, a minha missão aqui está completa. Boa sorte, Thomas! – proferiu Natura sorrindo.

Esta despedida tão repentina deixou o rei triste e dececionado. Toda a alegria que sentia anteriormente

transformou-se em tristeza, mal ouviu aquelas palavras.

- Por favor, fique! – suplicou o rei sem querer, assim que Natura atravessou a porta – Eu preciso de si,

quer dizer, o meu povo precisa de si. Não nos abandone!

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Ao ouvir estas palavras, Natura não pôde ficar indiferente. Também ela queria ficar, mas a sua forma

humana era temporária e teria eventualmente que voltar para o pé dos outros deuses. Todavia, como que por

magia, esqueceu as suas obrigações e, tentando não se mostrar nervosa, voltou-se para o rei e respondeu-

lhe:

- Ficar seria abusar da sua boa vontade.

- Mas a sua presença nunca seria um abuso – retribuiu repentinamente o rei, corando – Peço-lhe mais

uma vez que fique. Não nos faltam quartos vazios e nada me deixaria mais feliz do que ter a sua ajuda na

tarefa que me espera.

- Assim sendo, não vejo nada que me possa impedir de ficar.

E, explodindo de alegria, a rapariga saiu do escritório do rei.

Thomas passou o resto do dia radiante por poder hospedar Natura e esta, por sua vez, passou o dia

radiante por poder estar no palácio de Thomas.

No dia seguinte, mal acordou, o rei deixou um bilhete ao Horace, o seu mordomo, destinado a Natura.

Logo de seguida, dirigiu-se à vila, mais propriamente à casa de um grande amigo de infância, George Carter.

Entre muitos festejos e demonstrações de alegria por parte da família Carter, Thomas pediu ao amigo que

ficassem a sós. Disse-lhe que era um assunto importante e isso bastou para que os restantes abandonassem

de imediato a sala.

- Preciso da tua ajuda – começou Thomas – Como já deves ter reparado, a mudança de clima foi

drástica, mas depois eu explico-te isso. Hoje estou aqui para te pedir um favor, um grande favor

- Mas, Thomas, promete-me que me contas tudo depois, nunca foste de me esconder segredos. –

retorquiu George.

- Acontece que não é um segredo meu, se fosse, não hesitava em contar-te. O que eu queria era que

tu organizasses um grupo de agricultores e os orientasses para voltarem a cultivar

- Thomas, vê-se mesmo que já não visitas os campos há muito tempo. Sabes, é que já passou meio

ano desde que foste coroado. Logo, há meio ano que os agricultores pouco produzem.

- Mas a tempestade só se instalou no reino há umas semanas e agora já nem há sinais dela, não há

motivos para eles continuarem parados.

- O problema é que não foi a tempestade que os fez parar. O facto de terem sempre tudo sem terem

que fazer nada é que os deixou muito mal habituados.

- Tu achas que fui eu que fiz mal em tentar dar-lhes alguma qualidade de vida? Eu estava a tentar

ajudá-los.

- Não duvido das tuas intenções, porém agora eles esperam que tu arranjes uma solução.

- Mas eles são a minha solução! – gritou Thomas, já revoltado.

- Eu sei que sim, mas é a eles que tens que mostrar isso. – sugeriu calmamente o amigo.

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- Desculpa, exaltei-me, mas assim vai ser mais difícil remediar a nossa situação. Ouve, eu preciso que

reúnas mesmo um grupo de agricultores e mostra-lhes, por favor, que eles são a nossa única salvação.

- Mas os solos estão inférteis

-Não te preocupes, conheço alguém que pode acabar com esse problema. – declarou o rei, com um

sorriso esboçado nos lábios.

Quando chegou finalmente ao palácio, viu os campos de cultivo reais em grande movimento.

Aproximou-se para analisar melhor a situação, e avistou Natura e alguns dos seus criados a tratarem dos

campos.

- Não precisava de fazer isto, é uma hóspede! – exclamou o rei, radiante.

- Bem, já que vou aqui ficar, ao menos que faça alguma coisa útil.

Sem hesitar, também o rei pegou numa enxada e se juntou aos seus criados. Trabalharam o dia inteiro

sem parar, e ninguém se queixou, aliás, toda a gente gostou de ali estar. No entanto, os criados estavam

intrigados. Como é que com um dia de trabalho já se viam alguns rebentos a nascer da terra?! Parecia-lhes

impossível. Por outro lado, Thomas e Natura achavam a situação divertida e naquela tarde tornaram-se muito

mais cúmplices.

