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i UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa San Tiago Dantas de Pós-Graduação em Relações Internacionais - UNESP / UNICAMP / PUC-SP TERRORISMO E INSEGURANÇA NO MUNDO PÓS 11 DE SETEMBRO Thiago Yoshiaki Lopes Sugahara São Paulo 2008

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa San Tiago Dantas de Ps-Graduao em Relaes

    Internacionais - UNESP / UNICAMP / PUC-SP

    TERRORISMO E INSEGURANA NO MUNDO PS 11 DE SETEMBRO

    Thiago Yoshiaki Lopes Sugahara

    So Paulo 2008

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Programa San Tiago Dantas de Ps-Graduao em Relaes

    Internacionais - UNESP / UNICAMP / PUC-SP

    TERRORISMO E INSEGURANA NO MUNDO PS 11 DE SETEMBRO

    Thiago Yoshiaki Lopes Sugahara

    Dissertao apresentada como pr-requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Relaes Internacionais, sob orientao do Prof. Dr. Marco Aurlio Nogueira

    So Paulo 2008

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    TERRORISMO E INSEGURANA NO MUNDO PS 11 DE SETEMBRO

    Thiago Yoshiaki Lopes Sugahara

    Dissertao apresentada banca Examinadora da Universidade Estadual Paulista, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Relaes Internacionais, sob a Orientao do Prof. Dr. Marco Aurlio Nogueira.

    Banca Examinadora:

    ________________________________________

    Prof. Dr. Marco Aurlio Nogueira (orientador) UNESP

    ________________________________________

    Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser PUC-SP

    ________________________________________

    Profa. Rossana Rocha Reis USP

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    Aos meus pais pelo apoio e dedicao em todos esses anos.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Marco Aurlio Nogueira, meu orientador, pelo apoio e ateno na construo da dissertao.

    Aos mestres do Programa San Tiago Dantas de Ps-Graduao em Relaes Internacionais por partilharem conhecimentos e estimular a reflexo ampliando os interesses dessa pesquisa.

    Ao Prof. Dr. Tulo pela ateno dedicada em momentos cruciais nestes ltimos anos.

    Agradecimentos aos Professores Reginaldo Nasser e Shiguenoli Miyamoto pela colaborao que deram na ocasio da banca de qualificao.

    Aos colegas de Mestrado pelo convvio enriquecedor.

    Aos amigos e familiares que puderam compreender o afastamento temporrio que implica a elaborao de uma dissertao de mestrado.

    Ao meu irmo que mesmo longe continua me apoiando.

    A minha amiga, companheira, parceira e cmplice Cristina que soube como poucos enfrentar a queda das torres gmeas.

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    RESUMO

    A presente dissertao, situada no campo das relaes internacionais, analisa os atentados de 11 de setembro como um marco para a histria dos Estados Unidos e a poltica de segurana do governo George W. Bush. A partir das reflexes sobre a sociedade de risco e a modernizao reflexiva, a ameaa difusa do terrorismo internacional percebida como uma forma de mal-estar contemporneo que usurpa a liberdade individual em nome da segurana coletiva. Para compreender os fatos que se sucederam aos atentados terroristas de 11 de setembro, busca-se reconstituir as razes histricas do terror ao longo das ltimas dcadas do sculo XX e analisar as relaes de aliana por convenincia da Guerra Fria.

    Palavras-chave: Terror, Terrorismo, 11/9, Sociedade de Risco e Modernizao Reflexiva.

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    ABSTRACT

    Present thesis, related to the international relations field, assesses the relevance of the 9/11 attacks as a milestone in the history of the United States as well as to George Bush's national security policy. Stemming from considerations over Beck's risk society and reflexive modernization, the fuzzy threat caused by international terrorism is perceived as a form of contemporary distress that seizes individual freedom in the name of a colective security. In order to understand the facts that followed 9/11 terrorist attacks, terror historical roots along the last decades of the 20th century must be reconstructed and Cold War convenient aliances must be revaluated.

    Key-words: Terror, Terrorism, 9/11, Risk society and Reflexive modernization.

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    NDICE

    INTRODUO ............................................................................................................1 1. MARCO TERICO E ELEMENTOS-CHAVE PARA COMPREENDER O TERRORISMO...........................................................................................................12

    1.1 - GLOBALIZAO E INTERDEPENDNCIA ...............................................12 1.2 - SOCIEDADE DE RISCO................................................................................14 1.3 - O CONCEITO DE MAL-ESTAR....................................................................19

    2. TERRORISMO E TERRORISTAS.........................................................................26 2.1 - GUERRA CONTRA O TERRORISMO..........................................................31 2.2 - FUNDAMENTALISMO .................................................................................35 2.3 - LIBERDADE, INSEGURANA E DEMOCRACIA ......................................40

    3. O FIM DO PACTO ENTRE A JIHAD ISLMICA E OS EUA...............................46 3.1 - OSAMA BIN LADEN ....................................................................................51 3.2 - A SOCIEDADE DOS IRMOS MUULMANOS .........................................59 3.3 - GUERRA DO AFEGANISTO (1979-89) .....................................................64

    4. O MUNDO PS 11 DE SETEMBRO .....................................................................68 4.1 - A DOUTRINA DE SEGURANA DOS EUA................................................71 4.2 - ANLISE DE DISCURSOS. ..........................................................................77 4.3 - A OPINIO PBLICA NORTE-AMERICANA.............................................80

    CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................90 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: ........................................................................96 SITES: ......................................................................................................................103 DOCUMENTRIOS: ...............................................................................................105

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    INTRODUO Na histria recente do sculo XXI nenhum tema atingiu maior repercusso

    ou desdobramento poltico do que os atentados de 11 de setembro de 2001. Desde 1995 os EUA no eram alvo de um ataque terrorista em seu territrio (excluindo-se, portanto, os ataques a embaixadas e bases militares no exterior) capaz de abalar a economia americana. Desde 1989 nenhum evento parece ter reunido a fora de um marco histrico ou comovido a opinio pblica internacional como o que se passou em 11/09.

    Se considerarmos de modo abrangente o campo das Relaes Internacionais, o terrorismo no um fenmeno exclusivo do sculo XXI. Existem evidncias da prtica do terror que remetem ao princpio da era Crist e, grosso modo, aes terroristas, ou assim consideradas, preencheram todo o perodo em que se constituram os grandes Estados constitucionais e se afirmou a modernidade capitalista. O sculo XX, com suas guerras mundiais - atravs da exacerbao da poltica de potncia que nele teve lugar - e localizadas - como as lutas de libertao nacional -, forneceu um cenrio privilegiado para o uso intensificado do terror como recurso poltico. Mas foi no incio de sculo XXI que o terror assumiu dimenso sem precedentes.

    A Liga das Naes - predecessora da Organizao das Naes Unidas (ONU) props um esboo de conveno internacional em 1937 que definia terrorismo como: Todo ato direcionado contra um Estado com inteno calculada de criar um estado de terror na mente de uma pessoa em particular ou de um grupo de pessoas particulares ou do pblico em geral. No entanto, nem a Liga das Naes, nem a ONU chegaram a ratificar uma resoluo que defina claramente terrorismo.

    A presente dissertao prope-se a estudar as motivaes que levaram construo da rede terrorista al Qaeda e que resultaram nos ataques de 11 de setembro. Em linhas gerais, apia-se em algumas reflexes e conceitos derivados de parte da elaborao sociolgica mais recente, nomeadamente em Zygmunt Bauman (modernidade lquida, mal-estar na ps-modernidade), Ulrich Beck

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    (modernizao reflexiva, sociedade de risco) e Anthony Giddens (mundo em descontrole, risco, incerteza). Busca-se investigar aqui, entre outras coisas, o falso dilema criado em torno da manuteno da segurana em troca da reduo da liberdade. A partir da anlise do discurso das principais autoridades envolvidas no planejamento da doutrina de segurana dos EUA e a partir do esforo para considerar a percepo da opinio pblica norte-americana, tentamos construir um mapa da atual guerra contra o terrorismo.

    Analisar um fato recente pode revelar menos informao sobre suas conseqncias polticas, econmicas e sociais a curto prazo do que a anlise de um evento no passado distante. Por outro lado, tambm verdade que uma investigao no tempo presente permite reunir uma gama maior de dados e elementos de anlise em funo da alta exposio dos temas em questo. O terrorismo alcanou ampla e constante exposio nesse incio de sculo. A queda das torres gmeas no revelou grande coisa sobre o mundo ps 11/09, mas disse muito sobre o carter das alianas na esfera da Guerra Fria e principalmente sobre as novas alianas no mbito da dcada de 90.

    H razes para afirmar que estamos atravessando um importante perodo de transio, onde a globalizao est transferindo o poder da esfera nacional para a esfera global, atravs do mercado financeiro e dos organismos internacionais. Tambm verdade que o processo inverso se d na forma do ressurgimento de novas identidades locais, tais como os movimentos nacionalistas baseados na valorizao da cultura regional e na fora da tradio. Seguindo alguns estudos de Manuel Castells, pode-se admitir que a identidade se torna fonte bsica de significado com capacidade para organizar formas distintas de reao ao processo de globalizao. A anlise do terrorismo moderno pode ajudar a traduzir a histria mais recente do sculo XX sob a perspectiva da luta por autonomia poltica e por identidades - coletivas e individuais - atribudas ou construdas.

    Na segunda metade do sculo XX, a Guerra Fria determinou um modelo bipolar de poder na esfera das relaes internacionais e influenciou ou pelo menos restringiu o alcance do terrorismo internacional. Durante as dcadas de 60 e 70, o

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    terrorismo foi uma prtica poltica amplamente adotada por grupos radicais de esquerda como o Baader-Meinhoff ou movimentos por independncia e autonomia poltica como o ETA e o IRA. No entanto, o terrorismo no uma prerrogativa dos movimentos de esquerda e muitos governos de direita dele se valeram de forma intensiva principalmente mediante o emprego do terrorismo de Estado para reprimir e eliminar adversrios polticos.

    Na Amrica Latina, surgiu entre as dcadas de 70 e 80 uma srie de movimentos de esquerda de filiao maosta1, que adotaram a guerra de guerrilha2 como opo poltica para se contrapor ao governo. Na prtica, o terrorismo ganhou projeo internacional principalmente aps os atentados contra os jogos olmpicos de Munique (1972) e o seqestro de aeronaves e navios como o Achille de Lauro (1985).

    Especificamente na dcada de 1980 e no incio dos anos 90, o terrorismo teve destaque nas mdias internacionais em funo da violncia dos atentados suicidas perpetrados por homens-bomba no Oriente Mdio, palco de inmeros conflitos entre rabes e israelenses e entre rabes e rabes. Por algum tempo, a ao do mrtir suicida causou espanto e polmica na comunidade internacional vinculando o terrorismo aos principais problemas do Oriente Mdio , mas foi particularmente a Guerra do Golfo em 1991 que criou simultaneamente um importante marco histrico para as polticas de cooperao internacional, e um perigoso precedente poltico para o novo terrorismo internacional.

