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  • Osvaldo Lpez-Ruiz

    127NOVOS ESTUDOS 80 MARO 2008

    RESUMO

    A partir da proposta de Theodore W. Schultz, fundador da

    teoria do capital humano, de considerar a mudana tecnolgica como uma forma de capital para os fins da anlise eco-

    nmica, propomos estudar as implicaes lgicas de uma formulao que, na atualidade, estaria abrindo espao para

    pensar o humano como uma forma de capital e at mesmo antes de o ser humano nascer. Para isso, recorremos s refle-

    xes de Michel Foucault feitas no seu curso Nascimento da biopoltica recentemente publicado , no qual chamar a

    ateno para o que vai designar como o problema poltico da gentica. Refletimos, assim, sobre as implicaes sociais

    e econmicas da informao gentica quando o objeto de estudo da economia estendido e passa a abarcar no s cer-

    tos atributos humanos, considerados agora uma forma de capital, mas tambm o prprio progresso tcnico.

    PALAVRAS-CHAVE: mudana tecnolgica; capital humano; gentica;

    economia.

    ABSTRACT

    The paper discusses the logical implications of thinking the

    technological change as a form of capital, as suggested by T. W. Schultz for the aims of economical analysis. We argue

    that proposals like this, made by the founder of the human capital theory, are currently opening space to think the

    human as a form of capital even before the birth of a human being. We consider what Michel Foucault called the

    political problem of genetics in his The Birth of Biopolitics, and reflect about the social and economical implications of

    genetic information, in particular, when the object of study of economics is extended not just to some human attribu-

    tes, now considered as a form of capital, but also to technical progress itself.

    KEYWORDS: technological change; human capital; genetics; economics.

    [1] Este artigo faz parte do trabalhode pesquisa Da tica protestante aoethos empresarial: capital humano eempreendedorismo como valoressociais realizado no mbito do meups-doutorado no Programa de For-mao de Quadros do Cebrap. Agra-deo especialmente a Jos A. Gian-notti, coordenador, e aos colegas doprograma; e gostaria de agradecertambm a leitura crtica e os coment-rios de Maria Carlotto (Cebrap),Pedro Ferreira, Anderson Santos,Rafael Alves da Silva e Diego Vincen-tin, do CTeMeUnicamp.

    [2] Por razo governamentalFoucault entende os tipos de raciona-lidade que atuam nos procedimentosatravs dos quais a conduta dos

    Em Naissance de la biopolitique, curso ministrado porFoucault no Collge de France em 1979 e publicado como livro naFrana no final de 2004, esboada a histria do que o autor vai cha-mar de arte liberal de governar. Nessa histria que comea, de certaforma, em meados do sculo XVIII, uma transformao importante produzida: surge um novo princpio de limitao da arte de governarque no mais extrnseco razo governamental2, como era o direitocom relao razo de Estado. Naquela poca surge a economia pol-tica,argumenta Foucault,como princpio de limitao interna da novarazo de governo.Em outras palavras,a razo governamental modernapassa a objetar o excesso de governo. Assim, o princpio que vai seimpor ser: no demasiado governo; o princpio da frugalidade dogoverno: A virtuous and laborious people could always be cheaplygoverned in a republican system teria sido a afirmao feita por

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  • homens dirigida por meio de umaadministrao estatal. Por outraparte, ao falar em arte de governardeixa claro que no est tratando daprtica do governo real, mas damaneira deliberada, pensada, degovernar melhor e, ao mesmo tempo,da reflexo a respeito da melhormaneira de governar (Cf. Foucault,Michel. Naissance de la biopolitique.Paris: Gallimard, 2004, pp. 4, 337)

    [3] Franklin teria feito essa afirma-o em 1778, em carta a Charles deWeissenstein (Cf. Ibidem, pp. 30, 49n.1, 327).

    [4] Ao mesmo tempo, para Fou-cault, a teoria do capital humanorepresenta um avano da anlise eco-nmica ao interior do seu prpriodomnio (ibidem,p.229).Esta teoria,ao criticar a economia poltica cls-sica pela forma em que conceituou otrabalho, prope a sua re-introduono campo da anlise econmica a par-tir do ponto de vista de quem trabalha(Cf. Santos, Laymert Garcia dos.Apresentao. In: Lpez-Ruiz,Osvaldo. Os executivos das transnan-cionais e o esprito do capitalismo: capi-tal humano e empreendedorismo comovalores sociais. Rio de Janeiro: Azou-gue, 2007, pp. 16-18).

    [5] Eu acredito que temos ali noapenas a conseqncia pura e simplesda projeo numa ideologia,ou numateoria econmica, ou numa opopoltica, das crises atuais do capita-lismo. Parece-me que o que vimosnascer ali , por um perodo talvezbreve ou talvez um pouco maior, algocomo uma nova arte de governar, ouem todo caso uma certa renovao daarte liberal de governar (Foucault,op. cit., p. 232).

    Benjamin Franklin no final do sculo XVIII3. Franklin lembrado porFoucault como uma das figuras emblemticas dessa concepo degoverno frugal; concepo central, por outra parte, para o liberalismoat hoje. Dessa forma, dir Foucault, o instrumento intelectual, aforma de clculo e de racionalidade que fez possvel a autolimitaodessa razo governamental na forma de uma autolimitao de fato,geral e intrnseca s operaes prprias do governo,no o direito masa economia poltica entendendo por economia poltica,salientar oautor,de forma ampla e prtica, todos os mtodos de governo suscet-veis de garantir a prosperidade de uma nao.