Natura já estava hospedada no palácio há pouco mais que uma semana, mas a jovem e o rei já se

tinham tornado grandes amigos e eram inseparáveis. Eis, então, que Thomas mandou que arranjassem a

sala de jantar para ele e para a convidada. Os criados estranharam a ordem, pois aquela mesa só era posta

em ocasiões muito especiais e todos notaram no rei um entusiasmo e uma alegria que não lhe conheciam. O

rei já nem sabia se estava a fazer tudo aquilo para lhe agradecer ou se para a impressionar.

Às oito horas em ponto, o rei encaminhou-se impacientemente para a sala de jantar. Teve que

aguardar um pouco pela chegada de Natura, mas mal a viu ao longe a descer a escadaria, toda a espera

pareceu insignificante. Trazia um vestido azul que pertencera à sua mãe em tempos e que combinava

perfeitamente com os seus olhos. “Como é bonita!” pensava para si o rei maravilhado. Naquela noite, Thomas

voltou a reviver o seu sonho com Natura. Sim, a maneira como ela caminhava para ele, lenta e

graciosamente, os seus cabelos de ouro esvoaçando, o seu sorriso verdadeiro… Apenas uma coisa mudara.

No seu sonho, ela tinha a capacidade de o intimidar, como se fosse um ser superior e, de facto, qualquer

deus é superior aos homens. Todavia, naquela noite, a jovem já causava nele outro efeito. Quando perto

dela, o rei ficava nervoso, mas não como no sonho. O respeito que outrora sentia por ela evoluíra para algo

maior. Enquanto dantes se sentia inferiorizado quando comparado a ela, agora sabia que estavam de igual

para igual. E o sorriso dela era capaz de afastar da mente de Thomas todos os problemas imagináveis. O rei

estava de facto apaixonado não pela deusa, mas sim pela humana em que Natura se tornara.

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O jantar correu melhor do que aquilo que ambos esperavam. Os jovens davam-se lindamente e nunca

se aborreciam. O sentimento era mútuo. Contudo, ambos o desconheciam. Mas essa doce incerteza era o

que tornava especial cada momento que passavam juntos.

Mal finalizaram a refeição, o rei decidiu mostrar à convidada a sua divisão favorita de todo o palácio: a

pequena varanda junto ao seu quarto, a que só ele tinha acesso. De lá viam-se os imensos bosques de

Tarsília, debaixo do céu estrelado. Era uma vista maravilhosa. O rei gostava de ir para lá, porque se sentia

em plena paz de espírito, quando tão perto da natureza.

Na varanda, o rei só tinha um pequeno sofá, onde se sentava a ler no verão, um guarda-sol e um

pequeno vaso, do qual por vezes até se esquecia.

Que bem que sabia a Natura estar tão perto da natureza. E que bem que sabia a Thomas estar tão

perto de Natura. Ficaram um tempo por ali e, quando finalmente ficaram sem assunto de conversa, a jovem

aproximou-se do pequeno vaso, no qual se encontrava um pequeno malmequer muito murcho. De seguida,

tocou-lhe e, como que por magia, a flor reergueu-se e voltou a ganhar vida. Bastou um sopro seu para a frágil

flor começar a dançar devagar e graciosamente. A transformação da flor era um espetáculo digno de se

assistir. Tão simples, mas tão belo. Thomas estava encantado, mas de Natura não se podia dizer o mesmo.

Pela primeira vez, o rei julgou detetar-lhe uma certa tristeza no olhar. Perguntou-lhe o que se passava, porém

ela permaneceu em silêncio e fingiu não ter ouvido nada. O problema com que naquele momento Natura se

deparava estava muito além da compreensão de Thomas.

Thomas, que colocava a felicidade da jovem à frente de tudo e de todos, entrou de novo no seu quarto

e, pelo que Natura conseguia ouvir, revirou todas as gavetas dos armários à procura de alguma coisa.

Quando voltou à varanda, tinha algo entre as mãos, algo que pela maneira como o rei lhe pegava devia ser

de grande valor.

Sentou-se no sofá junto à jovem e abriu as mãos, deixando assim o objeto descoberto. Era uma

pequena caixa de madeira, já muito envelhecida, com alguns pormenores dourados. Thomas fez sinal a

Natura para que a abrisse e a jovem, hesitando, assim o fez. Dentro da caixa estava uma flor feita de pedras

preciosas, com pétalas de várias cores. Ela ficou deslumbrada, pois aquela era a mais bela peça de joalharia

que alguma vez tinha visto.

- É para ti – declarou o rei – para quando estiveres triste.

- Não, eu não o posso aceitar – recusou incrédula a jovem.

- Não o aceito de volta. Por favor, faz-me a vontade e fica com ele para ti.

- Mas eu não tenho nada para te dar em troca.

- Quando oferecemos por boa vontade, não esperamos nada em troca – acrescentou Thomas – E tu já

me deste mais a mim do que eu alguma vez te poderei dar.

