2011_a_figura_alada_de_durer_e_o_anjo_de_klee.pdf
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Universidade Estadual do Cear Mestrado Acadmico em Filosofia
Benedito Eli Rigatto
A figura alada de Drer e o anjo de Klee Sentidos de melancolia em Walter Benjamin
Dissertao de Mestrado
Fortaleza CE 2011
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Benedito Eli Rigatto
A figura alada de Drer e o anjo de Klee Sentidos de melancolia em Walter Benjamin
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Acadmico em Filosofia do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Cear como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Filosofia Linha de pesquisa: tica fundamental e tica e Filosofia Poltica Orientadora: Profa. Dra. Maria Terezinha de Castro Callado
Fortaleza - CE 2011
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Folha de Aprovao
Ttulo do trabalho: A figura alada de Drer e o anjo de Klee: sentidos de melancolia em Walter Benjamin Autor: Benedito Eli Rigatto Orientadora: Maria Terezinha de Castro Callado Defesa pblica em _____/_____2011 Nota obtida:______
Banca examinadora
____________________________________
Profa. Dra. Maria Terezinha de Castro Callado
Orientadora
___________________________________
Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora
1. Examinador
___________________________________
Prof. Dr. Eduardo Jorge Oliveira Triandopolis
2. Examinador
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Agradecimentos
minha orientadora, Profa. Tereza Callado pela ateno sempre paciente e pelo
sorriso que ameniza a rdua tarefa da pesquisa filosfica e mostra a alegria da
descoberta, como convm aos benjaminianos.
Aos professores da Banca pela disponibilidade em colaborar com a crtica
necessria na construo deste trabalho.
Aos professores e funcionrios do Mestrado Acadmico em Filosofia da
Universidade Estadual do Cear pelo apoio no aprimoramento do trabalho de
pesquisa, fundamento necessrio da dissertao.
Aos colegas de turma pela possibilidade do debate e da crtica. Um agradecimento
especial ao William Leite, mais que um colega, um amigo de longas conversas
pelos labirintos de uma filosofia sedutora.
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O tdio o pssaro de sonho que choca os ovos da experincia. WALTER BENJAMIN, O NARRADOR
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Resumo
Este trabalho procura revelar a centralidade de melancolia no pensamento de Walter
Benjamin e a extenso de sentidos desta categoria. A escolha de textos
significativos para a anlise deste tema possibilita revelar as contradies do estado
de esprito melanclico, que oscila entre apatia, inrcia, indefinio e viso crtica
para a tomada de posio ante a histria-catstrofe. Tais conflitos Benjamin
encontra na linguagem alegrica do Barroco e na obra dos poetas da modernidade
capitalista, como o fundamento de sua crtica da cultura. Baudelaire e Proust
constituem novas formas lingusticas de representao alegrica sobre o cotidiano
das sociedades contemporneas. Na imanncia de um mundo de runas, a alegoria
, para o melanclico, a nica linguagem possvel, presente no Barroco como jogo
da melancolia (Trauerspiel). Memria e experincia surgem como instrumentos que
o artista, o filsofo, o historiador materialista dispem para enfrentar a degenerao
do tempo histrico homogneo e vazio. O historiador materialista, no estado
melanclico de profunda meditao, junta os cacos do que foi destrudo e constri
um mosaico de novas significaes.
Palavras-chave: Melancolia. Memria. Alegoria. Histria. Experincia.
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Rsum
Ce travail cherche rvler le caractre central de la mlancolie chez Wlater
Benjamin et lextension de la signification de cette catgorie. Le choix de textes
significatifs pour lanalyse de cette question permet de rvler les contradictions de
la mlancolie, qui oscille entre lapathie, linertie, lincertitude et approche critique
pour la prise de position face histoire-catastrophe. Ces conflits Benjamin trouve
dans le langage allgorique du Baroque et dans loeuvre des potes de la modernit
capitaliste, comme le fondement de sa critique de la culture. Baudelaire et Proust
constituent de nouvelles formes linguistiques de reprsentation allgorique du
quotidien des socits contemporaines. Dans limmanence dun monde de ruines,
lallgorie est, pour le mlancolique, le seul langage possible, prsent au Baroque
en tant que jeu de la mlancolie (Trauerspiel). Mmoire et exprience mergent
comme des instruments que lartiste, le philosophe, lhistorien matrialiste ont pour
faire face la dgnrescence du temps historique homogne et vide. Lhistorien
matrialiste, dans ltat melancolique de mditation profonde, rassemble les
fragments de ce qui a et dtruit et construit une mosaque de nouvelles
significations.
Mots- cls : Mlancolie; Mmoire; Allgorie; Histoire; Exprience
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Sumrio
1 INTRODUO.....................................................................................................9 2 TRAUERSPIEL: REPRESENTAO DA IMANNCIA HISTRIA-NATUREZA..17
2.1 PRNCIPE, CONFLITO, HISTRIA E MELANCOLIA......................................20
2.2 O SOBERANO PARADIGMA DO MELANCLICO.........................................33
2.3 MELANCOLIA I DE DRER, UMA FIGURA ALEGRICA.............................47 3
3 MELANCOLIA E LINGUAGEM..........................................................................61
3.1 O NOME E A ESCRITA...................................................................................61
3.2 SMBOLO E ALEGORIA..................................................................................71
3.3 A ESCRITA E O OLHAR DO MELANCLICO................................................78
4 MELANCOLIA E A ALEGORIA DO ANJO DA HISTRIA...............................84
4.1 O POETA MELANCLICO..............................................................................84
4.2 A REMEMORAO NA CONTEMPLAO MELANCLICA........................104
4.3 ANGELUS NOVUS: A IMAGEM MELANCLICA DO ANJO DA ISTRIA...110 5 CONCLUSO...................................................................................................116 6 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................122
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Introduo
Em carta de 1923, Benjamin (1980, p. 94) conta o impacto que foi
contemplar os originais da obra de Drer: S agora tenho uma ideia da fora de
Drer; sobretudo a Melancolia obra de uma expressividade indizivelmente
profunda. No o simples relato da visita a um museu, mas documenta a
centralidade da melancolia entre as categorias fundadoras de seu pensamento e, no
aspecto metodolgico mais amplo, o significado da arte como meio para a
construo do pensamento filosfico. Neste ano de 1923 Benjamin est
desenvolvendo a pesquisa da tese de livre docncia Origem do Drama Barroco
Alemo, obra que, se provocou sua desistncia da carreira acadmica, em
compensao o ponto fundamental de convergncia de todos os ensaios, ou melhor,
de todo seu pensamento, desde os primeiros escritos de 1910 at a obra pstuma
Sobre o Conceito da Histria e que, para a presente pesquisa sobre a melancolia,
a principal fonte recorrente de apresentao e comentrio do tema. Conceitos como
imanncia, histria- natureza, runa e fragmento, soberania, perecimento, jogo,
metfora e simbologia, presentes no drama barroco, devero ser desenvolvidos em
primeiro lugar, nesta dissertao, como condio sine qua non, para a revelao do
tema melancolia em toda sua extenso alegrica. Na tese sobre o barroco, Benjamin
procura a verdade da histria humana atravs da arte dramtica dos autores
alemes do sculo XVII, especificamente de Opitz, Lohenstein, Gryphius, Hallmann
e Haugwits. A configurao do soberano deste teatro barroco passa a ser a
configurao da prpria histria, pois todas e as contradies, os conflitos e as
dvidas da ambivalncia essencial provocadora de fragmentaes desta poca, se
concentram na figura do prncipe. Tal ambivalncia, j presente em Descartes como
dualidade corpo e alma, o elemento barroco que, ao se exteriorizar, gera a
melancolia. Benjamin revela os aspectos essenciais conflitantes da ambivalncia e
dualidade desta configurao, e da histria portanto: a cabea de duas faces
aluso ao mito de Janus - a do tirano e a do mrtir, ou seja, a condio de soberano
incumbido de decidir num estado de exceo, em momentos de perigo, e ao mesmo
tempo obrigado a carregar o fardo insuportvel da conscincia de que no passa de
um simples mortal. A face do prncipe como mrtir corresponde concepo da
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histria como destino, isto , da physis no entendida aqui como harmonia csmica
da antiguidade clssica, mas como o orgnico que o tempo decompe. O homem
barroco obcecado por este destino do auto aniquilamento. A histria se revela
ento, segundo Benjamin (1985, p. 188), na sua fcies hippocrtica como paisagem
petrificada.; equivale dizer: a histria universal da civilizao destinada
inexoravelmente catstrofe e, na encenao teatral do drama barroco
(Trauerspiel), representada como paisagem fixa, eternizadas, confinadas que
esto no espao da corte.
So esses conceitos que primeiro fundamentam a pesquisa do tema
melancolia e sero desenvolvidos no primeiro captulo da dissertao. Com efeito,
na tica da dramaturgia barroca, a melancolia corresponde diretamente ao
desenrolar da histria da civilizao, como expressa Benjamin (1984, p. 88): O
soberano representa a histria. Ele segura em suas mos o acontecimento histrico,
como se fosse um cetro. O filsofo completa (1984, p. 165): O prncipe o
paradigma do melanclico.. O trabalho de pesquisa sobre o tema da melancolia
deve estar sempre atento ao procedimento metodolgico da pesquisa filosfica de
Benjamin (1984, p. 50), para quem a verdade no conhecimento a ser possudo e
definido, mas algo que se auto representa para ser contemplado. Esse exerccio (o
da lei da representao da verdade) imps-se em todas as pocas que tiveram
conscincia do Ser indefinvel da verdade, e assumiu o aspecto de uma
propedutica. Com esse procedimento metodolgico, interpreta-se a alegoria da
Melancolia I de Drer, sem definies acabadas, mas a partir da multiplicidade de
significaes alegricas prprias do drama barroco.