    O conflito rabe entre Iraque e Kuwait desestabilizou as relaes de poder no Oriente Mdio, o que permitiu o reposicionamento estratgico de tropas

    1 A concepo chinesa de guerra popular privilegiava a fora do campesinato e da guerrilha rural,

    dava enfse ao carter revolucionrio do Terceiro Mundo e ao belicismo. Foi a sentena de Mao os imperialistas e os revolucionrios so tigres de papel, o poder nasce da boca do fuzil (Goreder, 2003) que inspiraram movimentos como o Sendero Luminoso. 2 Lnin costumava separar o terrorismo da guerrilha propriamente dita e afirmava que o terrorismo a

    estratgia dos grupos de intelectuais separados das massas (Bonanate, 2000). Habermas afirma que os guerrilheiros lutam, num territrio poltico conhecido e com propsitos polticos declarados pela conquista do poder. Isso os diferencia dos terroristas espalhados globalmente e organizados em redes segundo os princpios de servio secreto, nos quais se conhecem motivos fundamentalistas, mas que no perseguem um programa para alm da destruio da ameaa segurana (Habermas, 2004:13).

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    americanas na Arbia Saudita. O historiador Bernard Lewis afirma que se a Arbia o local mais simblico no mundo do isl, o segundo Bagd, a sede do califado por meio milnio e palco de alguns dos mais gloriosos captulos da histria islmica (Lewis, 2004: 146-147).

    O reposicionamento de tropas estrangeiras no mundo rabe durante a dcada de 90 ajudou a romper definitivamente o antigo pacto entre os jihadistas islmicos e o governo norte-americano forjado no auge da Guerra do Afeganisto (1979 1989). o rompimento desse pacto que permite explicar como antigos aliados se transformaram em novos inimigos e como antigos inimigos se transformaram em novos aliados. tambm com base no rompimento desse pacto que o presente trabalho explica os atentados de 11/09.

    Na dcada de 80 o governo de Washington financiou a ao dos insurgentes fundamentalistas e ressaltou a determinao dos guerreiros mujahiddins. Empenhados em combater o exrcito sovitico durante uma das mais extensas guerras de guerrilha do sculo XX, as milcias de mujahiddins uniram religio e poltica para construir um Estado islmico no Afeganisto. Como se poder ver no captulo 2 desta dissertao, com o fim da Guerra Fria em meados dos anos 90 os EUA e os fundamentalistas do Taleban3 gradualmente se distanciaram pela falta de afinidade - ideolgica e poltica -, enquanto antigos inimigos como a Rssia e os EUA passaram a compartilhar interesses econmicos cada vez mais convergentes. Foi apenas em meados dos anos 90 que a organizao al Qaeda redirecionou o foco de seus esforos, transferindo-o do combate aos comunistas soviticos para o combate influncia norte-americana. Tal fato, alguns anos mais tarde, levaria aos ataques de 11/09.

    OS ANOS 90 E O TERRORISMO INTERNACIONAL

    Nos anos de 1990, os Estados Unidos se transformaram em superpotncia militar com capacidade para intervir simultaneamente em mltiplos conflitos, do Oceano Atlntico ao Oceano ndico. Formulada pela nica superpotncia

    3 O Taleban foi a milcia de guerreiros mujahiddins que governou oficialmente o Afeganisto entre

    1996 e 2002 com reconhecimento dos Emirados rabes, Arbia Saudita e Paquisto.

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    remanescente da Guerra Fria, a doutrina de segurana dos EUA passou a enxergar cada vez menos limites para a sua respectiva atuao na promoo dos interesses norte-americanos.

    Na esfera da economia internacional, o padro-dlar passou a determinar a base de converso das transaes financeiras ao redor do mundo, transformando a Amrica do Norte no principal mercado consumidor do planeta. Ao extraordinrio poder militar e econmico dos EUA, somou-se uma igualmente poderosa indstria do entretenimento e da informao, que difunde o American Way of Life como um padro de comportamento veiculando a idia de globalizao e novos parmetros de modernidade.

    Ao longo da dcada de 90, os EUA acompanharam o desenvolvimento das aes terroristas imaginando que a principal ameaa aos interesses da nao emanava de governos, e no de indivduos isolados ou organizaes no-governamentais. O foco da poltica de segurana norte-americana era orientado para embates convencionais contra potencias regionais como a China, ou os assim definidos Estados Delinqentes como a Coria do Norte, o Ir e o Iraque. Pouca ateno se deu durante o governo Clinton ao pequeno Afeganisto que faz fronteira com sete pases entre eles o Paquisto, a China, e o Ir ou ao crescente terrorismo transnacional.

    O termo Estado Delinqente, empregado pela ex-embaixadora dos EUA na ONU, Madeleine Albright, traduziu os princpios que nortearam os primeiros anos da poltica externa da gesto Clinton, entre 1993 a 2000. Albright partilhava a viso de que os Estados Unidos so donos de um carter excepcional orientado pelos mais altos valores morais e universais e, portanto, possuem um papel especial a cumprir no sistema internacional. Segundo Albright, ns voamos mais alto, vemos de cima, e sabemos o que melhor para o mundo (Dupas, 2003:6).

    Os Americanos sempre foram internacionalistas, mas seu internacionalismo sempre foi subproduto de seu nacionalismo. Quando eles procuraram legitimidade para seus atos no exterior, no o procuraram em instituies supranacionais, mas em seus prprios princpios. por isso que sempre foi to fcil para tantos americanos acreditar, como muitos ainda crem hoje,

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    que ao promover os seus prprios interesses, promovem os interesses da humanidade. (Kagan, 2003: 89)

    Focada no isolamento da ameaa de Estados refratrios aos interesses dos EUA, a poltica externa norte-americana manteve o principio segundo o qual as relaes internacionais so orientadas pela exclusiva relao entre Estados, o que no contemplava uma guerra assimtrica contra um nico individuo, ou uma organizao descontextualizada de um Estado. A ameaa do terrorismo na dcada de 90 era tratada como uma questo de polcia no mbito interno4, ou como um produto do embate entre os Estados Delinqentes e os EUA no mbito externo.

    Para julgar e condenar os Estados acusados de patrocinar o terrorismo, os pases membros da ONU organizaram embargos econmicos. Porem, quando as embaixadas dos EUA no Qunia e na Tanznia foram atacadas por terroristas em 1998, o presidente Clinton autorizou o uso de ataques cirrgicos contra alvos no Afeganisto, revelando - como observou Jacques Derrida (2003) - a disposio dos EUA para agir multilateralmente quando possvel, mas unilateralmente quando necessrio. A poltica externa da gesto Clinton fez uso de ataques preventivos no Afeganisto e no Sudo - sem muito sucesso - e a ameaa do terrorismo permaneceu em segundo plano at meados de 2001.

    Em 2001, a organizao al Qaeda liderada pelo saudita Osama Bin Laden escreveu uma nova pgina na histria do sculo XXI. Durante uma srie de ataques coordenados, dezenove terroristas seqestraram quatro aeronaves e deliberadamente atacaram alvos civis e militares. Cada alvo foi cuidadosamente escolhido pelo seu valor simblico diante do caos que se instalaria. Parte dos ataques foi registrada e transmitida ao vivo para todo o globo monopolizando a ateno da opinio pblica internacional, o que conferiu ao terrorismo moderno um novo carter primordialmente miditico.

    O grande impacto causado por esses movimentos resulta, em grande medida, da presena marcante na mdia e o uso eficaz da tecnologia da informao. Procura-se atrair a ateno da mdia nos moldes da tradio

    4 O mais grave atentado terrorista na histria dos EUA at o 11/09, foi cometido por um cidado

    norte-americano - ex-membro das foras armadas chamado Timothy McVeigh em 1995. McVeigh detonou intencionalmente um caminho bomba contra o prdio do Bir Federal em Oklahoma, matando 169 pessoas e ferindo outras 675.

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    anarquista francesa, brevemente reinstaurada em maio de 1968, da laction exemplaire: pratica-se um ato espetacular que, dado o seu forte apelo, at mesmo pelo sacrifcio, chama ateno das pessoas s reivindicaes do movimento, visando em ltima anlise despertar as massas, manipuladas pela propaganda e subjugadas pela represso. Ao forar um debate sobre suas reivindicaes e induzir as pessoas a participarem, os movimentos pretendem exercer presso sobre governos e instituies, revertendo o curso da submisso nova ordem mundial. (Castells, 2002: 133)

    O novo terrorismo internacional ps 11 de setembro mostrou ser uma ameaa difusa e transnacional com ramificaes em vrios pases, insuficiente para depor governos, mas suficientemente forte para propagar o medo. Segundo Charles Townshend, como uma ameaa segurana do Estado, o terrorismo implausvel se no mesmo absurdo; mas como desafio ao monoplio da fora do Estado e, no sentido mais vasto, da segurana pblica, extremamente eficaz (2006: 113).

    A ao do terrorismo propagado pela mdia internacional teve um forte impacto no imaginrio social ao redor do globo. O medo e o terror gerados a partir dos atentados contra o World Trade Center ajudaram a construir um amplo sentimento de solidariedade em torno dos EUA. Essa solidariedade internacional foi explorada pelo presidente George W. Bush para justificar uma ao unilateral norte-americana contra o terrorismo. No mbito da Organizao das Naes Unidas o governo americano costurou consensos com relativa facilidade, como em raras vezes na histria, para ocupar uma nao soberana, o Afeganisto. Mas nos ltimos anos a percepo dos vrios atores internacionais envolvidos na guerra contra o terrorismo tem mudado, principalmente aps a Guerra do Iraque em 2003 e o aparente fracasso da guerra contra o terrorismo. Alguns sinais desse fracasso vieram tona com os novos atentados terroristas em Madri (2004) e Londres (2005).

    Adotamos nessa pesquisa a definio construda por John G. Stoessinger para orientar a anlise de percepo dos principais atores envolvidos nos atentados de 11 de setembro, pois atravs da percepo que a nao faz de si prpria e de seus inimigos que os EUA constroem inicialmente a guerra contra o terrorismo. Percepo em relaes internacionais pode definir-se como sendo a viso cognitiva total que uma nao tem de si prpria e das demais no mundo (Stoessinger, 1975: 578) atravs da anlise de percepo da opinio pblica que se faz possvel

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    interpretar o respaldo e o poder que cada governo tem para imprimir uma linha de poltica interna e externa contra o terrorismo.

    Uma importante fonte de percepes para a compreenso do fenmeno do terrorismo internacional so as resolues do Conselho de Segurana das Naes Unidas (ONU). A transformao das fontes de tenso no mundo ps 11/09 trouxe um re-ordenamento jurdico em face da resoluo 1368 adotada pelo Conselho de Segurana em 12 de setembro de 2001.