- A minha ajuda não foi nada, só fiz o que me compete. – disse Natura.

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- Acredita, salvaste-me em mais que um aspeto. – perante o silêncio da rapariga, o rei decidiu

prosseguir – A tua ajuda deu-me força e coragem para ajudar o meu reino devidamente, e é certo que agora

sou muito mais responsável e ponderado. Mas, ao que eu me referia realmente era ao facto de teres

despertado em mim sentimentos que nunca ninguém conseguira.

Ao acabar o discurso, Thomas estava envergonhado por se ter exposto assim e Natura, ao se

aperceber disso, não hesitou em o abraçar. E assim, nos braços um do outro ficaram durante algum tempo.

Delicadamente, Natura despediu-se do rei, desejou-lhe uma boa noite e subitamente se retirou. Porém,

Thomas ainda não estava com muito sono, pelo que decidiu ficar mais um pouco ali na varanda, na

companhia das estrelas brilhantes, do luar reluzente e da sua pequena flor encantada. Nunca se sentira tão

feliz em toda a sua vida, pois agora sabia que tanto ele como Natura sentiam o mesmo. Quando o cansaço já

começava a aparecer, o rei decidiu ir dormir também.

No dia seguinte, Thomas não pôde deixar de acordar com o barulho que se ouvia lá de fora. Ouvia-se

uma multidão agitada, mas principalmente alegre. Curioso como era, o rei vestiu o roupão e foi à janela para

ver o que se passava. Mal abriu as cortinas, pôde ver muitos dos seus súbditos reunidos no portão do

palácio. Contudo, continuava sem perceber o porquê, por isso desceu e foi ver o que se passava. Não foi

preciso pedir a alguém que lhe explicasse o que se estava a passar, bastou-lhe seguir a multidão. Depressa

descobriu a razão de toda a euforia.

Nos jardins e nos campos do palácio, mesmo naqueles que não tinham tido qualquer tipo de tratamento

e manutenção, tinham nascido árvores, flores, arbustos e todo o tipo de frutos e vegetais. George Carter e um

pequeno grupo de agricultores já se preparavam para se dedicarem de novo ao trabalho. Do palácio podiam-

se ver os cavalos a correr nos prados, os pássaros a sobrevoar o reino.

Tudo voltou a ser o que fora antigamente, não só no palácio, como em todo o reino de Tarsília.

Thomas, por sua vez, procurou Natura, mas não a conseguiu encontrar no meio da multidão. Sabia que

tudo aquilo acontecera por causa da sua magia, pois na noite anterior ele tinha visto aquilo de que ela era

realmente capaz de fazer. Mal podia esperar por lhe agradecer por tudo aquilo. Já que ela não parecia estar

lá fora, pediu a uma criada que a acordasse e que ela viesse ao escritório ter com ele. A criada obedeceu

imediatamente, e encaminhou-se ao quarto de Natura e, ao ver a ordem a ser cumprida, o rei dirigiu-se ao

escritório. O tempo passava, mas a jovem não aparecia. O rei começava a estranhar a sua ausência e então

decidiu ir ele próprio chamá-la.

Quando chegou ao corredor do quarto de Natura, viu vários criados à porta que, assim que viram o rei

a aproximar-se, ficaram de certo modo aterrorizados e rapidamente se afastaram da porta. Thomas, que

achava incomum este comportamento por parte dos criados que muito estimava, ficou intrigado, mas

lembrou-se que tinha ido até ali procurar Natura. À medida que se aproximava do quarto, os criados

afastavam-se dele e, quando finalmente abriu a porta do quarto da jovem, ele próprio ficou aterrorizado.

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O quarto estava vazio, mas perfeitamente arrumado. Era evidente que ninguém passara ali a noite. O

quarto era grande, no entanto não havia maneira nenhuma de Natura estar ali. Pediu que a procurassem, por

todo o palácio e por todas as redondezas e que o deixassem sozinho.

Fechou a porta e deitou-se na cama. Não sabia o que pensar e preferia nem sequer o fazer. Naquele

momento, estimava mais que ele próprio apenas o seu reino e Natura. Estava preocupado com ela, com

medo de a perder, pois perder algo que se ama é como perdermo-nos a nós próprios. Estar ali parado sem

fazer nada não o ajudava, por isso decidiu ir ele próprio procurá-la, mas não antes de revistar o quarto em

busca de algum sinal. Procurou por todo o lado e só quando abriu o armário é que encontrou algo de

relevante. Viu no fundo do armário, por debaixo dos outros vestidos perfeitamente alinhados e

impecavelmente engomados e em cima dos muitos sapatos de senhora, o vestido que Natura usara na noite

anterior. Hesitou em lhe pegar, porém, quando se conformou que a situação não podia piorar, agarrou-o e

esteve com ele nas mãos por breves segundos. O vestido estava amarrotado e perdera todo o encanto que

no dia anterior tivera. O rei atirou-o para a cama, pois já de nada aquele pedaço de tecido lhe servia. Mas,

quando o largou, reparou que de dentro do vestido saiu uma carta. Thomas pegou-lhe e começou a lê-la.

