2005 transdisciplinaridade e o paradigma pós-disciplinar na saúde
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Resumo
O objetivo do presente ensaio atualizar uma reflexo
em curso sobre os conceitos de transdisciplinaridade
e complexidade. Com este objetivo, primeiro, discute-
se a noo de disciplina no referencial epistemolgi-
co do cartesianismo, que aparece como fundamento
dos paradigmas dominantes na cincia da moderni-
dade. Em segundo lugar, introduz-se brevemente prin-
cpios e elementos constitutivos do que tem sido de-
nominado de paradigma da complexidade, propos-
to como marco transformador da cincia contempo-
rnea. Terceiro, apresenta-se uma sntese evolutiva
dos projetos metodolgicos de organizao da prti-
ca cientfica e tecnolgica que tm sido denominados
de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em
paralelo, discute-se de modo mais sistemtico o de-
senvolvimento e uso de tais conceitos, a fim de avaliar
o que tem sido proposto como perspectiva de integra-
o deles no mbito da prtica cientfica. Finalmente,
algumas das questes epistemolgicas e tericasesboadas so discutidas, atualizando um debate com
interlocutores e crticos no campo da Sade e em cam-
pos cientficos correlatos.
Palavras-chave: Complexidade; Transdisciplinarida-
de; Interdisciplinaridade; Paradigma; Sade
Naomar de Almeida Filho
PhD em Epidemiologia, Professor Titular do Instituto de Sade Cole-
tiva, Universidade Federal da Bahia. Pesquisador I-A do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq.
E-mail: [email protected]
Transdisciplinaridade e o ParadigmaPs-Disciplinar na SadeTransdisciplinarity and The Post-Disciplinary Paradigm in Health
30 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005
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Abstract
The present paper is aimed at updating an ongoing
conceptual research on transdisciplinarity and com-
plexity. With this aim, firstly, the notion of discipli-
ne is discussed in the cartesian epistemological fra-
me of reference, foundation of dominant paradigms
in modern science. Second, principles and constitu-tive elements of what has been named complexity
paradigm, supposedly a transforming landmark for
contemporary science, are briefly introduced. Third,
an evolutive synthesis of methodological projects of
organization of techno-scientific practice that have
been designated as interdisciplinarity and transdisci-
plinarity is presented. In paralel, it is discussed, more
systematically, the development and use of such con-
cepts, in order to evaluate what has been proposed as
their integrative perspective into the realm of scien-
tific practice. Finally, some sketched epistemological
and theoretical questions are discussed, updating a
debate with interlocutors and critiques in health and
correlate scientific fields.
Keywords: Complexity; Transdisciplinarity; Inter-
disciplinarity; Paradigm; Health
Introduo
Agrupados sob o rtulo de novo paradigma e com
diferentes graus de inter-articulao, vrios elemen-
tos epistemolgicos e metodolgicos tm sido propos-
tos como tendncia alternativa para a cincia contem-
pornea. A aplicao destes princpios, mtodos e lgi-
cas, que s vezes no parecem congruentes entre si,tem sido denominada, particularmente nos pases
anglo-saxes, de cincia ps-moderna (Santos 1989).
Proponentes dos novos paradigmas freqentemente
sugerem que uma nuova scienza encontra-se em ple-no desenvolvimento, demandando categorias episte-
molgicas prprias (como parece ser a categoria da
complexidade), novos modelos tericos (como a teo-
ria do caos) e novas formas lgicas de anlise (como
por exemplo modelos matemticos no-lineares, geo-
metria fractal, lgica borrosa e teoria de redes).
No campo da Sade Coletiva, vrios autores tm
defendido a necessidade de novos paradigmas para
abordar diferentes questes de pesquisa: Attinger
(1985) prope a anlise de polticas de sade a partir
de modelos sistmicos dinmicos desde uma perspec-
tiva terica da complexidade, capazes de integrar os
nveis micro e macro e as transformaes dos siste-
mas de sade. Castellanos (1990) e Almeida-Filho
(1990), independentes mas simultaneamente, siste-
matizaram propostas equivalentes e complementares
de uso destas novas abordagens paradigmticas paraa construo metodolgica do objeto da pesquisa epi-
demiolgica. Tais propostas vm sendo ampliadas e
difundidas com o objetivo de fomentar uma produo
cientfica concreta, capaz de efetivamente alimentar
um possvel paradigma novo (Schramm e Castiel,
1992; Castiel, 1994; Breilh, 1995; Almeida-Filho, 1996;
Koopman 1996).
Desde 1990, venho trabalhando em uma reviso
sistemtica de propostas de produo de conhecimen-
to alternativas ao paradigma dominante, explorandosuas possibilidades de aplicao nos campos cientfi-
cos da sade, focalizando particularmente a Epide-
miologia, minha rea de formao e pesquisa. Nessa
busca, encontrei uma detalhada classificao evolu-
tiva das alternativas de integrao de distintos cam-
pos disciplinares proposta por Jantsch (1972), atuali-
zada por Vasconcelos (1997, 2002) e adaptada por
Bibeau (1996)1, que funcionou como ponto de partida
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para uma srie de textos sobre temas epistemolgicos
da Sade Coletiva e dos corpos de discursos que a es-
truturam (Almeida Filho, 1989, 1990, 1992, 1997,
1997a, 1998, 2000, 2000a, 2000b).
No presente ensaio, dando seguimento a esse pro-
grama de estudo, recupero argumentos e atualizo uma
reflexo em curso sobre os conceitos de transdiscipli-
naridade e complexidade. Com este objetivo, primei-ro discuto algumas articulaes da noo de discipli-
na (e seu correlato especialidade) no referencial epis-
temolgico do cartesianismo, que aparece como fun-
damento dos paradigmas dominantes na cincia da
modernidade. Em segundo lugar, introduzo brevemen-
te princpios e elementos constitutivos do que tem si-
do denominado de paradigma da complexidade, pro-
posto como marco transformador da cincia contem-
pornea. Terceiro, apresento uma sntese evolutiva
dos projetos metodolgicos de organizao da prti-ca cientfica e tecnolgica que tm sido denominados
de interdisciplinaridade (incluindo a srie semntica
que a precede: pluri-multi-meta) e transdisciplina-
ridade. Em paralelo, discuto de modo mais sistemtico
as condies de desenvolvimento e uso de tais concei-
tos, a fim de avaliar o que tem sido proposto como pers-
pectiva de integrao deles no mbito da prtica cien-
tfica. Finalmente, busco aprofundar algumas das
questes epistemolgicas e tericas esboadas, atuali-
zando um debate em aberto com interlocutores e crti-
cos, com a inteno de contribuir para o avano do de-bate epistemolgico em Sade e campos cientficos
correlatos.
Razes da Disciplinaridadeno Paradigma Cartesiano
Com o sentido primitivo de demonstrao, o termo
anlise comps o ttulo atribudo a uma das obras
de Aristteles (As Analticas). Entretanto, o seu uso
moderno como uma forma especial de raciocnio emLgica e em Filosofia foi primeiro estabelecido por
Descartes, em 1635, j como postulado de oposio
noo de sntese.2
No sentido cartesiano, conhecer implicava neces-
sariamente uma etapa inicial de fragmentao (para
ser mais claro, de destruio) da coisa a ser transfor-
mada em objeto de conhecimento. Este seria o preo
mnimo que se deveria pagar para ascender ao conhe-
cimento racional. Ento o princpio da parcimnia, nosentido da simplificao reducionista, validaria os
modelos explicativos do novo modo de produo de
conhecimento pois o conhecer reduzia o agora obje-
to aos seus componentes elementares.
Apesar da declarada indissociabilidade entre an-
lise e sntese, estava fora de questo, pelo reconheci-
mento do primado da experincia, que o conhecimento
poderia ser de algum modo totalizante, conforme com
clareza atesta Locke (1988 [1690] p.188):
No devemos, pois, incorporar sistemas duvidososcomo cincias completas, nem noes ininteligveispor demonstraes cientficas. No conhecimento dos
corpos devemos nos contentar a recolher o que puder-
mos dos experimentos particulares, desde que nopodemos, da descoberta de suas essncias reais, apre-ender ao mesmo tempo todo o conjunto, e s pressas
compreender a natureza e propriedades de todas asespcies reunidas. (Grifos nossos.)
Como corolrio da analtica cartesiana, certamen-
te sua mais poderosa estratgia de operao, a cin-
cia ocidental se desenvolveu com base na noo de
especialidade(e seus correlatos: especialista e espe-cializao). O ideal renascentista do sbio-artista-ci-
entista, encarnado na genialidade de Da Vinci, e o mo-
vimento iluminista do enciclopedismo, exemplificado
pelo talento mltiplo dos pioneiros cientistas (que
eram simultaneamente fsicos, mdicos, filsofos,
matemticos, astrnomos, naturalistas e alguns at
literatos e polticos), eram em certa medida marginais
em relao histria da cincia normal (Santos 1989,2003). A ampliao do escopo da nascente prtica
1 Bibeau, G. Sminaire sur linterdisciplinarit et lapplication. Montral: Universit de Montral, Dpartement dAnthropologie, 1996.No publicado.
2 Etimologicamente, anlise provm do Grego ana- prefixo de semntica varivel, atrs, inverso, sempre ou de novo, e -lusis(dissoluo, decomposio, destruio). O emprego do termo anlise foi sucessivamente estendido para a matemtica (e.g. lgebra egeometria analticas) e para as cincias naturais (e.g. anlise qumica e geolgica), no final do sculo XVII, para a gramtica (analisesinttica e semntica) e para as protopsicologias, j no sculo XVIII (Rey 1993).
