2005 transdisciplinaridade e o paradigma pós-disciplinar na saúde

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  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    1/21

    Resumo

    O objetivo do presente ensaio atualizar uma reflexo

    em curso sobre os conceitos de transdisciplinaridade

    e complexidade. Com este objetivo, primeiro, discute-

    se a noo de disciplina no referencial epistemolgi-

    co do cartesianismo, que aparece como fundamento

    dos paradigmas dominantes na cincia da moderni-

    dade. Em segundo lugar, introduz-se brevemente prin-

    cpios e elementos constitutivos do que tem sido de-

    nominado de paradigma da complexidade, propos-

    to como marco transformador da cincia contempo-

    rnea. Terceiro, apresenta-se uma sntese evolutiva

    dos projetos metodolgicos de organizao da prti-

    ca cientfica e tecnolgica que tm sido denominados

    de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em

    paralelo, discute-se de modo mais sistemtico o de-

    senvolvimento e uso de tais conceitos, a fim de avaliar

    o que tem sido proposto como perspectiva de integra-

    o deles no mbito da prtica cientfica. Finalmente,

    algumas das questes epistemolgicas e tericasesboadas so discutidas, atualizando um debate com

    interlocutores e crticos no campo da Sade e em cam-

    pos cientficos correlatos.

    Palavras-chave: Complexidade; Transdisciplinarida-

    de; Interdisciplinaridade; Paradigma; Sade

    Naomar de Almeida Filho

    PhD em Epidemiologia, Professor Titular do Instituto de Sade Cole-

    tiva, Universidade Federal da Bahia. Pesquisador I-A do Conselho

    Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq.

    E-mail: [email protected]

    Transdisciplinaridade e o ParadigmaPs-Disciplinar na SadeTransdisciplinarity and The Post-Disciplinary Paradigm in Health

    30 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

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    Abstract

    The present paper is aimed at updating an ongoing

    conceptual research on transdisciplinarity and com-

    plexity. With this aim, firstly, the notion of discipli-

    ne is discussed in the cartesian epistemological fra-

    me of reference, foundation of dominant paradigms

    in modern science. Second, principles and constitu-tive elements of what has been named complexity

    paradigm, supposedly a transforming landmark for

    contemporary science, are briefly introduced. Third,

    an evolutive synthesis of methodological projects of

    organization of techno-scientific practice that have

    been designated as interdisciplinarity and transdisci-

    plinarity is presented. In paralel, it is discussed, more

    systematically, the development and use of such con-

    cepts, in order to evaluate what has been proposed as

    their integrative perspective into the realm of scien-

    tific practice. Finally, some sketched epistemological

    and theoretical questions are discussed, updating a

    debate with interlocutors and critiques in health and

    correlate scientific fields.

    Keywords: Complexity; Transdisciplinarity; Inter-

    disciplinarity; Paradigm; Health

    Introduo

    Agrupados sob o rtulo de novo paradigma e com

    diferentes graus de inter-articulao, vrios elemen-

    tos epistemolgicos e metodolgicos tm sido propos-

    tos como tendncia alternativa para a cincia contem-

    pornea. A aplicao destes princpios, mtodos e lgi-

    cas, que s vezes no parecem congruentes entre si,tem sido denominada, particularmente nos pases

    anglo-saxes, de cincia ps-moderna (Santos 1989).

    Proponentes dos novos paradigmas freqentemente

    sugerem que uma nuova scienza encontra-se em ple-no desenvolvimento, demandando categorias episte-

    molgicas prprias (como parece ser a categoria da

    complexidade), novos modelos tericos (como a teo-

    ria do caos) e novas formas lgicas de anlise (como

    por exemplo modelos matemticos no-lineares, geo-

    metria fractal, lgica borrosa e teoria de redes).

    No campo da Sade Coletiva, vrios autores tm

    defendido a necessidade de novos paradigmas para

    abordar diferentes questes de pesquisa: Attinger

    (1985) prope a anlise de polticas de sade a partir

    de modelos sistmicos dinmicos desde uma perspec-

    tiva terica da complexidade, capazes de integrar os

    nveis micro e macro e as transformaes dos siste-

    mas de sade. Castellanos (1990) e Almeida-Filho

    (1990), independentes mas simultaneamente, siste-

    matizaram propostas equivalentes e complementares

    de uso destas novas abordagens paradigmticas paraa construo metodolgica do objeto da pesquisa epi-

    demiolgica. Tais propostas vm sendo ampliadas e

    difundidas com o objetivo de fomentar uma produo

    cientfica concreta, capaz de efetivamente alimentar

    um possvel paradigma novo (Schramm e Castiel,

    1992; Castiel, 1994; Breilh, 1995; Almeida-Filho, 1996;

    Koopman 1996).

    Desde 1990, venho trabalhando em uma reviso

    sistemtica de propostas de produo de conhecimen-

    to alternativas ao paradigma dominante, explorandosuas possibilidades de aplicao nos campos cientfi-

    cos da sade, focalizando particularmente a Epide-

    miologia, minha rea de formao e pesquisa. Nessa

    busca, encontrei uma detalhada classificao evolu-

    tiva das alternativas de integrao de distintos cam-

    pos disciplinares proposta por Jantsch (1972), atuali-

    zada por Vasconcelos (1997, 2002) e adaptada por

    Bibeau (1996)1, que funcionou como ponto de partida

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 31

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    para uma srie de textos sobre temas epistemolgicos

    da Sade Coletiva e dos corpos de discursos que a es-

    truturam (Almeida Filho, 1989, 1990, 1992, 1997,

    1997a, 1998, 2000, 2000a, 2000b).

    No presente ensaio, dando seguimento a esse pro-

    grama de estudo, recupero argumentos e atualizo uma

    reflexo em curso sobre os conceitos de transdiscipli-

    naridade e complexidade. Com este objetivo, primei-ro discuto algumas articulaes da noo de discipli-

    na (e seu correlato especialidade) no referencial epis-

    temolgico do cartesianismo, que aparece como fun-

    damento dos paradigmas dominantes na cincia da

    modernidade. Em segundo lugar, introduzo brevemen-

    te princpios e elementos constitutivos do que tem si-

    do denominado de paradigma da complexidade, pro-

    posto como marco transformador da cincia contem-

    pornea. Terceiro, apresento uma sntese evolutiva

    dos projetos metodolgicos de organizao da prti-ca cientfica e tecnolgica que tm sido denominados

    de interdisciplinaridade (incluindo a srie semntica

    que a precede: pluri-multi-meta) e transdisciplina-

    ridade. Em paralelo, discuto de modo mais sistemtico

    as condies de desenvolvimento e uso de tais concei-

    tos, a fim de avaliar o que tem sido proposto como pers-

    pectiva de integrao deles no mbito da prtica cien-

    tfica. Finalmente, busco aprofundar algumas das

    questes epistemolgicas e tericas esboadas, atuali-

    zando um debate em aberto com interlocutores e crti-

    cos, com a inteno de contribuir para o avano do de-bate epistemolgico em Sade e campos cientficos

    correlatos.