    Contudo,argumenta Foucault,ser nos Estados Unidos,mais con-cretamente na Universidade de Chicago,na dcada de 1960,onde vai seproduzir uma transformao epistemolgica essencial da anlise neo-liberal: o que vai mudar o que tinha sido o objeto, o domnio de obje-tos,o campo de referncia geral da anlise econmica.O objeto da eco-nomia deixar de ser o estudo dos mecanismos da produo, dosmecanismos da troca e dos fatores de consumo dentro de uma estruturasocial dada.O novo objeto passa a ser a anlise e o estudo da forma pormeio da qual os indivduos destinam recursos raros para fins alternati-vos (para fins que concorrem entre si por esses recursos). A teoria docapital humano, elaborada por representantes do neoliberalismonorte-americano ao que Foucault chama, alternativamente, de -anarco-capitalismo ou anarco-liberalismo , vai ser a responsvelpor toda uma mudana na forma de pensar e no tipo de relacionamentoentre governantes e governados. Na opinio do autor, ela representanada menos que a reinterpretao em termos estritamente econmicosde um domnio que at ento era considerado como no econmico. Aeconomia vai tornar-se, assim, a cincia do comportamento humano. A suatarefa ser, ento, a anlise do comportamento humano e da racionali-dade inerente a tal comportamento: A economia, dir Foucault, no mais a anlise de processos, anlise da racionalidade interna,da pro-gramao estratgica da atividade dos indivduos4. Por isso, anlisescomo a da teoria do capital humano permitem problematizar de umaoutra forma domnios que eram,tradicionalmente,tratados pela socio-logia ou pelas cincias sociais em geral: a educao, a cultura, as migra-es,a sade,a criminalidade,o divrcio etc.Com os neoliberais norte-americanos estamos, portanto, diante da generalizao ilimitada daforma econmica do mercado,a qual vai se tornar princpio de inteligibili-dade dos comportamentos individuais5.

    [A teoria do capital humano] permite reintroduzir esses fenmenos [aeducao, a criao dos filhos, a sade etc.], no como puros e simplesefeitos de mecanismos econmicos que ultrapassaro os indivduos e que, decerta forma,os ataro a uma mquina imensa na qual eles no sero os amos;

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    [6] Ibidem, p. 237. Sobre a difusoda forma empresa como parte cons-tituinte de um novo ethos na socie-dade contempornea, ver Lpez-Ruiz, Osvaldo. Ethos empresarial: elcapital humano como valor social.Estudios Sociolgicos, vol. XXV, n. 74,mai-ago 2007, pp. 399-425.

    [7] Schultz, T. W. Capital, hu-man.In:Sills,David L.(ed.).Interna-tional encyclopedia of the social sciences.New York: Macmillan & Free Press,1968, pp. 278-279.

    [8] Ibidem, p. 279.

    ela permite analisar todos esses comportamentos em termos de empresa indi-vidual,de empresa de si mesmo com investimentos e retornos6.

    O CAPITAL HUMANO INATO E O CAPITAL HUMANO ADQUIRIDO

    Se o capital humano composto das capacidades,habilidades e des-trezas com valor econmico e se a maior parte dessas capacidades oproduto de um investimento prvio feito pelo indivduo, a famlia ou asociedade, verdade tambm que existem capacidades com as quais osseres humanos j nascem,capacidades inatas que constituem tambmuma forma de capital. Dito em outros termos, segundo os tericos docapital humano, todas as capacidades teis dos habitantes,sejam elas her-dadas ou adquiridas,conformam o capital humano de uma populao,embora para os efeitos do clculo econmico sejam as adquiridas as quemais interessam. Na entrada capital humano da International encyclo-pedia of the social sciences, na sua edio de 1968,o economista da Univer-sidade de Chicago Theodore W. Schultz, um dos fundadores da teoriado capital humano e Prmio Nobel de economia,vai dizer:

    as capacidades herdadas de uma populao so semelhantes s proprieda-des originrias da terra no sentido de que so dadas pela natureza em qual-quer perodo de tempo significativo para a anlise econmica. As variaesgenticas que poderiam afetar a distribuio e nvel dessas capacidadesacontecem to vagarosamente que no tm relevncia para a anlise econ-mica.Da mesma forma parece ser verdadeiro que a distribuio das capaci-dades herdadas dentro de uma grande populao mantm-se, aos efeitosprticos, constante ao longo do tempo, e que a distribuio dessas habilida-des aproximadamente a mesma seja o pas pobre ou rico, atrasado oumoderno,sempre que a populao seja numerosa7.

    Como contraponto, acrescentar Schultz,

    o quadro bastante diferente no caso das capacidades adquiridas que tmvalor econmico. A formao e manuteno dessas capacidades so anlo-gas formao e manuteno do capital humano reproduzvel. Essas capa-cidades, evidentemente, so sujeitas depreciao e obsolescncia. Almdisso, a distribuio e o nvel das capacidades adquiridas podem ser altera-dos significativamente durante o perodo de tempo que relevante para aanlise econmica. Historicamente, elas tm sido alteradas profundamentenos pases que desenvolveram uma economia moderna8.