Ao construir sua filosofia da histria, Benjamin reinterpreta os sistemas
filosficos da tradio e da prpria modernidade e expe tanto sua concepo de
tratado, quanto de mtodo, assim como da relao idia-conceito-fenmenos. o
trabalho do crtico, no no sentido estrito de crtica literria ou de crtica de arte em
geral, mas no sentido destrutivo-construtivo mais amplo possvel, capaz de revelar
aquilo que o discurso esconde como teor de verdade. A postura crtica com a qual
Benjamin (1984, p. 69s) se relaciona com os sistemas filosficos fica bem clara
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quando expe sua concepo de idia: No segundo (no caso da relao do
particular com a idia), ele includo sob a ideia, e passa a ser o que no era
totalidade. Nisso consiste sua redeno platnica. Ou ainda: A idia mnada
nela reside, preestabelecida, a representao dos fenmenos, como sua
interpretao objetiva.1 Nestas duas passagens de Origem do Drama Barroco
Alemo, Benjamin faz referncia s filosofias de Plato e de Leibniz para construir
sua prpria concepo de idia que deixa de ser algo de eterno e abstrato para
adquirir vida quando os fenmenos as reconhecem e as circundam, sob o ponto de
vista da histria portanto. o sentido mais profundo de crtica: reinterpretar a
tradio filosfica pelo mtodo do tratado que salva os fenmenos dissolvidos na
ideia. 2
Permitir a emergncia da configurao da idia atravs da forma do drama
barroco: nisso consiste o projeto de Benjamin em Origem do Drama Barroco
Alemo; idia no exato sentido exposto em sua teoria do conhecimento, isto ,
enquanto totalidade da coexistncia dos fenmenos mais extremos. A obra de arte,
sob a tenacidade do olhar do crtico, faz emergir a totalidade reveladora da histria:
eis o sentido de origem (Ursprung) e eis em que consiste a categoria da origem.
Todos os ensaios de Benjamin giram em torno deste, pode-se dizer, programa de
interpretao histrico-filosfico: mostrar tudo aquilo que o artista possibilita ao
crtico revelar por meio da linguagem. a linguagem que possibilita Benjamin
resolver a dicotomia entre fenmeno e ideia. Para Plato, as ideias esto dispersas
em seu mundo prprio. Para Benjamin, elas esto na linguagem (Sprache).
Considerando a linguagem, ideias e fenmenos tem uma mtua dependncia para
existirem. Mas como isso possvel, se cada um de uma ordem diferente?
Benjamin responde: pela funo lingustica mediadora dos conceitos, que
1 ( Cf. Leibniz, G. W.,1979 ). Para Leibniz, a mnada uma substncia simples, no possui partes e
indivisvel. Esta simplicidade implica multiplicidade na qualidade. uma estrutura compreendida como
multiplicidade na unidade. Cada mnada se relaciona com outras mnada exprimindo assim todo o universo. A
esta concepo de Leibniz, Benjamin atribuir sua concepo da ideia: a ideia mnada quer dizer que cada ideia contm a imagem do mundo. A compreenso do Barroco enquanto ideia, ou seja, intemporal portanto,
permite a compreenso da tragdia clssica, por exemplo. O particular analisado monadologicamente para
revelar a ideia. Assim cada ideia contm a imagem abreviada do mundo. 2 Na primeira parte da obra sobre o drama barroco Questes introdutrias de crtica do conhecimento, Benjamin
expe os fundamentos filosficos do seu mtodo de pesquisa. Estas questes no constam como objeto
especficos do presente trabalho, mas devem ser lembradas quando o entendimento de outras questes exigirem.
( Cf. Benjamin,1984, p.49ss ).
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desempenham o papel de intermedirio entre fenmeno e ideia. Eles salvam os
fenmenos perante as ideias e as representam universalmente ante o particular.
Ao filsofo no interessa o comentrio superficial e classificatrio da obra de
arte em gneros ou estilos, mas a descoberta dentro da prpria forma artstica da
configurao da idia totalizadora. Os escritos de Benjamin, desde a tese sobre os
romnticos de Iena e sobre o drama barroco at os ensaios sobre Baudelaire,
Proust, Kafka e o surrealismo, significam a escolha destas formas artsticas. Assim
Benjamin (1984, p. 69) focaliza o centro de sua crtica filosfica:
[...] enquanto cincia da origem, permite a emergncia, a partir dos extremos mais distantes e dos aparentes excessos do processo de desenvolvimento, da configurao da idia, enquanto todo caracterizado pela possibilidade da coexistncia significativa desses contrastes.
O primeiro captulo da presente pesquisa procura expor, a partir do trabalho
crtico de Benjamin sobre o drama barroco, e mais particularmente, da categoria da
origem, a amplitude de significados possveis de melancolia na construo da
filosofia da histria. Neste trabalho de persistncia e tenacidade, Benjamin percorre
todo o rol de significaes de melancolia, desde a Problemata de Aristteles at as
anlises de Panofsky e Saxl sobre a gravura de Drer Melancolia I, passando pelos
estudos de Ficinus e Melanchthon em oposio s concepes religiosas
depreciativas do perodo medieval. Benjamin (1984, p. 173s) conclui: Era preciso
dissociar a melancolia sublime, a melancolia illa herica de Marsilius Ficinus e de
Melanchthon, da melancolia vulgar e destrutiva. Uma exata dialtica do corpo e da
alma se combina com a magia astrolgica: o enobrecimento da melancolia o tema
central da obra De Vita Trplice, de Marsilius Ficinus. A problemtica da presente
dissertao pode ser apresentada com clareza exatamente nestas questes: a
melancolia um estado de alma que pode ainda estar impregnado do significado
vulgar e destrutivo de inrcia, preguia, depresso, um pecado capital enfim, ou,
para o crtico o olhar penetrante voltado para a realidade do mundo, olhar da
profunda meditao que possibilita enxergar o mago desta realidade, possibilitando
a elevao da alma? Benjamin defende esta segunda alternativa na obra sobre o
drama barroco, com convico igual ao seu entusiasmo vendo os originais das
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gravuras de Drer. preciso porm entender esta alternativa na perspectiva do
dualismo dos extremos mais distantes, dos excessos e contrastes, ou seja, nos
fenmenos estranhos e desprezados, nas aes mais simplrias ou nas
manifestaes de grande apelo em perodos de decadncia.
A categoria da origem fundamental para revelar o papel do crtico e,
juntamente com ele, o sentimento melanclico. Se origem no gnese, ...no
designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser..., e
se existe a forma artstica que possibilita esta emergncia, o processo desta
emergncia se d justamente pela ao do crtico, entendida como reflexo filosfica
e para isso concorre a melancolia, illa herica, sublime, de que fala Ficinus. Sua
imagem mais perfeita a figura alada de Drer: ainda que totalmente inerte, tem os
olhos arregalados, em profunda meditao. A investigao crtica busca revelar a
experincia da origem, isto , a verdade intemporal da histria, levada pelo
sentimento melanclico de perda, por algo imemorialmente perdido e recalcado
espera do esquecimento feliz da redeno.
Seria impossvel desenvolver uma completa pesquisa sobre a categoria da
melancolia, sem o estudo dos textos de Benjamin sobre linguagem (Sprache) aos
quais dedicado o segundo captulo da dissertao. So principalmente os ensaios
Sobre a Linguagem em geral e Sobre a Linguagem do Homem, e A Tarefa do
Tradutor, onde so tratados conceitos como perda, rememorao (Eingedenken),
smbolo e alegoria. Benjamin desenvolve aqui a ideia da busca do original, no
sentido filosfico de origem, de uma busca, que se no uma eterna frustrao,
mostra a capacidade do homem de tentar recuperar a linguagem perdida por meio
da multiplicidade das lnguas humanas. O sentimento de perda perpassa estes
textos, e a perda se exterioriza na figura postural do melanclico.
O terceiro captulo dedicado a textos fundamentais na pesquisa do tema:
Crnica Berlinense, Infncia Berlinense, A Imagem de Proust, e principalmente
Sobre Alguns Temas em Baudelaire. Se fosse possvel apresentar estes ensaios
como peas teatrais, dir-se-ia que os personagens, na representao dessa trama,
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seriam a criana, o sonhador, o flneur, o colecionador, o narrador, enfim aqueles
que se afastam da histria linear contnua, reta ou curva, da herana iluminista e
das aparncias vividas por indivduos sem rosto na metrpole, para viver o avesso, o
escondido, o onrico, os subterrneos do sonhado. A propsito de Proust, diz
Benjamin (1985, p. 37): Pois o importante, para o autor que rememora, no o que
ele viveu, mas o tecido de sua rememorao, o trabalho de Penlope da
reminiscncia. Nesta constelao do lembrar, que no o que se viveu, mas a vida
lembrada por quem a viveu e a reside a multiplicidade de significados da alegoria
pode-se juntar o labirinto e o desvio que a ele conduz aqueles personagens do
sonho.
Benjamin expe o mtodo do desvio como o mtodo do tratado filosfico no
inspirado primeiro pargrafo da Questes introdutrias de crtica do conhecimento,
onde distingue o tratado do sistema. Benjamin esclarece como preciso percorrer
um longo caminho para que a verdade se represente e seja contemplada. Longo
caminho porque a verdade, enquanto idia, jamais pode ser capturada como se
fosse o conjunto de conceitos da cincia e, nesse sentido, a verdade no pode ser
representada como se fosse a fachada de um edifcio, pois ela est escondida no
ptio interno. Sobre o mtodo diz Benjamin (1984, p. 50): Mtodo o caminho
indireto, desvio. A representao como desvio portanto a caracterstica
metodolgica do tratado. Salienta ainda que o desvio se caracteriza tambm pelo
eterno recomeo, como j fazia o tratado escolstico medieval, cuja doutrina era a
representao da verdade divina, sem nenhum objetivo de ensinar um conhecimento
de verdades apreendidas. O recomeo, que significa interrupo, alude
contemplao da verdade que junta os fragmentos, os elementos mais extremos na
totalidade transcendente da verdade. Benjamin cria, nesta exposio do mtodo do
desvio (Methode ist Umweg), uma imagem metafrica, tambm medieval: o mosaico.