    Razes da Disciplinaridadeno Paradigma Cartesiano

    Com o sentido primitivo de demonstrao, o termo

    anlise comps o ttulo atribudo a uma das obras

    de Aristteles (As Analticas). Entretanto, o seu uso

    moderno como uma forma especial de raciocnio emLgica e em Filosofia foi primeiro estabelecido por

    Descartes, em 1635, j como postulado de oposio

    noo de sntese.2

    No sentido cartesiano, conhecer implicava neces-

    sariamente uma etapa inicial de fragmentao (para

    ser mais claro, de destruio) da coisa a ser transfor-

    mada em objeto de conhecimento. Este seria o preo

    mnimo que se deveria pagar para ascender ao conhe-

    cimento racional. Ento o princpio da parcimnia, nosentido da simplificao reducionista, validaria os

    modelos explicativos do novo modo de produo de

    conhecimento pois o conhecer reduzia o agora obje-

    to aos seus componentes elementares.

    Apesar da declarada indissociabilidade entre an-

    lise e sntese, estava fora de questo, pelo reconheci-

    mento do primado da experincia, que o conhecimento

    poderia ser de algum modo totalizante, conforme com

    clareza atesta Locke (1988 [1690] p.188):

    No devemos, pois, incorporar sistemas duvidososcomo cincias completas, nem noes ininteligveispor demonstraes cientficas. No conhecimento dos

    corpos devemos nos contentar a recolher o que puder-

    mos dos experimentos particulares, desde que nopodemos, da descoberta de suas essncias reais, apre-ender ao mesmo tempo todo o conjunto, e s pressas

    compreender a natureza e propriedades de todas asespcies reunidas. (Grifos nossos.)

    Como corolrio da analtica cartesiana, certamen-

    te sua mais poderosa estratgia de operao, a cin-

    cia ocidental se desenvolveu com base na noo de

    especialidade(e seus correlatos: especialista e espe-cializao). O ideal renascentista do sbio-artista-ci-

    entista, encarnado na genialidade de Da Vinci, e o mo-

    vimento iluminista do enciclopedismo, exemplificado

    pelo talento mltiplo dos pioneiros cientistas (que

    eram simultaneamente fsicos, mdicos, filsofos,

    matemticos, astrnomos, naturalistas e alguns at

    literatos e polticos), eram em certa medida marginais

    em relao histria da cincia normal (Santos 1989,2003). A ampliao do escopo da nascente prtica

    1 Bibeau, G. Sminaire sur linterdisciplinarit et lapplication. Montral: Universit de Montral, Dpartement dAnthropologie, 1996.No publicado.

    2 Etimologicamente, anlise provm do Grego ana- prefixo de semntica varivel, atrs, inverso, sempre ou de novo, e -lusis(dissoluo, decomposio, destruio). O emprego do termo anlise foi sucessivamente estendido para a matemtica (e.g. lgebra egeometria analticas) e para as cincias naturais (e.g. anlise qumica e geolgica), no final do sculo XVII, para a gramtica (analisesinttica e semntica) e para as protopsicologias, j no sculo XVIII (Rey 1993).

    32 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

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    institucional da cincia, com suas sociedades e aca-

    demias, produzia campos disciplinares cada vez mais

    rigorosamente delimitados, como se fossem e eram

    territrios inexplorados, demarcados e apropriados

    pelos seus desbravadores. Por outro lado, na arena

    cientfica, mais e mais se valorizava a especializao,

    tanto no sentido de criao de novas disciplinas cien-

    tficas quanto na direo de subdivises internas nosprprios campos disciplinares; no campo das prti-

    cas sociais, novas profisses eram criadas; no mbito

    da reproduo ampliada, um novo sistema de ensino

    e formao estruturava-se com base nesta estratgia

    minimalista de recomposio histrica da cincia e

    da tcnica. Podemos em princpio designar essa es-

    tratgia de organizao histrico-institucional da ci-

    ncia, baseada na fragmentao do objeto e numa

    crescente especializao do sujeito cientfico, como a

    disciplinaridade.Na Roma Antiga, os seguidores de um magister(mestre) eram chamados discipuli; o termo passou emseguida a designar aqueles que aderiam filosofia de

    uma escola ou de um grupo ou que se ligavam a um

    mesmo modo de pensar. Nesta famlia semntica, dis-ciplina inicialmente significava a ao de aprender,de instruir-se; em seguida, a palavra foi empregada

    para referir-se a um tipo particular de iniciao, a uma

    doutrina, a um mtodo de ensino. Posteriormente, veio

    a conotar o ensino-aprendizado em geral, incluindo

    todas as formas de educao e formao. Por meton-mia, a partir do sculo XIV, com a organizao das

    primeiras universidades, ainda no contexto escols-

    tico, disciplina passou a designar uma matria ensina-

    da, um ramo particular do conhecimento, o que depois

    viria a se chamar de uma cincia. Assim, a discipli-

    na tornou-se equivalente a princpios, regras e mto-

    dos caractersticos de uma cincia particular e, por

    extenso, de toda a Cincia (Rey, 1993; Bibeau, 1996)2.

    O marco epistemolgico do reducionismo

    cartesiano constri e trata, muito bem, dos objetossimples. Tem sido designado como um paradigma da

    explicao, justamente por buscar uma transparn-

    cia e uma publicidade (sem ironia), termos alis con-

    tidos no sentido original de explicar (ex-plicare, des-enrolar, des-envolver, ex-ternalizar) (Rey, 1993). O ve-

    lho e bem-firmado reducionismo cartesiano de fato

    tem subsidiado a maior parte dos avanos cientficos

    e tecnolgicos da moderna sociedade industrial. Sem

    dvida, o reducionismo valoriza acima de tudo a sim-

    plicidade e parcimnia como elementos fundamentais

    dos seus objetos e modelos. Apenas por brevidade,

    chamemo-lo de Paradigma S (paradigma da simpli-

    cidade, ou da simplificao).