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institucional da cincia, com suas sociedades e aca-
demias, produzia campos disciplinares cada vez mais
rigorosamente delimitados, como se fossem e eram
territrios inexplorados, demarcados e apropriados
pelos seus desbravadores. Por outro lado, na arena
cientfica, mais e mais se valorizava a especializao,
tanto no sentido de criao de novas disciplinas cien-
tficas quanto na direo de subdivises internas nosprprios campos disciplinares; no campo das prti-
cas sociais, novas profisses eram criadas; no mbito
da reproduo ampliada, um novo sistema de ensino
e formao estruturava-se com base nesta estratgia
minimalista de recomposio histrica da cincia e
da tcnica. Podemos em princpio designar essa es-
tratgia de organizao histrico-institucional da ci-
ncia, baseada na fragmentao do objeto e numa
crescente especializao do sujeito cientfico, como a
disciplinaridade.Na Roma Antiga, os seguidores de um magister(mestre) eram chamados discipuli; o termo passou emseguida a designar aqueles que aderiam filosofia de
uma escola ou de um grupo ou que se ligavam a um
mesmo modo de pensar. Nesta famlia semntica, dis-ciplina inicialmente significava a ao de aprender,de instruir-se; em seguida, a palavra foi empregada
para referir-se a um tipo particular de iniciao, a uma
doutrina, a um mtodo de ensino. Posteriormente, veio
a conotar o ensino-aprendizado em geral, incluindo
todas as formas de educao e formao. Por meton-mia, a partir do sculo XIV, com a organizao das
primeiras universidades, ainda no contexto escols-
tico, disciplina passou a designar uma matria ensina-
da, um ramo particular do conhecimento, o que depois
viria a se chamar de uma cincia. Assim, a discipli-
na tornou-se equivalente a princpios, regras e mto-
dos caractersticos de uma cincia particular e, por
extenso, de toda a Cincia (Rey, 1993; Bibeau, 1996)2.
O marco epistemolgico do reducionismo
cartesiano constri e trata, muito bem, dos objetossimples. Tem sido designado como um paradigma da
explicao, justamente por buscar uma transparn-
cia e uma publicidade (sem ironia), termos alis con-
tidos no sentido original de explicar (ex-plicare, des-enrolar, des-envolver, ex-ternalizar) (Rey, 1993). O ve-
lho e bem-firmado reducionismo cartesiano de fato
tem subsidiado a maior parte dos avanos cientficos
e tecnolgicos da moderna sociedade industrial. Sem
dvida, o reducionismo valoriza acima de tudo a sim-
plicidade e parcimnia como elementos fundamentais
dos seus objetos e modelos. Apenas por brevidade,
chamemo-lo de Paradigma S (paradigma da simpli-
cidade, ou da simplificao).
Numa fase posterior de expanso do imperialis-
mo cientfico, j no sculo XX, a formao de novos
campos disciplinares exigiu que os fundamentos daabordagem analtica do problema do conhecimento
fossem repensados (Maheu, 1967). Nessa perspectiva,
a produo do conhecimento cientfico visava no
mais a fragmentao, mas a construo de objetos
atravs de um processo de composio, ou montagem,
de elementos constituintes. No mais uma busca de
desintegrao (ou seja, anlise) e sim uma integrao
totalizadora (a sntese). Conforme Morin (1990, 2003),
estratgias sintticas de construo de um dado cam-
po cientfico configuram uma alternativa para abordaras especificidades e os enigmas dos eventos, processos,
fenmenos, na natureza, na histria e na sociedade,
enquanto sntese provisria de mltiplas determina-
es. Dessa forma, de algum modo se contemplava a
produo de objetos complexos, aqueles que no se
subordinam a nenhuma aproximao meramente
explicativa, e que nem por isso mereceriam ser exclu-
dos do campo de viso da cincia justamente por se-
rem... indisciplinados. Tratava-se ento no apenas de
explicar, mas de entender; no somente de produzir a
descrio rigorosa ou a classificao precisa mas tam-bm a compreenso de uma dada questo cientfica
(Minayo, 1992).
Muitos agora dizem que a cincia contempornea
passa por uma crise paradigmtica (Santos, 1989,
2003; Morin, 1990, 2003; Samaja, 1996). No seio de
uma prtica que flagrantemente reafirma a fragmen-
tao, os melhores cientistas, atuando na vanguarda
das chamadas cincias duras (principalmente fsico-
qumica, gentica, biologia molecular, neurocincias),
se do conta de que no mais podem deter-se em (ouserem detidos por) questes cientficas localizadas,
tornando-se especialistas monotemticos (Maheu,
1967; Powers, 1982; Maturana e Varela, 1984; Prigo-
gine e Stengers, 1986). Em outras palavras, tornam-
se conscientes de que necessrio abrir a cincia a
questionamentos em um nvel mais fundamental, sob
pena de terem suas disciplinas transformadas em
mero repertrio de tcnicas e procedimentos desde j
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superados. Segundo Bibeau (1996),
paralelamente (e contraditoriamente) superespe-cializao assistimos a um apagamento de fronteiras(pessoal-poltico; privado-pblico; local-global; indivi-dual-coletivo; sagrado-profano; objeto-sujeito) que fazcom que seja cada vez mais difcil ao pesquisador re-encontrar-se nas prticas de pesquisa. No mais se
sabe a que disciplina pertence o autor de uma dadapesquisa ou artigo cientfico. Esta situao pareceprovocar um duplo efeito contrrio. De um lado, en-contra-se ambigidade, caos e incoerncia seguida defenmenos de fuso, mistura, hibridizao e mestia-gem entre mtodos e teorias; e de outro lado, uma aber-tura de fronteiras, uma considerao dos contextos,uma desinsularizao das disciplinas.
Desde o final do sculo passado, cresce no campo
cientfico a conscincia de que a cincia se configuracada vez mais como uma prtica de construo de mo-
delos, de formulao e soluo de problemas num
mundo em constante mutao (Samaja, 1996; Matu-
rana, 2001). De certo modo, o narcisismo antropocn-
trico tpico do cientista de tradio cartesiana parece
no ter lugar em uma cincia que mais e mais valori-
za a descentrao e a relatividade (Morin, 2003). Por
outro lado, essa crise ocorre porque a prtica da cin-
cia continuamente produz objetos novos. No somen-
te novas formas para referenciar os mesmos velhos
objetos, mas de fato objetos radicalmente novos, real-mente emergentes.
O Paradigma da Complexidade
Hoje em dia, em muitos campos cientficos anuncia-
se que o Paradigma S teria exaurido sua capacidade
de apreender as complexas realidades concretas da
natureza, histria e cultura humanas e, por conse-
guinte, teria alcanado os seus limites como um ter-
reno frtil para o avano da cincia. Desde a inaugu-rao da perspectiva sistmica, ilustres pensadores e
cientistas de diversas reas de pesquisa (uma curta
lista: Wiener, von Bertallanfy, Prigogine, Thom, Boul-
ding, Maturana, Simon, Atlan, Lorenz, Morin, entre
outros), vm propondo formas alternativas de supera-
o das debilidades do reducionismo. A articulao
sistemtica desse desenvolvimento crtico resultou na
composio de novos campos interdisciplinares como
a Cincia da Informao e a Ciberntica. Mais recen-
temente, essas propostas foram finalmente unifica-
das, conformando o que veio a ser designado como
paradigma da complexidade ou, abreviadamente,
Paradigma C (Morin, 1984, 1990).
Alguns proponentes desses enfoques privilegiam
componentes analticos formais que pretendem justi-
ficar a denominao genrica, para essas propostas, deteoria do caos ou da no-linearidade (Ruelle, 1991;
Lorenz, 1993; Percival, 1994). Tais propostas se apre-
sentam quase como um neo-sistemismo, atualizan-
do e expandindo algumas posies da teoria dos siste-
mas gerais que havia alcanado uma certa influncia
no panorama cientfico dos anos 50 e 60 (Boulding,
1956; Buckley, 1968). Por esse motivo, a terminologia
teoria dos sistemas dinmicos tem sido empregada
com certa freqncia para designar os modelos com-
plexos gerados no contexto de propostas de um para-digma cientfico alternativo (Gleick, 1986; Lewin, 1992).
Portanto, a abordagem da complexidade no constitui
rigorosamente uma nova concepo. Apesar disso, con-
cordo com Morin (2003) que a categoria complexidade
designa um paradigma que, apesar de no trazer novi-
dades, tem uma chance de tornar-se dominante em di-
versos campos de conhecimento neste milnio.
A idia de complexidade seria dessa forma toma-
da como eixo principal que unificaria parcialmente
as diversas contribuies em direo a um paradigma
cientfico alternativo. Trata-se de uma aplicao ge-neralizada da premissa de que, ao contrrio da abor-
dagem reducionista do positivismo, que tem como
objetivo uma simplificao da realidade, a pesquisa
cientfica dentro de um novo paradigma deve respei-
tar a complexidade inerente aos processos concretos
da natureza, da sociedade e da histria (Robson, 1986;
Santos, 1989, 2003). Na minha opinio, o Paradigma
C, produto da cultura e da histria humanas como
qualquer outra construo social, resulta de uma pr-
tica social-intelectual-institucional chamada cincia,no sendo definvel, em uma perspectiva essencialis-
ta, por sua maior ou menor aproximao a processos
factuais de uma realidade absoluta.
