2007 silencio mizabel

9
7/23/2019 2007 Silencio Mizabel http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 1/9 O silêncio em psicanálise 1   Marizabel Almeida  O silêncio é o efeito de uma palavra em espera 2   Não há palavra sem resposta, mesmo que só encontre o silêncio, desde que haja um ouvinte, e que é esse o cerne de sua função na análise 3  SILÊNCIO:  Do latim silentiu, substantivo masculino. 1- estado de quem se cala. 2-  privação de falar. 3- interrupção de correspondência epistolar. 4- taciturnidade. 5- interrupção de ruído, calada. 6- sossego, calma, paz. 7- sigilo, segredo. 8-(aqui como interjeição) para mandar calar ou impor sossego 4 .  Não deixa de ser curiosa essa iniciativa, de querer escrever sobre o silêncio, de querer tangenciar o tênue espaço entre o dizível e o indizível, entre o dito e o não-dito. Só agora minutos atrás, quando me vi diante da tela em branco apenas com o título, me dei conta da grandeza da tarefa que escolhi. Esse tema já me ocupa há muito tempo; No  primeiro momento enquanto analisante; Depois enquanto analista, a sua presença contundente na análise, sua abrangência no campo do além-palavra e a infinidade de sentidos que pode advir quando alguém que fala, o analisante, encontra do lado daquele que o escuta, o analista, o silêncio. Aqui, o silêncio ganha a dimensão de significante, uma vez que, as palavras e os sentidos que podem advir, serão daquele que se interroga sobre a sua presença. E do lado do analista, o que justifica o seu silêncio? Haveria alguma razão para tal procedimento? Entretanto, devo dizê-lo, o que motivou a escrita sobre tema de tamanha envergadura foi um filme, não sei se vocês viram, do cineasta português quase centenário, Manoel de Oliveira. O filme chama-se: Um filme falado. Vou me deter aqui no que motivou minha escrita posto já no final, no olhar de certo personagem, central na trama, diante da cena de uma tragédia. Se fosse um filme desses produzidos pelos que dão consistência no culto ao espetáculo, a câmara iria se centrar na tragédia, uma explosão num navio onde havia apenas duas tripulantes: Uma mãe e sua jovem filha. A câmara centra-se no olhar do referido personagem, um homem, supõe-se por ser este aquele que possivelmente seria mais afetado pelo ocorrido. No olhar dele pode-se ler susto, horror e, após o baque 1  Trabalho apresentado no café da manhã no dia 18 de agosto de 2007 2  THOMAS, Marie Claude .  As formas de silêncio no esquecimento de Signorelli . Paris: Jornada realizada  pelos Seminários Psicanalíticos de Paris sobre “O silêncio em psicanálise”. Junho de 1985. 3  LACAN, Jacques. Função e campo da palavra e da linguagem. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998. 4  FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio . Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 1988.

Upload: francisco-serpa

Post on 18-Feb-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 1/9

O silêncio em psicanálise1 

 Marizabel Almeida 

O silêncio é o efeito de uma palavra em espera2 

 Não há palavra sem resposta,mesmo que só encontre o silêncio,

desde que haja um ouvinte,e que é esse o cerne de sua função na análise3 

SILÊNCIO:  Do latim silentiu, substantivo masculino. 1- estado de quem se cala. 2- privação de falar. 3- interrupção de correspondência epistolar. 4- taciturnidade. 5-interrupção de ruído, calada. 6- sossego, calma, paz. 7- sigilo, segredo. 8-(aqui comointerjeição) para mandar calar ou impor sossego4. 