    Numa fase posterior de expanso do imperialis-

    mo cientfico, j no sculo XX, a formao de novos

    campos disciplinares exigiu que os fundamentos daabordagem analtica do problema do conhecimento

    fossem repensados (Maheu, 1967). Nessa perspectiva,

    a produo do conhecimento cientfico visava no

    mais a fragmentao, mas a construo de objetos

    atravs de um processo de composio, ou montagem,

    de elementos constituintes. No mais uma busca de

    desintegrao (ou seja, anlise) e sim uma integrao

    totalizadora (a sntese). Conforme Morin (1990, 2003),

    estratgias sintticas de construo de um dado cam-

    po cientfico configuram uma alternativa para abordaras especificidades e os enigmas dos eventos, processos,

    fenmenos, na natureza, na histria e na sociedade,

    enquanto sntese provisria de mltiplas determina-

    es. Dessa forma, de algum modo se contemplava a

    produo de objetos complexos, aqueles que no se

    subordinam a nenhuma aproximao meramente

    explicativa, e que nem por isso mereceriam ser exclu-

    dos do campo de viso da cincia justamente por se-

    rem... indisciplinados. Tratava-se ento no apenas de

    explicar, mas de entender; no somente de produzir a

    descrio rigorosa ou a classificao precisa mas tam-bm a compreenso de uma dada questo cientfica

    (Minayo, 1992).

    Muitos agora dizem que a cincia contempornea

    passa por uma crise paradigmtica (Santos, 1989,

    2003; Morin, 1990, 2003; Samaja, 1996). No seio de

    uma prtica que flagrantemente reafirma a fragmen-

    tao, os melhores cientistas, atuando na vanguarda

    das chamadas cincias duras (principalmente fsico-

    qumica, gentica, biologia molecular, neurocincias),

    se do conta de que no mais podem deter-se em (ouserem detidos por) questes cientficas localizadas,

    tornando-se especialistas monotemticos (Maheu,

    1967; Powers, 1982; Maturana e Varela, 1984; Prigo-

    gine e Stengers, 1986). Em outras palavras, tornam-

    se conscientes de que necessrio abrir a cincia a

    questionamentos em um nvel mais fundamental, sob

    pena de terem suas disciplinas transformadas em

    mero repertrio de tcnicas e procedimentos desde j

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 33

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    superados. Segundo Bibeau (1996),

    paralelamente (e contraditoriamente) superespe-cializao assistimos a um apagamento de fronteiras(pessoal-poltico; privado-pblico; local-global; indivi-dual-coletivo; sagrado-profano; objeto-sujeito) que fazcom que seja cada vez mais difcil ao pesquisador re-encontrar-se nas prticas de pesquisa. No mais se

    sabe a que disciplina pertence o autor de uma dadapesquisa ou artigo cientfico. Esta situao pareceprovocar um duplo efeito contrrio. De um lado, en-contra-se ambigidade, caos e incoerncia seguida defenmenos de fuso, mistura, hibridizao e mestia-gem entre mtodos e teorias; e de outro lado, uma aber-tura de fronteiras, uma considerao dos contextos,uma desinsularizao das disciplinas.

    Desde o final do sculo passado, cresce no campo

    cientfico a conscincia de que a cincia se configuracada vez mais como uma prtica de construo de mo-

    delos, de formulao e soluo de problemas num

    mundo em constante mutao (Samaja, 1996; Matu-

    rana, 2001). De certo modo, o narcisismo antropocn-

    trico tpico do cientista de tradio cartesiana parece

    no ter lugar em uma cincia que mais e mais valori-

    za a descentrao e a relatividade (Morin, 2003). Por

    outro lado, essa crise ocorre porque a prtica da cin-

    cia continuamente produz objetos novos. No somen-

    te novas formas para referenciar os mesmos velhos

    objetos, mas de fato objetos radicalmente novos, real-mente emergentes.

    O Paradigma da Complexidade

    Hoje em dia, em muitos campos cientficos anuncia-

    se que o Paradigma S teria exaurido sua capacidade

    de apreender as complexas realidades concretas da

    natureza, histria e cultura humanas e, por conse-

    guinte, teria alcanado os seus limites como um ter-

    reno frtil para o avano da cincia. Desde a inaugu-rao da perspectiva sistmica, ilustres pensadores e

    cientistas de diversas reas de pesquisa (uma curta

    lista: Wiener, von Bertallanfy, Prigogine, Thom, Boul-

    ding, Maturana, Simon, Atlan, Lorenz, Morin, entre

    outros), vm propondo formas alternativas de supera-

    o das debilidades do reducionismo. A articulao

    sistemtica desse desenvolvimento crtico resultou na

    composio de novos campos interdisciplinares como

    a Cincia da Informao e a Ciberntica. Mais recen-

    temente, essas propostas foram finalmente unifica-

    das, conformando o que veio a ser designado como

    paradigma da complexidade ou, abreviadamente,

    Paradigma C (Morin, 1984, 1990).

    Alguns proponentes desses enfoques privilegiam

    componentes analticos formais que pretendem justi-

    ficar a denominao genrica, para essas propostas, deteoria do caos ou da no-linearidade (Ruelle, 1991;

    Lorenz, 1993; Percival, 1994). Tais propostas se apre-

    sentam quase como um neo-sistemismo, atualizan-

    do e expandindo algumas posies da teoria dos siste-

    mas gerais que havia alcanado uma certa influncia

    no panorama cientfico dos anos 50 e 60 (Boulding,

    1956; Buckley, 1968). Por esse motivo, a terminologia

    teoria dos sistemas dinmicos tem sido empregada

    com certa freqncia para designar os modelos com-

    plexos gerados no contexto de propostas de um para-digma cientfico alternativo (Gleick, 1986; Lewin, 1992).

    Portanto, a abordagem da complexidade no constitui

    rigorosamente uma nova concepo. Apesar disso, con-

    cordo com Morin (2003) que a categoria complexidade

    designa um paradigma que, apesar de no trazer novi-

    dades, tem uma chance de tornar-se dominante em di-

    versos campos de conhecimento neste milnio.