A tcnica da representao plstica do mosaico consiste em justapor pedacinhos de
cermica colorida de esmalte brilhante, cujo resultado final um todo harmonioso de
determinada figura sagrada. Benjamin (1984, p. 51) conclui: Tanto o mosaico como
a contemplao justapem elementos isolados e heterogneos, e nada manifesta
com mais fora o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da
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verdade. Concluso importante deste mtodo: cada fragmento do mosaico
insubstituvel, ou seja, os fenmenos so salvos na totalidade da ideia.
preciso retornar sempre a Origem do Drama Barroco Alemo, o ponto
referencial do pensamento de Benjamin, como j foi mencionado, para entender os
textos posteriores, especificamente os ensaios sobre Proust, Kafka, Baudelaire e os
da Infncia e da Crnica. Sem a compreenso do mtodo do desvio, seria difcil
acompanhar os caminhos percorridos pelo crtico nestes ensaios centrados no
rememorar a vida por quem a viveu. Ora, aqueles personagens, ou seja o
sonhador Proust, o narrador Kafka, o bigrafo Benjamin, criana dos criativos jogos
da mimese, no perseguem a linha reta em direo ao vivido, mas se perdem em
inumerveis becos da rememorao, como Baudelaire melanclico que lamenta a
Paris perdida nas ruelas e cantos esquecidos, distantes das avenidas retas e
espaosas da opulenta metrpole do sculo XIX. Assim como em Origem do Drama
Barroco Alemo, o alegorista que apresenta, na cena teatral, toda a runa e
catstrofe da corte barroca, assim tambm o historiador atualiza a histria atravs
da montagem do lixo jogado nas beiradas da metrpole. Este mtodo de Benjamin
se distancia das pretenses cientficas da explicao definitiva, do fechamento cabal
da pesquisa de solues universalmente aceitas, para expor uma histria via
imagens, aberta a infinitas atualizaes.
Entregar-se ao sonho, perambular pela cidade com o olhar dirigido apenas
para o que restou do passado, lembrar-se da infncia naquilo em que ela acreditava
e no se concretizou: eis o presente, pleno de tenses daquele que rememora, eis a
nica possibilidade de redeno messinica do futuro. Aqui fica claro o carter
melanclico do mtodo do desvio: o crtico, qual Ulisses que no se entrega ao
canto sedutor das sereias do progresso e nem desfruta das delcias enganosas de
toda espcie de mercadoria. Ele tece melancolicamente sua trama das lembranas
de onde emergir a configurao da idia caracterizada pela coexistncia dos
elementos mais extremos.
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Mas, afinal das contas, por que o tdio, o sentimento de perda e desolao,
se cada vez mais o homem dispe de conhecimento de si mesmo e do universo, se
ele dispe de uma infinidade de meios da tcnica que lhe proporciona o bem estar?
Por que a eterna busca por algo que o satisfaa, sem nunca atingir a satisfao? A
resposta para estas questes, Benjamin desvenda atravs da arte, primeiramente no
drama barroco, na histria-natureza de final catastrfico, onde melancolia significa o
mergulho nas profundezas das coisas e de si mesmo, como meio de um
conhecimento s avessas. A sada possvel tem na poesia de Baudelaire a ps-
histria deste drama, no spleen, o mal da modernidade estampado na melancolia do
habitante da metrpole. No ensaio O narrador, Benjamin (1985, p. 204) afirma: o
tdio o pssaro de sonho que choca os ovos da experincia, uma outra resposta
pode estar no sonho que apazigua e instiga. Assim a figura alada da Melancolia I de
Drer, presa ao cho por conta do peso exagerado de seu corpo e de sua mente e
inerte diante dos objetos inteis das conquistas humanas da tcnica e da cincia, d
lugar ao anjo da histria de Klee, suspenso no ar e castigado pela ventania do
progresso que o arrasta para o futuro, olhos fixos melancolicamente sobre a
civilizao e suas runas.
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Captulo I Trauerspiel: representao da imanncia histria-natureza
Seu contedo, seu objeto mais autntico a prpria vida histrica, como aquela poca a concebia. Nisso ele se distingue da tragdia, cujo objeto no a histria, mas o mito, e na qual a estatura trgica das dramatis personae no resulta da condio atual, radicada na monarquia absoluta, e sim de uma condio pr-histrica, radicada no herosmo passado. W. BENJAMIN, ORIGEM DO DRAMA BARROCO ALEMO
Na reflexo histrico-filosfica sobre o drama barroco alemo, Benjamin faz
a distino entre drama barroco e tragdia, depois dos esclarecimentos expostos
nas questes introdutrias de crtica do conhecimento. O cerne desta distino o
objeto, o contedo de uma e de outra forma artstica: o drama barroco trata da vida
histrica vivida naquele presente de poder absoluto do soberano, ou seja, o drama
est colado realidade vivida, enquanto a tragdia diz respeito ao herosmo do
passado mtico. Benjamin (1984, p. 86) esclarece essa especificidade do drama
citando a potica de Opitz: A tragdia igual em majestade poesia herica, com a
diferena de que ela raramente tolera a introduo de personagens de baixa
extrao e de episdios medocres: seus temas so a vontade dos reis, assassnios,
desesperos, infanticdios e parricdios, incndios, incestos, guerras e insurreies,
lamentaes, gemidos e outros semelhantes. Se para a crtica moderna o drama
barroco no passaria de um esplio da poesia herica, isto , da tragdia clssica,
pois assim que ela entende a afirmao de Opitz como enumerao de temas,
para Benjamin, ao contrrio, trata-se de seu ncleo, de seu objeto mais significativo.
A luta desenfreada pelo poder, contedo e objeto prprios do drama barroco
alemo, foi o que determinou a escolha do crtico Benjamin por esta forma de arte,
pois vislumbrou nela a riqueza de um jogo complexo de conflitos entre fenmenos
extremos como fonte de reflexo filosfica sobre a histria, ou concluindo de uma
forma mais abrangente, sobre a condio humana.3 Se a cena teatral do drama
barroco se espelhou na cena histrica naquilo que se refere majestade da vida
3 importante enfatizar que a traduo de Trauerspiel da obra original de Benjamin drama barroco. Porm esta
palavra contm, em seu significado, dois fatores antitticos: luto e jogo. Luto por uma perda irrecupervel e jogo
como forma de suportar a radical perda. Esses dois extremos esto no mesmo espao, sem que isso possa
significar uma sntese harmoniosa, pelo contrrio, o conflito caracterstico da mentalidade melanclica barroca.
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principesca, ao contrrio do teatro pastoral4 e da comdia destinada a camponeses
e burgueses respectivamente, ela evidencia o lado grotesco da luta poltica com todo
o rol de catstrofe descrito na potica de Opitz. Os autores se debruavam
exaustivamente sobre os relatos historiogrficos, matria prima de sua criao
dramtica.
Deixando de lado critrios estticos ou estilsticos utilizados pelos crticos
que nada viram de significativo na forma do drama barroco, como busca Benjamin
(1984, p. 204) despertar a beleza adormecida na obra, a riqueza escondida para
alm da aparncia ilusria, mais exatamente, da trama grotesca que envolve a
majestosa figura do soberano. Sua pesquisa sobre a relao da teoria do drama
alemo seiscentista com a Potica aristotlica, conclui, citando vrios tericos do
drama como Gryphius, Lessing, Trissino e Birken, pelas diferenas estruturais entre
drama e tragdia: primeiramente que o drama influenciado pelo classicismo
renascentista holands e pelo teatro jesutico. A partir desta caracterstica do teatro
barroco, ressalta a importncia da unidade de ao na valorao da unidade de
tempo, dispensando a unidade de lugar. Quanto influncia do teatro jesutico, fica
clara a discrepncia relativa aos efeitos da tragdia de que fala Aristteles: o terror e
a piedade provocados no espectador pela morte do vilo e pela morte do heri
respectivamente so substitudos, primeiro pelo objetivo de glorificar a Deus, e
segundo por fomentar a edificao dos semelhantes pelo fortalecimento da virtude
do domnio sobre as paixes. Benjamin descarta assim qualquer interpretao do
drama barroco baseada em psicologismos subjetivistas. Se a crtica considerou
depreciativamente o drama barroco comparando-o com a tragdia atravs do Rei
herico, ficou claro que esta configurao inteiramente outra.5 Na distino entre
4 Cf. Panofsky, E., Significado nas artes visuais, p.377. O teatro pastoral apresenta a natureza no palco como
refgio e o paraso intemporal, bem diversa da natureza-destino das catstrofes. interessante conferir a anlise
de Panofsky sobre a obra Et in arcadia egoda pintura pastoral de Poussin. Nesta anlise, Panofsky revela os traos barrocos da arte pastoral ao identificar na palavra Ego a figura da morte. 5( Cf. Aristteles, 2005, p. 33). Aristteles afirma: s vezes, os sentimentos de temor e pena procedem do
espetculo; s vezes, tambm, do prprio arranjo das aes, como prefervel e prprio de melhor poeta.
mister, com efeito, arranjar a fbula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrncias
sinta arrepios e compaixo em conseqncia dos fatos; o que experimentaria quem ouvisse a estria de dipo.
Obter esse efeito por meio do espetculo menos artstico e requer apenas recursos tcnicos. Segundo Aristteles, a tragdia provoca a piedade e o terror. Os crticos modernos identificaram tragdia e drama,
entendendo que ambos provocam o mesmo sentimento de luto. interpretao psicologista errnea, pois o
drama barroco objetiva provocar no espectador uma emoo de luto e o luto no consta na Potica de Aristteles.
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o mundo clssico e o Barroco, Benjamin (1984, p. 102s) compara as paisagens
representadas na pintura renascentista e na pintura barroca:
Pois o clima espiritual dominante, por maior que fosse sua tendncia a acentuar os momentos de xtase, via neles menos uma transfigurao do mundo, que um cu nublado se estendendo sobre a superfcie do mundo. Os pintores da Renascena sabiam manter o cu em sua altitude inacessvel, ao passo que nos quadros barrocos a nuvem se move, de forma sombria ou radiosa, em direo terra. Contrastada com o Barroco, a Renascena no aparece como uma era incrdula de paganismo, mas como uma era profana de liberdade religiosa, enquanto o esprito hierrquico da Idade Mdia, atravs da Contra-Reforma, impunha-se num mundo incapaz de aceder, de forma imediata, a um plano transcendente.
A questo da espiritualidade presente no drama barroco alemo decorre de
seu parentesco com o drama religioso medieval, entendido no tanto como cpia
pura e simples, porm como incluso de elementos do pensamento medieval que o
distingue fundamentalmente do classicismo renascentista. O grandioso espetculo
medieval do mistrio, no que este diz respeito salvao, coincidia com a crnica da
histria universal, cuja consumao era o Juzo Final, mais prximo da tragdia
que do mistrio. Essa a fonte do teatro barroco. A secularizao
(Sekularisierung) do teatro dos mistrios, ou seja, a representao das aes
principais e de Estado, desencadeia o desespero radical, pois nem a moralidade do
heri-mrtir nem a justia do tirano louco so suficientes para aliviar a tenso
decorrente da histria da salvao. Da o artifcio bem caracterstico do barroco de
dar um acabamento repleto de ornamentos estrutura da ao dramtica. Cabe ao
crtico revelar a tenso que se esconde sob as camadas do ornamento.