 Não deixa de ser curiosa essa iniciativa, de querer escrever sobre o silêncio, de querertangenciar o tênue espaço entre o dizível e o indizível, entre o dito e o não-dito. Sóagora minutos atrás, quando me vi diante da tela em branco apenas com o título, me deiconta da grandeza da tarefa que escolhi. Esse tema já me ocupa há muito tempo; No

 primeiro momento enquanto analisante; Depois enquanto analista, a sua presençacontundente na análise, sua abrangência no campo do além-palavra e a infinidade desentidos que pode advir quando alguém que fala, o analisante, encontra do lado daqueleque o escuta, o analista, o silêncio. Aqui, o silêncio ganha a dimensão de significante,uma vez que, as palavras e os sentidos que podem advir, serão daquele que se interrogasobre a sua presença. E do lado do analista, o que justifica o seu silêncio? Haveriaalguma razão para tal procedimento?Entretanto, devo dizê-lo, o que motivou a escrita sobre tema de tamanha envergadurafoi um filme, não sei se vocês viram, do cineasta português quase centenário, Manoel deOliveira. O filme chama-se: Um filme falado. Vou me deter aqui no que motivou minhaescrita posto já no final, no olhar de certo personagem, central na trama, diante da cenade uma tragédia. Se fosse um filme desses produzidos pelos que dão consistência noculto ao espetáculo, a câmara iria se centrar na tragédia, uma explosão num navio ondehavia apenas duas tripulantes: Uma mãe e sua jovem filha. A câmara centra-se no olhardo referido personagem, um homem, supõe-se por ser este aquele que possivelmenteseria mais afetado pelo ocorrido. No olhar dele pode-se ler susto, horror e, após o baque

1 Trabalho apresentado no café da manhã no dia 18 de agosto de 2007 2 THOMAS, Marie Claude . As formas de silêncio no esquecimento de Signorelli. Paris: Jornada realizada pelos Seminários Psicanalíticos de Paris sobre “O silêncio em psicanálise”. Junho de 1985.3 LACAN, Jacques. Função e campo da palavra e da linguagem. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Editor. 1998.4 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Editora NovaFronteira. 1988.

Page 2: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 2/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

2

estrondoso, o que se apresenta é o silêncio, aquele que materializa o dito do sensocomum que diante da morte faltam as palavras. No meu caso, o silêncio, esse que foi

causado pela cena de horror e morte, silêncio que se apresenta quando o desejo agonizasobre o peso da pulsão de morte se converteu num seu oposto, num desejo de escrever,colocar palavra nesse lugar, significantizá-lo, e escrever sobre o silêncio. Mais ainda,sobre o silêncio em psicanálise. Mas, será que o silêncio terá sempre que estar associadoao mutismo? Veremos que não.Sabemos, mesmo que uma partitura se coloque para nós como uma língua estrangeira,uma música se compõe de silêncio e som, de intervalos entre estes. Sabemos tambémque a melodia, isso que marca de modo sensível a diferença entre as canções, serádelimitado, sobretudo, por esses espaços de que falávamos, dos intervalos entre a notamusical e o silêncio. Guardemos essa idéia, da relação entre silêncio e melodia, ela nosserá útil mais adiante.

 Numa conversa entre duas pessoas na vida comum, o silêncio é evitado, em muitasdelas chega a ser até temido. Há até aquelas em que o silêncio se converte em algodesagradável e até mesmo constrangedor. Pode significar duas coisas absolutamentedistintas: Ou que se concorda inteiramente com o que o outro diz por essa razãosilencia-se, há até um dito popular muito conhecido que confirma isso: quem calaconsente, ou que pelo contrário, está-se inteiramente em desacordo, daí o silêncio, ocalar-se. Tal fato evidencia a presença de formas diferentes de silêncio: há os que sãoopressores, os que guardam algo, os que são frios, os que acolhem, os que consentem,os que rejeitam, há até os silêncios-grávidos, à espera da parição de uma palavra...Enfim, há muitas formas de interpretar ou experienciar o silêncio do outro semelhanteno cotidiano...E na situação analítica, essa que nos dispomos a tratar aqui, como pensar o silêncio? Deque silêncio se trata quando o analista se cala? Trata-se do mesmo silêncio quando este

 parte do analisante? E, neste, o analisante, trata-se do mesmo silêncio, ou o mesmo podeser lido da mesma forma durante uma análise, mais ainda, na mesma sessão? Ou, seráque se calar significa fazer silêncio? Pretendemos ao longo do presente trabalho,abordar as manifestações tanto do lado do analista como do analisante em relação aotema do silêncio.Bom, o analisante fala, e o analista? O analista escuta, isso é claro, e escuta em silêncio.Convenhamos, essa situação artificial  criada pela análise de que um fala e o outroescuta, sem o espaço de interlocução comum aos diálogos mostra-se diversa e de certo