Vrias possibilidades se apresentam no sentido de
uma definio da complexidade a partir de uma pers-
pectiva mais rigorosa do ponto de vista epistemolgi-
co (Edmonds, 1996). Assim, podemos catalogar os se-
guintes elementos tericos da complexidade:
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Sistemas dinmicos Definio que compreende es-
truturas sistmicas abertas, em constante transfor-
mao, totalidades formadas por partes inter-relacio-
nadas, elementos, conexes e parmetros mutantes.
A complexidade de um modelo pode ser entendida
como a sua natureza no-finalista, correspondendo na
linguagem da teoria dos sistemas propriedade de
retroalimentao de um modelo explicativo sistmico.Estou convencido que, de fato, complexidade implica
a noo de transformao. Nenhum dos modelos ba-
seados na complicao, por mais sofisticados e arti-
culados que sejam, considera a flecha-do-tempo no
sentido prigoginiano (Prigogine e Stengers, 1986; Co-
veney, 1994). Mesmo nas suas verses mais desenvol-
vidas, tais modelos tm se mostrado reducionistas,
montonos ou finalsticos e, acima de tudo, abordam a
realidade complexa atravs de cortes de congelamen-
to, ou seja, atravs da paralisia do seu elemento maisfundamental, a natureza dinmica do ser (Delattre e
Thellier, 1979). Um sistema dessa ordem, por mais in-
tricado seja, que sempre converge para o mesmooutputfixo, nunca ser um sistema dinmico. por isso que a
noo de retroalimentao revelou-se to crucial para
a teoria dos sistemas. Na mesma medida, isso explica
porque a idia de iterao torna-se chave para definir
no-linearidade nos sistemas dinmicos.
No-linearidade Trata-se da propriedade de interco-
nexes sistmicas que vo alm das relaes dose-res-
posta, produzindo efeitos que tendem a exceder a pre-
viso, dado um conjunto de determinantes. Os mode-
los de predio que se baseiam em modelos tericos
de distribuio de eventos baseados em funes ca-
ticas ou no-lineares, descontnuas ou crticas tm si-
do preconizados como teis para a descrio das rela-
es determinantes complexas (Thom, 1985). Dois sen-
tidos tm sido em geral agregados noo de no-
linearidade: Por um lado, no-linear pode significar
no finalstico, recursivo ou iterativo, no sentido de
efeito de sistemas dinmicos no convergentes (Phi-lippe, 1993). Por outro lado, a no-linearidade pode es-
tar associada propriedade de relaes entre sries
de eventos que no seguem a lgica do efeito dose-res-
posta especfico (Lorenz, 1993).
Caos O emprego do termo grego kaos, equivalentea desordem, antnimo de cosmos (tambm origin-rio do grego, designando ordem), no sentido da des-
crio de sistemas de relaes no-lineares, indica que
esta perspectiva abre-se considerao de paradoxos,
intolerveis na epistemologia convencional, como por
exemplo a concepo de ordem a partir do caos
(Atlan, 1981). De todo modo, o uso consagrado em um
jargo institudo pela prtica incorpora formas alter-
nativas de determinao que emanariam de transi-
es de fase aparentemente desordenadas, ou seja,
caticas. Esta referncia particular, portanto, incor-pora um determinismo especial, distinguindo com cla-
reza caos de indeterminao ou de aleatoriedade, am-
bos corolrios do famoso princpio da incerteza que
inaugura a crtica fsica relativista contempornea
(Ruelle, 1991).
Na prtica, caos tem sido definido como a sensiti-
vidade s condies iniciais mais a imprevisibilidade
do sistema como um todo (Gleick, 1986; Lorenz, 1993).
Em termos analticos, algumas noes de base apare-
cem com freqncia referidas teoria do caos: atra-tores estranhos e efeitos fracos. Primeiro, os atra-
tores estranhos constituem uma forma de expresso
grfica de associaes de elementos dos sistemas ite-
rativos, portanto apropriada para a representao de
relaes no-lineares no chamado espao-fase (Eck-
man e Ruelle, 1985). Segundo, a noo de sensibilida-
de s condies iniciais enquanto uma propriedade
essencial dos sistemas dinmicos abre caminho para
os modelos explicativos baseados em efeitos fracos
ou efeitos sensveis (interaes), ou seja, modelos com
menor grau de preciso ou de estabilidade preditiva
com base em configuraes conhecidas de fatores ou
determinantes (Coveney, 1994). A considerao dos
efeitos fracos ou fatores de interao possibilita a
operacionalizao de modelos de sistemas dinmicos
sob a forma de redes complexas (Newman, 2003; Stro-
gatz, 2003), a nosso ver com alto potencial para tratar
a questo do objeto sade (Schramm e Castiel, 1992;
Castiel, 1994; Almeida Filho, 1997a; Chaves, 1998).
Emergncia Definida como a ocorrncia imprevista,
a categoria emergncia remete transgresso dasleis conhecidas da determinao, engendrando o ra-
dicalmente novo (Castoriadis, 1982). Em outras pa-
lavras, trata-se de um processo de determinao
ignorada, concernente ocorrncia de algo (objeto,
fora, vetor) que previamente no existia no sistema.
Este um problema terico fundamental das diver-
sas perspectivas paradigmticas alternativas, abrin-
do-se a cincia possibilidade da emergncia, no
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sentido de algo que no estaria contido na sntese dos
determinantes em potencial (Morin, 1990). Novamen-
te, tolera-se um paradoxo como parte integrante da
lgica cientfica do novo paradigma: o novo a partir
do existente. A propsito, a questo da desconti-
nuidade tem recebido um tratamento matemtico bas-
tante sofisticado atravs da chamada teoria das ca-
tstrofes (Arnold, 1989), elaborada e difundida prin-cipalmente por Ren Thom na dcada de 80 (Thom,
1985). Essa questo vincula-se estreitamente ao cha-
mado problema da irreversibilidade, em que a
concretude dimensional do tempo posta em causa.
Borrosidade (fuzziness) Refere-se propriedade daimpreciso de limites entre elementos dos sistemas,
qualidade de uma realidade a-limitada, resultante da
transgresso da lgica formal de conjuntos ou do efei-
to do borramento dos limites intra e intersistmicos.
Curiosamente, a teoria dos conjuntos borrosos (emingls: fuzzy set theory), proposta por Zadeh no in-cio da dcada de 60, situa-se entre as concepes me-
nos popularizadas das novas abordagens paradigm-
ticas. Trata-se de uma abordagem crtica das noes
de limite e de preciso, essenciais teoria dos con-
juntos que funda a analtica formal da cincia moder-
na (Zadeh, 1982). O velho convencionalismo aristotli-
co define os fundamentos lgicos da certeza com base
na identidade e na no-contradio (Costa, 1980). Co-
mo corolrio, haveria trs modalidades de incerteza a contradio, a confuso e a ambigidade no
passveis de formalizao lgica e matemtica, por-
tanto fora dos limites da racionalidade cientfica. A
estas, acrescente-se o borramento, propriedade par-
ticular dos sistemas complexos no que se refere na-
tureza arbitrria dos limites infra-sistmicos impos-
tos aos eventos (unidades do sistema) e ao prprio sis-
tema, em suas relaes com os supersistemas (con-
textos) e respectivos observadores.
Inicialmente, a teoria dos conjuntos borrosos im-
plicava uma crtica radical noo de evento comouma fragmentao arbitrria dos processos e da trans-
formao dos elementos dos sistemas dinmicos, im-
pondo uma delimitao precisa onde ocorre uma flui-
dez de limites (McNeil e Freiberger, 1993). A isto pro-
pus designar como Borramento 1 (Almeida Filho,
2000). Porm a considerao da lgica borrosa pode
tambm implicar uma recuperao da contextualiza-
o como etapa do processo de produo de conheci-
mento. Neste caso, borram-se os limites externos do
sistema, ou seja, a interface entre o sistema e o con-
texto, conformando o que chamei de Borramento 2.
Por ltimo, da crtica noo de limite resulta tam-
bm um questionamento da categoria epistemolgica
da objetividade, retomando o clssico problema do ob-
servador como efeito de um Borramento 3, neste caso
referido delimitao fluida, ambgua, contraditriae confusa entre sujeito e objeto.
Fractalidade Indica uma geometria do microinfinito,
desenvolvida por Mandelbrot (1982, 1994) como solu-
o para analisar graficamente os padres repetidos
das relaes no-lineares.A noo de fractais parece
a mais fascinante e de maior utilidade para o desen-
volvimento de modos alternativos de produo do co-
nhecimento cientfico. Trata-se de uma nova geome-
tria, baseada na reduo das formas e propriedades
dos objetos ao infinito interior, como por exemplona possibilidade de dividir uma linha em duas partes
iguais, que podero por sua vez serem divididas, e as-
sim sucessivamente, mantendo-se sempre a forma ori-
ginal de uma linha dividida pela metade. Desta ma-
neira, pode-se representar de um modo altamente sin-
ttico a constatao da permanncia de certas proprie-
dades atravs dos diferentes nveis do sistema (Series,
1994). Uma variante dessa noo pode ser encontra-
da, com as devidas especificidades, na famosa ques-
to local versus global, que tem alimentado uma dis-cusso de extrema atualidade nas cincias sociais
contemporneas (Hannerz, 1993).
Nessa altura, preciso considerar uma distino
fundamental entre simples, complicado e complexo.