Secularizao no significa aqui que a espiritualidade desapareceu: o esprito
religioso permaneceu dominando tanto no mbito da Reforma, quanto da Contra-
Reforma e, ao mesmo tempo a vontade da poca imps uma soluo profana. Nisso
consiste o conflito: nem se submeter nem se revoltar. O homem barroco se viu
preso, sem poder se confrontar com a ortodoxia crist e ter de mudar totalmente a
No se trata de sentimentos da psicologia emprica, mas da descrio do luto. Esta dramaturgia pretende a
satisfao do luto, ou seja, feita para enlutados. So peas para serem vistas, a ostentao lhes inerente. a
herana dos trionfi, procisses dramatizadas da Renascena. Pode-se entender assim o carter itinerante dos
espetculos teatrais do barroco: flexvel, virtual, dialtico, esse teatro no o topos csmico- e harmonioso-
grego. Em palco mvel, ele representa a histria e peregrina como ela. A tragdia, porm, se desenvolve na
fixidez de um tribunal e no fato nico da reviso de um processo ratificada pela comunidade. No drama, a
situao de um mundo conturbado ostensivamente apresentada ao enlutado espectador. O drama ostentao e
luto, ou seja, histria como dialtica dilacerada.
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prpria concepo de vida, sem poder expor s claras essa mudana revolucionria.
Assim a espiritualidade se transforma em imanncia, ou melhor, a transcendncia se
transfigura, como diz Benjamin (1984, p. 120): ...cu nublado se estendendo sobre
a superfcie do mundo.
Como tantas vezes, Benjamin recorre s imagens plsticas da arte, para expor
este conceito de imanncia histria-natureza, comparando a representao da
paisagem renascentista com a barroca. O cu da representao renascentista
lmpido e meridiano expressando o inatingvel de uma religiosidade livre convivendo
com o profano, enquanto que no barroco este cu paira com pesadas e sombrias
nuvens sobre o mundo, numa clara representao da sensao de ser impossvel
aceder a um plano transcendental. Nessa imanncia radical, o drama barroco
abandona de vez qualquer idia de escatologia que possa ir alm dos mistrios,
centralizando toda a ao na figura catastrfica e apotetica do prncipe.
Apresentando a imanncia inerente ao drama barroco, na sua tenso essencial
entre a urgncia de uma soluo profana e a hegemnica ortodoxia crist, Benjamin
revela como a era barroca compreendia a histria. Essa imanncia que engendra
a configurao do prncipe como paradigma do melanclico.
1.1. Prncipe, conflito, histria e melancolia
E h quem queira reinar vendo que h de despertar no negro sonho da morte?
Caldern de la Barca, A vida sonho
Diferentemente das teorias modernas sobre o absolutismo elaboradas desde
Hobbes at Locke, a teoria benjaminiana da soberania barroca caracterizada pelo
conflito, pela tenso e pela melancolia. O soberano barroco, cujo ideal a
Restaurao, ou seja, a garantia de uma sociedade prspera em todos os campos
da atividade humana, das artes s cincias e s tcnicas militares, marcado pela
tenso conflituosa entre a estabilidade social e a anarquia provocada por toda sorte
de desordem e subverso. A preocupao fundamental do prncipe se volta para a
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manuteno da ordem como condio essencial da produo artstica, cientfica e
tcnica. A catstrofe passa a ser a anttese da estabilidade. exatamente a que se
fundamenta, segundo Benjamin (1984, p. 89), a teoria do estado de exceo. Quem
reina j est desde o incio destinado a exercer poderes ditatoriais, num estado de
exceo, quando este provocado por guerras, revoltas ou outras catstrofes.
importante deixar claro entretanto que os propsitos que fundamentam a
ao poltica do prncipe partem do pensamento teolgico-jurdico, expresso no
desejo de transcendncia. Este pensamento resulta da contestao de uma teoria
teocrtica medieval em favor do poder supremo do soberano, culminando no estado
de exceo como o direito natural do sculo XVII. Para se entender o estado
conflituoso do homem barroco no se deve esquecer o esprito religioso do
cristianismo incontestado dominante neste sculo, que tambm completamente
diverso do racionalismo teolgico iluminista do sculo XVIII. O homem que habita o
sculo XVII se sente como parte do mundo perecvel, submetido s leis do tempo
que tudo corri e por isso que ele se apega s coisas terrenas para exalt-las. Se
no h escatologia no Barroco e ningum escapa da imanncia, existe uma
permanente tenso entre o mundo e a transcendncia, bem evidente nas
representaes pictricas de Rubens, nos temas de glorificao, onde se misturam
personagens divinos e terrestres. Assim o prncipe aparece divinizado em seu poder
absoluto.
Benjamin expe claramente a configurao do soberano e, no se deve
esquecer, ele representa a histria como conflituosa, e portanto melanclica, ao
apresent-lo caracterizado pela dualidade do inteiramente bom e do inteiramente
mau. O Barroco s concebe o soberano ou como inteiramente bom ou como
inteiramente mau. So suas faces de Janus. Aqui se esclarece, atravs deste
exemplo, a afirmao benjaminiana de que a ideia caracterizada pela coexistncia
significativa dos contrastes, tornando claro o quanto este mtodo se distancia do
racionalismo iluminista. Longe do princpio da no-contradio dos antigos, a
condio da soberania do monarca marcada pelas manifestaes paradoxais, o
que equivale dizer: conflituosas e melanclicas.
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A representao do prncipe como tirano uma caracterstica obrigatria
nos palcos barrocos: era vista como condio necessria da soberania e por isso
admirada, mesmo quando os poderes ditatoriais estavam envolvidos em toda sorte
de crimes, como fratricdios, incestos ou infidelidade. Benjamin (1984, p. 93)se
refere a um texto de Gryphius sobre Herodes para mostrar a que extremo chega a
submisso do homem barroco tirania do soberano:
Os trabalhos de juventude de Griphius, em latim as epopias de Herodes -, mostram com clareza o que fascinava os homens do seu tempo: o soberano do sculo XVII, o mais alto dos seres criados, irrompendo no delrio como um vulco, destruindo-se e destruindo toda a sua corte.
Assim se completa a configurao do prncipe na complementaridade, ou
nas fronteiras, do drama do tirano e o terror e do drama do mrtir e a piedade, como
conseqncia de dois polos extremos: a dignidade para governar que Deus lhe
outorgou e a pequenez de sua condio de simples mortal. Esse delrio do
soberano simboliza a histria, cujo desfecho inexorvel a catstrofe. Qual o
elemento barroco deste teatro? - No contraste entre dignidade que o poder exige e
miservel degradao. Das contradies da configurao barroca do prncipe que
representa a histria e a pr-histria da modernidade , vestido de prpura, com
cetro e coroa, praticando os atos mais degenerados, surgem a tristeza, o delrio, a
loucura e, enfim, a melancolia.
Este cenrio de disperso e destruio que o drama barroco representa est
estampado na Melancolia I de Drer, onde a figura alada dirige o olhar para um
ponto distante, perdido entre o amontoado de objetos sem uso, que seriam teis
para a cincia e a tcnica. a melancolia que surge da figura principal do drama:
aquele que garante o bem estar da comunidade mas reina absoluto no estado de
exceo, bom e piedoso e ao mesmo tempo mau e tirano. Que outro olhar seria
possvel seno esse da descrena e da decepo? O que resta ao prncipe seno a
sensao do vazio que nada vislumbra alm da catstrofe? - No mais profundo
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tdio, envolvido que est no total perecimento das coisas terrenas, ele se v diante
da misso divina para governar.6
Benjamin observa ainda que, segundo a doutrina da soberania caracterizada
pela distncia que existe entre o poder e a efetiva capacidade de governar do
prncipe, surge a indeciso do tirano. Para demonstrar esse trao do teatro barroco,
faz a comparao com a pintura maneirista de El Greco, onde as figuras humanas
alongadas so representadas com as cabeas pequenas e atravs de cores fortes.
Assim o tirano: age por impulsos e no pela ponderada reflexo; suas ordens
nunca so dadas de maneira categrica e definitiva. Titubeante, o tirano vacila, sem
saber o que deve ou no deve ser executado e sua hesitao parece transparecer o
prprio sentimento de ser arbitrrio.
Se o tirano tem um fim catastrfico, disso no deriva a satisfao geral dos
sditos, como resultado de um julgamento moralizante; pelo contrrio, o drama do
tirano se transforma em drama de martrio. O dspota, na sua funo de governar a
humanidade histrica, tem a adeso incontestada dos sditos e sua destruio e
morte significa um julgamento que recai sobre eles tambm. O monarca que sofre,
generoso a ponto de morrer pela humanidade: essa a tnica do teatro barroco
como drama de martrio. Aqui se revela seu estoicismo, o pensamento mais anti-
histrico da filosofia. Benjamin ressalta que no existe uma diviso delimitando
claramente drama de tirano e drama de martrio: os dois se mesclam. Esclarece
ainda que o martrio se d neste mundo, ou seja, nas lutas em defesa da coroa ou
por questes religiosas. O martrio em si no tem nenhum sentido religioso.
Benjamin (1984, p. 97) aponta os objetivos das aes do soberano:
A funo do tirano a restaurao da ordem, durante o estado de exceo: uma ditadura cuja vocao utpica ser sempre a de substituir as incertezas
6 Em 1917, Freud publica o estudo Luto e melancolia, termos que corresponderiam ao Trauer e Melancolie de
Benjamin. Para Freud, o luto reao natural perda de um ente querido, uma pessoa ou algo que o represente,
como um pas, um ideal, etc. Se o luto desaparece com o tempo, a melancolia algo mais radical: um estado
patolgico, onde a pessoa se sente culpada pela perda e, sem a auto-estima, se mostra como algum desprezvel.
Com a perda da libido, o melanclico tem a aparncia de aptico e preguioso. Evidentemente que as concluses
de Freud no se aplicam diretamente categoria de melancolia de Benjamin. Essa apatia e inatividade de que
fala Freud pode corresponder, em Benjamin, acedia que leva empatia com os vencedores. ( Cf. Freud, S.
Luto e melancolia. Novos estudos Cebrap, 1992, p.128ss ).