modo estranha à vida cotidiana. Caberia aqui uma pergunta: e na análise trata-se de umdiálogo? De todo modo, tal situação aqui referida, coloca em ato algo sobre o qual nosnossos dias parece até heresia trazer à tona. No livro sagrado da vida contemporânea osilêncio é um hóspede indesejado; além da presença do barulho nas cidades, há a

 presença de objetos modernos de última geração para que se escute música mesmoquando se está correndo, andando, dirigindo. Os telefones celulares e seus toques

 personalizados muitas vezes acompanhados de música invadem até as bibliotecas públicas, lugares onde teoricamente o silêncio é desejado. Hoje, o silêncio parece estar presente apenas nas instituições religiosas, igrejas, certos templos e na vida monástica, oque lhe assegura certo ar místico. Para este que chega para a análise, entre outras coisas,há que poder transpor certos pontos de referência da sua vida comum para adentrar na

sua própria análise e numa lógica que só encontrará ali, uma delas é o silêncio, tanto oseu próprio quanto daquele que o escuta.

Page 3: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 3/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

3

Algumas vezes já pude escutar na minha vida pessoal, alguém que pede uma indicação,o nome de um analista e que acrescenta: não me mande para um desses que não fala

nada. Cabe a nós a pergunta: e o analista tem que ser mudo? É um imperativo?Quando comecei a procurar referências sobre o tema do silêncio, fiquei surpresa com ovolume de textos e trabalhos produzidos em torno do assunto. Historicamente, o temado silêncio sempre esteve presente na produção e reflexão dos analistas. Para Freud, osilêncio do analisante podia estar relacionado com certos aspectos sobre os quais tratounas suas conferências. Ele estabelece uma distinção entre o silêncio estrutural das

 pulsões e aquele que se apresenta na evitação de uma palavra, no calar-se. Dito de outramaneira, ele distingue as associações que realmente não se apresentam daquelas em queo analisante faz silêncio, pois, se encontra tomado por certo sentimento de desprazer.Por outro lado, sustenta que o processo próprio do recalque se dá em silêncio. Faz umarelação do silêncio com uma idéia, pensamento ou desejo ligado à pessoa do analista e

que o analisante se recusa a falar. Fala do mutismo no sonho, bem como em outroslugares, fazendo uma alusão à linguagem mitológica como indício ou representação damorte, o que aparece no Tema dos três escrínios. De todo modo, partindo dessa relaçãosilêncio/morte Freud vai concluir que nós tendemos a afastar a morte lançando sobre elao véu do silêncio, aspecto que podemos constatar no nosso trabalho clínico nos casos deluto adiado, às vezes até convertido em melancolia, como uma recusa a se desgarrardesse objeto do qual precisa ser feito o trabalho de luto. No texto O estranho, chega adizer:

de onde provém a inquietante estranheza que emana do silêncio, dasolidão, da obscuridade? (...) Nada podemos dizer da solidão, do silêncio,da obscuridade senão que são esses verdadeiramente os elementos aos

quais se liga a angústia infantil, que jamais desaparece inteiramente namaioria dos homens.5 

Ainda assim, Freud vai se deter na sua produção mais sobre o silêncio do analisante,havia uma preocupação em interpretar o silêncio do analisante, e, mesmo emcompreender o que se passava do lado deste que fala nos momentos em que silencia.Era uma preocupação com os pacientes silenciosos e também com os silêncios presentestambém naqueles falantes. Nos últimos trabalhos em que volta a esse ponto, sustenta a

 premissa de que a pulsão de morte trabalha em silêncio e que só se manifesta quando sevolta para o exterior enquanto destruição.Freud dava certos esclarecimentos iniciais àqueles que o procuravam para pedir análise.

