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Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de História Regional (2013) – ISSN 2318-6208 DAS DERIVAS DO GRAFFITI ÀS (DE)MARCAÇÕES URBANAS DO IMAGINÁRIO Cláudia Mariza Mattos Brandão * * * * Esther Lorizolla Cordeiro * * * * RESUMO: O artigo tem por objetivo refletir sobre as (de)marcações do graffiti nas cidades contemporâneas, como fruto de derivas dos artistas grafiteiros. Nesse sentido, consideramos as propostas da Internacional Situacionista, movimento artístico e político fundado por Guy-Ernest Debord em 1957, cujas questões problematizavam a vida cotidiana e a relação entre arte e vida. Centradas no urbanismo, as ideias do grupo deslocaram-se com o tempo para as esferas políticas e revolucionárias, culminando com a ativa participação situacionista nos eventos de Maio de 1968 em Paris. Para o desenvolvimento de tal discussão utilizamos como âncora as ações da artista de rua Panmela Castro, que em suas derivas (de)marcou várias cidades ao redor do mundo, divulgando seus questionamentos acerca da violência contra a mulher. Enfocamos o graffiti como uma construção estética e discursiva, destacando a cadência narrativa dessas escritas manifestadas nos espaços urbanos. Temos aí estabelecida uma relação direta dos graffiti com a base do pensamento urbano situacionista, ou seja, a psicogeografia, a deriva e a ideia- chave do movimento, a “construção de situações”. Os situacionistas consideravam a deriva como uma técnica do andar sem rumo sob a influência dos cenários, na qual a observação ativa da urbe produziria a “arte total”, em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral. O espaço urbano pertence ao domínio da percepção, sendo que à Arte cabe traduzir a sensação de fragmentação, de efemeridade e de mudança caótica, introduzidas na vida cotidiana pela Modernidade. Neste contexto os discursos dos sujeitos grafiteiros, frutos de derivas criativas, dão visibilidade a questões filosóficas que encontram na cidade contemporânea seu écran privilegiado. Palavras-chave: Graffiti. Panmela Castro. Internacional Situacionista. Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista, é considerado uma das grandes referências do pensamento da segunda metade do século XX. Ele acreditava, e defendia veementemente, na ideia de que não basta ao pensamento buscar a sua realização, pois antes é preciso que a realidade procure o pensamento, crítico e reflexivo. E, nesse sentido, Debord considerava que a classe trabalhadora, já desde o século XIX herdeira da filosofia, era naquele momento, a * Doutora em Educação, Professora Adjunta do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (RS), pesquisadora do NEMEC – Núcleo de Estudos em Memória e Cultura, UPF/CNPq. [email protected] * Acadêmica do curso de Artes Visuais - Modalidade Licenciatura, pesquisadora do NEMEC – Núcleo de Estudos em Memória e Cultura, UPF/CNPq. [email protected]

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Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de H istória Regional (2013) – ISSN 2318-6208

DAS DERIVAS DO GRAFFITI ÀS (DE)MARCAÇÕES URBANAS DO

IMAGINÁRIO

Cláudia Mariza Mattos Brandão∗∗∗∗

Esther Lorizolla Cordeiro ∗∗∗∗

RESUMO: O artigo tem por objetivo refletir sobre as (de)marcações do graffiti nas cidades contemporâneas, como fruto de derivas dos artistas grafiteiros. Nesse sentido, consideramos as propostas da Internacional Situacionista, movimento artístico e político fundado por Guy-Ernest Debord em 1957, cujas questões problematizavam a vida cotidiana e a relação entre arte e vida. Centradas no urbanismo, as ideias do grupo deslocaram-se com o tempo para as esferas políticas e revolucionárias, culminando com a ativa participação situacionista nos eventos de Maio de 1968 em Paris. Para o desenvolvimento de tal discussão utilizamos como âncora as ações da artista de rua Panmela Castro, que em suas derivas (de)marcou várias cidades ao redor do mundo, divulgando seus questionamentos acerca da violência contra a mulher. Enfocamos o graffiti como uma construção estética e discursiva, destacando a cadência narrativa dessas escritas manifestadas nos espaços urbanos. Temos aí estabelecida uma relação direta dos graffiti com a base do pensamento urbano situacionista, ou seja, a psicogeografia, a deriva e a ideia-chave do movimento, a “construção de situações”. Os situacionistas consideravam a deriva como uma técnica do andar sem rumo sob a influência dos cenários, na qual a observação ativa da urbe produziria a “arte total”, em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral. O espaço urbano pertence ao domínio da percepção, sendo que à Arte cabe traduzir a sensação de fragmentação, de efemeridade e de mudança caótica, introduzidas na vida cotidiana pela Modernidade. Neste contexto os discursos dos sujeitos grafiteiros, frutos de derivas criativas, dão visibilidade a questões filosóficas que encontram na cidade contemporânea seu écran privilegiado.