    E, portanto, o nvel de desenvolvimento dessa forma de capitalconstitudo pelas capacidades com valor econmico que os habitantesadquirem ao longo da vida seria, ento, o fator que permite explicar a

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  • [9] Os primeiros economistas as-sumiram como uma de suas suposi-es fundamentais que o estado dasartes permanecia constante.Na pocade Smith ou de Ricardo,ter comeadopor abstrair-se das mudanas no ter-reno do estado das artes constituiu,sem dvida enfatizar Schultz ,um golpe de mestre. Mas, nessemundo, as mudanas ocorriam comuma lentido glacial, concluirSchultz: a mutao tcnica podia serainda tomada como um evento no-usual,pedindo apenas um breve cap-tulo Sobre a Maquinaria [alude aquiaos Princpios de economia poltica e tri-butao, de Ricardo, de 1817]. O pro-gresso econmico estava enraizadona diviso do trabalho e na ampliaode um acervo de capital homogneo,com algum retardamento ramificadoadvindo dos rendimentos decrescen-tes em relao terra (Schultz, T.W.O capital humano: investimento em edu-cao e pesquisa. Rio de Janeiro: ZaharEditores, 1973, p. 23).

    [10] Ricardo,David.Principios de eco-noma poltica y tributacin. Mxico:Fondo de Cultura Econmica, 1994[1817], pp. 51-52.

    grande diferena entre os pases pobres e ricos. Isso porque a quanti-dade de capital humano por trabalhador varia muito entre os pases,conclui o autor.

    Sendo assim, e embora as capacidades inatas do homem tenham,em princpio, menor relevncia para os objetivos de avaliao do cres-cimento econmico que motivaram as primeiras formulaes da teo-ria do capital humano, importante analisar alguns dos desdobra-mentos que esse tipo de pensamento pode ter hoje quando asmudanas tecnolgicas e, em particular, os avanos da gentica pare-cem mudar o quadro descrito por Schultz algumas dcadas atrs.

    A QUESTO DO MELHORAMENTO DE CAPITAL HUMANO GENTICO

    Resulta interessante notar a analogia que Schultz faz entre,por umlado,as capacidades herdadas no homem e as propriedades originrias daterra e, por outro, entre as capacidades adquiridas e o capital materialreproduzvel. Umas, pelo fato de serem dadas pela natureza, mudammuito vagarosamente, o que as torna pouco relevantes para a anliseeconmica. As outras esto sujeitas a mudanas significativas numperodo menor de tempo,o que as torna muito mais interessantes paraesse fim aos olhos do economista norte-americano. O motor dessasmudanas,o que determina o valor econmico dessas capacidades, oinvestimento (ou a falta dele e a sua conseqente depreciao e obso-lescncia). Para autores como Schultz e Gary Becker (outro fundadorda teoria do capital humano em Chicago, nos anos 1960, e tambmPrmio Nobel de Economia, em 1992), que criticam e devemosconceder que com razo a adoo acrtica do legado conceitual daeconomia poltica clssica feita por muitos dos seus colegas e contem-porneos modelos e conceitos formulados numa outra poca e emresposta a um outro conjunto de problemas9 , preciso reavaliar,como j mencionamos acima a respeito do trabalho,a importncia e osignificado econmicos de cada um dos fatores de produo para aeconomia moderna.

    Porm, no deixa de resultar curiosa a comparao feita porSchultz entre o que para Ricardo eram as energias produtivas daterra, as energias originrias e indestrutveis do solo10, e as capaci-dades inatas do homem. Ambas so suscetveis de serem tratadas deforma semelhante pela economia,segundo Schultz,pelo fato de seremdadas pela natureza e,portanto,no serem resultado de uma ao deli-berada para produzi-las,como no caso do capital material ou das capa-cidades adquiridas. Por outro lado, tambm em relao aos efeitos daanlise econmica, a distribuio das capacidades herdadas sem-pre que dada uma grande populao podia ser assumida como

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  • [11] Por outro lado, estudos empri-cos como o de Leibowitz concluiriamque:A educao da me estava signi-ficativamente relacionada com o QI[quociente de inteligncia] do filho,enquanto a do pai no,o que indicariaque os investimentos da famlia[home investments: principalmente, otempo dedicado pela me ao cuidadodos filhos] mais do que fatores total-mente genticos esto por trs dessarelao (Leibowitz, Arleen. Homeinvestment in children, Journal ofPolitical Economy,vol.82,n.2-II,mar.-abr. 1974,p.129).Vale a pena lembrarque outros trabalhos dedicados aoque foi chamado de economia da fer-tilidade foram publicados em doissuplementos especiais do Journal ofPolitical Economy, tendo Schultzcomo editor. Esses suplementos New economic approach to fertility(vol. 81, n. 2-II, 1973) e Marriage,family human capital, and fertility(vol. 82, n. 2-II, 1974) trazem con-tribuies de Schultz e Becker como:The value of children: an economicperspective, do primeiro, e On theinteraction between quantity andquality of children, do segundo emco-autoria com H. Gregg Lewis.

    [12] Foucault, op. cit., p. 233.