O principal destes esclarecimentos era sobre o modo como deveria se portar o candidatono processo; uma regra única e básica que seria o motor da análise: falar o que lheocorresse, transpor a censura, mesmo que achasse que o estava a falar poderia não seragradável de ser falado ou mesmo escutado, falar como se estivesse pensando alto, os

 pensamentos, os impulsos, postos no registro da palavra falada. Ele, Freud, escutava, pacientemente, e, pelo menos nesses primeiros tempos da cura, e na maior parte dotempo de cada sessão, em silêncio. A palavra ali era a do analisante.Tal regra básica, enunciada por Freud, por ele mesmo batizada de associação livre se

mantém como princípio e, sobretudo, possibilidade para a entrada naquilo quechamamos de dispositivo analítico, ou simplesmente a entrada do sujeito em análise.Para tanto, supõe-se que o candidato à análise já tenha até aqui articulado algo acerca da

5 FREUD, Sigmund. O Estranho. Rio de Janeiro: Imago Editora. Obras Completas. 1919.

Page 4: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 4/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

4

ou das razões que o trazem, e, se fala e dirige-se a este que o escuta como alguém que possa ajudá-lo nessa empreitada, pode-se vislumbrar outro ponto fundamental e

condição para o trabalho: a transferência.De início já temos aqui os pontos cruciais para uma análise: a possibilidade do sujeito

de articulação do seu pedido de ajuda, posto na razão de sua queixa, a suposição desaber posta na pessoa do analista e a livre associação. Dito de outra maneira: demanda,transferência e associação livre. Esses aspectos trabalhados no momento de chegada, no

 período dedicado às entrevistas preliminares, revelam o eixo do trabalho analítico.Ousaria acrescentar um outro ponto, que vai estar sempre presente numa sessão, esteque estamos a tratar aqui hoje: o do silêncio; seja ele daquele que fala o analisante, sejao do analista, este que o escuta.Sabemos que não somente durante uma análise como até mesmo numa sessão, osilêncio do analista fica submetido a muitas leituras por parte do analisante, mudando de

significação. Há que poder suportar, com toda a abrangência que o termo suportarcomporta, de aguentar e também de construção ou arregimentação de um ponto desuporte para resignificar o silêncio. E o seu próprio, enquanto analisante, o que pensaenquanto silencia? Isso nos leva à pergunta relativamente freqüente na clínica enunciada

 por nossos analisantes: devo falar tudo, mas tudo mesmo que me passar pela cabeça?Como isso é difícil... Para alguns esse convite lhes deixa num estado de perdição; poronde começar, o que selecionar, isso de falar assim à toa parece perigoso, até porqueeles percebem que enquanto falam dizem mais do que o que gostariam, o que se tornaevidente quando o analista introduz uma pergunta ou repete alguma palavra ditaanteriormente. O fato é que na maior parte das vezes o sujeito fala de si na sua vida, masnunca sequer tocou nessa dimensão de si que emerge na experiência analítica, e, falar alilhe causa ao mesmo tempo apreensão por sentir que não tem o controle sobre o seu

 próprio discurso, sobre o que se revela na sua fala e até no seu silêncio, e também alívio, por ter deixado sair algo que lhe pesava, culpava, causava dor, ou mesmo algo que nãoentendia e que se lhe parece claro ao escutar de volta suas próprias palavras. O que querdizer que a especificidade da experiência analítica propicia ao analisante a possibilidadede fazer contato com essa instância a que chamamos inconsciente, seu inconsciente,onde cada um pode reconstruir a partir do próprio romance familiar o seu mitoindividual.Para outros, causa-lhes horror mentir ou omitir, serem tomados pela idéia de que estão aenganar o analista. Devo falar até das coisas que não ousaria pensar alto, sem ninguém

 por perto? No nosso silêncio há que se apresentar a premissa de que é sobretudo destascoisas que ele, o analisante, deve falar.Freud não aborda, pelo menos não expressamente, o silêncio do analista. Ele faz suasrecomendações àqueles que exercem a psicanálise, chama a atenção para os aspectostécnicos, para os esclarecimentos que fazia ao receber um candidato a análise acerca daregra fundamental, da periodicidade das sessões, do valor, etc... Recomendava aosanalistas a abstinência como parte da técnica psicanalítica. Ou seja, que não falassem dasua vida, que não entrassem no território da sua particularidade, gostos pessoais, que sua

 palavra buscasse se movimentar em direção à interpretação, de modo que o analisante pudesse inscrever ali suas fantasias de transferência, deixando-se arrastar na sua livreerrância. Que o analista haveria de poder suportar nessa inscrição, o lugar em que lhe

colocava o seu analisante. E, pelo registro que deixou dos seus casos clínicos vemos quefalava, ora para perguntar, ora para trazer certo conteúdo emergente numa palavra ou