Palavras-chave: Graffiti. Panmela Castro. Internacional Situacionista.

Guy-Ernest Debord (1931-1994), o fundador da Internacional Situacionista, é

considerado uma das grandes referências do pensamento da segunda metade do século

XX. Ele acreditava, e defendia veementemente, na ideia de que não basta ao

pensamento buscar a sua realização, pois antes é preciso que a realidade procure o

pensamento, crítico e reflexivo. E, nesse sentido, Debord considerava que a classe

trabalhadora, já desde o século XIX herdeira da filosofia, era naquele momento, a

∗ Doutora em Educação, Professora Adjunta do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (RS), pesquisadora do NEMEC – Núcleo de Estudos em Memória e Cultura, UPF/CNPq. [email protected] ∗ Acadêmica do curso de Artes Visuais - Modalidade Licenciatura, pesquisadora do NEMEC – Núcleo de Estudos em Memória e Cultura, UPF/CNPq. [email protected]

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década de 1960, legatária “da arte moderna e da primeira crítica consciente da vida

moderna”, sendo que “a criatividade liberada na construção de todos os momentos e

eventos da vida é a única poesia” reconhecível (BADERNA, 2002, p.56).

Em um dos documentos divulgado pelo Comitê de Ocupação da Universidade

Autônoma e Popular da Sorbone, datado de 16 de maio de 1968, durante as ações do

MAIO DE 681, encontramos uma lista de “SLOGANS PARA SEREM DIFUNDIDOS

POR TODOS OS MEIOS: em panfletos, falando em microfones, tiras de quadrinhos,

músicas, graffiti...” (BADERNA, 2002, p.131). A inclusão do graffiti como meio de

divulgação das palavras revolucionárias ressalta-o como expressão transgressora que

torna o cidadão grafiteiro um protagonista da história, da experiência participativa nas

cidades como antídoto à espetacularização, fruto da corporeidade dos sujeitos. Trata-se,

portanto, de assumir o corpo humano como resultado de acontecimentos, sentidos,

prazeres, expressões, valores e discursos, e do seu papel determinante na história das

ideias, pois a corporeidade implica na sua inserção num mundo significativo, em relação

dialética consigo mesmo, com os outros corpos expressivos e o mundo ao redor.

O conhecimento acumulado ao longo da história nos mostra que mais do que um

corpo existe uma corporeidade relacionada à união dos corpos biológico,

mental/psicológico, social, político e histórico. Somos seres em permanente interação

com o mundo em seu amplo sentido, e a complexidade dessa relação tem no graffiti

uma expressão única, fruto das ações criativas de corpos expressivos e transgressores,

muitas vezes anônimos.

Este artigo tem por objetivo refletir sobre as (de)marcações do graffiti nas

cidades contemporâneas, como fruto das ações de artistas de rua, assim como Panmela

Castro, que em suas derivas (de)marcou várias cidades ao redor do mundo, divulgando

seus questionamentos acerca da violência contra a mulher. Para tal discussão

consideramos as propostas da Internacional Situacionista, movimento artístico e político

fundado por Guy Debord em 1957, cujas questões problematizavam a vida cotidiana e

suas relações com a arte.

A crítica ao urbanismo, um dos fundamentos do pensamento situacionista, é uma

provocação à reflexão acerca das cidades como cenários para os espetáculos turísticos, 1 Foi um movimento que teve início com manifestações estudantis pedindo reformas no setor educacional francês. A explosão de revindicações estudantis evoluiu para uma greve de trabalhadores. Juntos, estudantes e trabalhadores promoveram a maior greve geral da Europa, com a participação de cerca de 9 milhões de pessoas. Como consequência, o presidente francês, general De Gaulle, renunciou um ano depois.