    A idia de complexidade seria dessa forma toma-

    da como eixo principal que unificaria parcialmente

    as diversas contribuies em direo a um paradigma

    cientfico alternativo. Trata-se de uma aplicao ge-neralizada da premissa de que, ao contrrio da abor-

    dagem reducionista do positivismo, que tem como

    objetivo uma simplificao da realidade, a pesquisa

    cientfica dentro de um novo paradigma deve respei-

    tar a complexidade inerente aos processos concretos

    da natureza, da sociedade e da histria (Robson, 1986;

    Santos, 1989, 2003). Na minha opinio, o Paradigma

    C, produto da cultura e da histria humanas como

    qualquer outra construo social, resulta de uma pr-

    tica social-intelectual-institucional chamada cincia,no sendo definvel, em uma perspectiva essencialis-

    ta, por sua maior ou menor aproximao a processos

    factuais de uma realidade absoluta.

    Vrias possibilidades se apresentam no sentido de

    uma definio da complexidade a partir de uma pers-

    pectiva mais rigorosa do ponto de vista epistemolgi-

    co (Edmonds, 1996). Assim, podemos catalogar os se-

    guintes elementos tericos da complexidade:

    34 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

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    Sistemas dinmicos Definio que compreende es-

    truturas sistmicas abertas, em constante transfor-

    mao, totalidades formadas por partes inter-relacio-

    nadas, elementos, conexes e parmetros mutantes.

    A complexidade de um modelo pode ser entendida

    como a sua natureza no-finalista, correspondendo na

    linguagem da teoria dos sistemas propriedade de

    retroalimentao de um modelo explicativo sistmico.Estou convencido que, de fato, complexidade implica

    a noo de transformao. Nenhum dos modelos ba-

    seados na complicao, por mais sofisticados e arti-

    culados que sejam, considera a flecha-do-tempo no

    sentido prigoginiano (Prigogine e Stengers, 1986; Co-

    veney, 1994). Mesmo nas suas verses mais desenvol-

    vidas, tais modelos tm se mostrado reducionistas,

    montonos ou finalsticos e, acima de tudo, abordam a

    realidade complexa atravs de cortes de congelamen-

    to, ou seja, atravs da paralisia do seu elemento maisfundamental, a natureza dinmica do ser (Delattre e

    Thellier, 1979). Um sistema dessa ordem, por mais in-

    tricado seja, que sempre converge para o mesmooutputfixo, nunca ser um sistema dinmico. por isso que a

    noo de retroalimentao revelou-se to crucial para

    a teoria dos sistemas. Na mesma medida, isso explica

    porque a idia de iterao torna-se chave para definir

    no-linearidade nos sistemas dinmicos.

    No-linearidade Trata-se da propriedade de interco-

    nexes sistmicas que vo alm das relaes dose-res-

    posta, produzindo efeitos que tendem a exceder a pre-

    viso, dado um conjunto de determinantes. Os mode-

    los de predio que se baseiam em modelos tericos

    de distribuio de eventos baseados em funes ca-

    ticas ou no-lineares, descontnuas ou crticas tm si-

    do preconizados como teis para a descrio das rela-

    es determinantes complexas (Thom, 1985). Dois sen-

    tidos tm sido em geral agregados noo de no-

    linearidade: Por um lado, no-linear pode significar

    no finalstico, recursivo ou iterativo, no sentido de

    efeito de sistemas dinmicos no convergentes (Phi-lippe, 1993). Por outro lado, a no-linearidade pode es-

    tar associada propriedade de relaes entre sries

    de eventos que no seguem a lgica do efeito dose-res-

    posta especfico (Lorenz, 1993).

    Caos O emprego do termo grego kaos, equivalentea desordem, antnimo de cosmos (tambm origin-rio do grego, designando ordem), no sentido da des-

    crio de sistemas de relaes no-lineares, indica que

    esta perspectiva abre-se considerao de paradoxos,

    intolerveis na epistemologia convencional, como por

    exemplo a concepo de ordem a partir do caos

    (Atlan, 1981). De todo modo, o uso consagrado em um

    jargo institudo pela prtica incorpora formas alter-

    nativas de determinao que emanariam de transi-

    es de fase aparentemente desordenadas, ou seja,

    caticas. Esta referncia particular, portanto, incor-pora um determinismo especial, distinguindo com cla-

    reza caos de indeterminao ou de aleatoriedade, am-

    bos corolrios do famoso princpio da incerteza que

    inaugura a crtica fsica relativista contempornea

    (Ruelle, 1991).

    Na prtica, caos tem sido definido como a sensiti-

    vidade s condies iniciais mais a imprevisibilidade

    do sistema como um todo (Gleick, 1986; Lorenz, 1993).

    Em termos analticos, algumas noes de base apare-

    cem com freqncia referidas teoria do caos: atra-tores estranhos e efeitos fracos. Primeiro, os atra-

    tores estranhos constituem uma forma de expresso

    grfica de associaes de elementos dos sistemas ite-

    rativos, portanto apropriada para a representao de

    relaes no-lineares no chamado espao-fase (Eck-

    man e Ruelle, 1985). Segundo, a noo de sensibilida-

    de s condies iniciais enquanto uma propriedade

    essencial dos sistemas dinmicos abre caminho para

    os modelos explicativos baseados em efeitos fracos

    ou efeitos sensveis (interaes), ou seja, modelos com

    menor grau de preciso ou de estabilidade preditiva

    com base em configuraes conhecidas de fatores ou

    determinantes (Coveney, 1994). A considerao dos

    efeitos fracos ou fatores de interao possibilita a

    operacionalizao de modelos de sistemas dinmicos

    sob a forma de redes complexas (Newman, 2003; Stro-

    gatz, 2003), a nosso ver com alto potencial para tratar

    a questo do objeto sade (Schramm e Castiel, 1992;

    Castiel, 1994; Almeida Filho, 1997a; Chaves, 1998).

    Emergncia Definida como a ocorrncia imprevista,

    a categoria emergncia remete transgresso dasleis conhecidas da determinao, engendrando o ra-

    dicalmente novo (Castoriadis, 1982). Em outras pa-

    lavras, trata-se de um processo de determinao

    ignorada, concernente ocorrncia de algo (objeto,

    fora, vetor) que previamente no existia no sistema.

    Este um problema terico fundamental das diver-

    sas perspectivas paradigmticas alternativas, abrin-

    do-se a cincia possibilidade da emergncia, no

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 35

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    7/21

    sentido de algo que no estaria contido na sntese dos

    determinantes em potencial (Morin, 1990). Novamen-

    te, tolera-se um paradoxo como parte integrante da

    lgica cientfica do novo paradigma: o novo a partir

    do existente. A propsito, a questo da desconti-

    nuidade tem recebido um tratamento matemtico bas-

    tante sofisticado atravs da chamada teoria das ca-

    tstrofes (Arnold, 1989), elaborada e difundida prin-cipalmente por Ren Thom na dcada de 80 (Thom,

    1985). Essa questo vincula-se estreitamente ao cha-

    mado problema da irreversibilidade, em que a

    concretude dimensional do tempo posta em causa.