Page 5: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 5/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

5

frase, no discurso daqueles que escutava. Quanto ao uso da interpretação, ele mesmonão era muito favorável ao termo preferindo chamar de construções em análise. Isso nos

toca, visto que, hoje sabemos a partir da produção de Lacan, especialmente ao tratar doato analítico, a interpretação é do analisante, sendo o trabalho do analista propiciar,favorecer que ele possa se interpretar, o que supõe tanto o silêncio do analista, como oresgate de uma palavra dita, como um equívoco, como um apelo à qualidade original dosignificante de polivalência que busca aceder à sua possibilidade de abertura de sentido.Ficamos sabendo através de Octave Mannoni o seguinte:

Sabemos por Kardiner, que Freud fazia algumas vezes análises mudas.Era sempre com os analisantes que o aborreciam. Kardiner, já analisadona América, fora a Viena para completar essa análise. Dois outros pacientes de Freud, na época, dois ingleses, Strachey e Rikman,

convidaram um dia Kardiner para um chá, com o intuito de lhe fazeremuma pergunta: -“Freud fala com você?”. Ora com Kardiner Freud era bastante falador, ao passo que era obstinadamente mudo com os doisingleses. Strachey suspeitava até de que ele dormia durante as sessões.Kardiner explica assim o fato de que durante alguns anos, reinou naInglaterra a moda do silêncio absoluto do analista6.

Ora, ainda que tal registro possa vir a ser o resultado de uma inferência de Mannoni e,até um fato pitoresco desses que se contam nos relatos biográficos, algo assim comouma fofoca, não deixa de ser curioso que tenha acontecido justamente com JamesStrachey, alguém que se encarregou não só da publicação na Inglaterra como detevedurante tanto tempo todo o poder sobre a obra de Freud, inclusive as traduções, quevieram a se tornar de domínio público há poucos anos atrás. De todo modo, trouxemosesse recorte para discutirmos especialmente sobre o quanto isso nos deixa claro não setem uma teoria da análise muda, essa que esteve presente também aqui na Bahia, e quese torna patente em certos aforismos do tipo: analista, sobretudo se for lacaniano, não

 fala, é mudo. Voltaremos a isso.De todo modo, na história da psicanálise existem registros dessa tentativa de teorizarsobre o silêncio. Entre os discípulos de Freud, Ferenczi e Abraham ao explicitar suashipóteses sobre o assunto, associaram-no à manifestação de um desejo erótico anal.Ernest Jones também parte da sua experiência clínica e da observação de pacientesgagos de cujas análises se ocupava, estabelecendo uma relação entre palavra e

excremento, aventando a hipótese de que a retenção das palavras estaria diretamenterelacionada à retenção das fezes.Chamou minha atenção um trabalho de Theodor Reik  de 1926, portanto, quando Freudainda era vivo e morava em Viena. O texto chama-se  No início é o silêncio7 ,  e,encontra-se num livro onde o título por si só já é sugestivo: Escutar com a terceiraorelha. Além de claro e belo o texto é de uma atualidade surpreendente, onde o autorvai além do que se tratava até então, como tão somente o silêncio do analisante eadentra no silêncio do analista, dizendo que o analista não se intimida diante do silêncio.Ele faz algumas leituras do silêncio do analisante: desde a adaptação à situaçãoanalítica, em tudo diferente da vida cotidiana, chegando a tomá-lo como uma resposta

6 MANNONI, Octave. Um espanto tão intenso. Rio de Janeiro: Editora Campus.1992.7 REIK, Theodor. Ecouter avec la troisième oreille. Paris: Editions Desclée de Brouwer.