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dos quais a população não participa. Vendida como mercadoria, a cidade turística se

contrapõe ao seu ethos comunitário. A estrutura urbana apresenta-se como um sistema

comunicativo, que pode ser visto, lido e interpretado como matéria significante, onde os

objetos inseridos cotidianamente pelo homem constroem “intertextos visuais”, que se

apresentam como testemunhos de um tempo e espaço específicos. Temos aí a cidade

comunicando seu estilo particular de vida, o seu ethos.

Inserido no ritmo vertiginoso do cotidiano, o homem urbano lança sobre a

cidade um olhar reificador. Ele reconhece diariamente as trilhas que o conduzem a seus

objetivos imediatos, sem que necessariamente se aperceba que é parte integrante - e

pulsante - daquele espaço físico, com uma história representativa que somada à história

particular de cada indivíduo forma a história da cidade. A cidade que, como um espaço

político por excelência, representa o ideal ético da comunidade.

1. A cidade como eixo central do Espetáculo contemporâneo

No aforismo 34 do livro “A Sociedade do Espetáculo“ Debord anuncia: “O

espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (DEBORD,

2005, p.25), sendo que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação

social entre pessoas, mediada por imagens” (ibid., p.14). Logo, entender a cidade como

espetáculo é considerá-la a partir de uma imagem idealizada que não corresponde à sua

diversidade, só descoberta a partir da experiência de sua exploração física.

Os situacionistas colocam o conhecimento da cidade “sob o signo da exploração

psicogeográfica” (TACUSSEL in: GUTFREIND e SILVA, 2007, p.12), um termo que

indica tanto a natureza objetiva do espaço, assim como, “a observação dos efeitos do

meio geográfico sobre os comportamentos afetivos” (ibid., p.13). Tal pensamento nos

leva a considerar o urbano como um lugar especial para o lúdico, que frutifica das

ligações dinâmicas entre os sujeitos e os espaços.

Portanto, se pensarmos sobre a espetacularização das cidades contemporâneas, é

possível considerar que ela está diretamente relacionada ao declínio da experiência

física como prática cotidiana do cidadão com o contexto urbano, visto que:

O transeunte vive em estado de alerta, numa extrema atenção que visa, antes de tudo, à sua própria sobrevivência. Seu olhar não pode

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demorar-se em nenhum ponto do mundo que o circunda, pois poderá ser tarde demais: por isso ele não espera que aquilo que vê o olhe, não anima mais o inanimado. Decadência da aura, crise da experiência: o transeunte perde a memória e com isso, a identidade (OLIVEIRA e SANTAELLA, 1987, p. 107).

O caminhante percorre suas trilhas sem olhar para a cidade, mergulhado em seu

mundo particular, entrincheirado nos ônibus ou automóveis, ele não tem mais tempo

para perceber a cidade a partir de experiências sensoriais permitidas pelas derivas

participativas que constroem e reconstroem a cidade permanentemente. Submetido ao

rolo compressor homogeneizante da cidade espetacular, os passantes tornam-se agentes

passivos em lugares nos quais o fato deveria se fundir à imaginação, fruto de relações

particulares estabelecidas entre os indivíduos e os objetos através da interação criativa

que deve configurar a vida urbana. Isso, pois:

O mundo presente e ausente que o espetáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação a tudo que produzem (DEBORD, 2005, p.28).

Na contramão de tal realidade - do afastamento do cidadão do espaço urbano

enquanto construção coletiva – é possível identificar as ações dos artistas grafiteiros.

Para esses, legítimos representantes da Street Art, a cidade se torna um palco e eles

atores protagonistas ao invés de meros espectadores. A partir da experiência física da

cidade, potencializada pela experiência sensorial e artística, que provoca contínuas

derivas criativas, os grafiteiros consagram o espaço urbano no domínio da percepção.

“A deriva é um modo de (re)conhecimento baseado em uma dinâmica ativa do

imaginário” (TACUSSEL in: GUTFREIND e SILVA, 2007, p.18), através da qual “o

indivíduo joga com os signos do destino, habitando um tempo sem economia” (ibid.,

p.19). Sendo assim, é possível considerarmos os deslocamentos dos artistas grafiteiros

pelas cidades como derivas, tal qual a proposta dos situacionistas. E podemos também

considerar que os graffiti que povoam as urbes contemporâneas são traduções da

sensação de fragmentação, efemeridade e mudança caótica, introduzidas na vida

cotidiana pela modernidade, demonstrando a inquietação dos artistas urbanos frente às

sociedades espetaculares.