    A resoluo 1368 permitiu uma releitura totalmente inesperada do artigo 51 da Carta das Naes Unidas ao reconhecer o direito de legtima defesa dos Estados Unidos e seus aliados, em resposta aos atentados terroristas de 11 de setembro. Trata-se de uma interpretao ampla que no menciona as limitaes previstas na prpria carta da ONU, como afirmam Leonardo Brant e Jorge Lasmar (2004). A lacuna do direito internacional nesse caso recai sobre impreciso do conceito de terrorismo. Durante todo o sculo XX cada Estado utilizou a alcunha de terroristas como bem entendesse para caracterizar aes que lhe parecessem hostil. Um exemplo so os Talebans no Afeganisto, considerados terroristas pelo governo sovitico desde 1980, mas tidos como Freedon Fighters5 pelo governo norte-americano at meados da dcada de 90.

    A guerra contra o terrorismo protagonizada pelos EUA e seus respectivos aliados gerou um novo tipo de guerra assimtrica entre potncias militares e insurgentes, mas foi incapaz de promover o fim dos atentados terroristas. H uma diferena substancial entre os tipos de terrorismo com os quais a Europa est particularmente acostumada (que so locais, razoavelmente limitados e tm por objetivo principal forjar identidades nacionais) e o novo terrorismo geopoltico (Giddens, 2005). Gilberto Dupas refora a diferena de percepo sobre as causas do terrorismo, que dividem europeus e norte-americanos. Os europeus tendem a consider-lo como algo com o qual tm que conviver, como a parte feia da passagem. J os norte-americanos vem o terrorismo como um tumor que precisa

    5 Freedom Fighters ou Guerreiros da Liberdade uma definio empregada para legitimar a ao de

    indivduos, ou grupos de indivduos, que se ope um governo considerado injusto. Em geral o termo empregado por pessoas que apiam tais grupos.

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    ser urgentemente extirpado mediante cirurgia, incluindo metstases e gnglios. (Dupas, 2003: 193).

    A discusso sobre a diferena entre o antigo e o novo terrorismo ganhou novos contornos aps os atentados de Madri (2004) e Londres (2005). A ao da rede al Qaeda na Europa evidenciou o fracasso das polticas de assimilao dos estrangeiros pelo modelo europeu, ponto apontado por inmeros analistas. No entanto, Alexander Spencer (2006) refuta esta viso majoritria, defendendo uma reviso crtica dos parmetros adotados para debater a questo do termo novo terrorismo atribudo aos anos 90 e lanando questes importantes para debater a real necessidade das medidas adotadas para combater o terrorismo ps 11/09. O trabalho de Spencer no questiona a influncia do terrorismo na atualidade, mas expe a relao entre o passado, o presente e o futuro da guerra contra o terror.

    * * * * *

    A presente dissertao teve como ponto de partida uma dificuldade pessoal de aceitar as explicaes para a Guerra do Afeganisto e particularmente para a Guerra do Iraque, em meio guerra contra o terrorismo. Assim, o risco inerente modernizao reflexiva e o mal-estar na ps-modernidade ajudam a interpretar o atual clima de insegurana no mundo ps 11 de setembro.

    Como objetivo geral, a anlise de percepo da opinio pblica nos EUA permite traar os contornos do grau de insegurana coletiva no mundo contemporneo. Atravs do resgate histrico de algumas passagens da Guerra Fria encontramos elementos que explicam mas no justificam a radicalizao do terrorismo nesse incio de sculo.

    Os objetivos especficos dessa pesquisa visam interpretar como o medo, a incerteza e a insegurana forneceram importantes impulsos para a atual doutrina da poltica externa norte-americana. Em suma, nosso propsito verificar como os atentados de 11 de setembro alteraram o cenrio interno e externo da poltica nos EUA.

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    Para o desenvolvimento dessa pesquisa, partiu-se das seguintes hipteses:

    1) O terrorismo o novo substituto da ameaa genrica que durante a Guerra Fria foi interpretada como sendo a ameaa comunista;

    2) O medo decorrente dos violentos atentados de 11/09 ajudou a construir a falsa premissa que restringe a liberdade dos indivduos em nome da segurana coletiva;

    3) A cultura do excepcionalismo norte-americano, ao qual se atribui parte da responsabilidade pela poltica messinica da guerra contra o terrorismo, no uma exclusividade do governo Bush ou do partido republicano.

    No captulo 1 o leitor encontrar um breve resgate dos eventos mais recentes que suscitaram a discusso do terrorismo atravs da tica da globalizao e da interdependncia no final do sculo XX. Com base nas leituras de Ulrich Beck, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman, essa pesquisa emprega a teoria da modernizao reflexiva, ou modernidade tardia, para traar uma perspectiva de construo e desconstruo criativa da realidade, caracterizada pela permanente condio de incerteza decorrente dos atentados terroristas em 11/09. A percepo dos riscos e o mal-estar na ps-modernidade determinam o marco terico adotado nesse trabalho.

    No captulo 2 dada ateno aos mltiplos significados da palavra terror, terrorismo e fundamentalismo. Analisamos a construo em torno do mito do terrorismo e incorporamos a teoria do mal-estar na civilizao e das pulses de vida e morte descritas por Freud para descrever a dualidade entre o bem e o mal na base da poltica externa norte-americana. A pesquisa tambm interpreta como o terrorismo e a estratgia neoconservadora afeta a concepo de liberdade e democracia na modernidade.

    No captulo 3 busca-se indagar sobre as causas histricas e as motivaes polticas que precedem os atentados terroristas de 2001. O resgate das alianas estratgicas entre a CIA e os guerreiros Mujahedins, ao longo da Guerra do

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    Afeganisto (1979 1989), um elemento chave para que se compreenda o fim do pacto entre o governo dos EUA e os fundadores da rede Al Qaeda. Os trabalhos de Lawrence Wright, Michael Scheuer e Albert Hourani oferecem importantes pistas para resgatar a histria desse pacto por convenincia e os seus desdobramentos polticos para o atual terrorismo internacional. Em face da polmica gerada por Edward Said e Bernard Lewis - no mago de duas vises antagnicas sobre os prs e contras da poltica de segurana norte-americana - o presente trabalho procura expor o embate terico-poltico que ocupa os principais institutos formadores de opinio pblica nos EUA aps os atentados de 11 de setembro.

    No captulo 4 a anlise dos dados da opinio pblica norte-americana que antecedem e que sucedem o 11/09 reafirma os efeitos colaterais do terror para a prtica da democracia. Outro importante foco desse captulo a estratgia da guerra preventiva adotada pelos EUA na guerra contra o terror e os seus respectivos desdobramentos para a instabilidade do sistema internacional.

    Por fim, a concluso do trabalho procura responder se o terrorismo e a insegurana ampliados no mundo posterior ao 11 de setembro podem provocar a desestabilizao de regimes polticos e alterar os rumos das relaes internacionais nesse incio de sculo.

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    1. MARCO TERICO E ELEMENTOS-CHAVE PARA COMPREENDER O TERRORISMO

    1.1 - GLOBALIZAO E INTERDEPENDNCIA Com o advento das novas tecnologias de informao e comunicao no final

    do sculo XX, a globalizao dos meios de produo foi radicalmente intensificada. O Fim da Guerra Fria - simbolicamente caracterizado pela queda do Muro de Berlim (1989) e o desmantelamento da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas na dcada de 90 - provocou uma ampla reformulao do sistema internacional. O novo contexto poltico, associado s novas tecnologias da informao e crescente interdependncia, redefiniu as relaes de espao e tempo, ampliando simultaneamente as incertezas do mundo contemporneo.

    Por globalizao entende-se o processo segundo o qual as atividades decisivas em um mbito de ao determinado - a economia, os meios de comunicao, a tecnologia, a gesto do meio ambiente e o crime organizado, por exemplo - funcionam como unidades em tempo real no conjunto do planeta. Trata-se de um processo historicamente novo, distinto da internacionalizao e da existncia de uma economia mundial, porque s na ltima dcada se constituiu um sistema tecnolgico - de telecomunicao, interatividade, transporte e alta velocidade em um mbito mundial para pessoas e mercados suficientemente articulado e potente para viabilizar um sistema global (Castells, 1998). O processo de globalizao - que no apenas de carter econmico torna evidente o estreitamento dos teatros sociais, o carter pblico do risco e o enredamento dos destinos coletivos (Habermas, 2001).

    Por interdependncia compreende-se a mtua dependncia, situao caracterizada por efeitos recprocos entre pases, ou entre atores em diferentes pases (Nye&Keohane, 2000). Se, por um lado, o novo paradigma da competitividade baseada na capacidade tecnolgica promove a interdependncia da nova economia global, por outro, refora a dependncia da relao assimtrica, que no geral, fortalece os padres de dominao criados por formas anteriores de dependncia ao longo da histria (Castells, 1999). Para Habermas (2001), a

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    interdependncia assimtrica de natureza econmica, poltica ou social pode revelar a oposio de interesses inconciliveis em uma sociedade mundial estratificada.

    Apesar de a soberania e o monoplio da violncia da autoridade pblica terem permanecido formalmente intactos, a crescente interdependncia da sociedade mundial coloca em questo a premissa segundo a qual a poltica nacional - de um modo geral ainda territorial, nos limites do domnio do Estado - pode ser conciliada com o destino efetivo da sociedade nacional (Habermas, 2001:89)

    A globalizao est reestruturando radicalmente o modo como vivemos em sociedade. Ela predominantemente conduzida pelo Ocidente e carrega consigo as conseqncias do poder assimtrico norte-americano na poltica e na economia. No entanto, a globalizao no apenas o domnio de uma nao sobre as demais (Giddens, 2005). O fim do modelo bipolar e a transio para um sistema multipolar - marcado pela crescente interdependncia entre as naes - induziram a criao de novos movimentos sociais com as mais variadas temticas na esfera das relaes internacionais. Podemos citar como exemplo os movimentos sociais em defesa do meio ambiente, dos direitos humanos e de modelos econmicos mais igualitrios e redistributivos, entre outros. Para o bem ou para o mal, estamos navegando rumo a uma nova ordem global que ningum compreende plenamente mas cujos efeitos se fazem sentir sobre todos (Giddens, 2005).

    A sociedade industrial globalizada passou a autoconfrontar o seu sucesso e simultaneamente o seu fracasso (Beck, 1997). Se por um lado podemos dizer que a sociedade industrial avanou na defesa e promoo de novos valores tidos como universais, por outro, assistimos regresso desse mesmo sistema quando examinamos a ocorrncia de guerras tnicas marcadas por polticas de extermnio, de crises financeiras que derrubaram economias emergentes, do fracasso das polticas de integrao e do ressurgimento do terrorismo.