Nesse conjunto de definies, simplicidade resulta
de ana-lysis, i.e., da operao que fragmenta o siste-ma nas unidades mais simples possveis. Isto equiva-
le reduo das relaes e processos sistmicos s
formas elementares de determinao, que constituem
modelos simples. A transio da simplicidade com-
plexidade no linear e direta, tendo a noo de com-plicao como nvel intermedirio imediatamente
superior (Morin, 1984, 2003). Complicado um siste-
ma que apenas multiplica nexos da mesma natureza
(por exemplo, nexos causais) entre elementos do sis-
tema de um mesmo nvel hierrquico. Multiplicar os
elementos de um dado sistema no suficiente para
nele introduzir complexidade. Consideremos como
ilustrao desse aspecto a definio epidemiolgica
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de multicausalidade (Almeida Filho, 1992). Esta im-
plica uma modelagem da complicao mas no da
complexidade, na medida em que no indica hierar-
quia nem incorpora a diversidade complexa dos ne-
xos presentes na realidade. Todas as interconexes
entre os componentes so do mesmo tipo, tornando-o
um sistema montono. Trata-se de outra faceta do
reducionismo cartesiano, no sentido de que essa for-ma de modelar a realidade reduz a diversidade dos
nexos existentes em qualquer fenmeno ou processo
a relaes estandardizadas.
A incorporao de diferentes nveis e formas ele-
mentares de determinao em um mesmo modelo per-
mite defini-lo como sistema complicado de segunda
ordem ou modelo pr-complexo. De fato, todas as
relaes internas do modelo ainda convergem para um
desenlace, assim visto como a finalizao do proces-
so. A despeito do poder heurstico superior desse mo-delo em relao ao modelo precedente, ele opera no
domnio da complicao (mas no no da complexida-
de), posto que nele no h qualquer tratamento da
transformao dos fenmenos na dimenso temporal.
Abordagens transdisciplinares so especialmente
indicadas para construir e operar modelos desse tipo,
dispositivos intuitivos para a articulao de diferen-
tes formas de determinao, incluindo a transforma-
o de componentes em fatores atravs de variveis
tipo proxy. Tais modelos podem assumir a forma de
modelos prototpicos para a desejada integrao en-tre as cincias sociais (com processos macrossociais
como relaes de composio na base do modelo), l-
gica e semntica (justificando anamorfoses que pro-
duzem links entre a base do modelo e os fatores mo-delados) e as cincias clnicas e da sade pblica (res-
ponsveis pela modelagem de riscos, doenas ou ou-
tros efeitos sobre a sade) (Almeida Filho, 2000a).
Em uma perspectiva pragmtica, buscando acer-
car a questo da complexidade a partir de uma abor-
dagem descritiva, podemos desenvolver um certo ro-teiro para o reconhecimento da complexidade onde ela
se manifesta, ou seja, nos objetos-modelos ou nos qua-
dros tericos do Paradigma C. Este roteiro leva ao re-
conhecimento de graus de complexidade: Grau I: no-
linearidade; Grau II: no-linearidade + emergncia;
Grau III: no-linearidade + emergncia + borrosidade;
Grau IV: no-linearidade + emergncia + borrosidade
+ fractalidade.
Chamemos propriedade resultante da introduo
de no-linearidade no modelo como complexidade de
Grau I. Na teoria clssica dos modelos sistmicos, essa
propriedade foi certa vez descrita como retroalimen-
tao, ou feedback. Os matemticos hoje em dia pre-ferem cham-la de iterao (Newman, 2003). Creio
que podemos denomin-la de retroao. O que inte-
ressante frisar nesse processo que tais formas derepresentao da realidade tm a inteno de supe-
rar a paralisao da realidade dos modelos pr-com-
plexos. Modelos dessa natureza preenchem uma pro-
priedade fundamental da complexidade no-linea-
ridade (retroao) , mas ainda no a emergncia. Isso
quer dizer que, quando tomamos as variveis no seu
conjunto, o efeito combinado resultante ainda equi-
vale soma dos efeitos individuais. Porm no isso
o que ocorre na modelagem de sistemas reais, pois
freqentemente o efeito resultante maior que a somados efeitos das variveis individuais. Proponho que o
excedente dos efeitos em geral, que constituem pro-
cessos sinrgicos de interao, constitui exemplos de
emergncia em sistemas complexos. Nessa interpre-
tao, ao serem introduzidas no modelo, tais intera-
es tm impacto sobre a variao que est sendo ava-
liada como resultante de um efeito convencionalmen-
te predito. Temos aqui portanto a formulao de uma
modelagem de Complexidade Grau II.
Nos modelos anteriores, cada um dos elementos se
apresenta como isolado do conjunto das coisas, fenme-nos, objetos e processos, nos quais necessariamente se
situa. Claro que no assim, h transies de fase na
variao modelizada que aparentemente impedem que
se especifique, com preciso rigorosa e corte discreto,
os limites exatos entre a situao anterior e a nova si-
tuao. Da mesma maneira, no possvel definir os
limites entre os efeitos de todos os fatores ativos no
modelo. As fronteiras entre ser e no ser nem sempre
podem ser claramente demarcadas. Um dado modelo
que impe limites entre os elementos que o compemser necessariamente mais fiel ao conjunto de proces-
sos que o sistema pretende representar? De fato, no
podemos saber quando comea a situao alterada nem
onde esto os limites dos elementos entre si e deles com
o seu contexto. No contexto do paradigma da comple-
xidade, o termo borrosidade til para designar essa
propriedade de sistemas reais, o que justificaria defi-
nir com isso modelos de Complexidade Grau III.
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Em suma, a aplicao destes princpios, mtodos
e lgicas, que s vezes no parecem congruentes en-
tre si, sugere que um novo paradigma cientfico en-
contra-se em pleno desenvolvimento, demandando
categorias epistemolgicas prprias (como parece ser
a categoria da complexidade), novos modelos tericos
(como a teoria do caos) e novas formas lgicas de
anlise (como por exemplo a geometria fractal e osmodelos matemticos no-lineares). O pressuposto de
base dessa perspectiva que as teorias dos processos
irreversveis e da entropia da Termodinmica, da inde-
terminao e da causalidade probabilstica da Fsica
quntica, dos sistemas dinmicos da Biologia, enfim
as abordagens da complexidade em geral, seriam ca-
pazes de produzir as novas metforas necessrias
para compreender e superar o distanciamento entre
o mundo natural e o mundo histrico. Essas metforas
descrevem sistemas dinmicos complexos, auto-regu-lados, mutantes, imprevisveis, produtores de nveis
emergentes de organizao. Mesmo que ainda no se
observe um padro terico de aceitao geral, as pro-
postas encaminhadas valorizam a fragmentao
fractal, a relatividade, o dinamismo, a indeterminao
e a contingncia como caractersticas da formulao
alternativa para a construo de uma nova famlia de
entes cientficos os objetos complexos.
Conceitualmente, o objeto complexo sinttico,
no-linear, mltiplo, plural e emergente. Como um ob-
jeto-modelo sistmico, faz parte de um sistema de to-talidades parciais e pode ser compreendido ele mes-
mo como um sistema, tambm incorporando totalida-
des parciais de nvel hierrquico inferior. Em sua for-
ma de objeto heurstico (Bunge, 1972), no pode ser
explicado por modelos lineares de determinao. Em
outras palavras, trata-se de um objeto-modelo subme-
tido a funes no-lineares de determinao. Por isso,
o objeto complexo no possibilita a predio, nem a
partir dele se pode diretamente gerar tecnologia. Sa-
bemos tambm que metodologicamente o objeto com-plexo aquele que pode ser apreendido em mltiplos
estados de existncia, dado que opera em distintos
nveis da realidade. O objeto complexo multifa-
cetado, alvo de diversas miradas, fonte de mltiplos
discursos, extravasando os recortes disciplinares da
cincia.
Para uma abordagem respeitosa desses intrigan-
tes atributos, a organizao convencional da cincia,
em disciplinas autnomas e at estanques, precisa ser
superada por novas modalidades da praxis cientfica,
instaurando formas alternativas de disciplinaridade.
Da que para constru-lo como referente preciso ope-
raes de sntese, produzindo modelos holsticos de
determinao complexa, e para design-lo apropria-
damente necessrio o recurso polissemia resultan-
te do cruzamento de distintos discursos disciplinares.Dessas operaes resultam projetos metodolgicos de
organizao da prtica cientfica e tecnolgica que
tm sido denominados de interdisciplinaridade (inclu-
indo a srie semntica que a precede: pluri-multi-
meta) e transdisciplinaridade.
Pluri-Multi-Meta-Inter/Transdisciplinaridade
Coerentemente preocupado com a incidncia dessaquesto no mbito educacional, Jantsch (1972) props
uma detalhada classificao evolutiva das alternati-
vas de interao ou integrao de distintos campos
disciplinares. A base dessa tipologia, retomada e adap-
tada por Vasconcelos (1997, 2002) e Bibeau (1996)1,
seria a observao da prpria prtica cientfica e dos
corpos de discursos por ela alimentados. Esses auto-
res definem as seguintes etapas sucessivas:
Multidisciplinaridade : conjunto de disciplinas que
simultaneamente tratam de uma dada questo, proble-ma ou assunto (digamos, uma temtica t), sem que os
profissionais implicados estabeleam entre si efetivas
relaes no campo tcnico ou cientfico. um sistema
que funciona atravs da justaposio de disciplinas em
um nico nvel, ausente uma cooperao sistemtica
entre os diversos campos disciplinares. Uma represen-
tao esquemtica dessa situao encontra-se na Figu-
ra 1, onde os pequenos crculos indicam os diferentes
campos disciplinaresA, B e C, dispostos isoladamente
porm incorporados por um campo temtico t.