    Borrosidade (fuzziness) Refere-se propriedade daimpreciso de limites entre elementos dos sistemas,

    qualidade de uma realidade a-limitada, resultante da

    transgresso da lgica formal de conjuntos ou do efei-

    to do borramento dos limites intra e intersistmicos.

    Curiosamente, a teoria dos conjuntos borrosos (emingls: fuzzy set theory), proposta por Zadeh no in-cio da dcada de 60, situa-se entre as concepes me-

    nos popularizadas das novas abordagens paradigm-

    ticas. Trata-se de uma abordagem crtica das noes

    de limite e de preciso, essenciais teoria dos con-

    juntos que funda a analtica formal da cincia moder-

    na (Zadeh, 1982). O velho convencionalismo aristotli-

    co define os fundamentos lgicos da certeza com base

    na identidade e na no-contradio (Costa, 1980). Co-

    mo corolrio, haveria trs modalidades de incerteza a contradio, a confuso e a ambigidade no

    passveis de formalizao lgica e matemtica, por-

    tanto fora dos limites da racionalidade cientfica. A

    estas, acrescente-se o borramento, propriedade par-

    ticular dos sistemas complexos no que se refere na-

    tureza arbitrria dos limites infra-sistmicos impos-

    tos aos eventos (unidades do sistema) e ao prprio sis-

    tema, em suas relaes com os supersistemas (con-

    textos) e respectivos observadores.

    Inicialmente, a teoria dos conjuntos borrosos im-

    plicava uma crtica radical noo de evento comouma fragmentao arbitrria dos processos e da trans-

    formao dos elementos dos sistemas dinmicos, im-

    pondo uma delimitao precisa onde ocorre uma flui-

    dez de limites (McNeil e Freiberger, 1993). A isto pro-

    pus designar como Borramento 1 (Almeida Filho,

    2000). Porm a considerao da lgica borrosa pode

    tambm implicar uma recuperao da contextualiza-

    o como etapa do processo de produo de conheci-

    mento. Neste caso, borram-se os limites externos do

    sistema, ou seja, a interface entre o sistema e o con-

    texto, conformando o que chamei de Borramento 2.

    Por ltimo, da crtica noo de limite resulta tam-

    bm um questionamento da categoria epistemolgica

    da objetividade, retomando o clssico problema do ob-

    servador como efeito de um Borramento 3, neste caso

    referido delimitao fluida, ambgua, contraditriae confusa entre sujeito e objeto.

    Fractalidade Indica uma geometria do microinfinito,

    desenvolvida por Mandelbrot (1982, 1994) como solu-

    o para analisar graficamente os padres repetidos

    das relaes no-lineares.A noo de fractais parece

    a mais fascinante e de maior utilidade para o desen-

    volvimento de modos alternativos de produo do co-

    nhecimento cientfico. Trata-se de uma nova geome-

    tria, baseada na reduo das formas e propriedades

    dos objetos ao infinito interior, como por exemplona possibilidade de dividir uma linha em duas partes

    iguais, que podero por sua vez serem divididas, e as-

    sim sucessivamente, mantendo-se sempre a forma ori-

    ginal de uma linha dividida pela metade. Desta ma-

    neira, pode-se representar de um modo altamente sin-

    ttico a constatao da permanncia de certas proprie-

    dades atravs dos diferentes nveis do sistema (Series,

    1994). Uma variante dessa noo pode ser encontra-

    da, com as devidas especificidades, na famosa ques-

    to local versus global, que tem alimentado uma dis-cusso de extrema atualidade nas cincias sociais

    contemporneas (Hannerz, 1993).

    Nessa altura, preciso considerar uma distino

    fundamental entre simples, complicado e complexo.

    Nesse conjunto de definies, simplicidade resulta

    de ana-lysis, i.e., da operao que fragmenta o siste-ma nas unidades mais simples possveis. Isto equiva-

    le reduo das relaes e processos sistmicos s

    formas elementares de determinao, que constituem

    modelos simples. A transio da simplicidade com-

    plexidade no linear e direta, tendo a noo de com-plicao como nvel intermedirio imediatamente

    superior (Morin, 1984, 2003). Complicado um siste-

    ma que apenas multiplica nexos da mesma natureza

    (por exemplo, nexos causais) entre elementos do sis-

    tema de um mesmo nvel hierrquico. Multiplicar os

    elementos de um dado sistema no suficiente para

    nele introduzir complexidade. Consideremos como

    ilustrao desse aspecto a definio epidemiolgica

    36 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    8/21

    de multicausalidade (Almeida Filho, 1992). Esta im-

    plica uma modelagem da complicao mas no da

    complexidade, na medida em que no indica hierar-

    quia nem incorpora a diversidade complexa dos ne-

    xos presentes na realidade. Todas as interconexes

    entre os componentes so do mesmo tipo, tornando-o

    um sistema montono. Trata-se de outra faceta do

    reducionismo cartesiano, no sentido de que essa for-ma de modelar a realidade reduz a diversidade dos

    nexos existentes em qualquer fenmeno ou processo

    a relaes estandardizadas.

    A incorporao de diferentes nveis e formas ele-

    mentares de determinao em um mesmo modelo per-

    mite defini-lo como sistema complicado de segunda

    ordem ou modelo pr-complexo. De fato, todas as

    relaes internas do modelo ainda convergem para um

    desenlace, assim visto como a finalizao do proces-

    so. A despeito do poder heurstico superior desse mo-delo em relao ao modelo precedente, ele opera no

    domnio da complicao (mas no no da complexida-

    de), posto que nele no h qualquer tratamento da

    transformao dos fenmenos na dimenso temporal.

    Abordagens transdisciplinares so especialmente

    indicadas para construir e operar modelos desse tipo,

    dispositivos intuitivos para a articulao de diferen-

    tes formas de determinao, incluindo a transforma-

    o de componentes em fatores atravs de variveis

    tipo proxy. Tais modelos podem assumir a forma de

    modelos prototpicos para a desejada integrao en-tre as cincias sociais (com processos macrossociais

    como relaes de composio na base do modelo), l-

    gica e semntica (justificando anamorfoses que pro-

    duzem links entre a base do modelo e os fatores mo-delados) e as cincias clnicas e da sade pblica (res-

    ponsveis pela modelagem de riscos, doenas ou ou-

    tros efeitos sobre a sade) (Almeida Filho, 2000a).