    Cada um desses fatores reflete um estado de disjuno entre a sociedade industrial e a sociedade do risco - fase do desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, polticos, econmicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituies para o controle e a proteo da sociedade industrial (Beck, 1997). O conceito de sociedade de risco designa um estgio da modernidade

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    em que comeam a tomar corpo as ameaas produzidas, at ento, no caminho da sociedade industrial. (Beck, 1997).

    1.2 - SOCIEDADE DE RISCO

    Os eventos de 11 de setembro abriram um novo captulo na histria da sociedade de risco. O terrorismo, que ns por enquanto associamos ao nome al Qaeda, torna uma identificao do adversrio e uma estimativa realista dos riscos impossveis. Essa intangibilidade lhe confere uma qualidade nova. (Habermas, 2006:13) Nesse caso necessrio fazer uma distino clara entre o ataque propriamente dito e a ameaa terrorista, que em funo deste se tornou universal (Beck, 2002). O risco pressupe uma sociedade que tenta ativamente romper com seu passado (Giddens, 2005), gerando diferentes dilemas e tenses que se infiltram na vida cotidiana, na estrutura social e nas instituies em geral, tumultuando seus fundamentos, comprometendo seu funcionamento e confundindo seus integrantes (Nogueira, 2007: 47).

    Com certeza, a indeterminao dos riscos pertence essncia do terrorismo. Mas os cenrios de uma guerra bacteriolgica ou qumica retratados com detalhes nas mdias americanas, as especulaes sobre as formas de atuao do terrorismo nuclear s revelam a incapacidade do governo de determinar ao menos a ordem de grandeza do risco. Em Israel, sabe-se o que pode acontecer quando se anda de nibus, entra numa loja, ou permanece em discotecas ou lugares pblicos assim como a freqncia com que acontece. Nos EUA, ou na Europa, no se pode delimitar o risco; no h qualquer estimativa realista do tipo, da ordem de grandeza, da probabilidade do risco, ou se quer uma delimitao das regies que possam ser atingidas. (Habermas, 2006:13-14)

    A sociedade do risco torna-se reflexiva - o que significa dizer que ela se torna um tema e um problema para si prpria. (Beck, 1997:19). A percepo distorcida dos riscos pode fazer com que o sujeito, ao invs de identificar os riscos do mundo, passe a ver o mundo como um risco. Quem olha o mundo como um risco se torna incapaz de agir. A paralisia que decorre da incapacidade de agir a primeira armadilha do terrorismo na era da globalizao. A segunda cilada do terrorismo recai sobre as liberdades individuais em consonncia com a democracia. O medo e a sensao de insegurana levam os homens a abdicar de suas liberdades individuais em nome da segurana, o que por sua vez conduz gradualmente a sociedade industrial inao e mais tarde paralisia.

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    No atual contexto da globalizao somos todos prisioneiros no da nossa falta de poder - porque ocasionalmente protestamos ou votamos mas de situaes derivadas da prpria natureza do conflito. No apenas uma batalha militar secreta, tambm um contexto em que sentimentos confusos e mitos lutam para se articular em discursos pblicos e onde o senso de segurana cotidiana da vida privada ameaado, ou minado pelas amplas foras impessoais que lutamos para compreender (Halliday, 2004).

    A crise do mundo ps-11 de setembro no uma simples crise de soberania, mas sim uma crise do sistema de representao que reflete entre outras coisas a desorganizao das relaes internacionais. O sistema representativo uma forma de vincular as decises dos Estados s pessoas. O cidado delega a algum o poder de represent-lo em um plano externo. So caractersticas desse sistema os partidos polticos que geram parmetros de identificao , o Estado como detentor do monoplio de uso legtimo da fora e os cidados que se reconhecem como tal a partir de um conjunto de valores partilhados como smbolos, idiomas e um territrio pr-determinado. Esse sistema comea a ruir quando as noes de tempo e espao - mas principalmente o espao - so alteradas pela globalizao e fogem ao controle do Estado. As fronteiras se tornam gradualmente porosas e cresce o trnsito de pessoas e mercadorias, assim como o risco, que compreende entre outras coisas o terrorismo e a sensao de insegurana. na sociedade de risco que o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaas e das incertezas dos conflitos sociais exige a auto-reflexo em relao s bases da coeso social e o exame das convenes e dos fundamentos predominantes da racionalidade (Beck, 1997:19).

    Para Ulrich Beck, as ameaas desenvolvidas no contexto da sociedade industrial so colocadas recorrentemente na esfera da conscincia individual, onde os problemas so globais, mas a autoconscincia do risco cada vez mais uma atribuio individual (Beck, 1997). Assim como o cidado americano, espanhol ou ingls obrigado a tomar uma posio na guerra contra o terrorismo - pois a poltica local influencia a poltica global, tanto quanto o contexto global pode afetar a poltica

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    local , os atentados de Nova York em 2001, Madri em 2004 e Londres em 2005 refletem as conseqncias do risco global no mbito da vida cotidiana / local.

    A crise da razo - diante da insegurana vivenciada no ps 11 de setembro e a percepo dos riscos infinitamente reprodutveis - pode justificar os eventos mais recentes que resultaram no apoio incondicional da comunidade internacional Guerra do Afeganisto. Nessa condio, durante o tempo em que os homens vivem sobre a sombra do medo e da insegurana florescem as mais graves violaes dos direitos humanos e um retrocesso institucional. At os liberais de esquerda pareciam, num certo momento, estar de acordo com a poltica de Bush (Habermas, 2004:15), sem se dar conta de que, desde os ataques de 11 de setembro de 2001, oficiais dos Estados Unidos, em vrios lugares do mundo, de Bagram no Afeganisto, a Guantnamo, em Cuba, a Abu Ghraib, no Iraque, vm torturando prisioneiros. (Danner, 2003).

    As imagens das Torres Gmeas em 2001 distorceram a percepo de globalizao alterando a disposio da comunidade internacional para a guerra. Foi apenas com o mal-estar gerado pela crise no mbito da ONU em 2003 que a comunidade internacional disps-se efetivamente a realizar uma autocrtica com relao aos rumos da poltica externa norte-americana, baseada no modelo de guerra preventiva. Alguns pases como Frana e a Alemanha procuraram amarrar as pretenses militares dos EUA ao Conselho de Segurana. Ao mesmo tempo, a posio francesa refletia a preocupao real com o impacto que uma guerra no Iraque podia ter nos pases rabes e nas comunidades muulmanas da Frana (Vasconcelos, 2003:67).

    A crise do Iraque dividiu profundamente, como h muito tempo no se via, os governos europeus. A ciso se deu entre o ncleo central da Unio Europia conhecido como o eixo Franco-Alemo (Velha Europa) e o Reino Unido, que agregou quase a totalidade dos futuros membros do leste Europeu e os pases tradicionalmente atlanticistas (Nova Europa), como Portugal e Itlia e em particular a Espanha.

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    No devemos esquecer o dia em que Jos Maria Aznar ex-primeiro-ministro da Espanha convocou seus eleitores e os demais pases europeus para uma manifestao em prol da guerra contra o Iraque. Muito menos devemos esquecer as manifestaes de subpoltica (sub-politics) que levaram 6 milhes de pessoas - na Espanha e em outros pases - a protestar contra essa mesma guerra (Bauman, 2004).

    As manifestaes simultneas em diferentes partes do globo foram o maior evento contrrio poltica externa dos EUA, aps 11 de setembro. A auto-organizao da sociedade civil contraria os rumos da sociedade industrial e o padro do controle racional instrumental - de mais Estado e mais tecnologia - para policiar e controlar o risco decorrente dos atentados terroristas. Trata-se de uma clara manifestao do poder que tem a subpoltica de moldar a sociedade de baixo para cima. No despertar da subpolitizao h oportunidades crescentes de se ter uma voz e uma participao no arranjo da sociedade para grupos que at ento no estavam envolvidos na tecnificao essencial e no processo de industrializao: os cidados (Beck, 1997:35).

    As 6 milhes de pessoas que se reuniram para protestar no dia 15 de fevereiro de 2003, principalmente nos pases cujos dirigentes estavam apoiando a guerra, foram uma indicao clara da existncia da sociedade civil mundial. O fato de que essa opinio pblica, e a maioria dos governos, condicionasse seu apoio guerra aprovao do Conselho de Segurana constituiu uma demonstrao do poder moral da ONU. (Bresser-Pereira, 2003:43)

    O apoio do primeiro ministro espanhol Jos Maria Aznar aos EUA na Guerra do Iraque rendeu duras crticas poltica externa do Partido Popular, mas no pareceu afetar a candidatura de Mariano Rajoy, cotado para ser o sucessor de Aznar nas eleies de 2004. Tudo mudaria no dia 11 de maro de 2004, ao faltarem 72 horas para o incio das eleies gerais.

    As 7h39 quatro bombas explodiram em um trem que seguia para Atocha, a maior estao de trens de Madri. Em seguida outras nove bombas foram detonadas por celular matando 191 pessoas e ferindo mais de 1800 pessoas. Os responsveis pelos atentados de Madri (11M) se identificaram como a Al Qaeda - mesma organizao responsvel pelos atentados de 11 de setembro. Temendo que a

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    populao associasse os atentados de 11M ao apoio do PP na Guerra do Iraque, o primeiro ministro Jos Maria Aznar deliberadamente direcionou as investigaes para o grupo ETA conhecido por praticar atos de terrorismo em nome da independncia dos Bascos que vivem entre o norte da Espanha e o Sul da Frana. O primeiro ministro Aznar tambm usou sua influncia para contatar os principais jornais e veicular as falsas suspeitas contra o ETA encobrindo a verdade por trs dos atentados. As informaes desencontradas - e o alinhamento da grande mdia com a verso oficial das autoridades espanholas - fez com que vrias pessoas buscassem formas e veculos alternativos de informao, como a internet. A massa concentrada transforma-se no pblico disperso das mdias de massas, como identificou Habermas (2001).

    Nos dias seguintes, a populao espanhola saiu s ruas em sinal de luto contra a barbrie e o terrorismo, mas acima de tudo, para exigir informaes mais consistentes sobre os autores dos atentados. A sociedade civil entoou o coro Quin ha sido, quin ha sido? e grandes manifestaes populares comearam a se formar, organizadas por uma ampla rede de contatos por e-mails e mensagens de dispositivos moveis. Talvez essas sejam as mais explcitas demonstraes da capacidade de auto-organizao da sociedade de risco, que incorpora as novas tecnologias de informao e comunicao, para promover a articulao poltica. Para Ulrich Beck (1997), o Estado passa a ser confrontado por todos os tipos de minorias e manifestaes da subpoltica. Subpoltica (sub-politics), ento, significa moldar a sociedade de baixo para cima. Visto de cima, isto resulta na perda de poder de implementao, no encolhimento e na minimizao da poltica. (Beck, 1997:35).