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da histria pelas leis de ferro da natureza. Mas a tcnica estica tambm d foras para a estabilizao interna equivalente: o controle das emoes num estado de exceo dentro da alma.
A crtica do drama barroco alemo que perdurou por um sculo e meio, no
levou em considerao a complementaridade tirano-mrtir e mrtir-tirano, reduzindo-
o simplesmente a uma tragdia de martrio. Esse julgamento partia
fundamentalmente da anlise dos efeitos psicolgicos sobre os espectadores,
concluindo que o que faltava neste teatro era o conflito e culpabilidade trgica
capazes de provocar o suspense. O mrito de Benjamin est no fato de ter lanado
um olhar totalmente diverso sobre o Barroco atravs de uma teoria do conhecimento
e de um mtodo prprios, bem distintos da tradio filosfica. Ele deixa de lado a
comparao com a teoria da potica aristotlica, a rejeio pelos enredos
grosseiros, para descobrir nesta forma a emergncia da configurao da ideia
caracterizada pela coexistncia dos extremos. Nisto consiste a histria filosfica: o
prncipe tirano e mrtir. Reduz-lo simplesmente a mrtir seria ignorar toda a
dinmica do drama que evidencia o carter tirnico do prncipe. Este carter
representado no palco de forma natural sem a preocupao moralizante de mostrar
o lado perverso das prticas despticas, ou seja, j faz parte das incumbncias
polticas do soberano. O enredo deste drama se desenvolve sob luz intensa e cores
fortes, sem a mnima necessidade de explicar as motivaes de seus atos como
crimes infames.
Para tal avaliao crtica que leva em considerao a necessidade do efeito
psicolgico do suspense nos espectadores, falta ao drama de martrio o conflito
interno prprio da culpabilidade do mrtir. Realmente, no drama barroco no existe
esta necessidade caracterstica da tragdia clssica: os personagens no tem a
mnima preocupao de expor os motivos de suas aes. No enredo do drama no
h lugar para explicaes dos atos tirnicos.
Benjamin enfoca as vrias relaes que definem historicamente o drama
barroco a fim de esclarecer sua especificidade, o que significa refutar as crticas que
perduraram por sculos. Esta contextualizao culmina com a abordagem da
categoria da imanncia, essencial para a compreenso da configurao central do
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drama: o prncipe melanclico. A primeira destas relaes o parentesco do drama
barroco com o drama religioso da Idade Mdia e deve ser entendido sob o ponto de
vista do mundo espiritual medieval: a concepo da histria da humanidade como
tragdia. Com efeito, os cronistas medievais viam a histria universal como uma
grande tragdia e o apocalipse como um fim trgico. Crnica como espetculo
teatral significa: a historiografia do grande drama. Nisto consiste a forma do
barroco. Benjamin, entretanto, ressalta um dos cruzamentos dessa relao: se na
Idade Mdia se tratava da histria universal e sua redeno, no sculo XVII no
havia a preocupao com o tema da salvao. Dividido em mltiplos reinos, o
mundo barroco se volta para o drama cristo secularizado, estigmatizado por um
desespero radical, sem apocalipse, sem escatologia, sem perspectiva de redeno.
Como ponto fundamental da caracterizao do drama barroco, Benjamin
introduz o conceito de imanncia dentro da hegemonia crist incontestada, do
Deus absconso, que o homem barroco desconhece, uma vez que ignora a
providencia divina. A imanncia significa afastar-se do divino, entregar-se ao destino
e, ao mesmo tempo ser observado por um Deus escondido. Secularizar, profanar o
mundo espiritual equivale dizer: entregar-se ao desespero de um conflito insolvel.
No existe explicao possvel para as contradies da configurao do drama: nem
a aceitao estica do martrio nem a exigncia da justia como causa da loucura do
tirano. A verdadeira causa das foras conflitantes do barroco est escondida sob a
superfcie saturada de ricos ornamentos. Eles escondem o ncleo das tenses
dramticas: ter de encontrar uma soluo profana sem abdicar das convices
espirituais do objetivo da salvao presente no drama medieval dos mistrios.
Na contextualizao do barroco, faz-se necessrio considerar trs momentos
histricos e suas caractersticas prprias: a Renascena, a Reforma e a Contra-
Reforma. O Barroco passa a ter o mesmo aspecto unificado na Europa a partir da
opo da Contra-Reforma pela secularizao do drama dos mistrios. Essa
definio pelo profano, a partir das exigncias doutrinais crists, se distingue do
pensamento renascentista que opta pelo profano com total liberdade religiosa.
Como conciliar a soluo mundana com a ortodoxia religiosa? Parece um conflito
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insolvel, de uma imanncia radical, onde a transcendncia no passa de um cu
ameaador pairando sobre o mundo.
sobre esta postura imanentista que Benjamin (1984, p. 103) apresenta a
concepo da filosofia da histria do Barroco:
Sua filosofia da histria tinha como ideal o apogeu, uma idade de ouro da paz e das artes, instaurada e garantida in aeternum pela espada da Igreja e estranha a qualquer dimenso apocalptica. A influncia desta concepo se estende dramaturgia sobrevivente.
certo que Benjamin no se refere somente ao esprito da Contra-Reforma ou,
principalmente, ao empreendimento jesutico de impor a nova era de prosperidade,
atravs do poder poltico da Igreja, mas ao esprito barroco europeu como um todo.
A filosofia da histria da Restaurao domina assim o drama profano que se
distanciou dos temas da redeno do drama dos mistrios, no af da evangelizao.
Dentro deste cenrio religioso, poltico e filosfico europeu, o drama barroco
alemo se restringe aos enredos de total imanncia, cujos temas giram em torno da
configurao principesca, em tudo o que nela existe de extravagante, exagerado e
at grotesco. Necessidade de uma soluo profana para o drama do mundo, sem
perspectiva escatolgica: nesta confluncia paradoxal de conflitos que o drama
barroco alemo volta os olhos para a figurao do prncipe, poo de conflitos,
descrevendo-o como representao da prpria histria, e por isso mesmo, como
paradigma do melanclico. O drama profano, influenciado pela filosofia da histria
da Restaurao, faz da realidade mundana da corte seu principal enredo, onde o
prncipe encarna a melanclica condio humana. 7
A pintura barroca, de Rembrandt a Velzquez, testemunha esta viso da
condio do ser humano, quando representa figuras envelhecidas, em cujos corpos
7 Cf. Maravall, J.A., p. 197. Maravall, em sua pesquisa sobre o barroco espanhol, ressalta os conceitos
fundamentais do esprito imanentista caracterstico do sculo XVII, mostrando como, para o homem barroco,
tudo passa pelo mundo da experincia emprica, mesmo quando este homem fala de transcendncia.
importante esclarecer que imanncia no significa negao ou reduo do campo da transcendncia, que, pelo
contrrio, expande-se, sempre tratados com os meios do domnio da experincia. O homem barroco um homem
preso estrutura mundana da vida.
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est evidente a passagem do tempo. a prpria experincia individual do artista
diante de um objeto ou de uma pessoa, ou seja, diante do mundo concreto e longe
de um objetivo universalizante. Os barrocos entendem a cincia como algo
fantasmagrico que consiste na contradio da evidncia dos fatos singulares que
se repetem e o que se desprende deste singular como algo generalizado.
A primeira e mais importante consequncia decorrente desta mentalidade a
ideia de movimento, como princpio fundamental do mundo e principalmente do
homem. Tal relevncia de um mundo cambiante em constante transformao se
delineia a partir da crise social do final do perodo renascentista, cuja postura
maneirista j contm muitos elementos barrocos; basta lembrar Drer e El Greco.
Sem as categorias de movimento e mudana, impossvel compreender o sentido
do barroco. Nisto consiste a cultura barroca: expressar a radical condio de
transitoriedade de um mundo em crise, atravs da fora de uma linguagem dinmica
e transitiva. Tudo movimento, tudo se precipita no drama da realidade em trnsito.
Para o homem barroco, o peregrino do ser, mutante e movedio, o perene, o
imutvel ou o perptuo so vocbulos que no lhe dizem nada.
A mudana, tema do barroco por excelncia, lei da natureza, destino do qual
no escapa nem o homem nem o universo. O que hoje um edifcio imponente,
amanh se converter em runas. Ou ainda: o que aparece como novo j traz em si
a prpria destruio. O barroco significou uma ameaa tradio do pensamento
aristotlico-escolstico, firmemente fundado na imutabilidade da ordem ontolgica e
no princpio da identidade. O homem barroco exterioriza em imagens o sentimento
de viver em um mundo que se desloca, se levanta e se amontoa, se altera entre a
restaurao e a caducidade. So recorrentes na pintura barroca as representaes
de objetos de mudana e fragilidade como as nuvens, a gua, o arco-ris,
sinalizando o confronto dramtico com aquilo que parece firme. Os moralistas
aproveitavam-se desse sentimento de insegurana para alertar sobre as incertezas
de um fim dos tempos, principalmente para a incipiente mentalidade burguesa.
Benjamin (1984, p. 77) observa o fundamento desta tendncia barroca: Como o
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expressionismo, o Barroco menos a era de um fazer artstico, que de um querer
artstico. o que sempre ocorre nas chamadas pocas de decadncia.
Benjamin compreende o drama barroco como forma que, independente de
cada obra individual, determina seu valor prprio, sem necessidade de recorrer s
comparaes com a tragdia clssica. Esta forma, e somente ela, capaz da
vontade artstica, pois ela nasce dentro de um cenrio de decadncia e todas as
obras individuais, no importa se artisticamente pobres ou perfeitas, tm o mesmo
valor enquanto ideia. Tudo o que se poderia falar do estilo lingustico, grotesco ou
grosseiro, s pode ser feito a partir do momento histrico decadente, pois o drama
barroco est colado neste momento histrico e, como ele tem um estilo lingstico
violento. Ele deixa claro que o drama barroco alemo tem essa especificidade: de
uma forma autnoma e, enquanto ideia, est inserido em um tempo histrico.
Benjamin (1984, p. 86) afirma que o drama tem relevncia enquanto ideia
caracterizada pela coexistncia significativa de todas as obras individuais: Seu
contedo, seu objeto mais autntico, a prpria vida histrica, como aquela poca a
concebia.
