20080627 casa grande senzala

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CASA-GRANDE & SENZALA POR FERNAND BRAUDEL* (*) Extraído de Padroni eschia- vi: la formazione della fami- glia brasiliana in regime di economia patriarcale. Turim: Einaudi, 1965. Tradução do ita- liano: Maria Betânia Amoroso. Repetir depois de tantos outros que Casa-grande & senzala é a obra- prima de Gilberto Freyre é dizer pouco, muito pouco: por mais forte que seja o termo, não condiz com um sucesso tão raro e fulminante. Além disso, esta primeira obra de Freyre foi seguida por uma série de livros maravilho- sos, nos quais o Brasil se escancara diante de nós infinitamente, tranqüilo e múltiplo, com o cheiro das suas plantas, florestas, casas, cozinhas, seus corpos brilhantes de suor. E o leitor provavelmente não deixará de seguir sua trilha, ainda mais considerando que o livro que continua e completa Casa-grande & senzala Sobrados e mucambos — é no mínimo tão bonito quanto, talvez mais bonito ainda, e de inteligência rara. É de se esperar que o editor Einaudi publique logo também este livro para o público italiano. Na verdade ninguém consegue se separar dos livros de Freyre desde que os tenha aberto, como não se separa dos romances de Dumas ou da obra caudalosa de Proust. Claro que aqui estamos diante de um universo muito mais violento e carnal que o mundo um tanto quanto sofisticado de Côté de Guermantes. É isto que deve ser explicado em face de um livro que nasce mais uma vez hoje, graças a essa excelente tradução italiana. Em 1933, Casa-grande & senzala surgia em um Brasil doente, como o mundo da época, em sofrimento na sua vida material, na sua realidade política, social, intelectual. O novo livro, de finíssima escritura, causou escândalo imediato: o Brasil daqueles anos queria ser Europa e se colocava do lado da casa-grande, dos brancos. Tenho em mãos uma resenha muito dura, publicada no mesmo ano em São Paulo. Como admitir aquela linguagem, aquele casamento entre três raças, a branca, a "vermelha", a africana (ainda vá lá a indígena, mas a negra!)? Como aceitar aquela negação de uma luta de classes e entre peles de várias cores, em nome de uma genérica e reconhecida promiscuidade de relações sexuais? O senhor- de-engenho conhecia, e muito bem, o caminho para as senzalas. Seus filhos, negros e brancos, ou melhor, mestiços e brancos, eram criados todos juntos nas grandes mansões coloniais. Aquele sangue misto marcou, pouco a pouco, insidiosamente, todos os homens e todas as mulheres do Brasil nordestino, criando um paraíso erótico, no qual, ao final, todos tiraram MARÇO DE 2000 13

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  • CASA-GRANDE & SENZALAPOR FERNAND BRAUDEL*

    (*) Extrado de Padroni eschia-vi: la formazione della fami-glia brasiliana in regime dieconomia patriarcale. Turim:Einaudi, 1965. Traduo do ita-liano: Maria Betnia Amoroso.

    Repetir depois de tantos outros que Casa-grande & senzala a obra-prima de Gilberto Freyre dizer pouco, muito pouco: por mais forte queseja o termo, no condiz com um sucesso to raro e fulminante. Alm disso,esta primeira obra de Freyre foi seguida por uma srie de livros maravilho-sos, nos quais o Brasil se escancara diante de ns infinitamente, tranqiloe mltiplo, com o cheiro das suas plantas, florestas, casas, cozinhas, seuscorpos brilhantes de suor. E o leitor provavelmente no deixar de seguirsua trilha, ainda mais considerando que o livro que continua e completaCasa-grande & senzala Sobrados e mucambos no mnimo to bonitoquanto, talvez mais bonito ainda, e de inteligncia rara. de se esperar queo editor Einaudi publique logo tambm este livro para o pblico italiano.Na verdade ningum consegue se separar dos livros de Freyre desde queos tenha aberto, como no se separa dos romances de Dumas ou da obracaudalosa de Proust. Claro que aqui estamos diante de um universo muitomais violento e carnal que o mundo um tanto quanto sofisticado de Ct deGuermantes. isto que deve ser explicado em face de um livro que nascemais uma vez hoje, graas a essa excelente traduo italiana.

    Em 1933, Casa-grande & senzala surgia em um Brasil doente, comoo mundo da poca, em sofrimento na sua vida material, na sua realidadepoltica, social, intelectual. O novo livro, de finssima escritura, causouescndalo imediato: o Brasil daqueles anos queria ser Europa e se colocavado lado da casa-grande, dos brancos. Tenho em mos uma resenha muitodura, publicada no mesmo ano em So Paulo. Como admitir aquelalinguagem, aquele casamento entre trs raas, a branca, a "vermelha", aafricana (ainda v l a indgena, mas a negra!)? Como aceitar aquelanegao de uma luta de classes e entre peles de vrias cores, em nome deuma genrica e reconhecida promiscuidade de relaes sexuais? O senhor-de-engenho conhecia, e muito bem, o caminho para as senzalas. Seusfilhos, negros e brancos, ou melhor, mestios e brancos, eram criados todosjuntos nas grandes manses coloniais. Aquele sangue misto marcou, poucoa pouco, insidiosamente, todos os homens e todas as mulheres do Brasilnordestino, criando um paraso ertico, no qual, ao final, todos tiraram