    No dia 14 de maro de 2004, o Partido Socialista Operrio Espanhol ps fim a 12 anos de governo conservador. O candidato da oposio - Jos Luis Rodriguez Zapatero - foi eleito com 183 votos a favor, 148 contra e 19 abstenes. O PSOE conquistou 43% das cadeiras no Parlamento revelando um amplo voto de protesto da sociedade civil. Zapatero no foi eleito em funo do contedo programtico de seu partido, muito menos pela oposio ao apoio espanhol na Guerra do Iraque. Foi eleito porque s vsperas da eleio fatores globais afetaram drasticamente a vida

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    local, enquanto o governo conservador reagiu com mais controle sobre os meios tradicionais de comunicao, ignorando a capacidade de auto-reflexo que caracteriza a sociedade de risco.

    1.3 - O CONCEITO DE MAL-ESTAR

    Jrgen Habermas (2001) aponta para duas formas de modernizao no sculo XX. A primeira descrita como um modelo capitalista domesticado socialmente (2001:110), uma forma de modernidade organizada onde os conceitos de nao, classe e Estado eram os mais importantes elementos na formulao das identidades coletivas.

    A segunda forma de modernidade, que Habermas v como sendo expandida em termos liberais, ganha feies de uma modernidade orientada pela individualizao e pluralizao das formas de vida, que se reflete na perda de coeso e na fragmentao da sociedade. Nesse caso, a dissoluo da poltica de fronteiras - na esteira do Estado nacional que rui - ampliaria a indeterminao dos riscos. O que Habermas (2001) chama de segunda modernidade, Anthony Giddens (1997) chama de modernidade tardia, Zygmunt Bauman (1998) chama de ps-modernidade e Ulrich Beck (1997) chama de modernizao reflexiva.

    Na segunda modernidade ou modernizao reflexiva, no faz sentido pensar a questo da segurana exclusivamente pela tica local (nacional). Os riscos transcendem a perspectiva da poltica nacional, ignorando fronteiras, e redefinindo padres de ordem e segurana. No faz sentido para o Estado nacional se fechar como um ourio do mar diante da globalizao do mundo moderno, pois assim como os riscos, tambm h benefcios na interdependncia da economia, no fluxo acelerado de mercadorias e pessoas que se globalizam, na difuso de novas formas de comunicao que encurtam distncias e aproximam pessoas.

    Para Zygmunt Bauman (1998), o mal-estar na ps-modernidade simboliza o dilema da liberdade versus a (in)segurana, do excesso de ordem versus a escassez de liberdade. Dentro da estrutura de uma civilizao que escolheu limitar a liberdade em nome da segurana, mais ordem significa mais mal-estar. (Bauman,

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    1998:9). Onde compreende-se por ordem um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos no esto distribudas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita (Bauman, 1998:15). A ordem reflete uma rotina, uma espcie de compulso repetio que compe a modernidade.

    Os estranhos em cada sociedade representam um desvio da ordem, uma anormalidade que deve ser retificada. Vizinhos do lado inteiramente familiares e sem nenhum problema, podem da noite para o dia converter-se em estranhos aterrorizantes, desde que uma nova ordem se idealiza; inventa-se um novo jogo no qual improvvel os vizinhos de ontem competirem placidamente, pela simples razo de que a nova ordem est prestes a transform-los em estranhos e o novo jogo est prestes a elimin-los (Bauman, 1998: 21). O estranho se materializa na figura do brbaro do Oriente em contraposio ao americano e europeu civilizado do Ocidente. A criao de inimigos essencial para os povos que esto buscando sua identidade e reinventando sua etnia (Huntington, 1997).

    O mal-estar no mundo ps-11 de setembro representa - segundo uma das hipteses do presente trabalho - um falso paradigma entre segurana e liberdade; uma construo que deriva da doutrina de segurana norte-americana neoconservadora - os falces de Washington -, para endossar uma guerra generalizada contra um inimigo abstrato. No entanto, o mal-estar que divide o Ocidente no exatamente igual para europeus e americanos.

    A Europa do final do sculo XX atingiu um alto padro de integrao poltica, economia e social com a criao da Unio Europia. No entanto, a construo de um modelo de unidade poltica marcada pela cooperao tambm trouxe o peso das diferenas do plano civil. Particularmente no plano social a UE tem se defrontado com imensos desafios que atravessam as questes transversais de segurana coletiva e a criao e anulao dos novos estranhos.

    Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espcie de sociedade produz sua prpria espcie de estranhos e os produz de sua prpria maneira, inimitvel. Se os estranhos so as pessoas que no se encaixam no mapa cognitivo, moral ou esttico do mundo num desses mapas, em dois ou em todos os trs; se eles portanto, por sua simples presena, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma

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    coerente receita para a ao, e impedem a satisfao de ser totalmente satisfatria; se eles poluem a alegria com a angstia, ao mesmo tempo que fazem atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tnues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza, que por sua vez d origem ao mal-estar de se sentir perdido ento cada sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo tempo que traa suas fronteiras e desenha os seus mapas cognitivos, estticos e morais, ela no pode seno gerar pessoas que empobrecem limites julgados fundamentais para a vida ordeira e significativa, sendo assim acusados de causar a experincia do mal-estar como a mais dolorosa e menos tolervel. (Bauman, 1998:27)

    Para lidar com o estranho, o Estado moderno desenvolveu, segundo Bauman, duas estratgias complementares: a assimilao antropofgica e a excluso antropomica: Na hiptese da assimilao os estranhos so devorados e incorporados ao tecido social pr-existente - algo muito parecido com o processo de tornar os diferentes semelhantes - onde algumas prticas desviantes da minoria so tratadas como anomalias aceitas at certo ponto pelo Estado. J na hiptese da excluso os estranhos so confinados dentro das paredes invisveis dos guetos e segregados da comunidade (Bauman, 1998). Os estranhos eram, por definio, uma anomalia a ser retificada. Sua presena era a priori definida como temporria. (Bauman, 1998:30). Caso no seja possvel assimilar ou excluir os estranhos, a ltima opo destruir fisicamente essa minoria. O problema quando a minoria passa a se transformar na maioria e a suposta tolerncia se transforma na intolerncia mascarada por polticas paternalistas e unilaterais de assimilao e excluso dos estranhos.

    Atualmente a Europa se defronta com o dilema dos estranhos na forma do estrangeiro necessrio porem indesejado. So imigrantes ou cidados franceses - na sua maioria de origem argelina ou marroquina, que ajudaram a libertar a Frana do jugo nazista e, mais tarde, a reconstruir e edificar as principais capitais, mas jamais foram tratados como iguais. A maior comunidade muulmana na Europa encontra-se na Frana, onde 1 a 2 milhes vivem concentrados apenas na Grande Paris, principal palco das violentas manifestaes de insubordinao civil em outubro de 2005. Acreditava-se firmemente que a situao das comunidades de imigrantes estivesse sob controle. Mas quem conhecia bem a situao naqueles bairros desde cedo vinha alertando para o fato de que as tenses estavam aumentando e que a segunda e terceira gerao de beurs (ou beurettes),

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    descendentes dos primeiros imigrantes, estava se tornando cada vez mais radical. (Laqueur, 2007:51).

    Assim como na Inglaterra - antes dos atentados de Londres em junho de 2005 -, a Frana acreditava no sucesso, mesmo que parcial, das polticas de integrao e assimilao dos estranhos. Segundo Bauman (1998) o projeto moderno prometia libertar os indivduos da identidade herdada. A Frana, porm, no tomou uma firme posio contra a identidade como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma slida, exuberante e imutvel identidade. S transformou a identidade, que era uma questo de atribuio, em realizao fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivduo. (Bauman, 1998: 30).

    A Unio Europia a imagem mais adiantada da interdependncia nas relaes internacionais. Os Estados abdicam parcialmente da sua soberania para reunir - de forma voluntria - foras no plano poltico e econmico. A permeabilidade das fronteiras que decorre da segunda modernidade permite, por exemplo, integrar diferentes bases produtivas para construir o maior e mais moderno avio de passageiros do mundo. No entanto, algumas manifestaes locais que caracterizam a sociedade do risco parecem apontar para um retorno das incertezas. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espcie de segurana que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da ps-modernidade provm de uma espcie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurana individual pequena demais. (Bauman, 1998:10). Ao mesmo tempo em que a Frana equaliza as questes de foro econmico e poltico - com as demais 27 naes que compe a Unio Europia -, o pas enfrenta desde 2005 a maior onda de violncia e desobedincia civil de sua histria recente. Nos ltimos anos, quase todos os pases membros da UE se defrontaram de uma forma ou de outra com o dilema da imigrao e a constituio dos seus estranhos.

    A ocorrncia de agresses verbais e fsicas contra muulmanos aps os atentados de 11 de setembro (Nova York), 11M (Madri) e Londres em 2005 fizeram reviver a islfobia. Tais agresses assumiram formas variadas grafitagens em mesquitas ou instituies islmicas; mulheres com hijab ofendidas, crianas

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    muulmanas chamadas de Osama (Laquer, 2007:76-77). A participao de fundamentalistas islmicos nos atentados referidos apenas ajudou a intensificar as tenses sociais pr-existentes na Europa. Os imigrantes muulmanos e os filhos de imigrantes naturalizados europeus se transformaram nos novos estranhos ou estranhos modernos. Mas o que provocou a estigmatizao desses novos estranhos na Europa?

    At 1997 houve poucos protestos de muulmanos europeus; o termo islfobia foi de fato cunhado somente no ano seguinte. Quatro anos depois ocorreram trs vezes mais protestos contra estigmas religiosos ou tnicos. No segredo a razo para este sbito aumento: foi a escalada do terrorismo (Laqueur, 2007:75).

    No ano de 2005, Paris e vrias outras cidades foram tomadas por violentas manifestaes de desobedincia civil, que resultaram no mais grave choque poltico da histria recente na Frana. Enquanto espanhis e ingleses refletiam sobre o apoio de seus respectivos governos na Guerra do Iraque - ao mesmo tempo em que analisavam com preocupao o ressurgimento do terrorismo fundamentalismo islmico e a islfobia -, o governo francs era obrigado a adotar toques de recolher para tentar conter a exploso de violncia que emanava dos subrbios.

    Muitos imigrantes ou filhos de imigrantes naturalizados cidados franceses vivem isolados em guetos com os mesmos direitos que em princpio a constituio garante, mas sem gozar na prtica das mesmas oportunidades. O gueto, segundo Bauman, quer dizer a impossibilidade de comunidade: Um gueto no um viveiro de sentimentos comunitrios. , ao contrrio, um laboratrio de desintegrao social, de atomizao e de anomia (Bauman, 2003:111). Segundo Gilberto Dupas, na Europa existe uma conjugao entre isl, colonialismo, imigrao e espaos de excluso bem diferente dos EUA, onde a imigrao muulmana no corresponde aos espaos de excluso, que so preenchidos pelos negros ou latino-americanos. Com exceo do movimento poltico Nao do Isl, os muulmanos nos EUA so praticamente de classe mdia e 80% deles votaram em Bush. (Dupas, 2003:7).