O prncipe, figurao central do drama, o representante da histria e se
mostra com todos os vcios e as virtudes das aes polticas. Enfim, o objeto do
drama a histria e no o herosmo mtico. Aqui o sentido de filosofia da histria
compreende a tenso entre histria e natureza e entre imanncia e transcendncia.
Benjamin nota que existe uma relao de proximidade entre os enredos do drama e
o processo histrico, ou seja, o homem barroco via nas encenaes sua prpria
histria.
o tempo moderno da cincia e do conhecimento acumulado nas bibliotecas.
Um jogo conflitante de elementos complementares se instala entre a caducidade e a
renovao: transformar em novo o que j caduco. Os mitos de Circe e de Proteu,
figuras multiformes, so temas que atraem o mutvel e varivel homem barroco.
Assim se forma a mentalidade moderna a partir da confusa postura barroca fundada
na imanncia, isto , na priso ao mundo emprico mutante, e na hegemonia crist
entendida como o Deus absconso.
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Alm da ideia de movimento que engendrou tantos conceitos barrocos, h a
obsesso pelo tempo, principalmente na tentativa de med-lo, como forma de
domin-lo. A temporalidade elemento constitutivo da realidade, visto que esta
realidade um processo. O tempo faz e refaz, decompe e muda. O tempo,
entendido como o passar, o mover-se o nico que permanece: nele as coisas se
fazem e desaparecem. O homem fluidez contnua na realidade que passa. O que
permanece o ser de sua fluidez, isto , o tempo. A obsesso pelo tempo um
tema presente no drama barroco. Para o homem barroco interessa revelar a
estrutura que fundamenta o fluir: sua fugacidade, ou seja, a interminvel substituio
das coisas que vo se transformando em runas. Benjamin (1984, p. 199) mostra
que a histria-natureza o verdadeiro enredo deste teatro: Quando, com o drama
barroco, a histria penetra no palco, ela o faz enquanto escrita. A palavra histria
est gravada, com os caracteres da transitoriedade, no rosto da natureza.
Benjamin trata o tema da runa no drama barroco como a fisionomia alegrica
da natureza-histria: o conceito de histria est vinculado a tudo o que a natureza
tem de transitrio. A runa o cenrio deste drama, onde histria um processo de
declnio. A esta realidade das coisas como runa, a mentalidade barroca desenvolve
o pensamento atravs da alegoria de escombros de uma antiguidade clssica. Note-
se que a representao renascentista do nascimento de Cristo impregnada do
idealismo clssico tinha como cenrio as runas como reminiscncia da
antiguidade, diferente da representao medieval cujo cenrio era a manjedoura. Na
modernidade barroca, conclui Benjamin (1984, p. 200), este cenrio representa a
transitoriedade do tempo. O que jaz em runas, o fragmento significativo, o
estilhao: essa a matria mais nobre da criao barroca. O barroco constri seu
edifcio a partir do que restou de um passado clssico: o novo a mistura desses
elementos remanescentes. No h transfigurao da natureza como na era
renascentista. O drama trabalha com as coisas decadentes da histria. Assim, ao
tratar do problema da fragmentao da linguagem, Benjamin se refere a uma
passagem teatral de Caldern em que Mariamne, mulher de Herodes, encontra
fragmentos de uma carta cujo contedo era a ordem de matar a esposa, caso ele
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morresse. Tal sentena de morte iria salvar a honra manchada pela suposta traio
dela. Nos fragmentos ela l: morte, honra, Mariamne, secretamente, dignidade,
ordena, ambio, morro. Em cada fragmento, em cada palavra est uma expresso
muito intensa. Desta fragmentao, destes resduos que surge a alegoria barroca,
como esclarece Benjamin (1984, p. 201):
Para eles, a natureza o eternamente efmero, e s nesse efmero o olhar saturnino daquelas geraes reconhecia a histria. Nos monumentos dessas geraes, as runas, esto alojados os animais de Saturno, segundo Agrippa Von Nettesheim. Com o declnio, e somente com ele, o acontecimento histrico diminui e entra no teatro. A quintessncia dessas coisas decadentes o oposto extremo do conceito renascentista da natureza transfigurada.
Natureza, histria e o olhar melanclico: estes so os elementos barrocos. O
olhar melanclico entende a histria como o eternamente efmero, transitrio, onde
um majestoso passado jaz em runas, constituindo a matria prima para a arte
dramtica, ou melhor, para a arte como um todo. Benjamin, no texto pstumo Sobre
o conceito da histria, se refere ao melanclico anjo da histria que volta o olhar
para o passado e s consegue ver catstrofes que acumulam montanhas de runas.
Aqui o progresso que est em relao direta com a natureza transfigurada
renascentista e o extremo oposto de ambos no passa de runas.
Introduz-se aqui o conceito de fortuna, a partir da noo de tempo como o
passar, o alterar, o mover-se. Fortuna, que para os antigos era o destino e para os
medievais a desordem permitida pela providncia divina, significa para o homem
barroco a marcha das coisas deste mundo, fora do esquema racional: um acaso que
o homem sagaz pode enfrentar com estratgia visando o sucesso. A fortuna se d
ao acaso, que o modo como tudo aparece. O ser temporal e cambiante das coisas
fornece leis natureza e se mostra ao acaso. Diante disto o homem deve agir com
sabedoria para contar com o modo fugaz de a realidade se manifestar.
A fortuna vai se resolver num jogo, cujo desfecho tem muita probabilidade de
ser a catstrofe, pois ela, como tudo que barroco, pertence ao plano do
conflituoso: conflito entre vencer e ser derrotado, estar por cima e estar por baixo,
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lucrar e perder. A Europa do sculo XVII joga em todo tipo de atividade humana: na
poltica, na economia, na arte. Testemunham esta realidade as sangrentas guerras
entre prncipes, as especulaes financeiras, o jogo pelo lucro do capitalismo
mercantil e a tcnica do trompe-loeil das artes visuais.
A compreenso deste cenrio complexo da cultura barroca esclarece o
sentido do ttulo da obra de Walter Benjamin, onde drama barroco traduo de
Trauespiel, literalmente jogo do luto. O tema do jogo no drama barroco introduzido
quando se faz a distino entre o drama alemo e o drama espanhol de Caldern de
la Barca. Ambos renunciam ao estado de Graa prprio do esprito medieval e
regressam ao estado original de Criao, uma vez constatada a ausncia total da
escatologia, como ficou exposto na abordagem do conceito de imanncia.
Se o drama alemo mergulha no abismo da desesperana, o drama espanhol
e a isso se deve sua superioridade consegue criar artifcios para resolver este
conflito entre a catstrofe inevitvel e uma possvel redeno. Assegurar-se de
alguma forma de transcendncia passou a ser para Caldern o meio para a soluo
do problema. Mas de que maneira, se a opo pelo estado de Criao, isto , opo
pela imanncia exclui qualquer transfigurao na transcendncia? Caldern d a
resposta: atravs do jogo. Jogo, desvio ou sonho, representados nas encenaes
pelos espelhos, cristais e fantoches, artifcios bem claros na obra A vida sonho,
cujo objetivo incluir indiretamente a transcendncia. Pelo sonho, a realidade se
redime, ou melhor, a vida desperta tem a sua garantia. Benjamin conclui: Caldern
consegue harmonizar o jogo e o luto. Nesse jogo, o catolicismo espanhol se impe
na soluo do conflito, quando Segismundo, no final de A vida sonho. Caldern
(2008, p. 91) escreve:
lustre corte da Polnia, que s testemunha de fatos to surpreendentes, escuta o que determina o teu prncipe! Deus escreveu tudo o que o cu determina e que, cifrado nos espaos azuis, nunca engana ou mente. Engana e mente, sim, quem decifrar as determinaes do cu para usar em seu benefcio.
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O sonho que paira como um cu azul sobre a realidade e com ela se
confunde deixa transparecer a presena de Deus e assim o homem barroco pode
se assegurar da transcendncia e resolver seus conflitos nos enigmas deste cu,
graas ao prncipe, arauto dessa verdade. Mas no se deve esquecer que essa
transcendncia a ltima instncia da alegoria, em outras palavras, tudo no vai
alm do mbito do poder do alegorista e portanto do mbito da subjetividade. A
transcendncia, sentenciada pelo prncipe, ilusria e no ultrapassa os muros da
imanncia: fantasmagoria, iluso, sonho e nada mais.
Benjamin, ao analisar a gravura Melancolia I de Drer, resgata a simbologia
da viso renascentista, expressa nos mais variados objetos espalhados diante da
figura alada. Entre esses objetos, jaz um co que dorme. Como tudo que representa
o estado melanclico se baseia na imponente dialtica dos extremos, o co
simboliza a falta de alegria do raivoso e, por outro lado, o faro do pesquisador. E
mais: o co dormindo significa os sonhos, bons e maus. O melanclico sonha um
sonho que atinge o mago das coisas. Disso decorre sua sabedoria: do olhar
voltado para a terra, de onde brotam as sementes. Sonho, meditao, contemplao
so as caractersticas do prncipe melanclico, as nicas capazes de frutificar a
sabedoria que se sustenta em razes profundas. Benjamin (1984, p. 175) como o
drama descreve essas figuraes: Esses sonhos comuns aos prncipes e aos
mrtires, so bem conhecidos do drama barroco.
O prncipe barroco sonha e o faz por ser um melanclico. Sua melancolia lhe
possibilita atingir o mago das coisas, escondido nas profundezas frteis da terra, ou
seja, sonhar a natureza como refgio paradisaco, como o fazia o drama pastoral. O
sonho de Segismundo lhe possibilitou a sabedoria, assegurando-lhe a
transcendncia e, ao mesmo tempo, a soluo do conflito radical da existncia
humana. Nisto consiste a perfeio da arte dramtica de Caldern: por meio de
desvios, como num jogo de espelhos e cristais, poder vislumbrar a transcendncia
na soluo profana dos conflitos do mundo, s possvel no sonho do prncipe
melanclico.
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1.2. O soberano, paradigma do melanclico
No incio do captulo III de Origem do drama barroco alemo, Benjamin
demonstra como o luto parte constituinte do drama barroco, entendido como jogo
do luto (Trauerspiel). Ele parte da contextualizao de cunho religioso do drama
alemo, diferenciando-o do drama do resto da Europa. A doutrina luterana,
professada pelos dramaturgos alemes, se distancia da doutrina catlica da Contra-
Reforma, cuja moral se baseava nas boas aes como meio vlido para a salvao.