Figura 1 - Multidisciplinaridade
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Pluridisciplinaridade: implica a justaposio de dife-
rentes disciplinas cientficas que, em um processo de
tratamento de uma temtica unificada t, efetivamen-
te desenvolveriam relaes entre si. Seria portanto
ainda um sistema de um s nvel (como na multidisci-
plinaridade), porm os objetivos aqui so comuns, po-
dendo existir algum grau de cooperao mtua entre
as disciplinas. De todo modo, envolvendo campos dis-ciplinares situados num mesmo nvel hierrquico, h
uma clara perspectiva de complementaridade, sem, no
entanto, ocorrer coordenao de aes nem qualquer
pretenso de criar uma axiomtica comum (Vascon-
celos, 1997). Uma representao grfica esquemtica
desta modalidade, em que setas simbolizam a comu-
nicao cooperativa, encontra-se na Figura 2.
Figura 2 - Pluridisciplinaridade
Interdisciplinaridade auxiliar: interao de diferen-
tes disciplinas cientficas (A, B, C e D), sob a domina-
o de uma delas (no caso D), que se impe s outras
enquanto campo integrador e coordenador. O sistema
apresenta dois nveis e aqui pode-se reconhecer a po-sio superior de uma disciplina em relao s outras.
Por exemplo, os manuais de especialidades mdicas
em geral integram distintas disciplinas (como a pato-
logia, a epidemiologia, a nutrio, a propedutica, etc.)
subordinando-as, posto que as informaes tomadas
de emprstimo dessas disciplinas so colocadas a ser-
vio da especialidade enquanto disciplina-mestra
(Vasconcelos, 1996, p7). A Figura 3 traz uma represen-
tao grfica desta modalidade.
Figura 3 - Interdisciplinaridade auxiliar
Metadisciplinaridade: trata-se de uma contribuio
de Bibeau (1996)1 ao esquema original. A interao e
as inter-relaes entre as disciplinas so asseguradas
por uma metadisciplina que se situa num nvel episte-
molgico superior. Esta no se impe como coorde-
nadora mas sim como integradora do campo metadis-
ciplinar, atuando como mediadora da comunicao
entre as disciplinas do campo. Um exemplo geral: des-de a emergncia da cincia moderna, as matemticas
tm atuado como linguagem formalizada de comuni-
cao cientfica empregada por diversas disciplinas
(Granger, 1980; Castoriadis, 1988). No campo da sade
coletiva, a clnica bem que poderia ocupar esta posi-
o metadisciplinar. O esquema grfico proposto por
Bibeau (1996)1 acentua a dupla via de relao entre as
disciplinas e a metadisciplina, conforme a Figura 4.
Figura 4 - Metadisciplinaridade
Interdisciplinaridade: implica uma axiomtica co-
mum a um grupo de disciplinas conexas A, B, C e D,cujas relaes so definidas a partir de um nvel hie-
rrquico superior, ocupado por uma delas (no caso, D).
Esta ltima, geralmente determinada por referncia
sua proximidade da temtica comum, atua no so-
mente como integradora e mediadora da circulao
dos discursos disciplinares mas principalmente como
coordenadora do campo disciplinar. Segundo Vascon-
celos (1997, p.8), advogando esta modalidade como
integradora do campo da sade mental,a interdisci-
plinaridade se sustenta sobre uma problemtica co-mum, uma axiomtica terica e/ou poltica compar-
tilhada e uma plataforma de trabalho conjunto, desta
forma gerando uma fecundao e aprendizagem m-
tua, que no se efetua por simples adio ou mistura,
mas por uma recombinao dos elementos internos.
A Figura 5 representa esquematicamente essa mo-
dalidade, onde destaca-se o smbolo D, indicando uma
disciplina integradora do campo interdisciplinar:
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Figura 5 - Interdisciplinaridade
Transdisciplinaridade: de acordo com o esquema
Jantsch-Vasconcelos-Bibeau, trata-se do efeito de uma
integrao das disciplinas de um campo particular
sobre a base de uma axiomtica geral compartilhada.
Baseada em um sistema de vrios nveis e com objeti-
vos diversificados, sua coordenao assegurada por
referncia a uma finalidade comum, com tendncia horizontalizao das relaes de poder. Implica cria-
o de um campo novo que idealmente desenvolver
uma autonomia terica e metodolgica perante as dis-
ciplinas que o compem. Vasconcelos (1997) assinala
que a transdisciplinaridade significa uma radicali-
zao da interdisciplinaridade, com a criao de um
campo terico, operacional ou disciplinar de tipo novo
e mais amplo. A ecologia e a nova sade mental, en-
quanto campos oriundos da verdadeira integrao
de diferentes disciplinas, seriam exemplos desta pro-
posio. A Figura 6 apresentada por vrios autorescomo ilustrao de um campo transdisciplinar.
Figura 6 - Transdisciplinaridade
primeira vista, dispomos de um esquema deta-
lhado, adequado, claro e preciso, capaz de dar conta
de to relevante problema. Entretanto, devemos anali-
s-lo cuidadosamente, visto que todo dispositivo con-
ceitual sustenta-se em princpios e pressupostos que
necessitam ser revelados e expostos ao escrutnio
pblico, sobre eles aplicando o velho e infalvel princ-
pio da dvida sistemtica. Como vimos acima, este sem dvida um dos mais importantes legados da filo-
sofia cartesiana, talvez o principal fundamento do
modo cientfico clssico de produo de saberes.
Em um texto publicado em 1997, em Cincia & Sa-de Coletiva, analisei o esquema acima apresentado edesenvolvi um argumento crtico dos seus fundamen-
tos (Almeida Filho, 1997). Avaliando o contedo das
formulaes resumidas acima, identifiquei os seguin-
tes postulados subjacentes ao conceito de cincia nele
implcito:1. Campos disciplinares constituem estruturas, com-
postas por uma axiomtica terica e certamente com-
preendendo uma matriz metodolgica, cujos princ-
pios e conceitos fundamentais so passveis de deco-
dificao.
2. Quando os campos disciplinares interagem entre
si, produzem relaes interdisciplinares que tendem
a ser convergentes, com elevado grau de reciprocidade,
definidas pela temtica e pela axiomtica do campo.
3. As relaes de poder poltico internas a um dadocampo disciplinar equivalem (ou correspondem) s
relaes de poder tcnico que estruturam as respecti-
vas disciplinas.
4. A comunicao interdisciplinar desejvel e fact-
vel, podendo ser realizada pela traduo de princpios
e conceitos entre as disciplinas.
Sem a presuno de assumir uma posio privile-
giada de maior aproximao com a realidade, propus
uma srie oposta de pressupostos, buscando uma cr-
tica lgica e pragmtica da proposta analisada. Supo-nhamos que os campos disciplinares no constituem
de fato estruturas, com um grau variado de autono-
mia, e sim que so institudos por uma prxis (Samaja,
1996). Nesse caso, mais importante que uma axiom-
tica e uma disciplina (no senso comum do termo), para
a constituio do campo cientfico contribuem decisi-
vamente elementos intraparadigmticos simbli-
cos, ticos, polticos, pragmticos. De acordo com
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Chalmers (1994), Samaja (1996) e Santos (2003), entre
outros, para alm de fundamentos lgicos e questes
metodolgicas e temticas, a produo organizada do
conhecimento cientfico se realiza em uma complexa
rede institucional operada por agentes histricos con-
cretos, ligada estreitamente ao contexto scio-polti-
co mais amplo.
Em consonncia com este primeiro contrapos-tulado e em oposio ao postulado 2 acima, admita-
mos que, de fato, no so os campos disciplinares que
interagem entre si mas sim os sujeitos que os cons-
troem na prtica cientfica cotidiana, seus agentes
institucionais representativos portanto. Em outras
palavras, no existiriam campos vazios, ou pelo me-
nos preenchidos por entidades abstratas (conceitos,
noes, modelos, etc.). Os espaos institucionais da
cincia seriam permanentemente ocupados por su-
jeitos da cincia, agentes histricos, condutores dae conduzidos pela prtica cientfica. Podemos ousar
mais ainda e propor que no existem campos disci-
plinares per se, ou melhor, estes s se realizariamenquanto instituies de uma dada subcultura cien-
tfica e como formas mentais e efeitos prxicos (ou
seja, na ao) dos seus agentes.
Os agentes no seriam somente indivduos ocu-
pando posies e atores desempenhando papis. Mais
que isso, os sujeitos da cincia seriam essencialmente
agentes sociais, organizados em grupos sociais pecu-
liares que tm sido denominados de comunidadescientficas, estruturados nas matrizes de pensamen-
to e conduta que Thomas Kuhn (1970) com muita pro-
priedade conceituou como paradigmas. Da decorre
que as relaes interdisciplinares em princpio tende-riam mais ao conflito do que ao dilogo. A convergn-
cia, a reciprocidade, o mtuo enriquecimento, a fecun-
dao e aprendizagem conjuntas, tudo isso que Rorty
(1991) denomina de solidariedade cientfica, so efei-
tos desejveis que fortuitamente poderiam ocorrer
nas relaes entre campos disciplinares distintos,porm infelizmente s aconteceriam com mais fre-
quncia no seio das raras comunidades ideais de di-
logo (Habermas, 1978) formadas no processo de
construo da coeso interna dos paradigmas. Como
a comunicao franca interparadigmtica no se
exerce, o paradigma no se torna dominante seno por
meio de uma luta pela hegemonia que se trava em um
dado campo disciplinar. Neste particular, a proposio
seguinte sobre a natureza especial das relaes de
poder dentro dos campos cientficos me parece pre-
liminarmente prejudicada. De fato, apesar das simbio-
ses e interaes possveis no espao da comunicao
interdisciplinar e interparadigmtica, Mario Testa
(1989) com facilidade nos convence de que o poder po-
ltico tem natureza e determinaes muito distintas
do poder tcnico, mesmo em mbitos de aplicao pordefinio valorizadores do poder tcnico, como deve
ser o caso da arena cientfica.