    No caso da Europa, a Frana se mostrou um pas dividido em cidados de primeira e segunda classe. A tenso do plano social se reflete na esfera da ocupao urbana entre centro e periferia, onde jovens aptridas perdidos entre dois

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    mundos foram s ruas para incendiar carros e confrontar as autoridades, aps a morte supostamente acidental de dois garotos da periferia que fugiam da policia. A revolta dos filhos de imigrantes na Frana, ao contrrio do que pode levar a crer Laqueur, no o fruto da islamizao da comunidade (Laqueur, 2007:75). Trata-se de uma revolta social. O que se seguiu aos confrontos de Clichy-sous-Bois em 28 de outubro de 2005 foi uma violenta exploso dos assim considerados estranhos, que isolados em guetos se revoltaram contra o Estado e a poltica de excluso e segregao da sociedade industrial.

    Os atentados terroristas contra o metr de Londres em junho de 2005 tambm evidenciaram o fracasso das polticas de integrao do reino Unido. medida que as investigaes demonstraram que os terroristas eram cidados britnicos acima de qualquer suspeita com residncia e trabalho fixo no pas cresceram entre os especialistas britnicos em segurana a sensao do mal-estar, a sensao de que em algum momento o Estado fracassou.

    Primeiro o Estado fracassou na sua funo de garantir a segurana condio primaria para a manuteno do pacto social hobbesiano, onde os homens abdicam de parte de sua liberdade em prol da segurana , depois fracassou na poltica de assimilar, excluir ou eliminar fisicamente os estranhos, como descrito por Bauman. Antes de 2005 Frana e Inglaterra eram tidos como exemplos de sucesso na integrao social.

    O assassinato aleatrio de civis em Londres, Madri ou Nova York paralisa a sociedade contempornea e representa um retrocesso poltico do fundamentalismo religioso. As manifestaes populares na Frana refletem, por outro lado, uma questo igualmente importante, mas substancialmente diferente, que denuncia o fracasso dos falsos sucessos no velho continente. Assim como os atentados terroristas de Londres, Madri e Nova York ao longo da primeira dcada do sculo XXI, as manifestaes de violncia e insubordinao civil na Frana so - segundo a hiptese de investigao desse trabalho - expresses do mal-estar no mundo contemporneo.

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    O terrorismo internacional pode se apropriar desse cenrio de reflexo e mal-estar para recrutar indivduos insatisfeitos ou descontentes com os rumos da modernidade, assim como muitos Estados notoriamente os EUA tm sistematicamente se apropriado do discurso do medo para se lanar na guerra contra as minorias tnicas, o terrorismo e a insegurana. No se trata aqui de traar uma viso pessimista da Europa como nos expe Laqueur (2007), ou o mundo pautado pelo Choque de Civilizaes descrito por Huntington (1997), mas de repensar os riscos na constelao ps-nacional (Habermas, 2001) luz da modernizao reflexiva (Beck, 1997) e do mal-estar na globalizao do terrorismo. Quanta insegurana necessria para suprimir a liberdade e os direitos individuais nos Estados Democrticos? Qual o caminho de volta para se restituir a liberdade? Existe um caminho de volta?

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    2. TERRORISMO E TERRORISTAS

    Um dos problemas para se pensar o fenmeno do terrorismo exatamente a ausncia de uma definio universal. O problema comea a ganhar contornos com a dificuldade para diferenciar guerrilha de terrorismo e avana para o campo das controvrsias, no pr-julgamento para desqualificar politicamente um adversrio. A partir da, corre-se o risco de agregar sobre o mesmo nome coisas muito diferentes, ampliando a indeterminao da palavra terrorismo e terror.

    Segundo a concepo desse trabalho, terror - entre outras coisas - 1) o efeito psicolgico ou moral que afeta os alvos dos atentados terroristas; 2) o medo da morte violenta, o estado de natureza hobbesiano onde as ameaas da violncia - associada com as incertezas do cotidiano - so ainda mais paralisantes do que a prpria morte (Barber, 2005).

    Para Eugenio Diniz (2004), uma particularidade essencial do terror a virtual irrelevncia da relao de foras e a aplicao indiscriminada do emprego, ou da ameaa do emprego da fora sobre seu alvo. A fora do terror no se mede pela capacidade circunstancial de destruio fsica de uma bomba ou um assassinato, mas pelo seu alcance psicolgico sobre as pessoas.

    necessrio definir o terrorismo de acordo com a qualidade do ato e no a partir da identidade do perpetrador ou da natureza da causa (Diniz, 2004). Nesse caso o terrorismo uma forma de intimidao que emprega o terror para atingir um fim poltico, embora o prprio Diniz reconhea a limitao dessa opo de anlise.

    O terrorismo, segundo Diniz, difere do sistema jurdico no uso e no alcance do uso da fora para coagir. Afinal o sistema penal est longe de ser indiscriminado: age sobre indivduos que se supem, a partir de procedimentos investigativos e judicirios, diretamente relacionados a determinados acontecimentos, sendo que os indivduos em questo tero conhecimento do processo, podero defender-se e estaro cientes dos acontecimentos que os envolvem. (Diniz, 2004:202). Tal anlise nos leva a uma constatao circunstancial: os Estados Unidos estariam praticando, desde 2001, atos explcitos de terrorismo na guerra contra o terror, para extrair

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    informaes de prisioneiros em Guantnamo entre outras prises ao redor do mundo , detidos sem a aplicao da Conveno de Genebra.

    Tais prisioneiros esto presos na indeterminao jurdica dos combatentes ilegais - criada pelo ex-secretrio de justia Alberto Gonzles -, visto que os novos terroristas no possuem vnculo direto com um Estado e, portanto no se enquadram na definio de prisioneiro de guerra da Conveno de Genebra. O principio de que a guerra contra o terrorismo no uma guerra convencional, pois no corresponde a um conflito entre Estados, significa aos olhos da Casa Branca que os EUA podem atribuir um novo status aos prisioneiros acusados de vinculao com o terrorismo de acordo com o tribunal militar. Para garantir a continuidade dos interrogatrios de suspeitos de terrorismo sob o obscuro manto da tortura , o presidente George Bush ratificou no dia de 17 de outubro de 2006, o Military Commissions Act.

    De acordo com os parmetros de anlise estabelecidos por este trabalho, uma ao terrorista contempla pelo menos um desses trs fatores: 1) tornar-se conhecida atravs do uso da violncia - fsica ou psicolgica; 2) tocar ou sensibilizar outras pessoas - da mesma forma insatisfeitas com o modelo poltico vigente - mostrando que o alvo do seu descontentamento tambm vulnervel, mesmo numa condio assimtrica de poder e; 3) despertar uma reao do oponente induzindo a um comportamento que altere as relaes de fora em favor do grupo que praticou o ato terrorista.

    Na impossibilidade de apresentar ao leitor uma nica definio de terrorismo, cabe introduzir algumas das principais definies da palavra, encontradas ao longo dessa pesquisa:

    Terrorismo, em outras palavras , simplesmente, a denominao contempornea e a configurao moderna da guerra deliberadamente travada contra civis, com o propsito de lhes demolir a disposio de apoiar lderes ou polticas que os agentes dessa violncia consideram inaceitveis (Carr, 2002: 16). Forma especfica de luta poltica, um estratagema voltado para alterar rapidamente a correlao de foras. Tem como fim uma meta poltica; emprega como meio de ao uma forma especfica de emprego da fora o terror; mas emprega-a no de forma a produzir imediatamente aquela meta poltica, isto , no visa a dissuadir nem a compelir, mas sim a

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    induzir no alvo um comportamento que permita derrota-lo. Assim sendo, combate-lo exige procedimentos especficos, que podem variar conforme o caso. (Diniz, 2004: 219). a estratgia escolhida por um grupo relativamente homogneo, que desenvolve sua luta clandestinamente entre o povo para convenc-lo a recorrer a: aes demonstrativas que tm em primeiro lugar, o papel de vingar as vtimas do terror exercido pela autoridade e, em segundo lugar, de aterrorizar esta ltima, mostrando como a capacidade de atingir o centro do poder o resultado de uma organizao slida. (Bonanate, 2000:1242). Trata-se de assassinato e ataque mortal, eliminao indiscriminada de inimigos, mulheres e crianas. Vida contra vida. O terror que se manifesta sob a forma paramilitar da guerrilha diferente. Determinou o carter de muitos movimentos de libertao nacional na segunda metade do sculo XX e hoje, por exemplo, marca a Guerra de Independncia dos Chechenos. O terror global, ao contrrio, que culminou nos atentados de 11 de setembro, apresenta os traos anrquicos de uma revolta impotente. (Habermas, 2004: 19). O uso ilegal da fora ou violncia contra pessoas ou contra a propriedade para intimidar ou coagir um governo, a populao civil, ou qualquer outro segmento, para a consecuo de objetivos polticos ou scias FBI (Degenszajn, 2006). O uso calculado da fora ou violncia para causar medo , no intuito de coagir ou intimidar governos ou sociedades em funo da busca de objetivos que so geralmente polticos, religiosos ou ideolgicos - Department of Defense, Estados Unidos (Degenszajn, 2006). Violncia premeditada com motivaes polticas empreendida contra alvos no combatentes por grupos subnacionais ou agentes clandestinos, normalmente destinadas a influenciar um pblico State Department, Estados Unidos (Degenszajn, 2006).

    Com exceo de alguns grupos anarquistas no sculo XIX, poucas organizaes ousaram definir a si mesmas como terroristas. No entanto, nesse incio de sculo, a alcunha de terrorista foi resgatada para descrever a ao dos mais diversos grupos ao redor do globo.

    Segundo Jacques Wainberg, a utilizao relativamente trivial desse rtulo tem uma razo de ser: ele est carregado de condenao moral. O terror marca gravemente os atores acusados com o veredicto da culpa (2005:08) e desde 2001 obriga todos os Estados a combater o terrorismo em todas as suas formas e manifestaes. Infelizmente a ausncia de uma definio clara e universal sobre o terrorismo gera interpretaes ambguas, que abrem um perigoso precedente para o uso da violncia institucional por parte dos Estados e seus respectivos governos.

    Uma anlise de discurso dos principais atores envolvidos nas aes de represso ao terrorismo (como a que ser feita mais adiante, no captulo 4.1) e as

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    concepes de terrorismo extradas dos principais rgos de combate ao terrorismo nos EUA, indicam que as definies de terrorismo esto intrinsecamente associadas a idia de legalidade como elemento central (Degenszajn, 2006:19). Essas noes servem fundamentalmente aos interesses e composies de foras que comandam cada uma dessas instituies, por exemplo, o FBI incorpora a noo de legalidade, ao mesmo tempo que o Departamento de Estado incorpora a noo de coero e intimidao de governos. (ibidem).