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E contra a espetacularização reificante das cidades contemporâneas, muitas já

desprovidas de suas peculiaridades culturais, nós encontramos as formas do graffiti,

criativas e estéticas, promovendo a resistência ou provocando fissuras na percepção do

urbano. E os grafiteiros na condição de atores sociais urbanos apropriam-se de espaços

públicos para a realização de suas intervenções artísticas, fazendo com que tais espaços

deixem de ser simples cenários e se transformem em palcos urbanos, lugares de

expressão, crítica e reflexão:

(...)Bachelard não fala do espaço apenas diurnamente, enquanto categoria física e matemática, espaço neutro, impessoal; resgata, no nível do imaginário poético e filosófico, o espaço enquanto lugar: situado, singular, povoado por lembranças pessoais, sítio de experiências, colorido por emoções datadas. Esse espaço, que se desdobra e singulariza em casa, concha, ninho, cofre, gaveta..., é cenário da vida do corpo, morada de afetos, fonte de poiesis artística ou filosófica, fundamento da natureza enquanto paisagem (PESSANHA in: NOVAES, 1988, p.156).

A partir do pensamento bachelardiano é possível percebermos a paisagem

urbana como uma construção simbólica que frutifica dos modos subjetivos de ver

(BACHELARD, 1993). Portanto, apreender o espaço, está mais para o plano simbólico

do que para o real observado. E é nesse universo de interferências dos seres humanos

sobre o espaço, construindo e re-construindo a paisagem, que demarcamos a

importância do graffiti como uma manifestação da Street Art e de seus artistas. Isso,

pois na amplitude do que abarcam:

Os símbolos que vemos na rua e nas paredes não estão em caso algum desvinculados do tempo a que dizem respeito. Quer seja sobre as ideias políticas, quer do que se entende como estético ou dos objectivos que se perseguem no momento, esses símbolos dão-nos, com frequência, uma solução, antes de que aquilo que representam se transforme em bem comum da cultura oficial (STAHL, 2009, p.8).

Sendo assim, é possível afirmar que a atividade criativa que tem como suporte o

espaço urbano, mais do que um expoente da criação artística, é um importante indicador

histórico. E no contexto histórico contemporâneo a presença dos artistas de rua e de

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suas criações é fundamental para que no corre-corre cotidiano possamos refletir sobre o

mundo ao redor, uma proposta cara aos situacionistas.

No rol de inúmeros artistas brasileiros escolhemos uma em particular, a carioca

Panmela Castro, para através de suas produções discutirmos a presença da Arte no

cotidiano das cidades contemporâneas, não como imagens que embelezam o ambiente,

mas, sim, como exemplares da criatividade humana que nos instigam à reflexão, nos

moldes das propostas de Debord.

2. Panmela Castro e suas derivas pelo mundo

Panmela Castro (Rio de Janeiro, 1981) é uma feminista com ideais anarquistas,

graduada em pintura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Artes pela

Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Hoje ela é conhecida internacionalmente por

ministrar oficinas como idealizadora e presidente da Rede Nami, projeto da ONG

Caramundo. Definida no tumblr da Rede “Nami é uma Rede Feminista que usa as artes

urbanas para promover os direitos das mulheres”, e é uma organização que conta com o

apoio de outras mulheres: Daniele Kitty (vice-presidente), Artha Baptista (diretora

financeira), Ana Paula Gualberto (diretora corporativa) e Jandira Queiroz (diretora de

conteúdo).

Em entrevista realizada pela Rede CNT, disponível no site oficial da grafiteira, a

artista declara que aderiu à Street Art quando começou a fazer pichações, com o intuito

de socializar-se e conquistar novas amizades. E nessa empreitada Panmela encontrou

muitas dificuldades, principalmente, pelo fato de ser mulher, pois ambiente do graffiti

até pouco tempo atrás era quase que exclusivamente masculino. Como explica Guacira

Lopes Louro isso se relaciona a:

Um processo que é baseado em características físicas que são vistas como diferenças e às quais se atribui significados culturais. Afirma-se e reitera-se uma sequência de muitos modos já consagrada, a sequência sexo-gênero-sexualidade. O ato de nomear o corpo acontece no interior da lógica que supõe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um caráter imultável, a-histórico e binário (LOURO, 201, p.15).