    Em uma perspectiva pragmtica, buscando acer-

    car a questo da complexidade a partir de uma abor-

    dagem descritiva, podemos desenvolver um certo ro-teiro para o reconhecimento da complexidade onde ela

    se manifesta, ou seja, nos objetos-modelos ou nos qua-

    dros tericos do Paradigma C. Este roteiro leva ao re-

    conhecimento de graus de complexidade: Grau I: no-

    linearidade; Grau II: no-linearidade + emergncia;

    Grau III: no-linearidade + emergncia + borrosidade;

    Grau IV: no-linearidade + emergncia + borrosidade

    + fractalidade.

    Chamemos propriedade resultante da introduo

    de no-linearidade no modelo como complexidade de

    Grau I. Na teoria clssica dos modelos sistmicos, essa

    propriedade foi certa vez descrita como retroalimen-

    tao, ou feedback. Os matemticos hoje em dia pre-ferem cham-la de iterao (Newman, 2003). Creio

    que podemos denomin-la de retroao. O que inte-

    ressante frisar nesse processo que tais formas derepresentao da realidade tm a inteno de supe-

    rar a paralisao da realidade dos modelos pr-com-

    plexos. Modelos dessa natureza preenchem uma pro-

    priedade fundamental da complexidade no-linea-

    ridade (retroao) , mas ainda no a emergncia. Isso

    quer dizer que, quando tomamos as variveis no seu

    conjunto, o efeito combinado resultante ainda equi-

    vale soma dos efeitos individuais. Porm no isso

    o que ocorre na modelagem de sistemas reais, pois

    freqentemente o efeito resultante maior que a somados efeitos das variveis individuais. Proponho que o

    excedente dos efeitos em geral, que constituem pro-

    cessos sinrgicos de interao, constitui exemplos de

    emergncia em sistemas complexos. Nessa interpre-

    tao, ao serem introduzidas no modelo, tais intera-

    es tm impacto sobre a variao que est sendo ava-

    liada como resultante de um efeito convencionalmen-

    te predito. Temos aqui portanto a formulao de uma

    modelagem de Complexidade Grau II.

    Nos modelos anteriores, cada um dos elementos se

    apresenta como isolado do conjunto das coisas, fenme-nos, objetos e processos, nos quais necessariamente se

    situa. Claro que no assim, h transies de fase na

    variao modelizada que aparentemente impedem que

    se especifique, com preciso rigorosa e corte discreto,

    os limites exatos entre a situao anterior e a nova si-

    tuao. Da mesma maneira, no possvel definir os

    limites entre os efeitos de todos os fatores ativos no

    modelo. As fronteiras entre ser e no ser nem sempre

    podem ser claramente demarcadas. Um dado modelo

    que impe limites entre os elementos que o compemser necessariamente mais fiel ao conjunto de proces-

    sos que o sistema pretende representar? De fato, no

    podemos saber quando comea a situao alterada nem

    onde esto os limites dos elementos entre si e deles com

    o seu contexto. No contexto do paradigma da comple-

    xidade, o termo borrosidade til para designar essa

    propriedade de sistemas reais, o que justificaria defi-

    nir com isso modelos de Complexidade Grau III.

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 37

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    9/21

    Em suma, a aplicao destes princpios, mtodos

    e lgicas, que s vezes no parecem congruentes en-

    tre si, sugere que um novo paradigma cientfico en-

    contra-se em pleno desenvolvimento, demandando

    categorias epistemolgicas prprias (como parece ser

    a categoria da complexidade), novos modelos tericos

    (como a teoria do caos) e novas formas lgicas de

    anlise (como por exemplo a geometria fractal e osmodelos matemticos no-lineares). O pressuposto de

    base dessa perspectiva que as teorias dos processos

    irreversveis e da entropia da Termodinmica, da inde-

    terminao e da causalidade probabilstica da Fsica

    quntica, dos sistemas dinmicos da Biologia, enfim

    as abordagens da complexidade em geral, seriam ca-

    pazes de produzir as novas metforas necessrias

    para compreender e superar o distanciamento entre

    o mundo natural e o mundo histrico. Essas metforas

    descrevem sistemas dinmicos complexos, auto-regu-lados, mutantes, imprevisveis, produtores de nveis

    emergentes de organizao. Mesmo que ainda no se

    observe um padro terico de aceitao geral, as pro-

    postas encaminhadas valorizam a fragmentao

    fractal, a relatividade, o dinamismo, a indeterminao

    e a contingncia como caractersticas da formulao

    alternativa para a construo de uma nova famlia de

    entes cientficos os objetos complexos.

    Conceitualmente, o objeto complexo sinttico,

    no-linear, mltiplo, plural e emergente. Como um ob-

    jeto-modelo sistmico, faz parte de um sistema de to-talidades parciais e pode ser compreendido ele mes-

    mo como um sistema, tambm incorporando totalida-

    des parciais de nvel hierrquico inferior. Em sua for-

    ma de objeto heurstico (Bunge, 1972), no pode ser

    explicado por modelos lineares de determinao. Em

    outras palavras, trata-se de um objeto-modelo subme-

    tido a funes no-lineares de determinao. Por isso,

    o objeto complexo no possibilita a predio, nem a

    partir dele se pode diretamente gerar tecnologia. Sa-

    bemos tambm que metodologicamente o objeto com-plexo aquele que pode ser apreendido em mltiplos

    estados de existncia, dado que opera em distintos

    nveis da realidade. O objeto complexo multifa-

    cetado, alvo de diversas miradas, fonte de mltiplos

    discursos, extravasando os recortes disciplinares da

    cincia.

    Para uma abordagem respeitosa desses intrigan-

    tes atributos, a organizao convencional da cincia,

    em disciplinas autnomas e at estanques, precisa ser

    superada por novas modalidades da praxis cientfica,

    instaurando formas alternativas de disciplinaridade.

    Da que para constru-lo como referente preciso ope-

    raes de sntese, produzindo modelos holsticos de

    determinao complexa, e para design-lo apropria-

    damente necessrio o recurso polissemia resultan-

    te do cruzamento de distintos discursos disciplinares.Dessas operaes resultam projetos metodolgicos de

    organizao da prtica cientfica e tecnolgica que

    tm sido denominados de interdisciplinaridade (inclu-

    indo a srie semntica que a precede: pluri-multi-

    meta) e transdisciplinaridade.