    [13] Formar o capital humano, for-mar portanto essas espcies de com-petncia-mquina que vo produzir arenda, enfim, que vo ser remunera-das por uma renda, isso quer dizer oqu? Isso quer dizer,claramente,fazero que chamado de investimentoseducativos (Ibidem, p. 235).

    constante tanto ao longo do tempo quanto entre os pases. Comovimos,para Schultz estava claro que o que poderia afetar o nvel e a dis-tribuio dessas capacidades eram as variaes genticas,mas os efei-tos destas s se manifestavam ao longo do tempo e com lentido talque podiam ser perfeitamente deixadas de lado11.

    importante notar como desdobramentos desta questo queainda estavam por vir no escaparam ao olhar perspicaz,no final dosanos 1970, do professor de Histria dos Sistemas de Pensamentodo Collge de France. Falando sobre os elementos constitutivos docapital humano no curso ditado em 1979, e j referido acima, Fou-cault vai argumentar:

    [N]as anlises,eu diria clssicas,desses neoliberais,nas anlises de Schultz ounaquelas de Becker, por exemplo, dito explicitamente que a constituio docapital humano s tem interesse,e s se torna pertinente,para os economistas,na medida em que esse capital se constitui graas utilizao de recursosraros, e de recursos raros cujo uso seria alternativo para um dado fim. Ora, bem evidente que no temos que pagar para ter o corpo que temos,ou que notemos que pagar para ter o equipamento gentico que o nosso.Isso no custanada.Tudo bem,isso no custa nada enfim,precisamos ver...12.

    No havia dvidas para Foucault de que o que interessava aos eco-nomistas de Chicago em termos de constituio do capital humanoeram as capacidades adquiridas, isto , a constituio mais ou menosvoluntria de um capital humano ao longo da vida dos indivduos. Ascapacidades adquiridas atravs do investimento so o que aumenta ovalor do capital humano, diferenciando os seres humanos em funode suas habilidades e destrezas especficas, ou seja, tornando cadaindivduo possuidor de uma combinao especfica de recursos,depo-sitrio no apenas de uma certa quantia,mas de uma certa composiode capital humano, que, em funo dos benefcios oferecidos pelomercado, dever escolher onde melhor aplicar. Certamente estavaclaro que era do lado dos elementos adquiridos que se colocavamtodos os problemas e os novos tipos de anlise que eram apresentadospelos neoliberais norte-americanos13.Em outras palavras:as capacida-des adquiridas tinham interesse econmico por serem recursos rarospara fins alternativos. E, como vimos, as capacidades inatas, por suavez, eram tomadas em mdia como uma constante a ser desconside-rada, e isso tambm no escapava a Foucault. No entanto, e emboradiante dos avanos da gentica a questo dos elementos hereditriosdo capital humano no tivesse ainda emergido como problema, -alguma coisa est a caminho de nascer,alguma coisa que poderia ser,conforme vocs prefiram, interessante ou inquietante, anunciarFoucault durante seu curso:

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  • [14] Ibidem, p. 234 (grifos nossos).

    [15] Ibidem.

    A gentica mostra bem que um nmero muito mais considervel de ele-mentos que ns no podamos imaginar at o presente est condicionado peloequipamento gentico que ns temos recebido de nossos ascendentes.Ele per-mite em particular estabelecer, para um indivduo dado, quem ele , as pro-babilidades de contrair tal ou qual tipo de doena,numa idade dada,duranteum perodo dado da sua vida, ou de uma forma qualquer sem importar qualmomento da sua vida.Dito de outra forma,um dos interesses atuais da apli-cao da gentica s populaes humanas a de permitir reconheceros indivduos em risco e o tipo de risco que os indivduos correm ao longode toda a sua existncia. [Do momento] que podemos estabelecer quemso os indivduos em risco, e quais so os riscos de que a unio de indivduosem risco produza um indivduo que ter ele prprio tal e tal caracterstica emrelao ao risco do que ele ser portador, podemos perfeitamente imaginaristo: que os bons equipamentos genticos vo se tornar uma coisarara, e que na medida em que sero uma coisa rara, isso pode perfeitamenteestar, e totalmente normal que esteja, no interior dos circuitos e do clculoeconmico, isto ,das escolhas alternativas14.

    Como podemos perceber, uma nova questo colocada: o pro-blema da raridade dos bons equipamentos genticos e, portanto, oproblema de como reproduzi-los. Porm, no basta dispor de umbom equipamento gentico. preciso achar algum disposto tam-bm a ter um descendente que conte com um equipamento genticoigual ou melhor para poder garantir o resultado. Ora, como bem des-taca Foucault, produzir uma criana cujo capital humano inato sejaelevado tem implicaes sociais e econmicas vrias. Da mesmaforma que,para aumentar ao longo da vida as capacidades adquiridasda criana seu capital humano e fonte de rendas futuras , seroprecisos investimentos considerveis. Neste caso, sero necessriosinvestimentos prvios para poder achar algum com um bom mate-rial gentico que queira ser co-produtor desse capital humanofuturo. Portanto, ser preciso trabalhar o suficiente e ter uma renda eum status social tambm suficientemente elevados para poder acharum parceiro cujo capital humano seja tambm considervel.Precisosalientar, no entanto, dir Foucault, que no estamos de formaalguma aqui beirando a zombaria: trata-se simplesmente de umaforma de pensar ou de uma espcie de problemtica que atualmenteest em estado de emulso15.

    No entanto,para o filsofo,a inquietao em relao gentica nodeve ser pensada nos termos tradicionais do racismo.No seria esse oproblema que se coloca para a sociedade atual com os desenvolvimen-tos recentes da gentica. Para Foucault, o que encontraria relevnciapoltica em relao gentica na atualidade o problema do melhora-mento do capital humano dos indivduos:

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  • [16] Ibidem, pp. 234-235.