O luteranismo exclui as boas aes e elege a f em Deus, nica garantia de
salvao.
Partindo desta constatao fundamental, Benjamin desenvolve a reflexo que
coloca o conceito de Trauerspiel no contexto filosfico moderno.8 Uma vida baseada
unicamente na f, sem motivao alguma de realizaes concretas e de incentivo do
fazer construtivo que visem a uma satisfao compensatria, cai inevitavelmente no
vazio e no tdio. Este o destino da classe que tinha acesso ao conhecimento e ao
poder. Os sditos, entretanto, eram convencidos a se dedicarem ao cumprimento do
dever, cujas recompensas estavam prescritas na mentalidade burguesa.
interessante como Benjamin passa a usar termos do iluminismo, como
apriorstico, meditao e dever, termos que pertencem ao vocabulrio
cartesiano e Kantiano. Se o barroco marcado pelo conflito, aqui est o
paradigmtico conflito e sua soluo elementos fundantes da obra benjaminiana,
resumido em tragdia e tristeza. Como a f no consegue dar uma resposta para o
vazio da existncia humana, o homem, que se apavorava ao pensar na morte como
fim inexorvel, encontra refgio no jogo lutuoso.Conclui Benjamin (1984, p. 162): O
luto o estado de esprito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma
de uma mscara, para obter da viso deste mundo uma satisfao enigmtica.
8 ( Cf. Matos, O. Discretas esperanas, p.101ss). Olgria Matos revela o alcance deste texto de Benjamin
exatamente no que ele tem de referncia modernidade iluminista. Sua pesquisa mostra a relao entre o
Trauerspiel e a melancolia escondida e subentendida em Descartes e em Kant: o poderoso sujeito, nica fonte de
verdade iluminista, sente o vazio imenso e, num jogo lutuoso, expressa o desejo de voltar seu olhar para o objeto.
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O Tauerspiel se revela aqui no autntico sentido filosfico: o sentimento da
vacuidade do sujeito s se supera por meio de um jogo desvio ou mscara onde
ele se volta para os objetos, ou melhor, o sujeito melanclico volta inteiramente seu
olhar para o mundo. Em resumo, nisto que consiste o drama barroco alemo ou o
jogo do luto, em tudo o que ele significa de inteiramente outro da tragdia, ou se
quiser, da tradio e do racionalismo iluminista.
Este jogo s possvel na e pela melancolia e tem de contar com o
sentimento, antittico da razo pura, nico capaz da representao objetiva do
mundo. Pelo sentimento, no entendido aqui como afetividade, o jogo consegue
chegar plenitude do objeto. Benjamin se refere a uma tenacidade da inteno que
caminha sem recuo para dentro do objeto, pois o enlutado compensa a sensao de
vazio e o taedium vitae no jogo da meditao ou no mergulho cada vez mais
profundo no objeto. Disso decorre o saber que tem como exigncia a renncia das
paixes. O estoicismo est estampado no comportamento poltico das duas
configuraes centrais do drama barroco: do soberano e, mais abertamente, do
corteso. Benjamin (984, p. 120) expe o significado do estoicismo barroco:
Nessa e em outras descries, os autores introduzem o alto funcionrio da corte, o Conselheiro Privado, cujo poder, saber e vontade atingem propores demonacas, e que tem livre acesso ao gabinete do Prncipe, onde se arquitetam projetos de alta poltica ...Assim concebido, esse ideal do perfeito homem do mundo desperta na criatura, privada de todas as emoes ingnuas uma sensao de luto.
interessante notar que, neste texto, Benjamin repete o termo
profundamente: Pois os que exploravam mais profundamente as coisas se viam na
existncia como num campo de runas, ou: Ela (a vida) sente profundamente que
no est aqui para ser desvalorizada pela f, ou ainda: Sente um terror profundo
pela ideia da morte. E ele conclui: ...o luto capaz de intensificar e aprofundar sua
inteno. (Origem, 162, 163). Neste jogo do melanclico, a ostentao e a pompa,
caracterstica da linguagem barroca, no passam de contraponto da profunda
meditao e do confinamento.
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A categoria da melancolia se configura no contexto do drama barroco alemo
a partir da hegemonia da f, vista como um destino, que despreza as boas aes
provocando assim o taedium vitae, ou seja, o vazio da existncia humana. Ora,
desprezar as boas aes significa se desligar do mundo, ter de amortecer os afetos
e as paixes, em ltima anlise, as coisas do corpo. O estado de luto, decorrncia
do corpo alienado e do sujeito despersonalizado, pode significar a fora motriz do
instante dialtico. Benjamin (1984, p. 164) expe a extenso das possibilidades do
estado melanclico:
Na medida em que esse sintoma de despersonalizao visto como um estado de luto extremo, o conceito desta condio patolgica (na qual as coisas mais insignificantes aparecem como cifras de uma sabedoria misteriosa, porque no existe com elas nenhuma relao natural e criadora) colocado num contexto incomparavelmente fecundo.
Estado de luto extremo o mago da arte alem do sculo XVII, isto , a
categoria da melancolia, parte integrante da configurao da idia ou da origem
do drama barroco alemo. O luto consiste na relao indelvel do sujeito com o
mundo emprico, por mais que esse sujeito tente reduzir o exterior a um dado a si
mesmo, por mais que tente se livrar dos afetos. O mundo das coisas est sempre ali
presente e o desejo do homem barroco de dirigir seu olhar para ele irresistvel e
insupervel. O luto est no conflito de um sujeito despersonalizado e, ao mesmo
tempo, obrigado a assumir sua totalidade. A soluo o jogo lutuoso, em que o
melanclico se volta para o exterior, dentro da apatia estica, para conseguir algum
tipo de satisfao, algum sentimento positivo, ainda que obscuro, de um mundo
vazio de sentido.
O estado melanclico decorrncia direta da situao conflituosa de um
sujeito dividido e dilacerado: quanto mais ele introjeta o mundo das coisas para
garantir o conhecimento deste mundo, mais se revela a tristeza, o desengano e a
frustrao por afastar-se dele. Alienar o corpo, neutralizar as paixes por uma
estica apatia no sentido de desolao para o barroco rende ao sujeito o estado
de luto extremo. Na pretensa busca da posse do conhecimento, este luto significa a
ocasio fecunda da insatisfao do homem barroco que procura a soluo da
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existncia no saber absoluto. Ao tratar da alegoria, forma prpria da linguagem
barroca, Benjamin (1984, p. 252) esclarece que a busca do conhecimento no passa
de pura curiosidade de um mero saber: A inteno alegrica to oposta voltada
para a verdade... O terreno fecundo da melancolia de outra ordem: a premncia
de uma soluo ao taedium vitae pode significar um longo caminho em busca da
resposta nunca encontrada pelo Barroco. Toda a energia desta forma dramtica vem
da dor fsica do corpo torturado, pois essa dor fora o contato do esprito com o
mundo exterior. Benjamin (1984, p. 241) cita Descartes para evidenciar o poder das
paixes, isto , das influncias corporais:
O dualismo no o nico elemento barroco em Descartes; sua teoria das paixes altamente significativa, como conseqncia da doutrina das influncias entre corpo e alma. Como o esprito razo pura e fiel a si mesma, e somente as influncias corporais podem p-lo em contato com o mundo exterior, a dor fsica constitui uma base mais imediata para a emergncia de afetos fortes que os chamados conflitos trgicos. Se, com a morte, portanto, o esprito se libera, o corpo atinge, nesse momento, a plenitude de seus direitos.
Benjamin pergunta: Antes de tudo: qual a significao das cenas de martrio e
crueldade com que se delicia o Barroco? O Barroco, responde, segue a lei da
emblemtica, isto , o organismo deve ser despedaado e em cada fragmento deve
estar estampada, fixa e claramente, a escrita da significao. Isto se d na
natureza, porm principalmente no ser humano que a significao se apodera da
physis abandonada e fragmentada. Neste contexto fica explicada a presena da dor
fsica e do martrio, elementos caractersticos desta dramaturgia. Os personagens
barrocos morrem e os cadveres que deles restam so a garantia da plenitude da
significao alegrica, como enfatiza Benjamin (1984, p. 242): O cadver o
supremo adereo cnico, emblemtico, do drama barroco do sculo XVII. Desta
maneira se entende como barroca a relao cartesiana entre corpo e alma: s a dor
fsica constitui a base da emergncia dos afetos que colocam o esprito em contato
com o mundo exterior.
Essa passagem de Origem do drama barroco alemo ajuda elucidar a
questo da melancolia em Benjamin: a morte e o despedaamento da physis,
condio nica da significao, engendra o luto. preciso morrer e a morte
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impensvel como o fim da vida, pois no h apoteose barroca sem cadveres.
Trata-se, em ltima anlise, da viso teolgica, de uma teologia da histria, pois a
concepo alegrica do Barroco tem suas razes no cristianismo medieval. Na
potica dos autores barrocos que alis no tinham uma avaliao crtica de sua
prpria criao artstica pode-se notar um vivo interesse pelos textos medievais
sobre a apologia da alegoria e do sacrifcio do corpo, e, ao mesmo tempo,
caracterizado por acentuado anti-paganismo. A fundamentao histrica evidente,
conclui Benjamin (1984, p. 245): Porque o medo dos demnios fazia a
corporalidade aparecer como suspeita e particularmente angustiante.
O olhar, o sentido da viso que pertence ao corpo e pe o homem em contato
direto com o mundo emprico e com os fenmenos a obsesso do melanclico.
Assim est representada a melancolia na gravura de Drer: com os olhos bem
abertos e paralisados, em meio a utenslios sem serventia. Pode-se afirmar que a
melancolia em Descartes reside no conflito insolvel da dualidade entre corpo e
alma.
A compreenso do sentido do jogo do luto (Trauerspiel) s completa se for
levada em conta a concepo de verdade exposta por Benjamin nas Questes
introdutrias de Crtica do conhecimento de Origem do drama barroco alemo.
Benjamin (1984, p. 58s) ao afirmar ...a verdade a morte da inteno..., ele est
mostrando o quanto lutuoso o jogo triunfal da inteno em direo ao saber e como
essa ...procisso solene caminha em sentido oposto ao da verdade. O luto capaz
de intensificar e aprofundar sua inteno. A meditao prpria do enlutado. O
desejo de vidncia do melanclico jamais atinge a verdade, pois esta se representa
por si mesma. Quando muito ele pode atingir um saber enigmtico, e por isso,
fragmentrio e inacabado. O olhar melanclico diz respeito inteno, relao com
a empiria, como afirma Benjamin (1984, p. 58), na introduo da obra sobre o drama
barroco alemo: ...a verdade uma essncia no intencional, formada por idias.