Page 6: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 6/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

6

do analisante a uma interpretação bem sucedida do analista. Ele chega a tomar osilêncio não como um fechamento, um silêncio de defesa tal como muitos o faziam na

época; ao contrário, toma-o como um silêncio de abertura, no que faz comparecer ovalor técnico do silêncio do analista, aspecto ao qual Lacan se dedicará mais adiante.Cito a seguir uma passagem desse texto que gostaria de dividir com vocês:

O paciente penetra na situação analítica, única em nossa civilização,saindo do silêncio. Ele fez silêncio sobre algumas de suas experiências,emoções e pensamentos, mesmo que tenha se mostrado muito falante emesmo o mais volúvel possível. Talvez tenha falado bastante de simesmo e de suas experiências, mas não falou desse lado de si que aflorana situação analítica. No Pacífico, perto de Vancouver, encontra-se umlugar curioso, chamado Zona de Silêncio. Foram muitos os navios que seesmagaram contra os rochedos nesse lugar e repousam no fundo do mar. Nenhuma sirene é possante o suficiente para avisar aos capitães. Nenhumruído exterior penetra nessa zona de silêncio, que se estende por muitasmilhas. Neste setor, os ruídos do mundo exterior não alcançam mais onavio. Pode-se comparar o que chamamos de material recalcado a essa

 zona de silêncio. A psicanálise efetuou a primeira penetração nessedomínio. Quando o paciente fala de si mesmo, os primeiros sonsdistantes, apenas perceptíveis, alcançam sua zona de silêncio8.

Ora o texto de Reik confirma o dito freudiano de que o trabalho do recalque se faz emsilêncio. Por outro lado, se a análise suscita o levantamento do recalque, e, se talsituação é de fato única na vida do sujeito uma vez que essa modalidade de escuta não

existe na vida comum, de fato a entrada em análise possibilita ao sujeito a saída dosilêncio. E, se o sujeito não falava antes sobre essa parte, não era porque fosse volúvel ese debruçasse sobre trivialidades. Ele não falava, pois, não tinha um ouvinte que

 pudesse lhe devolver o que diz enquanto fala; as manifestações do inconsciente quetambém aparecem na vida comum sob a forma de lapso: de fala, escrita, escuta, oumesmo os sonhos daqueles que nunca passaram por uma análise, elas se apresentam,mas, passa-se por elas como se diante de um erro, reconsidera-se, refaz-se o dito. Ora,

 para nós analistas, não se trata de um simples engano, e, embora seja chamado de atofalho, poderíamos tomá-lo (e por que não?) como um ato bem sucedido à espera deinterpretação, há ali um sentido.

 Nessa pesquisa sobre o material produzido sobre o silêncio, encontrei um trabalho dofilho de Fliess, o primeiro interlocutor de Freud,  Robert Fliess,  intitulado: Silêncio everbalização: Um suplemento à teoria da regra analítica, datado de 1949, portanto

 posterior ao de Reik; Nesse texto ele toma o silêncio como um equivalente dofechamento dos orifícios erógenos, fazendo uma relação com as pulsões parciais emoposição ao ato de falar, que significaria um substituto da dilatação esfincteriana. Eledesenvolve três tipos de verbalização que chama de oral, anal e uretral, fazendo umarelação com três tipos de silêncio equivalentes, partindo do pressuposto que a retençãodas palavras funciona como um equivalente da retenção das fezes. O texto é audacioso,nas relações que o autor tece, e, mesmo que possamos nos sentir inclinados a questioná-lo, algo pode nos ficar para nossa discussão posterior: E por que é que muitos pacientes

8 REIK, Theodor – Écouter avec la troisième oreille. Paris: Editions Desclée de Brouewer.

Page 7: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 7/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

7

obsessivos que tomamos em análise reagem tanto a submeter-se à associação livre? Écomum escutarmos destes no início da sessão: hoje, não tenho nada para falar!