    [17] E continua: ou ainda daquiloque Schumpeter chamava da ino-vao (ibidem,p.237,grifos nossos).

    [N]o momento que uma sociedade formule a si mesma o problema domelhoramento do seu capital humano em geral,no pode no aparecer o pro-blema do controle, da filtragem, do melhoramento do capital humano dosindivduos, em funo, certamente, das unies e das procriaes que resulta-ro [...].E portanto em termos de constituio,de crescimento,de acumula-o, de melhoramento do capital humano que se coloca o problema polticoda utilizao da gentica.Os efeitos,digamos,racistas da gentica so certa-mente algo que preciso temer e que est longe de estar superado.Porm,nome parece que seja o eixo poltico principal na atualidade16.

    A QUESTO DA MUDANA TECNOLGICA

    Antes de encerrar sua aula de 14 de maro de 1979, na qual intro-duziu o tema do neoliberalismo norte-americano, Foucault chamara ateno novamente para a importncia de considerar as derivaeslgicas e as conseqncias polticas de um tipo de pensamento comoo que estava sendo difundido nos Estados Unidos por aqueles econo-mistas e professores em Chicago. Dir a esse respeito:

    podemos sem dvida varrer com um gesto esse gnero de anlise, ou em todocaso praticar a seu respeito a pura e simples atividade de denunciao. Noentanto,acredito que isso seria ao mesmo tempo falso e perigoso.Com efeito,esse tipo de anlise permite em primeiro lugar revisar em parte um certonmero de fenmenos que tm sido sinalizados h um certo tempo [...] e aosquais no temos dado exatamente o status suficiente. o problema doprogresso tcnico [...]17.

    Embora Foucault no explicite a referncia,esse tema tinha preo-cupado a Schultz de forma particular, a ponto de ter dedicado osegundo captulo do seu livro O capital humano: investimento em educa-o e pesquisa (Investment in human capital .The role of education andresearch),publicado em 1971,ao que ele vai chamar de A questo noresolvida das mudanas tecnolgicas. O problema que ali se coloca justamente o da extenso do mbito ao qual se aplica o conceito detecnologia e a necessidade de incluir a mutao tcnica dentro daanlise econmica. Schultz vai criticar seus colegas economistaspelo uso restrito que eles vm fazendo do conceito de tecnologia,aplicando-o apenas aos bens de capital, isto , a estruturas e equi-pamentos, deixando assim de fora da mutao tcnica a terra e ohomem.Ao mesmo tempo vai criticar a prtica estabelecida pela eco-nomia de abordar a mutao tcnica como parte de um domnio quese situa no exterior da teoria econmica. Ele vai reclamar que,embora seja bvio que o progresso na cincia e na tecnologia tivessese tornado uma das principais fontes do crescimento econmico, a

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  • [18] Schultz, op. cit., pp. 21-22.

    [19] Ibidem, p. 20.

    economia continuava tratando a mutao tcnica como se fosse umprocesso exgeno, que tinha a ver com decises tomadas em outrosmbitos e por tcnicos, e no por economistas. A origem desse pro-blema novamente atribuda falta de reviso dos fundamentos dateoria econmica. Como j foi apontado, desde o comeo os econo-mistas abstraram as mutaes ocorridas na tecnologia, mas essasimplificao, que era perfeitamente aceitvel quando a estruturaconceitual da economia poltica foi erigida, vai se tornar totalmenteinaceitvel numa poca em que o crescimento econmico dependemais e mais da mutao tcnica. Schultz sintetiza isso com as se-guintes palavras:

    A tradio terica da economia abstrair-se da mutao tcnica; umdos pressupostos bsicos da formulao clssica da teoria econmica quea tecnologia permanece constante. Para os primeiros economistas, isto erauma engenhosa simplificao;e a teoria que da resultou era,em geral,rele-vante para os problemas ento sob considerao.Mas,no momento em queprecisamos lidar com o moderno crescimento econmico,de h muito que setornou bvio que a suposio de que a tecnologia permanece constante absolutamente contrria aos fatos do crescimento moderno. No obstante,a despeito da forte prova emprica [...], a mutao tcnica ainda no setransformou numa componente integral da teoria econmica.Permanece parte,exgena,e essa marginalizao uma das principais razes por que ateoria do crescimento de to pouca relevncia na explanao do cresci-mento econmico18.

    A proposta de Schultz para sair desse impasse ser pela via daintegrao da mutao tcnica teoria econmica,o que se consegui-ria transformando,para os fins da anlise econmica,a tecnologia emuma forma de capital. Mas antes de avanar nessa proposta deSchultz e analisar suas implicaes, precisamos voltar primeira cr-tica que ele faz a seus colegas pelo uso de um conceito de tecnologiarestrito aos bens de capital.A respeito da concepo clssica da eco-nomia ele argumentar:

    Embora esta abordagem inclua instrumentos, aparelhos e equipamen-tos, exclui, como regra, entidades biolgicas tais como animais e plantas eoutros organismos que entram como itens de receita e de energia no processode produo. [...] Enquanto todas essas entidades esto sujeitas mutaotcnica, no sentido que, em ltima instncia, cada entidade existente podeser substituda por uma outra com atributos tcnicos diferentes, o processode mutao tcnica consiste numa poro de mutaes marginais da estru-tura de capital historicamente adquirida, incluindo-se a estrutura dasambincias domsticas19.