“Querido Thomas,

Eu sabia que ias acabar por encontrar esta carta. Deves estar a estranhar a minha partida repentina.

Sim, é verdade! Desta vez eu parti de vez, e dificilmente me vais voltar a ver. Já há algum tempo que eu

previa que a minha partida estava breve, e contra isso nada podia fazer. Pode parecer estranho, mas não me

estava destinado a mim decidir quando é que teria que deixar o teu reino. Até os deuses têm um superior, e a

minha superior é a Natureza.

O sonho que uma vez tiveste comigo era um aviso enviado pela Natureza de que terias que mudar a

tua atitude e a tua maneira de governar. Esse aviso só era para ser dado uma vez. O suposto era a Natureza

fazer a sua parte, que era dar-te todas as condições naturais que precisavas, mas a maneira de as

aproveitares cabia-te a ti. Depois dessa noite, nem era suposto voltares a ver-me mais nenhuma vez, mas a

Natureza teve outra ideia. Ela sabia que os humanos têm a tendência de abandonar as suas obrigações

habituais, quando têm o que querem, por isso lembrou-se de me enviar com uma nova missão. Desta vez, a

Natureza enviou-me com outra missão, mudar a tua maneira de ser para que, quando o reino já estivesse

salvo, tivesses todas as capacidades para o governar dignamente. Quando acabasse a minha missão, teria

que abandonar Tarsília.

Foi-me difícil aceitar esta tarefa, porque nunca acreditei que conseguiria alguma vez mudar a maneira

de ser, a essência de alguém. Mas, para vir ao teu reino, eu tive que mudar também. Tive que deixar de ser

uma deusa e tornar-me uma humana. No momento em que me tornei humana, experimentei algo novo. Pela

primeira vez na minha longa existência, eu senti e percebi que os sentimentos, sejam eles de tristeza ou de

alegria, não se podem evitar.

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A Natureza sabe tudo, prevê tudo. Antes de me mandar nesta tarefa, tinha previsto que me irias

acolher no dia em que cheguei ao palácio, mas nunca previu que esta experiência, que eu tive com os

sentimentos, iria ter tanto impacto em mim. Passados poucos dias, depois de te ter realmente conhecido, já

eras demasiado importante para mim e, pelo que sei agora, eu também já o era para ti. A minha missão foi

curta por este motivo apenas. O simples facto de te teres apaixonado por mim alterou-te, mas, apesar de

positivamente, não do modo que a Natureza previa. Por isso, ontem, antes do jantar, recebi uma carta de

outro deus a dizer que teria que te deixar nessa mesma noite.

Por isso é que, durante o jantar, a minha disposição não foi a melhor. Por piores que tenham sido as

notícias que eu tenha recebido, tu transformaste a noite de ontem na melhor da minha vida, não pela vista da

varanda que me mostraste, nem pelo amuleto que me deste, mas sim por me teres dado a conhecer os teus

verdadeiros sentimentos e me teres confirmado que o meu amor não tinha sido entregue à pessoa errada.

Por isso, sim, te estou eternamente grata.

Natura.”

Tudo fazia sentido agora. Naquele momento, a tristeza do rei transformou-se em alegria, a

preocupação em alívio e a dúvida em relação aos sentimentos da jovem certeza.

Mandou encerrar as buscas pela jovem e, calmamente, foi para a sua varanda. Foi então que viu que a

flor, que Natura encantara, se tinha alterado. Ainda se mexia, mas tinha mudado. A flor frágil e simples era

agora uma réplica exata da flor do amuleto que lhe tinha dado. E, dando graças por tudo aquilo que ela lhe

tinha feito a ele e ao seu reino, Thomas denominou aquele dia como dia de Natura e, todos os anos nesse

dia, os tarisianos passaram a plantar uma árvore em honra de Natura e da oportunidade que esta lhes deu a

todos de reconstruir o reino de novo.

Hoje em dia, esse dia naturalmente já não existe, mas temos algo parecido, a Páscoa que é a nossa

oportunidade anual para melhorarmos e para mudar a nossa vida. Sendo assim, tal como a Thomas, também

nos é dada a oportunidade de nos tornarmos melhores, de nos redimirmos dos nossos pecados e, em

harmonia, construir o nosso recomeço.

Clara Loureiro, nº 7, 9º C