 Nos nossos dias, a partir da produção teórica que nos deixou Lacan, o silêncio vai sertratado tanto do lado do analisante como do lado do analista. Ele vai adentrar nosaspectos técnicos do silêncio do analista.Safouan em supervisão com Lacan escreve o seguinte:

as questões idiotas eram reservadas a Lacan. Foi assim que me ocorreucolocar-lhe esta questão: Mas senhor, este jovem (o paciente do qual eume ocupara) vem ver-me três ou quatro vezes por semana, conta-mehistórias que não acabam mais, paga-me e se vai. O que tenho para dar-lhe em troca? Resposta: Ora, seu silêncio. Depois de uma tal resposta,não se é mais o mesmo de antes. Aquilo que para você era perplexidade,

senão confusão, transforma-se, como por magia, em trunfo, e mesmo emferramenta9.

Como a experiência analítica não tem brilho social, como se trata de um fenômenoopaco sem a possibilidade de identificação, visto que é a experiência do um, cadaanalisante e sua teia significante, cada analista, cada sessão e, mais ainda, como só é

 possível dar-se conta dessa experiência após a passagem por uma análise, as tentativasque faz a indústria do entretenimento e, sobretudo o cinema de Hollywood na busca deapreender o que se passa no seio de uma análise só pode mesmo bestializar o silêncio doanalista. A presença do analista absolutamente mudo, parece querer preservar umaimagem ao tempo em que contribui para aprisionar a alteridade desse lugar: o do

analista, em lamentáveis clichês, cuja visão distorcida coincide com os chavões do tipo:Freud explica, a serviço de ridicularizar ou destruir a imagem da psicanálise e dos seusseguidores, o que serve para alimentar fantasmas e preconceitos.Lacan, advertido desses engodos e buscando uma releitura rigorosa do texto freudiano,vai retomar o tema do silêncio em muitos momentos da sua produção, ora para falar dosilêncio do analisante ora daquele que se coloca do lado do analista, justificando eexplicitando as razões da sua presença. No seu primeiro seminário, ao falar sobre atransferência, ele toma o silêncio do analisante como algo que se manifesta quando esta,a transferência, se faz muito intensa, como um fenômeno que faz comparecer aquilo quena transferência pode se manifestar como resistência. Isso está também em Freud, comofalávamos no início, acerca da interrupção no fluxo das associações livres. No entanto,

toma esse silêncio como um além-da-palavra, e, associa-o a uma apreensão da presençado Outro. Até aqui, também, Freud está presente, relacionando a presença do silêncio à

 presença do analista. Em momentos diferentes Lacan vai voltar a esse ponto e reafirmarque a interrupção no discurso do analisante guarda estreita relação com um pensamentoacerca do analista. Convenhamos, para o analisante, dizer o que lhe passa pela cabeça

 pode lhe parecer constrangedor, pode ser que o que lhe ocupe, sejam pensamentoseróticos em relação ao analista, isso acontece... Pode ser que tenha pensamentosofensivos, deve continuar falando? Aqui se revela uma outra face da psicanáliseinusitada na vida comum, mais um obstáculo a ser transposto pelo analisante, transpor asua censura, adentrar nesses pensamentos e falar sobre eles. À medida que avançar noseu processo de análise irá perceber os desdobramentos disso, de que a palavra uma vez

9 SAFOUAN, Mousthapha. A palavra ou a morte. Campinas: Editora Papirus. 1993.

Page 8: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 8/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

8

 pronunciada transforma-se em ato, ato significante, não há como voltar atrás e sedesresponsabilizar pela palavra dita. Muitas vezes, depois desses ditos e até da repetição

do analista da palavra dita, o que emerge é o silêncio, o que confirma o dito de Reikacerca da interpretação, algo que só vai delimitar os seus efeitos no só-depois.Em dado momento nos seus Escritos, Lacan retoma o texto de Robert Fliess paracriticá-lo, delimitando o alcance da sua construção ao terreno onde os efeitos do silênciofuncionam como um marcador da inibição da satisfação que o sujeito experimenta.Para Lacan, o silêncio do analista busca favorecer a entrada do sujeito no uso dodispositivo analítico, sendo, portanto, referendado à própria técnica, como elemento tãoimportante quanto uma palavra dita. No entanto, esse silêncio não se encontra do ladodo mutismo que dá sustentação à pulsão de morte, ao contrário, ele busca abrir espaço

 para que aí entre algo daquele que fala. Ele se detém em alguns momentos da sua produção evocando sua presença e função, no que faz comparecer os aspectos técnicos

que o referendam. Nos diversos momentos em que trata desses aspectos, a perspectivalacaniana é a de que o silêncio do analista possa se constituir como um apelo que

 busque suscitar o espaço que autorize o surgimento de uma palavra verdadeira em que osujeito analisante possa se reconhecer como autor.Embora fale do assunto em lugares diferentes, é, sobretudo nos Escritos  que issoassume formas mais definidas. Chega a dizer:

eu me calo. Todo mundo está de acordo que frustro o falante, ele antes detodos, e eu também. Por que? Se eu o frustro, é que ele me pediu algumacoisa10.