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  • [20] Ibidem, p. 19.

    O que Schultz vinha a propor nesse captulo inicial do seu livrosobre capital humano o captulo seguinte ser o central, e reproduzquase sem alteraes o seu clebre artigo publicado em The AmericanEconomic Review de 1961,Investment in human capital era a adoode um conceito englobante de tecnologia que inclusse os atributos tc-nicos de todos os fatores e de todos os produtos. A idia do autor era queesse conceito levasse em conta no apenas as propriedades tcnicas dotradicionalmente classificado como bens de capital, mas tambm aspropriedades tcnicas originrias da terra no sentido ricardiano. ParaSchultz, as propriedades tcnicas da terra so parte integral de umadada tecnologia, e consider-las como tal era a forma que ele via deestender a anlise econmica ao mbito das diferenas tcnicas, nestecaso, entre parcelas de terra. Com o mesmo critrio, e seguindo omesmo raciocnio, deviam ser consideradas as capacidades inatas dosseres humanos no fim das contas,eram igualmente dadas pela natu-reza. Assim,as capacidades inatas dos homens passavam a ser integra-das tambm dentro da economia como uma forma de capital.

    Um conceito abarcante de tecnologia presumivelmente incluiria tambm[alm das propriedades tcnicas originrias do solo] as capacidadesinatas do homem. Estas, tambm dadas pela natureza e por perodos detempo, so tambm relevantes para a anlise econmica, e as diferenas emtais capacidades no seio de uma populao qualquer mais vasta esto sujei-tas a mudanas significativas20.

    Ora,certamente deve chamar a ateno do leitor que Schultz,poucotempo depois de afirmar a quase irrelevncia econmica das capacida-des inatas do homem no seu artigo de 1968 para a International Encyclo-pedia of the Social Sciences,parea estar afirmando o contrrio em seu livrode 1971.Aqui se abre,no entanto,uma janela interessante nesse tipo depensamento que parece nos permitir ver alm das suas proposiesimediatas. O que importa a Schultz e, segundo ele, deve ser motivo deinteresse para a economia no so as capacidades em si mesmas nocaso,as capacidades naturais enquanto tais ,mas as mudanas que ascapacidades venham a apresentar e sejam elas mudanas originadaspela natureza ou, mais provavelmente, pelo investimento. De certaforma, colocada em xeque aqui a categorizao rgida que dividia ascapacidades dos homens entre inatas e adquiridas,deslocando,assim,a nfase e colocando-a na prpria mudana.Seja como for que acontea,ser a mudana o objeto de estudo dos economistas e,como vemos,dessa forma,o objeto da anlise econmica estende-se ainda mais.Serpossvel, portanto, incorporar mudanas prvias ao nascimento?Mudanas no nvel gentico que visem alterar futuras capacidades doshomens ainda antes de eles nascerem?

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  • [21] Schultz no avana, mas Beckerflerta. Embora no sugerindo o apri-moramento do capital humano pelavia da interveno gentica, numartigo de 1973 ele afirma:se a seleonatural gentica e o comportamentoracional se reforam entre si na pro-duo de respostas mais velozes emais eficientes s mudanas noambiente, talvez essa funo prefe-rencial comum tenha evoludo aolongo do tempo pela seleo natural ea escolha racional como funo prefe-rencial melhor adaptada sociedadehumana (Michael, R. T. e Becker, G.On the new theory of consumerbehavior. Swedish J. Econ., vol. 75, n.4, dez. 1973, pp. 378-96). J em 1976,Becker vai publicar Altruism,egoism, and genetic fitness: econo-mics and sociobiology (Journal ofEconomic Literature, vol. 14, n. 3, pp.817-826), no qual argumenta quetanto a economia como a sociobiolo-gia deveriam combinar as tcnicasanalticas dos economistas com astcnicas em gentica populacional eentomologia da sociobiologia. Cri-tica tambm os economistas por noterem incorporado os efeitos da sele-o gentica e, antes de propor ummodelo econmico do altrusmo,afirma: Eu acredito que uma anlisemais poderosa pode ser desenvolvidaao juntar a racionalidade individualda economia racionalidade degrupo da sociobiologia (p. 818).

    [22] Schultz, op. cit., p. 19.

    Na verdade, aqui tocamos num terreno no qual Schultz noavana21, e tampouco Foucault. Como vimos, a preocupao quesuscita neste ltimo uma forma de pensar como a proposta pela teo-ria do capital humano diante dos avanos da gentica, uma certaforma de colocar os problemas em termos de destinao de recursosraros para fins alternativos, uma preocupao centrada, clara-mente, nos aportes que a gentica pode fazer em termos de informa-o, e nos efeitos sociais e econmicos que podem devir por essesaber mais. Dito em outras palavras, o modo como Foucaultchama a ateno para o problema poltico da gentica est colocadoem termos de informao e no de interveno. Porm, h quasetrinta anos desse seu assinalamento, e com quase trinta anos a maisde avanos na gentica, ser exagero pensar em termos de interven-o gentica quando estamos tratando de um assunto como as capa-cidades humanas, assunto que, por outra parte, j foi colonizadopela economia? Ou, dito de outra forma, quando as capacidadeshumanas tm valor econmico, os investimentos para produzi-laspodem estar tambm no plano da gentica?