Caso concordemos com essa srie de contrapostu-
lados, resta-nos concluir que a comunicao interdis-
ciplinar impossvel, rejeitando o quarto postulado
do esquema analisado. Enfim, terminei por refutar o
essencial do esquema analisado, da seguinte manei-
ra (Almeida Filho, 1997):
Os princpios e conceitos fundamentais que compem
uma dada axiomtica terica e uma matriz me-todolgica qualquer no podem ser decodificados, tra-duzidos e recombinados simplesmente porque axio-mticas e matrizes no so somente princpios e con-ceitos. Mais ainda, o que faz uma disciplina ou umparadigma muito mais do que apenas uma combina-o mtodo-lgica. Somente a quem j se encontradentro de um dado paradigma, e que por isso j oincorpora (traz no seu corpo, faz dele seu corpo, porele possudo, etc.), dado ver o seu objeto privilegiado.
Em O Nascimento da Clnica (subintitulado umaarqueologia do olhar mdico), Foucault (1963) mos-
tra como a protocincia do homem construiu uma vi-
so de mundo, um paradigma, por meio de uma prag-
mtica. Aqueles que foram enculturados no paradig-
ma clnico bem sabem quanto custa aprender a ouvir
a mtica quarta bulha no meio de chiados e estalidos
do estetoscpio, a reconhecer uma estrutura histo-
lgica onde de fato se encontram manchas multicolo-
ridas no microscpio, a identificar uma leso patolgi-
ca entre borres, claros e escuros da chapa radiogr-fica. O uso do termo enculturado no inocente. Ao
faz-lo, pretendi propor que a questo da comunica-
o interdisciplinar inscreve-se em um registro simi-
lar ao da comunicao intertnica. Anos de trabalho
de campo etnogrfico afinal arranharam o etnocen-
trismo dos antroplogos, que agora admitem que o seu
mandato de intrpretes interculturais pelo menos
descabido (Geertz, 1973; Fabian, 1979; Asad, 1994).
Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 41
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Para alcanar a desejada sntese da complexida-
de, certo que ser necessrio produzir discursos
capazes de atravessar fronteiras disciplinares. Para
que uma efetiva comunicao interdisciplinar (inter-
paradigmtica, intertnica, etc.) se estabelea, ser
imprescindvel um compartilhamento de linguagem
e de estruturas lgicas e simblicas (Vasconcelo,s
2002). Paradoxalmente, caso isso ocorra, ser porqueas fronteiras j no fazem sentido. Mas no esta
abertura das fronteiras disciplinares justamente a
demanda que se impe cincia contempornea? No
ser exatamente esta a via privilegiada (qui a ni-
ca via) de acesso aos objetos complexos de que falva-
mos acima? Mas ser que os modelos propostos aci-
ma poderiam dar conta dessa tarefa, ou seja, operar
como estratgias de apreenso-aproximao introdu-
zindo complexidade nos processos de produo do
conhecimento?
Transdisciplinaridade como ProjetoEpistemolgico
Como se a to almejada sntese pudesse ser produzi-
da por meio de uma operao de adio, a multidis-
ciplinaridade e a interdisciplinaridade auxiliar do
esquema Jantsch prometem superar a fragmentao
pela somatria. No primeiro caso, esta seria resultante
de algum processo espontneo, de duvidosa possibi-
lidade de ocorrncia, como se a sntese pudesse emer-
gir pelo mero contato entre campos disciplinares dis-
tintos. No segundo caso, os autores do esquema indi-
cam uma possibilidade de sntese pela via digamos
totalitria, imposta por um campo disciplinar hie-
rarquicamente superior. Pragmaticamente avaliando
a factibilidade desse modelo, a sua eficcia certamen-
te depender de que modalidade de sntese estamos
falando. Se considerarmos aquele tipo de sntese su-
bordinada ao projeto tecnolgico da produo indus-
trial, resultante da soma dos atributos de objetos sim-ples do reducionismo cartesiano, ento a chamada
interdisciplinaridade auxiliar poder constituir a es-
tratgia mais econmica (portanto mais eficiente)
para a produo de objetos complicados. Se, por ou-
tro lado, estivermos tratando de objetos complexos,
as limitaes dessa estratgia so to evidentes que
dispensam comentrio. De todo modo, trata-se de
uma modalidade de ao conjunta entre disciplinas
cientficas que resiste a uma crtica pragmtica,
mesmo revelando a sua incapacidade de dar conta
das demandas de atualizao da prtica cientfica
frente complexidade.
Por outro lado, modelos de pluridisciplinaridade
e interdisciplinaridade, tal como definidos no esque-
ma analisado, parecem revelar mais um carter ideo-lgico, prescritivo ou normativo, do que propriamente
uma proposta de prtica de apreenso-aproximao
dos objetos complexos. Nesse sentido, a pluridiscipli-
naridade e a interdisciplinaridade plena enquadram-
se na famlia dos programas micropolticos. Entretan-
to, a sua contribuio potencial para a construo de
uma cincia da complexidade, no sentido j aponta-
do, me parece reduzida, posto que buscam compor o
objeto complexo atravs de uma sntese tipo interpa-
radigmtica. Essa sntese seria obtida graas circu-lao dos discursos produzidos pelos distintos cam-
pos disciplinares, tarefa impossvel pela via da comu-
nicao, conforme argumentei acima. Cabe incorporar
nesse mesmo grupo de estratgias criticveis no pla-
no lgico a transdisciplinaridade tal como definida
no esquema analisado, na medida em que este a assu-
me como uma radicalizao da interdisciplinaridade.
Entretanto, a proposta da metadisciplinaridade de
Bibeau (1996)1, no sentido de uma linguagem axiom-
tica comum a um grupo de disciplinas conexas, pare-
ce destoar do restante do esquema, por isso mesmo
abrindo uma interessante possibilidade de constru-
o metaterica. Trata-se do nico modelo que per-
mite um tratamento da questo interdisciplinar en-
quanto problema relacionado s formas de comuni-
cao possveis entre matrizes disciplinares distintas.
O seu problema fundamental, considerando a estru-
tura da crtica aqui desenvolvida, que tambm no
escapa aos argumentos levantados contra os postula-
dos 1, 2 e 3. Tal como os outros modelos acima descons-
trudos, tambm trata os campos disciplinares comoentidades mticas abstratas, produtoras de inter-re-
laes fetichizadas e idealizadas. E como fazer para
incorporar tanto a crtica lgica quanto a perspectiva
pragmtica? Creio, e penso que nisto se resume a mi-
nha contribuio pessoal, que a resposta para essa
questo passa por redefinir o conceito de transdisci-
plinaridade.
42 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005
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A proposta esquematizada na Figura 7 baseia-se
na possibilidade de comunicao no entre campos
disciplinares mas entre agentes em cada campo, atra-
vs da circulao no dos discursos (pela via da tra-
duo) mas pelo trnsito dos sujeitos dos discursos.
Tomemos a srie V-Zpara representar os campos dis-
ciplinares que se relacionam em torno do objeto com-
plexo Oc, cada um tendo acesso a uma faceta particu-lar deste objeto. Por seu turno, a srie a-h refere-se
aos agentes da prtica cientfica, sendo que os sujei-
tos a, b, c, d so capazes de transitar entre pelo menos
dois campos disciplinares (c, no esquema apresenta-
do, poder circular por trs campos) enquanto os es-
pecialistas e, f, g, h permanecem restritos aos seus
respectivos campos.
Figura 7 - Transdisciplinaridade (proposta para
discusso)
Com a inteno de melhor clarificar a proposta por
meio de um exemplo, mas certamente correndo o risco
de no conseguir respeitar a complexidade do objeto,
apliquemos o esquema de Jantsch ao campo da Sade
Coletiva. Certamente que no haver campo cientfico
contemporneo mais justificadamente transdiscipli-
nar, nem objeto de conhecimento com mais alto grau
de complexidade que os fenmenos da sade-doena-cuidado.3
Consideremos V como o campo disciplinar da
Epidemiologia, ao tempo em que Zrepresentar o cam-
po da Clnica, Y, o da Biologia, eX, as Cincias Sociais
em Sade. Cada um desses campos disciplinares dis-
pe de um ponto de observao privilegiado em rela-
o a cada faceta de Oc; nenhum deles, no entanto,
capaz de apreender todos os ngulos do objeto. Veja-
mos agora os nossos agentes: a, especializado em
Antropologia Mdica e em Ecologia, transita do cam-
po das Cincias Sociais para o campo da Biologia;b
portador de uma dupla formao em Imunobiologia eem Clnica Mdica, podendo deslocar-se do campo bi-
olgico para o campo clnico sem dificuldades; c ca-
paz de atravessar os campos da Clnica, da Epidemio-
logia e das Cincias Sociais em Sade; finalmente, d
possui uma formao na subrea que tem sido deno-
minada de Epidemiologia Social. Os especialistas f
(sociologia da comunicao), g (histopatologia), h
(neuropsiquiatria) e e(epidemiologia de doenas cr-
nicas) so competentes na mtodo-lgica, nos conte-
dos e na linguagem dos seus respectivos campos dis-ciplinares, tal como o so os seus colegas transdis-
ciplinares. Apenas para concluir este exerccio, ima-
ginemos que o objeto complexo seja Depresso e que
sua abordagem enquanto importante problema de sa-
de coletiva depender da produo eficiente de um dis-
curso coordenado, resultante de operaes cognitivas
de diversas naturezas, relativamente vlido como ob-
jeto-modelo sinttico destinado a orientar a ao so-
bre aquele complexo de mltiplas determinaes.