    MARO DE 2000 13

  • LEITURAS DE GILBERTO FREYRE

    vantagens, encontraram seus lugares, sua consolao. Francamente, erauma histria muito estranha, quase uma cincia que confundia os gneros."Era como" escreveu recentemente Alain Bosquet "se para ensinar ageometria no espao ele fosse ilustrado por nus femininos, ou como se aeconomia fosse uma planta coberta por mangas e flores". E acrescentava,depois de concluda a leitura: "No h rio, no h pssaro raro que notenha deixado em ns a lembrana de um carinho duradouro". Difcil dizermelhor: percorrer os livros de Gilberto Freyre d um prazer concreto, fsico,como viajar em sonho pelas paisagens tropicais e luxuriantes de HenriRousseau. Mas t ambm um prazer intelectual de qualidade excepcional-mente rara.

    justo comemorar que a lio dada por estes livros tenha sido quaseque prontamente compreendida no prprio Brasil; que o pas, depois daprimeira careta, do primeiro mau-humor impulsivo, tenha se reconhecidoem tal retrato to simptico e sincero: simptico, e cada vez mais medidaque o modelo europeu dilua-se no decorrer da II Guerra Mundial, nomundo que conhecemos bem; sincero, j que o Brasil foi o primeiro pasdo Novo Mundo capaz de dominar o complexo das raas ditas inferiores edos odiados sangues mistos, conseguindo assim tomar posse do seupassado verdadeiro.

    Mais do que uma obra-prima, portanto, o livro de Freyre umarevoluo, uma vitria do amor dos homens pelos seus semelhantes. E elecontinua a ser lido, relido, revivido pelas novas geraes brasileiras estna dcima sexta edio... No, n o se p o d e compar-lo a Cit antique deFustel de Coulanges, muito intelectualizado e sensato, embora a associaotenha sido feita mais de uma vez, e logicamente. Seria como confrontar umavigorosa poesia do folclore brasileiro com uma ode clssica da literaturaitaliana ou francesa. O leitor perceber a diferena facilmente, desde asprimeiras notas desta msica "corprea", fascinante, irresistvel.

    S mais tarde, passado o encantamento, percebe-se a intelignciaaguda deste trabalho. Uma inteligncia que no nos imposta, modafrancesa, como um construo preconcebida, lgica, autoritria. Ela nascedas pginas tumultuadas, mais cantadas do que escritas (e a voz se comprazcom as repeties, as retomadas de ares familiares), e o segredo profundoda juventude deste livro, pensado com fora, com alegria, sem pedant ismo excetuando a necessidade de citar, de enumerar as fontes, a que s vezesFreyre d muito espao (fez bem, muito bem, em ter lido tudo, mas melhorainda ter sabido ver e tornar visveis a realidade, a cor, o perfume dosseres e das coisas). O milagre decisivo ter sabido misturar uma narraohistrica exata, atenta, com uma sociologia de uma finura sem defeitos, otempo frentico dos acontecimentos com o t empo semi-adormentado dasrealidades sociais. A manso dos patres, as cabanas dos escravos, o a-car dos engenhos (de outro modo , d e p e n d e n d o das regies brasileiras,poderamos dizer: o ouro extrado dos rios, das areias; o algodo dasplantaes; o caf das grandes fazendas), esse o quadro no qual se movea grande famlia, a gens primitiva, em cujo seio se formou o primeiro Brasil,

    14 NOVOS ESTUDOS N. 56

  • FERNAND BRAUDEL

    patriarcal, d u r o e te rno , p a g o e cristo, n e g r o e b ranco , feliz de viver,obr igado a se a b a n d o n a r a u m a vida excessiva, violenta e s e m p r e circuns-crita. T u d o passa , circula, se expl ica n a q u e l a pa i s agem primitiva, n a q u e l e"tringulo colonial", c o m o definiu o autor: a casa-grande , o e n g e n h o deacar e a cape la o n d e so en t e r r ados os mor tos c lebres . T u d o isso invocasem dvida u m a certa an t ig idade , mas d e s d e q u e se saiba traduzi-la nal inguagem d o s can tos primit ivos, c o m u m a c o m p a n h a m e n t o d e ms icasafricanas.

    Se o leitor qu ise r sabe r c o m o c o m a pr imeira o n d a de u r b a n i s m o se ir desfazer esta p a i s a g e m primitiva, dever ler Sobrados e mucambos:a migrao de pa t re s e de escravos em d i reo c idade brasileira d o ssculos XVII e XVIII, em d i reo s cur ios idades , s indiscries, m o d e r n i d a d e das ruas , u m a migrao feita o n t e m e j t o dis tante notempo , n o s a n o s em q u e D. P e d r o II, m o o ainda, era o p ro t t ipo d o sjovens intelectuais brasi leiros. E o leitor i taliano pensa r p rovave lmen tena migrao da n o b r e z a fundiria em d i reo s inquie tas c idades da Itliado sculo XIII... So mi lhares de poss ib i l idades para sonha r nes tas pg inasvivas de Gilber to Freyre, feitas pa ra o p raze r de ver e de c o m p r e e n d e r , m a scom a cond io de es ta rmos a ten tos , de nos sent i rmos melhor .

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