    Durante dcadas a Organizao das Naes Unidas tratou a questo do terror sem definir com clareza o que o terrorismo. Segundo Brant & Lasmar, diante desse impasse - observado tanto na Assemblia Geral quanto no Conselho de Segurana - em torno da construo de um conceito aceito universalmente, optou-se por uma utilizao temtica. A sada diplomtica empregada foi referir-se diretamente s infraes determinadas (como o seqestro de aeronaves) sem, contudo, mencionar o termo terrorismo (ver captulo 2.4).

    O seqestro do avio na rota Roma - Tel Aviv pela Frente Popular de Libertao da Palestina (fundada em 1967 como uma dissidncia de orientao marxista-leninista da Organizao para Libertao da Palestina), em julho de 1968, ajudou a inaugurar uma nova prtica recorrente do terrorismo nos anos 70 e fez com que doze pases - entre eles os EUA - ratificassem a Conveno multilateral sobre aviao de 1963. O direito internacional - quase sempre reativo ao terrorismo - deu incio a uma srie de resolues multilaterais na dcada de 70 que tipificaram o seqestro de avies e a tomada de refns como crime. Dessa forma o seqestro de aeronaves no um fato novo na agenda da comunidade internacional, e tampouco uma inovao do terrorismo moderno (Spencer, 2006).

    Nos anos 70 e 80, os conflitos no Oriente Mdio extrapolaram definitivamente as fronteiras nacionais e ganharam uma dimenso internacional atravs da cobertura da mdia sobre o terrorismo. O terrorismo do sculo XX era em geral alimentado por questes essencialmente nacionais como soberania e autonomia poltica, cabendo aos seus autores reivindicar e justificar a autoria dos atentados em nome de uma causa. Os terroristas rabes das dcadas de 70 e 80

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    deixaram claro que estavam lutando em uma guerra por uma causa nacional rabe ou palestina, no pelo Isl. Na verdade, uma proporo significativa dos lderes e ativistas da OLP era crist (Lewis, 2004:137) O uso excessivo da violncia por parte das organizaes terroristas tinha um alto risco e deveria ser controlada.

    O grau de violncia dos atentados terroristas nos anos 80 estava de alguma forma condicionada ao apoio popular e ao carisma de suas lideranas. Segundo Fred Halliday (2004), o terrorismo um fenmeno distinto - poltico e moral - que interligava direito a revolta com oposio a opresso. Se a violncia armada extrapolava os limites de aceitao da opinio pblica, ocasionando muitas baixas entre civis, ento a organizao perderia fora. Mas se a ao terrorista abria espao para a negociao atraindo a ateno da mdia internacional, ento os terroristas eram alados ao status de Guerreiros da Liberdade, como Yasser Arafat.

    A diferena entre terrorismo poltico e assassinato comum fica clara na mudana de regimes em que ex-terroristas alcanam o poder e se transformam em representantes respeitveis de seu pas. claro que somente terroristas que perseguem objetivos polticos compreensveis de forma realista e que podem derivar da superao de uma situao evidentemente injusta, ainda que retrospectivamente, uma certa legitimao para as suas aes criminosas, podem esperar por essa transformao da sua imagem poltica. (Habermas, 2006: 20).

    O cientista poltico Robert Pape refora a necessidade de analisar e compreender os atentados terroristas sempre luz de uma lgica especfica. Mesmo quando os atacantes suicidas so irracionais ou fanticos, os lderes do grupo que os recrutam e os direcionam no o so (2003:04). Essa a mesma perspectiva defendida pelo historiador Caleb Carr, que define terrorismo como um ato que no um fim em si mesmo, mas um meio para um fim cujos beneficirios envolvem atores que no os prprios agentes da violncia (2002:96). Todo ato de terrorismo pressupe uma inteno e uma finalidade poltica, que em ltima instncia se utiliza da coero pelo medo.

    Os Estados Unidos sempre estiveram envolvidos em algum tipo de guerra (interna ou externa): guerra contra as drogas, guerra contra a pobreza e mais recentemente a guerra contra o terrorismo. Todas essas guerras simplificam muito a questo, mas se tomarmos retrospectivamente os resultados obtidos em cada um

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    dos campos de batalha podemos extrair uma das primeiras caractersticas da sociedade norte-americana: uma propenso para a radicalizao do conflito contra um inimigo propositalmente indeterminado e difuso no contexto social. O que nos leva a uma importante hiptese de trabalho: a guerra contra o terrorismo o novo substituto da Guerra Fria para a poltica externa norte-americana.

    2.1 - GUERRA CONTRA O TERRORISMO

    Segundo a mitologia grega, Zeus castigou Prometeu por roubar o fogo dos Deuses e o entregar aos homens. Temendo que os Deuses tambm castigassem a humanidade, Prometeu entregou a seu irmo Epmeteu uma caixa, que em hiptese alguma deveria ser aberta, sob pena de causar grandes desconfortos humanidade.

    Incomodado com a arrogncia dos homens que devastavam a terra, Zeus teria criado a mulher (Pandora) e a ela atribudo a incumbncia de seduzir Epmeteu, para roubar a misteriosa caixa confiada por seu irmo. A curiosidade de Pandora fez com que ela abrisse a caixa e libertasse um vrtex de mazelas que se abateram sobre toda humanidade, condenando a civilizao barbrie. Assustada, Pandora fechou imediatamente a caixa e manteve aprisionado o ltimo dos males que acabaria com toda a esperana dos homens.

    A recuperao do mito de Pandora pode nos ajudar a estabelecer uma outra hiptese da presente pesquisa: o terrorismo internacional a Caixa de Pandora do sculo XXI, que desperta a pulso de morte (Tnatos) em detrimento da pulso de vida (Eros), estimulando novas guerras e ameaas s liberdades individuais - principio fundamental dos regimes democrticos. O terror e o terrorismo representam o Mal-Estar na Civilizao que prepara o mundo para a vida sob uma condio de incerteza, que permanente e irredutvel. Segundo Bauman (1998), o livro de Freud trata da histria da modernidade, ainda que o autor preferisse falar de Kultur ou civilizao.

    O Mal-Estar na Civilizao (Freud, 1930), tido por muitos como o seu texto mais sombrio, aborda a questo da misria humana em face da infelicidade que decorre da vida em civilizao (Roudinesco & Plon, 1998). Freud comea o livro

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    argumentando sobre a necessidade humana de fabricar iluses entre as quais a iluso religiosa para descrever o sacrifcio pulsional.

    Afirma-se, contudo, que cada um de ns se comporta, sob determinado aspecto, como um paranico, corrige algum aspecto do mundo que lhe insuportvel pela elaborao de um desejo e introduz esse delrio na realidade. (Freud,1974:38). As religies da humanidade devem ser classificadas entre os delrios de massa desse tipo. necessrio dizer que todo aquele que partilha de um delrio jamais o reconhece como tal. (ibidem).

    A civilizao em si - leia-se modernidade - est atravessada por foras contraditrias e ao mesmo tempo complementares. Eros conduz o trabalho da civilizao ligando conjuntos cada vez mais vastos como povos, naes - e por que no dizer comunidades? - enquanto Tnatos destri, desliga e dissocia comunidades. Mas Eros tambm responsvel por criar o narcisismo das pequenas diferenas que leva os membros de uma comunidade a entricheirar-se em sua identidade coletiva hostilizando os membros de outros grupos (Rouanet, 2005). Os laos de identidade intragrupal obtm coeso a um custo altssimo, segundo Rouanet, pois deslocam os impulsos agressivos (o mal-estar) para fora da sociedade resultando no nacionalismo exacerbado, na xenofobia, nas rivalidades e guerras entre naes, e tambm, seria possvel dizer, no terrorismo internacional de carter fundamentalista.

    Na transio do mundo bipolar da Guerra Fria para o sistema multipolar do sculo XXI, o terror a manuteno do status de tenso que justifica a manuteno da mquina de guerra norte-americana, atravs do conflito indeterminado contra um inimigo oculto. Essa condio de insegurana e violncia exprime a dualidade criada entre o bem e o mal, assim como o embate entre ns (civilizao) e eles (brbaros) no mago da guerra contra o terror. A barbrie no apenas o avesso necessrio para a consolidao da civilizao. Na anlise de Marilena Chau (2004), aquilo que a civilizao engendra ao produzir-se a si mesma como cultura. O civilizado s se reconhece como civilizado em oposio ao brbaro.

    A cruzada lanada pelo presidente Bush para identificar e punir os responsveis pelos atentados de 11 de setembro dividiu o sistema internacional entre a perspectiva da civilizao e a da barbrie. Os atentados produziram um

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    efeito mpar de apoio aos EUA e promoveram uma ampla poltica de alianas. Mas as incertezas geradas aps a Guerra do Afeganisto e os excessos cometidos na Guerra Contra o Terror, reverteram o apoio internacional para um amplo sentimento antiamericano.

    A falta de parmetros para a decretao da assim concebida guerra justa contra o terrorismo e a ausncia de uma agenda poltica de segurana coletiva mantm abertas as portas para a ao do fundamentalismo religioso, em oposio globalizao. No que sejam suas causas ou conseqncias, mas a guerra cria um Estado de no-direito, regulariza a morte, banaliza a barbrie, alimenta o medo e as fantasmagorias, reaviva os velhos demnios, abala a moral e o humanismo. (Hatzfeld, 2005:65).

    A globalizao do terrorismo apenas um dos reflexos da violncia no mundo contemporneo. Os atentados do 11/9 reforam a vulnerabilidade do Estado moderno diante da ameaa do terrorismo fundamentalista - difuso - no atual contexto das relaes internacionais. Durante quase todo o sculo XX o terrorismo foi uma manifestao local limitada pela lgica do conflito bipolar, porm com o fim da Guerra Fria surgem novas linhas de fratura no plano tnico: a etnia passa a tornar-se a base para a construo de trincheiras defensivas, territorializadas em comunidades locais (Castells, 1996:78).

    A modernidade no apenas a globalizao dos meios de produo e a revoluo dos meios de comunicao, ela tambm representa um aprofundamento e uma especificao das tenses entre o local e o global. Segundo Anthony Giddens: Nas civilizaes pr-modernas, as atividades do centro poltico nunca penetravam inteiramente na vida cotidiana da comunidade local. (1997:114). Somente com a consolidao do Estado-nao e a generalizao da democracia nos sculos XIX e XX, a comunidade local comeou efetivamente a se fragmentar (ibidem:115).

    Giddens identifica na relao entre modernidade e tradio a evoluo do risco como elemento central para a construo daquilo que ele chama de sociedade ps-tradicional. O risco ajuda a configurar o mundo como um ambiente em descontrole, que v o poder tradicional local entrar em colapso, mas no sem antes

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    resistir de forma muitas vezes violenta e imprevisvel. No que atualmente nossas circunstncias de vida tenham se tornado menos previsveis do que costumavam ser; o que mudou foram as origens da imprevisibilidade. (Gidden, 1997).