Retornando ao plano geral, dessa maneira, a sn-
tese poder ser construda em dois nveis: (a) uma sn-tese paradigmtica no mbito de cada campo cient-
fico e (b) uma sntese transdisciplinar construda na
prtica transitiva dos agentes cientficos particulares.
A primeira dessas snteses permite uma participao
interessada inclusive dos especialistas, que podero
ter o seu vis disciplinar e paradigmtico enriquecido
com aportes transdisciplinares. Porm somente a se-
gunda sntese seria aquela capaz de dar conta do ob-
jeto complexo Oc, por meio de totalizaes provisri-
as, construdas por meio de uma prtica cotidianatransversal dos sujeitos do conhecimento e opera-
das na concretude dos seus aparelhos cognitivos.
Finalizei o texto base deste argumento comentan-
do o perfil dos novos mutantes metodolgicos pron-
3 Como propus em outro momento (Almeida Filho 2000a), o complexo sade-doena-cuidado um daqueles objetos indisciplinados,no-lineares, mltiplos, plurais, emergentes, multifacetados, que exigem dos pesquisadores um tratamento sinttico e totalizante.
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tos para o trnsito interdisciplinar, transversais, ope-
radores transdisciplinares da cincia, capazes de
trans-passar fronteiras, vontade nos diferentes cam-
pos de trans-formao, agentes transformadores e
transformantes, enculturados nos distintos campos
cientficos que estruturam os campos de prticas
transdisciplinares.
Sero (ou so, porque de fato j esto por a) mutantesmetodolgicos, sujeitos prontos para o trnsitointerdisciplinar, transversais, capazes de trans-pas- sar fronteiras, vontade nos diferentes campos detrans-formao, agentes transformadores e transfor-mantes. A formao desses agentes ser essencial-mente anfbia, com etapas sucessivas de treinamen-to-socializao-enculturao em distintos campos ci-entficos. Esta metfora biolgica (s para atestarque a era da transdisciplinaridade j comeou) atra-
ente para ilustrar a questo, pois os anfbios so ani-mais que passam parte da vida em um meio biolgicoe parte em outro meio ambiente e que, por isso mesmo,possuem uma enorme capacidade de adaptao.(Almeida Filho, 1997, p.18)
Assim, para alm de uma sntese paradigmtica
no mbito de cada campo cientfico, defendi a neces-
sidade de uma sntese transdisciplinar construda na
prtica transitiva dos agentes cientficos particula-
res. Avaliando o potencial de aplicao dessa concep-
o alternativa de transdisciplinaridade ao contextoda sade pblica contempornea, Paim e Almeida Fi-
lho (1998) adiantam que a formao desses agentes
seria essencialmente anfbia, com etapas sucessivas
de treinamento-socializao-enculturao nos distin-
tos campos cientficos que estruturam o campo de
prticas da Sade Coletiva.
Crticas e Debates
Este posicionamento tem sido objeto de intensos de-bates, o que me tem trazido mais oportunidades de
avanar e aprofundar alguns dos seus pontos princi-
pais. Castiel (1997) fez uma crtica pertinente ao me
atribuir uma expectativa otimista de homogeneidade
interna nos distintos campos disciplinares. Ayres
(1997) tambm ps em dvida o meu otimismo propo-
sitivo, assinalando que nada garante que do trnsito
dos sujeitos cientficos resultar alguma transdisci-
plinaridade e que a natureza do meu ato de definir
uma transdisciplinaridade poderia abortar uma pro-
missora vocao subversiva da proposta. Acho que
isso possvel, mas s a prtica nos permitir saber.
Concordo que snteses paradigmticas compartilha-
das so condio essencial para qualquer movimento
de sntese transdisciplinar. Porm o movimento da
transdisciplinaridade se deve iniciar com algum graude concordncia dos estatutos de cientificidade dos
objetos nos respectivos campos. As contribuies de
Sevalho (1997) e Portocarrero (1997) trouxeram bai-
la os objetos fronteirios, objetos hbridos, quase-ob-
jetos, objetos complexos, objetos estruturados, semi-
estruturados e no-estruturados revelados pelos es-
tudos sociais das cincias. A partir dessa plataforma,
poder-se-ia avanar a proposta de uma nova famlia
de objetos cientficos simultaneamente fronteirios,
hbridos, mestios e complexos, os trans-objetos.Nesse caso, diferente do que assinala Castiel (1997),
os objetos complexos no compreendem apenas sis-
temas adaptativos com graus diferenciados de com-
plexidade, e sim tambm produtos culturais resul-
tantes de uma prtica social.
Aceitando o debate (Almeida Filho, 1997b), recorri
distino austiniana entre ato locucionrio (onde a
fala expressa algum sentido), ato ilocucionrio (que
traz uma inteno ao dizer algo) e ato perlocucionrio
(em que falar produz certos efeitos, desejados ou no)
para me posicionar em relao questo central dodebate: ser que a mera locuo da srie propositiva
multi-pluri-inter-meta-trans-disciplina na verdade
no esconderia um projeto de construo semntica
e pragmtica de um objeto-em-campo?. No como for-
malismo nem como mais uma proposta doutrinria,
o meu ato ilocucionrio vagamente pretendeu uma
certa subverso atenuada de cunho ostensivamen-
te pragmtico. Com o texto alvo desse debate, preten-
di faz-lo pela via da desconstruo do discurso con-
vencional da disciplinaridade, seguida da construode uma proposta de definio provisria e interessa-
da da transdisciplinaridade como superao pragm-
tica do esquema vigente.
Avaliando essa linha de abordagem da transdisci-
plinaridade, Carvalheiro (1997) levanta crticas rele-
vantes que merecem ser incorporadas ao seu desdo-
bramento. Em primeiro lugar, a anlise do tema da
traduo impossvel como um elemento de enfraque-
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cimento do potencial de integrao interdisciplinar
foi claramente equivocada. A comunicao imperfei-
ta ser justamente a brecha por onde se pode infiltrar
possibilidades de emergncia do novo (talvez a alte-
ridade castoriadiana). Ainda bem que no se pode tra-
duzir perfeitamente, diriam os artistas, porque a est
a liberdade de criao e recriao. Em segundo lugar,
constatando que a transdisciplinaridade situa-se noregistro de uma dupla ruptura epistemolgica, Car-
valheiro (1997) faz sria restrio (com a qual concor-
do integralmente) concepo de que a mobilidade
transdisciplinar seria privilgio exclusivo dos campos
da cincia.
Retomando o fio da sua contribuio pioneira re-
flexo epistemolgica em sade, de certo modo por ele
inaugurada no Brasil com o pequeno clssico Sade &Sistemas (1978), Mario Chaves (1998) props uma abor-
dagem multidimensional como plataforma de luta te-rica contra o processo de contnua fragmentao e in-
tensa disciplinaridade do conhecimento, a partir dos
conceitos de transdisciplinaridade e complexidade.
A idia de transdisciplinaridade da linhagem te-
rica Piaget-Jantsch-Morin a que se filia Mario Cha-
ves indica uma integrao das disciplinas de um cam-
po particular sobre a base de uma axiomtica geral
compartilhada. Baseada em um sistema de vrios n-
veis e com objetivos diversificados, sua coordenao
assegurada por referncia a uma base de conheci-
mento comum, com tendncia horizontalizao dasrelaes interdisciplinares. Desse modo, a transdisci-
plinaridade implica a criao de um campo novo que
idealmente seria capaz de desenvolver uma autono-
mia terica e metodolgica perante as disciplinas que
o originaram, como teria ocorrido com a moderna eco-
logia, oriunda da biologia evolucionista, em sua inter-
face com a qumica orgnica e as geocincias.
O conceito de complexidade sumarizado no texto
de Chaves a partir de uma retificao da suposta cono-
tao do senso comum que o toma como equivalentea caos, desordem e obscuridade, para valoriz-lo como
fundamento de uma nova cincia. Frente ao dilema
de tratar a complexidade como teoria ou como para-
digma, Chaves (1998) prefere seguir Edgar Morin
(1990), profeta do holismoepistemolgico do fin desicle, com a expresso pensamento complexo. Des-se modo, Chaves pretende articular os dois conceitos,
considerando complexidade em nvel superior de
abrangncia em relao a transdisciplinaridade. Com-
plexidade refere-se a uma propriedade totalizante do
Mundo Real (grifado pelo autor no seu texto), en-quanto transdisciplinaridade seria seu equivalente na
esfera do conhecimento. Em suas prprias palavras:
A complexidade est para o mundo real como a trans-
disciplinaridade est para o mundo acadmico.
No que concerne definio do que efetivamen-te complexidade, Chaves(1998) seleciona dois impor-
tantes aspectos: por um lado, complexidade como a
propriedade de sistemas que mantm a distino en-
tre as partes, (... que) associa sem tirar a identidade
das partes que a compem, mas sempre consideran-
do que o todo maior que a soma das partes. Por ou-
tro lado, a complexidade aparece por ele referida enpassantcomo a coexistncia de mundos entrelaadosem um mesmo espao-tempo. Aqui encontro um pri-
meiro ponto de crtica: na minha opinio, as opesde Chaves frente polissemia do conceito de comple-
xidade privilegiam justamente aspectos de mais dif-
cil operacionalizao nos processos concretos de pro-
duo de conhecimento.