    Sem a pretenso, nem a possibilidade, de discutir aqui o quepodem e o que no podem oferecer hoje, ou num futuro prximo, agentica e a bioengenharia em termos de melhoramento das capaci-dade humanas com valor econmico, o que nos motiva a colocar asquestes acima tem, provavelmente, uma origem semelhante ao queparece ter levado Foucault a centrar sua ateno nas anlises dos neo-liberais americanos. O que procuramos mostrar aqui como asimplicaes lgicas de uma formulao como a da teoria do capitalhumano abrem espao para pensar o humano como uma forma decapital se entendemos por humano as caractersticas prpriasdo homem, entre elas, as capacidades, habilidades e destrezas dosseres humanos que interessam economia e permitem pensar ohumano como uma forma de capital inclusive antes de o ser humanonascer. Dir Schultz:

    Desta forma, a idia de mutao tcnica diz respeito a atributos tcni-cos outros que no as propriedades originrias da terra e as inatas capaci-dades de trabalho. Mas o investimento para melhorar o solo e as habilida-des adquiridas do homem podem alterar os atributos tcnicos da terra e dohomem.Da,atravs do investimento,eles tambm esto sujeitos a mudan-as tcnicas22.

    Naturalmente, Schultz no devia ter em mente a possibilidade deinduzir mutaes genticas quando escrevia aquelas linhas h mais detrs dcadas.Porm,quando coloca a questo da alterao das proprie-dades originrias da terra e,da mesma forma e com o mesmo objetivo,

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  • [23] Embora o assinalamento deFoucault esteja,como argumentamos,focalizado nas implicaes sociais eeconmicas da informao gentica,ele tem o mrito de antecipar em mui-tos anos,como bem lembrar LaymertGarcia dos Santos, a agenda das dis-cusses contemporneas sobre bioge-ntica: De certo modo, antecipandoo que viria e,ao mesmo tempo,demar-cando o terreno a partir do qual abioengenharia do humano no s setorna possvel como socialmente neces-sria e individualmente desejvel, valedizer, portanto uma aspirao socialirreprimvel, Foucault permite com-preender por que numa perspectivaneoliberal no h alternativa senodeixar que o mercado decida pelamanipulao do genoma humano.Mais ainda: permite perceber que elecertamente o far, apesar de todas asobjees dos humanistas e das salva-guardas que os especialistas em ticapossam colocar (O futuro dohumano. Relatrio 2005 do Projetode Pesquisa Capes, So Paulo.p. 9[mimeo] grifos nossos).

    [24] Se houver qualquer dvida,basta ler a introduo a A theory ofmarriage de Becker, em que afirma:Em anos recentes, os economistastm usado a teoria econmica maisaudazmente para explicar o compor-tamento fora do setor do mercadomonetrio, e um crescente nmero deno-economistas tm seguido oexemplo deles.Como resultado,a dis-criminao racial, a fertilidade, a pol-tica, o crime, a educao, a tomada dedeciso estatstica,as situaes adver-sas,a participao trabalhista,os usosdo tempo de lazer, e outros compor-tamentos so muito mais bem com-preendidos. De fato, a teoria econ-mica pode bem estar a caminho deprover um marco unificado para todocomportamento que envolva recursosraros, no-comercializveis tantoquanto comercializveis, no-mone-trios, tanto quanto monetrios [...](Journal of Political Economy, vol. 81, n.4,pp.813-814 grifo do autor).

    [25] Desenvolvemos nosso argu-mento de que conceitos que so for-mulados inicialmente dentro de umateoria econmica como,por exem-plo: capital humano, inovao,empreendedorismo etc. passama ser difundidos depois como valoressociais em: Lpez-Ruiz, Os executivosdas transnacionais e o esprito do capi-talismo, op. cit.; O jovem rural:

    afirma a possibilidade de alterao das capacidades de trabalho dohomem, parece legtimo perguntar: mas qual o limite? H limite auma formulao como essa quando o que est em jogo uma fontepotencial de valor econmico? Dito de outra forma,quando ele afirmaque o homem sujeito de mudanas tcnicas atravs do investimento, qual abarreira que impedir que esse investimento seja feito antes mesmo deesse homem nascer? Ou ainda,com que argumento um pai disposto ainvestir no aprimoramento do capital humano do seu futuro filhopoder ser dissuadido23?

    Contudo, fcil imaginar aqui a resposta que daria um Schultz ouum Becker a essas questes:essas so consideraes de tipo moral,ale-gariam, que no dizem respeito ao tipo de trabalho cientfico que elesfazem nem ao objeto de estudo da cincia econmica. Mas quando aeconomia pretende, como cincia, estender seu objeto a toda a ativi-dade humana,pretende ser a via de inteligibilidade para compreendera racionalidade interna da ao humana ou, em outros termos, se pre-tende a cincia do comportamento humano24, sobra espao paraoutras instncias como as da poltica ou da tica? Mais ainda, o queacontece quando os conceitos inspirados em teorias cientficas se tor-nam valores sociais25? O que acontece quando certos discursos cien-tficos se tornam prescritivos e no apenas descritivos ou explica-tivos do bom funcionamento do social? O que acontece quandoas noes de valor econmico e valor moral se aproximam demasiada-mente,se entrelaam,se tornam indistinguveis? Assim,dispor de umalto estoque de capital humano apenas economicamente bom?Desenvolver as capacidades individuais que permitiro a insero nomundo do trabalho apenas desejvel do ponto de vista social? E, sefor, podemos afirmar que moralmente bom, que eticamente, diga-mos, responsvel para usarmos uma formulao cara ao mundoda tica empresarial?