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Portanto, para facilitar a inserção no meio da arte urbana, Panmela precisou se

“masculinizar” e criar uma identidade de acordo com as exigências do meio, usando

roupas masculinas, falando gírias como os meninos, isso, pois as meninas eram

consideradas mais "frágeis" para andar a noite aventurando-se em locais desconhecidos.

E como consequência criativa, com o passar do tempo tais características foram sendo

agregadas ao seu trabalho. Em seus graffiti a artista utiliza o pseudônimo Anarkia

Boladona, sendo o primeiro nome uma referência ao movimento anarquista, remetendo

à liberdade, e o segundo, ao funk e “às gírias do universo”, relativas aos seus espaços-

tempos de convivência, conforme declaração dada em entrevista a revista TMP (2012).

A transição da pixação para o graffiti teve como marco o casamento de Panmela.

Em apresentação no TEDx Belo Horizonte ela declarou que foi um relacionamento

conturbado, durante o qual sofreu abusos do marido, psicológicos e físicos. A

consequência dessa relação violenta foi a separação e, como relata na entrevista para a

TV GAU (2013), suas produções têm como referências as suas próprias experiências,

além dos relatos de violência da mãe e de amigas que passaram por situações

semelhantes. E dentro desse contexto ela se dedicou à luta contra a violência sofrida por

mulheres, buscando uma maior conscientização comunitária acerca das leis e direitos

das mulheres (Figura 1), através das práticas do graffiti.

Figura 1: Panmela Castro.

Graffiti mural, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: http://www.panmelacastro.com/

Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de H istória Regional (2013) – ISSN 2318-6208

As produções artísticas de Panmela ficam visíveis para toda a comunidade e

desse modo “compartilham de um ideal de democratização da arte, utilizando o espaço

urbano como suporte, sem restringir o seu acesso a um público específico, consumidor

de arte, mas levando-as ao povo em geral” (CORRÊA e BRANDÃO, 2012, s/n). Nesse

sentido, destacamos a reverberação comunitária de suas ideias e a sua experiência

participativa nos rumos da história e da própria constituição da cidade como um espaço

comunicativo, que é constantemente transformado pelas imagens dos graffiti. Destaca-

se, portanto, a potência de práticas artísticas transgressoras que brotam da exploração

física da cidade e dos questionamentos dos cidadãos, assim como pretendiam os

situacionistas, resultantes de percepções psicogeográficas e sociais.

Figura 2: Panmela Castro. Gabriela Libélula, graffiti, Nova York, 2012.

Disponível em: http://www.panmelacastro.com/

A experiência adquirida através de suas inúmeras derivas ao redor do mundo

(Figura 2) possibilita à Panmela uma maior compreensão sobre as diferentes realidades

vivenciadas pelas mulheres contemporâneas. Tais percepções e a prática da linguagem

do graffiti possibilitaram à artista a consciência acerca da potência comunicativa das

imagens produzidas. O conjunto de suas produções espalhadas pelo mundo constitui-se

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assim como uma narrativa através da qual a artista compartilha com qualquer transeunte

suas inquietações, utilizando um “idioma” sem fronteiras, pois:

por estarem em um espaço-tempo específico, integradas a um contexto próprio, tais manifestações são documentos de uma época e dos sujeitos que nela interagem. Sendo assim, elas nos fornecem subsídios para a reflexão sobre as interrelações que revelam, permitindo ponderarmos acerca das relações do homem com o meio em dado momento histórico (CORRÊA e BRANDÃO, 2012, s/n).

Figura 3: Mural Disque 180. Graffiti mural coletivo, Instituto Avon e Observatório de Favelas.

Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: - http://redenami.wix.com

Com sua atuação frente à ONG NAMI, Panmela ampliou significativamente os

horizontes de suas obras através do oferecimento de oficinas, sempre na busca de

dialogar especialmente com o público feminino, problematizando a violência contra a

mulher (Figura 3). O graffiti é um assunto que geralmente desperta curiosidade e

interesse, e a Rede criada e gerenciada por Panmela se aproveita desse interesse para a

convocação do público às oficinas oferecidas, utilizando o espaço urbano como cenário

para a discussão sobre atos violentos sofridos pelas mulheres, um tema que extrapola

qualquer fronteira geográfica.

Numa entrevista realizada pela revista TPM (2012) ela explica que o projeto promove,

além das oficinas de graffiti, a realização de debates abertos ao público em geral,

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eventos esportivos e a apresentação de peças teatrais, ou seja, a Rede NAMI busca

cativar públicos de diferentes idades através de ações que propiciem manifestações

comunitárias. A temática abordada nesses encontros versa principalmente sobre a

violência doméstica, buscando também esclarecer em especial as brasileiras sobre a

“Lei Maria da Penha”, Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, que dispõe sobre

mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Figura 4

Disponível em: - http://redenami.wix.com

As oficinas desenvolvidas por Panmela (Figura 4) geralmente iniciam com o

debate acerca de tais questões. Na continuação os grupos são incentivados a produzirem

um mural utilizando a técnica do graffiti, no qual são associadas às imagens a

problematização surgida durante o encontro. Tais produções atuam como recursos para

a divulgação das ideias, informando e conscientizando o público, portanto, temos aí

imagens mediando relações reflexivas, instigadoras e trans-formadoras, que brotam da

vivacidade dinâmica da imaginação e criatividade humanas.

Devido às atividades da Rede NAMI, Panmela foi “adotada” por uma ONG

feminista que incentiva e promove suas viagens pelo mundo com o intuito de divulgar

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ações em defesa das mulheres, propiciando a sua atuação em diferentes cidades, assim

como: Praga, Jerusalém, Valparaíso, Nova York, Istambul, Paris e Johanesburgo, dentre

outras. Com essas viagens a artista ficou conhecida internacionalmente, assim como o

seu projeto de combate à violência contra a mulher. Como resultado de suas derivas

pelo planeta, em 2012 Panmela foi eleita pela revista Newsweek, umas das 150

mulheres que estão agindo para mudar o mundo, conquistando também o prêmio

concedido pela estilista Diane Von, que incentiva a luta para a proteção dos direitos das

mulheres.

3. Considerações Finais

O entendimento do graffiti como manifestação artística surgiu durante a década

de 1970, em Nova York, como uma prática disseminada a partir dos guetos norte-

americanos. No entanto, desde a pré-história o homem já se expressava através de

desenhos e pinturas em rochas e paredes, precursores, inclusive, da escrita, sempre em

busca da comunicação. E nesse sentido, podemos considerar a artista de rua Panmela

Castro uma vitoriosa.

O alcance do trabalho desta grafiteira, que aos 23 anos começou a grafitar,

insegura em relação ao futuro e preocupada em escapar do destino da maior parte das

amigas: casar, ter filhos e fazer serviços domésticos, é invejável. Sua atuação como

artista e cidadã remetem os anseios de Guy Debord e seus seguidores, indivíduos

preocupados em desvelar os meandros das cidades e recuperar a prática das descobertas

através das experiências sensíveis que as derivas proporcionam.

A rua, como espaço público dinâmico e de relações, permite uma análise que

supera a enumeração dos elementos físicos que o conformam, e as práticas de Panmela

expõem a paisagem urbana através da instância simbólica da arte que nasce de visões

subjetivas, sensíveis ao que a realidade apresenta. Assim como outros grafiteiros as suas

obras se aproximam da proposta de “arte total” dos situacionistas, basicamente urbana e

em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral.

O urbano, como espaço de transição e lugar de todos, reúne os elementos sociais

e comunicativos aos estéticos e funcionais, revelando o ritmo e as características

próprias da população. As estratégias de representação, fundadas em posicionamentos e

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ações culturais promovidas no âmbito da arte urbana, nos revelam a organização dos

setores sociais, culturais e políticos que interferem na construção da cidade

contemporânea. A possibilidade de conhecimento visual do mundo, embora

fragmentário, que as manifestações artísticas fornecem, atestam a veracidade de uma

realidade que se pretende mostrar e/ou discutir. São produtos de reflexões que

problematizam as relações do homem contemporâneo com o mundo ao redor.

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