Em Complexidade e Pesquisa Interdisciplinar,Eduardo Vasconcelos (2002) se prope a responder
algumas das crticas que eu teria feito sua obra an-
terior (Vasconcelos, 1997). Como comum em contro-
vrsias acadmicas, muitas vezes as tintas tornam-
se mais carregadas do que efetivamente o so. Eu no
atribu uma perspectiva acrtica, a-histrica, idealistae reificada da noo de disciplina, muito menos qual-
quer imputao de ingenuidade, ao importante esfor-
o intelectual pioneiro e ainda quase solitrio de Vas-
concelos. Talvez tenha assinalado somente excessivo
(mas perdovel) respeito matriz geradora do esque-
ma Piaget-Jantsch que tem fortes traos neo-kan-
tianos e um vis de imperialismo epistemolgico.
Alis, este vis encontra-se bem identificado e forte-
mente criticado no trabalho recente do autor (Vascon-
celos 2002), onde constato uma anlise detalhada ecuidadosa dos obstculos e limitaes anlise das
prticas inderdisciplinares a partir do referencial da
pedagogia social de base piagetiana.
De todo modo, Vasconcelos (2002) retoma o esque-
ma evolutivo de Jantsch no sentido da construo de
um projeto interdisciplinar de prtica cientfica em
uma perspectiva que considero mais crtica. Primei-
ro, amplia o escopo da questo para alm da discipli-
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naridade, incluindo interaes e interfaces no so-
mente entre campos disciplinares, mas tambm co-
nexes interparadigmticas, intertericas, multipro-
fissionais, etc. Segundo, inspirado em propostas de
construo de um novo senso comum emancipatrio
correspondentes segunda virada epistemolgica
(Boaventura Santos, 1989; 2003), contextualiza a
questo das prticas multi-pluri-inter/trans ao con-ceito de campos de saber/fazer e a conecta ao tema
dos novos paradigmas. Finalmente, buscando uma
salutar abertura pragmtica, Vasconcelos (2002) ar-
ticula o esquema evolutivo de Jantsch a uma tipologia
descritiva de sistemas equivalentes a quatro modali-
dades de prtica (multi-, pluri-, pluri-auxiliar, inter-)
e a um campo (trans-). Convergimos no que diz respei-
to aos dois primeiros pontos, especialmente porque
j haviam ambos sido includos na srie de crticas
resumida acima. Ainda assim, e para manter o debatevivo, eu diria com relao ao terceiro ponto que no
faz sentido considerar a conexo inter- exclusiva-
mente como prtica nem a modalidade trans- como
campo. Pelo contrrio, creio que o dinamismo dos
trnsitos, das travessias, das transies aponta mui-
to mais para processos prxicos do que para formas
topolgicas estruturadas tipo campos.
Eplogo
Mas, enfim, em que a concepo de transdisciplinari-dade por mim proposta se distingue e qui avana
em relao idia de transdisciplinaridade de Piaget-
Jantsch-Morin e seus seguidores?
A noo de transdisciplinaridade havia sido origi-
nalmente concebida por Jean Piaget (1967) articulada
proposio de uma epistemologia gentica que, no
obstante o seu potencial, foi concebida enquanto me-
taprojeto, um devir inalcanvel, e no como concei-
to senso-estrito. As proposies posteriores dos seus
discpulos, principalmente no campo da filosofia daEducao, conforme a sistematizao de Jantsch
(1972), no conseguem, insisto, escapar do idealismo
neo-kantiano e sua avaliao otimista do potencial
transformador da prxis humana. A encontro um pri-
meiro elemento de crtica, quando se prope que o
sonho piagetiano (ou mais precisamente, dos seus
herdeiros intelectuais) da transdisciplinaridade teria
hoje dadas as condies de ser realidade.
A proposta de articulao entre complexidade e
transdisciplinaridade de Morin (1990; 1999; 2003) e
seguidores (Freitas, Morin e Nicolescu, 1994) remete
capacidade do pensamento complexo de lidar com a
incerteza e a possibilidade de auto-organizao, alm
da sua dependncia da noo de unidade do conheci-
mento. justamente nessa utopia da sntese desen-
volvida nos textos citados acima que concentro o focoda minha crtica, sob trs aspectos: Em primeiro lu-
gar, o abstracionismo de Morin, apesar de expressar
um pensamento criativo, fascinante e sedutor, cada
vez mais se afasta do rigor epistemolgico necess-
rio aos embates pela consolidao de novas formas de
prtica cientfica. Em segundo lugar, creio que a sua
definio quase estruturalista de transdisciplinarida-
de, com nfase em disciplinas, superposies, inters-
tcios e espaos vazios, perde a oportunidade de con-
siderar o carter transitivo, praxiolgico e desan-corado daquele conceito. Em terceiro lugar, o seu tra-
tamento das relaes entre transdisciplinaridade e
complexidade, propondo uma duvidosa equivalncia
de nvel simultnea a uma especificidade terica, re-
sulta em hierarquizao e discriminao dos espaos
de aplicao dos conceitos.
Realmente, conforme corretamente assinalado por
Vasconcelos (2002), as relaes entre complexidade e
transdisciplinaridade haviam sido pouco exploradas
no texto-base desse debate. Isto ocorreu talvez porque
me parecia mais adequado concentrar a discussosobre o problema dos limites (a propsito, uma das ver-
tentes de definio da complexidade), porque no me
agrada a noo de interface: trata-se de uma aceita-
o implcita da inevitabilidade das fronteiras (ou fa-
ses, ou faces) disciplinares, justamente o que a per-
meabilidade e a transitividade da idia-prtica da
transdisciplinaridade buscam superar. Mais do que
definir ou especificar uma construo doxolgica com
a idia de transdisciplinaridade, pretendi observar e
registrar uma potencialidade de desenvolvimento deobjeto, mtodo e campo cientfico, propondo formas
de crtica e articulao lgica, epistemolgica e pra-
xiolgica de um dado discurso-prtica. Realmente no
consegui encontrar maneira mais apropriada de abor-
dar a hermenutica cientfica vigente do que o recur-
so desgastada noo kantiana dos juzos sintticos
que subjaz na dualidade anlise-sntese (Samaja,
1996). No obstante, mantenho o argumento de que,
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em uma perspectiva de crtica histrica, toda opera-
o de sintetizao produz totalizaes provisrias,
atravs de uma prtica cotidiana de produo de ob-
jetos prxicos.
Alm disso, no me parece adequado usar a cate-
goria complexidade para resumir o conjunto de pro-
priedades dos objetos concretos, realando as razes
empricas dos processos complexos como elementosessenciais para a constituio do novo paradigma.
Uma leitura epistemolgica das perspectivas paradig-
mticas alternativas no refora a determinao do
emprico sobre o conceitual. A mera existncia de um
objeto concreto no gera objetos de conhecimento,
porm a produo de objetos de conhecimento pode
gerar objetos concretos. H cada vez mais exemplos
na histria da cincia de gerao de objetos concre-
tos, como verificamos na Fsica moderna (Powers,
1982) ou mesmo em todos os objetos no mundo dainformtica, que um espao ciberntico (o famoso
cyberspace), um mundo absolutamente criado e queagora se constitui como realidade, neste caso como
realidade virtual.
Enfim, concordo com Boaventura Santos (2004) de
que necessitamos uma transformao radical do sis-
tema de formao dos sujeitos da cincia, no contex-
to de um novo paradigma. Conforme assinala Morin
(1990, p.125-6), precisamos pensar/repensar o saber,
no sobre a base de uma pequena quantidade de co-
nhecimentos como nos sculos XVII e XVIII, mas con-siderando o estado atual de disperso, proliferao,
parcelamento dos conhecimentos. De acordo: porm
devemos procurar no um enciclopedismo com base
na genialidade de sujeitos individuais como na Renas-
cena ou no Iluminismo, e sim uma forma renovada
de enciclopedismo construdo coletivamente. Cada vez
mais o processo de produo do conhecimento cient-
fico ser social, poltico-institucional, matricial, am-
plificado. Nesse cenrio, a produo competente da
cincia viabilizar abordagens totalizantes, apesar deparciais e provisrias, snteses transdisciplinares dos
objetos da complexidade.
Em suma, esta proposio realista de transdiscipli-
naridade sustenta-se na relao/tenso entre cincia
enquanto rede de instituies do campo cientfico e
cincia como modo de produo de conhecimento,
mediada em todas as instncias pelo conceito de pr-
tica cientfica (Pickering, 1992; Samaja, 1996; 2004).
Trata-se de uma abordagem materialista-histrica da
cincia, fundamentando uma definio pragmtica da
transdisciplinaridade como processo, estratgia de
ao, modalidade de prtica, e no como propriedade
ou atributo de relaes modelares entre campos disci-
plinares. Dessa maneira, far mais sentido assinalar o
carter instrumental da transdisciplinaridade como
prtica de transformao da cincia normal em cin-cia revolucionria, para respeitar a terminologia
kuhniana, na emergncia de novos paradigmas no cam-
po cientfico e de novas estratgias de ao no campo
da prtica social. Ser que dessa maneira seremos obri-
gados a superar o paradigma das disciplinas? Isto im-
plicar a emergncia de uma cincia ps-disciplinar?
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