    Pluri-Multi-Meta-Inter/Transdisciplinaridade

    Coerentemente preocupado com a incidncia dessaquesto no mbito educacional, Jantsch (1972) props

    uma detalhada classificao evolutiva das alternati-

    vas de interao ou integrao de distintos campos

    disciplinares. A base dessa tipologia, retomada e adap-

    tada por Vasconcelos (1997, 2002) e Bibeau (1996)1,

    seria a observao da prpria prtica cientfica e dos

    corpos de discursos por ela alimentados. Esses auto-

    res definem as seguintes etapas sucessivas:

    Multidisciplinaridade : conjunto de disciplinas que

    simultaneamente tratam de uma dada questo, proble-ma ou assunto (digamos, uma temtica t), sem que os

    profissionais implicados estabeleam entre si efetivas

    relaes no campo tcnico ou cientfico. um sistema

    que funciona atravs da justaposio de disciplinas em

    um nico nvel, ausente uma cooperao sistemtica

    entre os diversos campos disciplinares. Uma represen-

    tao esquemtica dessa situao encontra-se na Figu-

    ra 1, onde os pequenos crculos indicam os diferentes

    campos disciplinaresA, B e C, dispostos isoladamente

    porm incorporados por um campo temtico t.

    Figura 1 - Multidisciplinaridade

    38 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    10/21

    Pluridisciplinaridade: implica a justaposio de dife-

    rentes disciplinas cientficas que, em um processo de

    tratamento de uma temtica unificada t, efetivamen-

    te desenvolveriam relaes entre si. Seria portanto

    ainda um sistema de um s nvel (como na multidisci-

    plinaridade), porm os objetivos aqui so comuns, po-

    dendo existir algum grau de cooperao mtua entre

    as disciplinas. De todo modo, envolvendo campos dis-ciplinares situados num mesmo nvel hierrquico, h

    uma clara perspectiva de complementaridade, sem, no

    entanto, ocorrer coordenao de aes nem qualquer

    pretenso de criar uma axiomtica comum (Vascon-

    celos, 1997). Uma representao grfica esquemtica

    desta modalidade, em que setas simbolizam a comu-

    nicao cooperativa, encontra-se na Figura 2.

    Figura 2 - Pluridisciplinaridade

    Interdisciplinaridade auxiliar: interao de diferen-

    tes disciplinas cientficas (A, B, C e D), sob a domina-

    o de uma delas (no caso D), que se impe s outras

    enquanto campo integrador e coordenador. O sistema

    apresenta dois nveis e aqui pode-se reconhecer a po-sio superior de uma disciplina em relao s outras.

    Por exemplo, os manuais de especialidades mdicas

    em geral integram distintas disciplinas (como a pato-

    logia, a epidemiologia, a nutrio, a propedutica, etc.)

    subordinando-as, posto que as informaes tomadas

    de emprstimo dessas disciplinas so colocadas a ser-

    vio da especialidade enquanto disciplina-mestra

    (Vasconcelos, 1996, p7). A Figura 3 traz uma represen-

    tao grfica desta modalidade.

    Figura 3 - Interdisciplinaridade auxiliar

    Metadisciplinaridade: trata-se de uma contribuio

    de Bibeau (1996)1 ao esquema original. A interao e

    as inter-relaes entre as disciplinas so asseguradas

    por uma metadisciplina que se situa num nvel episte-

    molgico superior. Esta no se impe como coorde-

    nadora mas sim como integradora do campo metadis-

    ciplinar, atuando como mediadora da comunicao

    entre as disciplinas do campo. Um exemplo geral: des-de a emergncia da cincia moderna, as matemticas

    tm atuado como linguagem formalizada de comuni-

    cao cientfica empregada por diversas disciplinas

    (Granger, 1980; Castoriadis, 1988). No campo da sade

    coletiva, a clnica bem que poderia ocupar esta posi-

    o metadisciplinar. O esquema grfico proposto por

    Bibeau (1996)1 acentua a dupla via de relao entre as

    disciplinas e a metadisciplina, conforme a Figura 4.

    Figura 4 - Metadisciplinaridade

    Interdisciplinaridade: implica uma axiomtica co-

    mum a um grupo de disciplinas conexas A, B, C e D,cujas relaes so definidas a partir de um nvel hie-

    rrquico superior, ocupado por uma delas (no caso, D).

    Esta ltima, geralmente determinada por referncia

    sua proximidade da temtica comum, atua no so-

    mente como integradora e mediadora da circulao

    dos discursos disciplinares mas principalmente como

    coordenadora do campo disciplinar. Segundo Vascon-

    celos (1997, p.8), advogando esta modalidade como

    integradora do campo da sade mental,a interdisci-

    plinaridade se sustenta sobre uma problemtica co-mum, uma axiomtica terica e/ou poltica compar-

    tilhada e uma plataforma de trabalho conjunto, desta

    forma gerando uma fecundao e aprendizagem m-

    tua, que no se efetua por simples adio ou mistura,

    mas por uma recombinao dos elementos internos.

    A Figura 5 representa esquematicamente essa mo-

    dalidade, onde destaca-se o smbolo D, indicando uma

    disciplina integradora do campo interdisciplinar:

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 39

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    11/21

    Figura 5 - Interdisciplinaridade

    Transdisciplinaridade: de acordo com o esquema

    Jantsch-Vasconcelos-Bibeau, trata-se do efeito de uma

    integrao das disciplinas de um campo particular

    sobre a base de uma axiomtica geral compartilhada.

    Baseada em um sistema de vrios nveis e com objeti-

    vos diversificados, sua coordenao assegurada por

    referncia a uma finalidade comum, com tendncia horizontalizao das relaes de poder. Implica cria-

    o de um campo novo que idealmente desenvolver

    uma autonomia terica e metodolgica perante as dis-

    ciplinas que o compem. Vasconcelos (1997) assinala

    que a transdisciplinaridade significa uma radicali-

    zao da interdisciplinaridade, com a criao de um

    campo terico, operacional ou disciplinar de tipo novo

    e mais amplo. A ecologia e a nova sade mental, en-

    quanto campos oriundos da verdadeira integrao

    de diferentes disciplinas, seriam exemplos desta pro-

    posio. A Figura 6 apresentada por vrios autorescomo ilustrao de um campo transdisciplinar.