Mas esse abismo tambm o precipcio sem fundo da meditao. Os dados que ela
produz so incapazes de ordenar-se em configuraes filosficas. Benjamin (1984, p.
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254) conclui: Por isso, eles agem como simples estoques de objetos destinados
ostentao da pompa, nos livros emblemticos do Barroco.
Assim se configura o prncipe em sua profunda melancolia: no limiar da
complementaridade do tirano e do mrtir, da f e do jogo lutuoso do saber, do poder
sobre a histria e do mais anti-histrico estoicismo. Ao tratar do problema dos
afetos, tal como ele aparece no drama barroco, Benjamin faz uma observao
importante: existe a proposta didtica neste drama ao apresentar o domnio dos
afetos e das paixes sobre as aes polticas. A sensibilidade enfraquece a vontade
e o soberano enlouquece. O conflito do prncipe entre sensibilidade e vontade (que
Michelangelo expressou plasticamente nas esculturas de figuras com cabeas
desproporcionalmente menores que o corpo, do tmulo dos Medici) est presente no
drama barroco onde as paixes determinam o comportamento do tirano. Nisto
consiste mais uma distino entre tragdia clssica e drama barroco, que consegue
conciliar o trgico com o cmico.
Benjamin, ao afirmar que o prncipe o paradigma do melanclico, leva em
conta toda a herana cultural de mais de dois milnios transmitida ao Barroco, via
Renascena. Esse fato possibilita um comentrio mais preciso sobre o drama, pois
parte daqueles pensamentos filosficos e convices polticas que esto na base da
concepo da histria como uma drama. A cincia como herana renascentista se
funde ao saber obtido pela ruminao do melanclico, isto , a ruminao diz
respeito a tudo que o homem conquistou em sua pesquisa sobre o universo. Essa
imponente herana do pensamento filosfico e da ao poltica tem seu contraponto
na figura do prncipe, frgil e melanclico. A fragilidade da configurao central do
drama barroco ilustrada por um texto de Pascal, mais precisamente nos
Pensamentos: Um rei que se v um homem cheio de misrias. Ele precisa estar
em constante distrao, em jogos e divertimentos. Se ficar s, sentir extrema
tristeza, ao pensar em si.
Mas por que tanta infelicidade partindo de quem tem a dignidade real, a mais
alta entre as criaturas? justamente porque na confluncia entre realeza e misria,
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poder e fragilidade, reside a essncia do Barroco. Conflito radical que Benjamin
(984, p. 167) entende como essencial ao drama: O drama barroco alemo ecoa e re-
ecoa esse pensamento, de mil maneiras. Benjamin j se referia s camadas de
estuque ornamental: a exteriorizao a sada do conflito. Ao rei vestido com o
manto de prpura, com o cetro e a coroa, se ope o rei nu, s com o fardo de sua
imagem de miservel, e melanclico. Assim ele encarna a histria da imponente
herana e da reflexo profunda da ruminao.
A exteriorizao no jogo do divertimento no significa estar num paraso de
felicidade. Os cortesos sofrem o mesmo conflito. A corte, como o prncipe e o
intrigante, aparece na fronteira entre o paraso e o inferno. O tirano pode mergulhar
de tal forma no estado de tristeza, que se desliga do mundo a sua volta e se entrega
ao desespero e loucura. Benjamin insere a melancolia entre os fenmenos do
drama e o faz seguindo fielmente sua metodologia para que a ideia desta forma de
arte se represente. por isso que ao tema da tristeza do prncipe se junta seu
extremo oposto da pompa, das solenes procisses dos governantes que aos
sditos s resta seguir - a ou ainda, da pomposa herana renascentista. Em resumo,
so os extremos entre a ostentao e o luto, entre a exteriorizao e a gravidade,
enfim, o prncipe no limiar do triunfante e do melanclico. o que enfatiza Benjamin
(1984, p. 69): A representao de uma ideia no pode de maneira alguma ser vista
como bem sucedida, enquanto o ciclo dos extremos nela possveis no for
percorrido. Nesse sentido, o Barroco no pode ser pensado unilateralmente, como
smbolo da expresso da riqueza por exemplo, pois ele tem sempre seu duplo
extremo complementar, numa tenso coberta por ricos ornamentos.
exatamente este o procedimento de Benjamin ao percorrer pacientemente as
obras da dramaturgia barroca e descrever os fenmenos em seus extremos.
Exemplo deste mtodo a citao da obra de Gryphius, Leo Armenius, onde os
objetos evidenciam a melancolia e seus antagonismos: tremer de medo com a
espada, sonhos terrveis de pavor com marfim, prpura e escarlate, ou ainda, coroa
com sofrimento e morte.
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Sem pretender traar um histrico das teorias sobre a melancolia, Benjamin
focaliza nessas teorias os aspectos que despertaram o interesse dos dramaturgos
alemes do sculo XVII. Dessa herana assimilada pelo Barroco, destaca a
dualidade loucura e genialidade do conceito de melancolia exposto no tratado De
Problemata de Aristteles e ainda no De Divinatione Somnium do mesmo Aristteles,
sobre o poder proftico do melanclico. Considera tambm a viso teolgica, e
igualmente dualista, de Paracelso, segundo a qual Ado, primeira criatura, o
portador da tristeza e Eva criada para alegrar Ado. Tristeza e alegria se misturam
na formao das criaturas humanas. Do perodo medieval, a escola mdica de
Salerno, com sua teoria da blis negra (atrabilis) da melancolia, como a patologia da
preguia e da acdia, entre todas, a que impressiona mais o Barroco que tinha claro
o destino da miservel criatura. a viso medieval demonolgica de fundamento
cristo, para a qual melancolia significava avareza, ganncia, inveja, deslealdade e
tristeza.
Os rabes, desde a Idade Mdia, herdaram da antiguidade grega mais um
elemento importante na formulao do conceito da patologia do melanclico. Nesta
teoria, a melancolia est sujeita s influncias dos astros, dentre os quais Saturno
o planeta que rege o melanclico. Analisando as caractersticas deste astro, como
sua distncia da terra e sua rbita, suas influncias so interpretadas positivamente,
pois elas explicam a propenso ao meditar profundo do melanclico. Assim o planeta
distante convida a criatura para a contemplao, mediante uma vida interior afastada
das coisas cotidianas; da decorre o saber superior e o poder divinatrio. Essa
interpretao astrolgica se aproxima da teoria aristotlica por sua dialtica inerente:
ela tambm contm o conflito essncia do barroco pois Saturno representa a
inrcia e a preguia por um lado e, por outro, a inteligncia e a contemplao das
coisas superiores.
Na configurao do prncipe, paradigma do melanclico, Benjamin no tem a
inteno de definir melancolia e seu significado para o drama barroco, o que j seria
algo incompatvel com seu mtodo. Ele, ao invs, junta todas as confluncias para
esta configurao, onde se mostra aquilo que prprio do barroco: os aspectos
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extremos complementares do fenmeno. Fica claro assim, segundo as palavras de
Benjamin (1984, p. 172), em todas essas teorias, que este fenmeno est no limiar
entre a acedia e a fora da inteligncia:
O histrico do problema da melancolia se desdobra no espao desta dialtica. Seu clmax alcanado na magia renascentista. Enquanto as intuies aristotlicas sobre a ambivalncia da disposio melanclica, assim como o carter antittico das influncias saturninas haviam cedido lugar, na Idade Mdia, a uma verso puramente demonolgica de ambos os temas, coerentemente com a especulao crist, a Renascena foi buscar novamente em suas fontes toda a riqueza das antigas meditaes.
Klabinsky, Panofsky e Saxl9 desenvolveram uma exaustiva pesquisa o que
ser visto a seguir sobre a representao plstica da melancolia, ressaltando como
este tema fascinou artistas durante sculos. no sculo XVI entretanto que surge a
viso renovada das teorias antigas sobre a melancolia da qual, a Melancolia I de
Drer um cone - em contraste com a teoria moralizante do cristianismo medieval.
De fato, o carter antittico da viso astrolgica havia sucumbido a esse esprito
cristo. A Renascena resgata e deixa como herana para o Barroco o leque de
significaes prprio do sentimento melanclico. Benjamin (1984, p. 149) conseguiu
vislumbrar neste elemento o ingrediente bsico da dramaturgia barroca alem para
a formulao da histria filosfica - e, na ps-histria da modernidade, o mesmo
elemento na poesia lrica de Baudelaire:
Com o intrigante, o cmico penetra no drama barroco, mas ele no um simples episdio. O cmico, ou melhor, a pura pilhria, obrigatoriamente o lado interno do luto; ele aparece de vez em quando como o forro de um vesturio, na barra ou na lapela.
Benjamin descobre uma vertente do drama barroco alemo: as aes principais
e de Estado, um teatro popular que fugia dos gneros solenes e prolixos e
enveredava para a pardia. Com temas escolhidos no Velho Testamento, na
antiguidade e no Oriente, este teatro apresenta prncipes, generais, princesas e
ministros em suas virtudes e vcios, entre palhaos e bobos da corte, que, para
incmodo dos personagens, sempre revelam a farsa. H uma estreita relao entre
este teatro popular e o teatro de fantoches, pois as aes principais e de Estado se
9 Cf. Klibansky et al., 1989.
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miniaturizam e o drama barroco tem muito do esprito cmico das marionetes.
Benjamin cita Lohenstein10 (apud Benjamin 1984, p. 148): ...que tem to pouca
venerao pelos smbolos da soberana magistratura, como se eles fossem
manequins. A majestade do governante barroco tem, na representao, seu lado
jocoso da brincadeira da teatralizao por meio de marionetes, onde o bobo da corte
parodia a funo divina do soberano.
Mas o intrigante que, nas aes, fica mais vontade em suas
maquinaes: ele d o tom jocoso. por meio dele que o cmico entra no drama
barroco e no jogo do luto, ele o lado escondido de uma roupa, que aparece de vez
em quando. O intrigante faz parte do jogo. Mas este jogo tem os dois lados: a pilhria
e a cruel intransigncia. No se tr