Aqui, ele faz uma relação entre oferta e demanda. Continua:

 por intermédio da demanda, todo o passado se entreabre, até recônditosda primeira infância. Demandar: o sujeito nunca fez outra coisa, só pôdeviver por isso, e nós entramos na seqüência11.

Ora, uma vez inserido no circuito da demanda, o silêncio do analista poderá abrir espaço para que possa aparecer a pergunta do sujeito, posta no che vuoi: O que quer este demim com o seu silêncio? A ética enunciada aqui nos coloca frente à possibilidade deque na demanda, ou melhor, através da demanda, possa emergir algo do desejo dosujeito.

Também nos Escritos enuncia o seguinte:

é na medida em que o analista faz silenciar em si o discursointermediário, para se abrir para a cadeia de palavras verdadeiras, que ele pode instaurar sua interpretação reveladora12.

Ora , silenciar em si o discurso intermediário evidencia que o silêncio nem semprereside naquele que aparentemente se cala, além de  convidar o analista a silenciar os

10 LACAN, Jacques. A direção da cura e os princípios do seu poder . Escritos. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor. 1998.11

 Op.cit. em 10.12 LACAN, Jacques. Variantes do tratamento padrão. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.

Page 9: 2007 Silencio Mizabel

7/23/2019 2007 Silencio Mizabel

http://slidepdf.com/reader/full/2007-silencio-mizabel 9/9

  O Silêncio em Psicanálise – Marizabel Almeida 

9

diálogos internos atrelado ao significado, para que então possa se abrir à cadeia de palavras onde pode emergir algo da verdade do sujeito e que ele possa então aí colocar

algo que poderá vir a ter efeito de interpretação.Tal premissa supõe que o analista secoloque na posição que lhe é suposta, de escuta, e, se o saber faz sua aparição, comosaber que lhe é imputado, este diz respeito ao fato de que ele se encontra advertido, paraa possibilidade de que possa emergir algo dessa instância chamada inconsciente. Aqui oanalista será confrontado com os efeitos da sua própria análise: Se como analisante elefez essa passagem na virada do saber fazer com o seu sintoma e, se fez da psicanálise oseu sinthoma, a sua  père-version, como uma nova versão do pai, se viveu essaexperiência antes enquanto analisante, tal passagem poderá lhe dar o estofo necessário

 para suportar essa borda enquanto analista. Até porque é a partir desse silenciar em si odiscurso intermediário de que nos fala Lacan, esse que se dá no silêncio, que ele poderáse dessubjetivar, se tornar permeável à fala autêntica do seu analisante, apagar o seu ser,

esse que ele oferece ao encarnar o Outro da transferência, para ocupar o lugar que lhe édevido, para-além do Sujeito suposto Saber, lugar de semblante de objeto,  ou seja,semblante de objeto a,  restos de corpo caído, dejeto. Só assim em algum momento

 poderá vir a ser ex-analista, nada.Ele fala também da dimensão do silêncio que nos confronta com a impossibilidade dedizer tudo, ou seja, ao encontro com esse registro chamado real, com a barra nalinguagem, ou sua incompletude. Ele se defende dos que tomavam o seu trabalho deanalista como intelectualista, dizendo que sabia preservar nas análises das quais seocupava, o indizível.De resto, a recomendação que faz aos analistas de cara fechada e boca cosida13, darialugar à presença do morto, um terceiro; esse, faria surgir um quarto, que será o parceirodo analisante e que o analista o levaria a adivinhar: esse seria a própria psicanálise.

13 Op.cit. em 10.