    Voltemos, antes de concluir, proposta de Schultz de integrar amutao tcnica teoria econmica e revisemos rapidamente algu-mas de suas implicaes. Em primeiro lugar, para que a mutao tc-nica deixe de ser exgena economia, o economista sugere tratartodas as tcnicas, novas e velhas, como formas de capital ou, emoutras palavras,transformar a tecnologia em capital para os objetivosda anlise econmica; isto , determinar o valor econmico das enti-dades que contribuem para a produo, quaisquer que sejam seusatributos tcnicos o que significa, claro, trazer para o campo eco-nmico a tarefa de avaliar a contribuio de cada atributo especficodas entidades e, para isso, a necessidade de desenvolver instrumen-tos de medida e quantificao,na forma de tcnicas e modelos econo-mtricos, que permitam mensurar seu desempenho em termos deresultados econmicos. Em segundo lugar, estender o conceito das

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  • empreendedor e capitalista?, MarcoSocial, n. 8, set. 2006, pp. 18-21;Somos todos capitalistas? Delobrero al trabajador-investidor.Nueva Sociedad, n. 202, mar.-abr.2006 , pp. 87-97.

    [26] Schultz, op. cit., 28.

    indstrias que produzem os bens de capital para alm do que foientendido tradicionalmente como capital. Ou seja, tratar boa parteda pesquisa cientfica, e tambm uma grande parte da educao e deoutras atividades que geram capacidades com valor econmico, comoindstrias que produzem novas formas de capital mais eficientesdo que as velhas formas de capital.Em resumo,o que Schultz prope,como sugerido no subttulo do seu livro, redefinir o papel da pes-quisa e da educao como indstrias e inclu-las estas numa anliseglobal do processo de crescimento econmico.

    Quais so as implicaes dessa proposta? Principalmente, pode-mos resumir, uma redefinio dos conceitos no interior do domnioda economia. Schultz, no entanto, vai apontar as seguintes: 1. a tc-nica passa a ser pensada como capital: a tcnica no nada mais,nada menos, do que uma unidade de capital; 2. enquanto um feixede tcnicas que representam uma tecnologia uma estrutura de capi-tal; 3. e uma mutao tcnica uma alterao de uma estrutura decapital; 4. pelo que uma nova e mais eficiente tcnica acarreta uminvestimento, na formao desse tipo de capital. Assim, a longa eduradoura posio de se distinguir,tentativamente,entre tcnicas e ocapital vai por guas abaixo26. Mas, o que mais importante, a cargaanaltica recai na economia, isto , recai a partir dali nos materiais con-ceituais (investimento, capital etc.) com que se constri o edif-cio da cincia econmica, e no, curiosamente, nos aspetos propria-mente tcnicos das mudanas. Isto , dito com outras palavras palavras que dificilmente soaro estranhas para algum que olhe omundo hoje : as decises tcnicas a respeito das mudanas tecno-lgicas passam a ser pensadas prioritariamente em termos de inves-timentos e retornos ao investimento.

    Fica claro, portanto, que a questo do melhoramento do capitalhumano gentico apenas um aspecto (inclusive, ainda por vir) deuma problemtica maior que se abre quando uma forma de pensar oproblema econmico se expande a outras reas e objetos aos quais aplicada a racionalidade interna estabelecida pela prpria economia.A questo da mutao tcnica j faz parte,indubitavelmente,do corpoduro das doutrinas que explicam hoje o crescimento econmico pelavia da inovao e que estimulam os investimentos em cincia e tecno-logia para mudar e melhorar produtos e processos de produo.Quando conceitos como capital humano, definidos dentro dombito de uma teoria cientfica, passam a ser difundidos como umaforma de as pessoas pensarem a respeito de suas capacidades,habili-dades e destrezas, mas tambm como uma forma de se pensarem (epensarem suas vidas) s a partir das capacidades com as quais elaspodem mais diretamente se inserir no mundo social hoje, isto ,atra-vs do jogo do intercmbio econmico; quando essas capacidades

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  • [27] Conforme propusemos emEthos empresarial, op. cit.

    raras se tornam por esse mesmo motivo desejveis e, portanto, pas-sam a orientar uma srie de aes, uma srie de esforos (investi-mentos) dirigidos a obt-las, a melhor-las, a atualiz-las, a incre-ment-las; quando, portanto, esses conceitos passam a serinternalizados como valores que orientam as condutas, como umethos ao qual podemos caracterizar chamando-o de empresa-rial27 ; talvez, nesse momento, seja oportuno reler com maior cui-dado uma das frases de Schultz citadas acima,tentando analisar seuspossveis desdobramentos quando, como agora, o que est em ques-to so entidades biolgicas como os seres humanos: Enquantotodas essas entidades esto sujeitas mutao tcnica,[...] em ltimainstncia, cada entidade existente pode ser substituda.

    Osvaldo Lpez-Ruiz socilogo,doutor em Cincias Sociais,pesquisador do CTeMe (Grupo de

    Pesquisa em Conhecimento, Tecnologia e Mercado), do IFCH-Unicamp, e do Cebrap.

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    Recebido para publicao em 24 de outubro de 2007.

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