    No atual contexto de indeterminao dos verdadeiros inimigos, a difuso do terrorismo internacional deve ser analisada sob a tica da transio da modernidade simples para a modernidade reflexiva, estgio em que o progresso pode se transformar em autodestruio, em que um tipo de modernizao destri outro e o modifica (Beck, 1997: 12).

    A globalizao colocou em xeque as bases histricas de legitimao do poder local baseado na fora da tradio secular. A perda de significado dos dogmas para algumas culturas e a expanso do capital transnacional criou um limbo de identidade nas sociedades de estrutura tradicional. Enquanto uma pequena parcela do mundo incorporou o modelo de vida cosmopolita, baseado nas novas relaes horizontais de produo e explorao capitalista, bilhes de pessoas se encontram no patamar de misria sobrevivendo com menos de um dlar por dia, onde a fragilidade das instituies alimenta a violncia e a intolerncia tnica.

    O primeiro sinal de alerta para o processo de intolerncia tnica e radicalizao da violncia - aps 2 Guerra Mundial - veio de Ruanda em 1994. Durante os meses de abril e maio, 800 mil ttsis foram assassinados pela etnia hut diante dos olhos da comunidade internacional, que assistiu a esse genocdio de maneira quase indiferente. Em 1994, entre as onze horas de segunda-feira 11 de abril e as catorze horas de sbado 14 de maio, cerca de 50 mil ttsis, de uma populao de perto de 59 mil, foram massacrados com faces, todos os dias da semana, das nove e meia s dezesseis horas, por milicianos e vizinhos htus, nas colinas da comuna de Nyamata, em Ruanda. (Hatzfeld, 2005, pg18). A anulao dos estranhos em Ruanda veio atravs da eliminao fsica dos ttsis massacrados pelos htus. a constatao, j descrita por Bauman, da converso de vizinhos em estranhos aterrorizantes e a busca da pureza ps-moderna.

    As foras de integrao do liberalismo produziram uma elite extraterritorial, que transita entre o Ocidente e o Oriente como se as fronteiras do mundo fossem

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    plenamente permeveis. Para Zygmunt Bauman (2003) essa elite internacional construiu uma zona livre de comunidade artificial, que reflete uma forma cosmopolita limitada e isolada. A re-configurao da ordem mundial na dcada de 90 produziu uma srie de projetos ancorados no principio da cooperao e integrao entre o Ocidente e o Oriente. A perspectiva de um mundo interdependente, conectado horizontalmente por organizaes no governamentais e empresas transnacionais, sugeriu a criao de uma complexa teia de relacionamentos onde os Estados j no seriam mais os nicos atores das relaes internacionais.

    Para entender os fatores que levaram aos atentados do World Trade Center em 2001 necessrio compreender como operam as novas foras polticas na esfera das relaes internacionais na dcada de 90. Para entender os atentados de Madri em 2004 necessrio resgatar o rastro das polticas ps 11 de setembro e analisar a Guerra do Afeganisto (2002) e a Guerra do Iraque (2003) no contexto da guerra contra o terror.

    2.2 - FUNDAMENTALISMO

    As estatsticas dos incidentes vinculados prtica do terrorismo revelam que os atentados internacionais entre as dcadas de 1960 e 1980 mantiveram-se praticamente estveis. Mas as estatsticas do MIPT6 combinadas com o banco de dados do fsico Robert Johnston7 (International Terrorist incidents) indicam que em meados dos anos 90 houve uma acentuada alterao nos indicadores de violncia, com o crescimento vertiginoso dos atentados internacionais acompanhado do aumento no nmero de vtimas do terrorismo. A alterao no ndice de atentados reflete uma mudana no cenrio da globalizao.

    6 Memorial Institute for the Prevention of Terrorism Knowledge Base;

    http://www.tkb.org/AnalyticalTools.jsp 7 Johnstons Archive Terrorism, Couterterrorism, and Unconventional Warfare;

    http://www.johnstonsarchive.net/terrorism/intlterror.html

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    Durante a Guerra Fria o cenrio padro das relaes internacionais era formado por um equilbrio do poder orientado pela perspectiva de paz armada e conteno. Os Estados mantinham soberanias afirmativas no mbito das polticas de controle local sobre a populao e o territrio nacional. A dinmica das relaes internacionais era determinada por relaes mecnicas de alinhamento poltico e econmico.

    Segundo John Stoessinger:

    Essencialmente, o sistema de equilbrio de poder equivalia a um processo de contrapor ao poder um contrapoder correspondente. A tcnica favorita empregada para atingir esse objetivo era a contraposio de alianas e de contra-alianas. Essas unies no eram permanentes; seus membros no raro mudavam de lado, sempre que a manuteno de poder parecesse exigi-lo. (1975:277)

    Durante a dcada de 50 e o incio dos anos 60, a reacomodao poltica do ps-guerra gerou uma srie de demonstraes de fora que levaram o mundo maior corrida armamentista da histria. As iniciais MAD (Mutual Assured Destruction) traduziam a relao de ambivalncia entre a loucura e a lgica de uma Guerra Nuclear. A dupla sensao de fraqueza e supervalorizao do inimigo fez com que os EUA e a URSS arriscassem ensaios para um conflito hipoteticamente possvel, mas tecnicamente improvvel.

    Os dados em vermelho refletem as estatsticas do U.S. Department of State e os dados em azul as estatsticas do Memorial Institute for the Prevention of Terrorism

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    Assim como as tenses no campo diplomtico e militar, os atentados terroristas do sculo XX estiveram de uma forma ou outra vinculados lgica da Guerra Fria. As lutas por independncia e autonomia poltica produziram notrias organizaes terroristas8 com o intuito de desestabilizar regimes polticos e instaurar novos governos. Alguns grupos ainda possuam um vis ideolgico identificado com o marxismo-leninista, o que gerou uma forte vinculao dos movimentos de esquerda com a prtica do terror. No entanto, a ameaa do terrorismo no era suficientemente forte para projetar uma mudana de paradigmas na ordem internacional. O terrorismo era um micro-componente da Guerra Fria, geralmente localizado nas guerras de independncia das ex-colnias, que no gerava ondas significativas de instabilidade no plano internacional. O terror no sculo XX estava limitado ao cenrio bipolar da Guerra Fria que restringia o processo de globalizao.

    O terrorismo ps-Guerra Fria da dcada de 90 ressalta o carter de indefinio das ameaas no mundo contemporneo, pois conta com uma complexa rede de agentes que transitam entre dois universos e se valem de uma igualmente complexa variedade de recursos tecnolgicos e biotecnolgicos, que de algum modo escapam ao controle dos Estados. o caso da seita fundamentalista Verdade Suprema (Aum Shinrikyo) que em 1994 lanou um ataque com gs sarin no metro de Tquio, provocando doze mortes e infectando outras cinco mil pessoas.

    A seita Verdade Suprema combate a nova ordem global que na interpretao de seus seguidores representa os interesses das multinacionais, do imperialismo norte-americano e da polcia japonesa. O ataque com o gs sarin no metr de Tquio aprofundou o debate sobre o modelo social do perodo ps-hipercrescimento econmico, destacando a modernizao reflexiva. Aps dcadas de modernizao acelerada por uma srie de intervenes estatais e mobilizao nacional, o Japo tinha de enfrentar-se a si prprio como sociedade, aps se dar

    8 Alguns exemplos: Ptria Basca e Liberdade (ETA) - prega desde 1959 a criao de um Estado

    Basco independente. Exrcito Republicano Irlands (IRA) - fundado como brao armado do partido poltico Sinn Fein em 1969 para expulsar as tropas Britnicas da Irlanda. A Fora de Libertao Nacional (FLN) - empreendeu em 1954 uma srie de ataques terroristas, que provocou uma violenta represso do governo Francs acabando por expor a fico de igualdade entre os franceses europeus e argelinos.

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    conta de que tambm podia padecer dos males causados pela alienao, violncia e terrorismo, gerado por japoneses contra os prprios japoneses (Castells, 2002:135).

    A ao de diferentes grupos fundamentalistas no final do sculo XX apresentou importantes indcios de uma possvel radicalizao do terrorismo. Assim como a seita Verdade Suprema se mostrara disposta a matar milhares de pessoas em meados dos anos 90, a rede Al Qaeda colocou em prtica a violncia desmedida contra civis.

    O grande impacto causado por esses movimentos resulta, em grande medida, da presena marcante da mdia e do uso eficaz da tecnologia da informao. Procura-se atrair a ateno da mdia nos moldes da tradio anarquista francesa, brevemente reinstaurada em maio de 1968, da lction exemplaire: pratica-se um ato espetacular que, dado o seu forte apelo, at mesmo pelo sacrifcio, chama a ateno das pessoas s reivindicaes do movimento, visando em ltima anlise despertar as massas, manipuladas pela propaganda e subjugadas pela represso (Castells, 2002:133).

    Durante o sculo XX a maioria dos grupos terroristas optou por dosar - na maioria dos casos - o uso da violncia temendo as repercusses negativas que um atentado poderia produzir. O ETA e o IRA comunicavam muitas vezes a ocorrncia de uma bomba plantada em local pblico para evitar a perda de vidas, e os seqestradores de avies negociavam a libertao de refns em troca da libertao de companheiros presos. Essa limitao, no entanto, no uma caracterstica dos homens-bomba no sculo XX ou dos pilotos suicidas da rede Al Qaeda. O que chama a ateno particularmente para os atentados de 11/09 - entre outras coisas - justamente a disposio individual para o suicdio. Suicdio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela prpria vtima, ato que a vtima sabia dever produzir este resultado. (Durkheim, 1978:167)

    A ao suicida dos pilotos que conduziram os avies contra o World Trade Center revela uma incrvel determinao individual e ao mesmo tempo coletiva. Se o limite para a vitria ou a derrota era a manuteno da prpria vida na perspectiva ocidental de guerra, a ao do terrorista suicida nos obriga a repensar esse limite. A disposio do mrtir uma poderosa arma do terrorismo contemporneo, j que contra o suicida no existe mais espao para a negociao. Embora o ataque

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    suicida no seja uma exclusividade dos conflitos no Oriente Mdio9, ou uma inovao da rede Al Qaeda, a ao do mrtir ganhou destaque ao longo da dcada de 90 com o conflito Israel e Palestina e marcou definitivamente a histria recente dos EUA aps os atentados de 11 de setembro.

    No se trata aqui de incorporar a teoria descrita por mile Durkheim - que afirma a pr-disposio de cada sociedade para fornecer um determinado contingente de mortos voluntrios (Durkheim, 1978) -, mas ressaltar a presena de um outro elemento na constituio do terrorista contemporneo, a exploso dos movimentos radicais islmicos. A determinao dos atores responsveis pelos atentados contra o World Trade C