    Figura 6 - Transdisciplinaridade

    primeira vista, dispomos de um esquema deta-

    lhado, adequado, claro e preciso, capaz de dar conta

    de to relevante problema. Entretanto, devemos anali-

    s-lo cuidadosamente, visto que todo dispositivo con-

    ceitual sustenta-se em princpios e pressupostos que

    necessitam ser revelados e expostos ao escrutnio

    pblico, sobre eles aplicando o velho e infalvel princ-

    pio da dvida sistemtica. Como vimos acima, este sem dvida um dos mais importantes legados da filo-

    sofia cartesiana, talvez o principal fundamento do

    modo cientfico clssico de produo de saberes.

    Em um texto publicado em 1997, em Cincia & Sa-de Coletiva, analisei o esquema acima apresentado edesenvolvi um argumento crtico dos seus fundamen-

    tos (Almeida Filho, 1997). Avaliando o contedo das

    formulaes resumidas acima, identifiquei os seguin-

    tes postulados subjacentes ao conceito de cincia nele

    implcito:1. Campos disciplinares constituem estruturas, com-

    postas por uma axiomtica terica e certamente com-

    preendendo uma matriz metodolgica, cujos princ-

    pios e conceitos fundamentais so passveis de deco-

    dificao.

    2. Quando os campos disciplinares interagem entre

    si, produzem relaes interdisciplinares que tendem

    a ser convergentes, com elevado grau de reciprocidade,

    definidas pela temtica e pela axiomtica do campo.

    3. As relaes de poder poltico internas a um dadocampo disciplinar equivalem (ou correspondem) s

    relaes de poder tcnico que estruturam as respecti-

    vas disciplinas.

    4. A comunicao interdisciplinar desejvel e fact-

    vel, podendo ser realizada pela traduo de princpios

    e conceitos entre as disciplinas.

    Sem a presuno de assumir uma posio privile-

    giada de maior aproximao com a realidade, propus

    uma srie oposta de pressupostos, buscando uma cr-

    tica lgica e pragmtica da proposta analisada. Supo-nhamos que os campos disciplinares no constituem

    de fato estruturas, com um grau variado de autono-

    mia, e sim que so institudos por uma prxis (Samaja,

    1996). Nesse caso, mais importante que uma axiom-

    tica e uma disciplina (no senso comum do termo), para

    a constituio do campo cientfico contribuem decisi-

    vamente elementos intraparadigmticos simbli-

    cos, ticos, polticos, pragmticos. De acordo com

    40 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

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    Chalmers (1994), Samaja (1996) e Santos (2003), entre

    outros, para alm de fundamentos lgicos e questes

    metodolgicas e temticas, a produo organizada do

    conhecimento cientfico se realiza em uma complexa

    rede institucional operada por agentes histricos con-

    cretos, ligada estreitamente ao contexto scio-polti-

    co mais amplo.

    Em consonncia com este primeiro contrapos-tulado e em oposio ao postulado 2 acima, admita-

    mos que, de fato, no so os campos disciplinares que

    interagem entre si mas sim os sujeitos que os cons-

    troem na prtica cientfica cotidiana, seus agentes

    institucionais representativos portanto. Em outras

    palavras, no existiriam campos vazios, ou pelo me-

    nos preenchidos por entidades abstratas (conceitos,

    noes, modelos, etc.). Os espaos institucionais da

    cincia seriam permanentemente ocupados por su-

    jeitos da cincia, agentes histricos, condutores dae conduzidos pela prtica cientfica. Podemos ousar

    mais ainda e propor que no existem campos disci-

    plinares per se, ou melhor, estes s se realizariamenquanto instituies de uma dada subcultura cien-

    tfica e como formas mentais e efeitos prxicos (ou

    seja, na ao) dos seus agentes.

    Os agentes no seriam somente indivduos ocu-

    pando posies e atores desempenhando papis. Mais

    que isso, os sujeitos da cincia seriam essencialmente

    agentes sociais, organizados em grupos sociais pecu-

    liares que tm sido denominados de comunidadescientficas, estruturados nas matrizes de pensamen-

    to e conduta que Thomas Kuhn (1970) com muita pro-

    priedade conceituou como paradigmas. Da decorre

    que as relaes interdisciplinares em princpio tende-riam mais ao conflito do que ao dilogo. A convergn-

    cia, a reciprocidade, o mtuo enriquecimento, a fecun-

    dao e aprendizagem conjuntas, tudo isso que Rorty

    (1991) denomina de solidariedade cientfica, so efei-

    tos desejveis que fortuitamente poderiam ocorrer

    nas relaes entre campos disciplinares distintos,porm infelizmente s aconteceriam com mais fre-

    quncia no seio das raras comunidades ideais de di-

    logo (Habermas, 1978) formadas no processo de

    construo da coeso interna dos paradigmas. Como

    a comunicao franca interparadigmtica no se

    exerce, o paradigma no se torna dominante seno por

    meio de uma luta pela hegemonia que se trava em um

    dado campo disciplinar. Neste particular, a proposio

    seguinte sobre a natureza especial das relaes de

    poder dentro dos campos cientficos me parece pre-

    liminarmente prejudicada. De fato, apesar das simbio-

    ses e interaes possveis no espao da comunicao

    interdisciplinar e interparadigmtica, Mario Testa

    (1989) com facilidade nos convence de que o poder po-

    ltico tem natureza e determinaes muito distintas

    do poder tcnico, mesmo em mbitos de aplicao pordefinio valorizadores do poder tcnico, como deve

    ser o caso da arena cientfica.

    Caso concordemos com essa srie de contrapostu-

    lados, resta-nos concluir que a comunicao interdis-

    ciplinar impossvel, rejeitando o quarto postulado

    do esquema analisado. Enfim, terminei por refutar o

    essencial do esquema analisado, da seguinte manei-

    ra (Almeida Filho, 1997):

    Os princpios e conceitos fundamentais que compem

    uma dada axiomtica terica e uma matriz me-todolgica qualquer no podem ser decodificados, tra-duzidos e recombinados simplesmente porque axio-mticas e matrizes no so somente princpios e con-ceitos. Mais ainda, o que faz uma disciplina ou umparadigma muito mais do que apenas uma combina-o mtodo-lgica. Somente a quem j se encontradentro de um dado paradigma, e que por isso j oincorpora (traz no seu corpo, faz dele seu corpo, porele possudo, etc.), dado ver o seu objeto privilegiado.

    Em O Nascimento da Clnica (subintitulado umaarqueologia do olhar mdico), Foucault (1963) mos-

    tra como a protocincia do homem construiu uma vi-

    so de mundo, um paradigma, por meio de uma prag-

    mtica. Aqueles que foram enculturados no paradig-

    ma clnico bem sabem quanto custa aprender a ouvir

    a mtica quarta bulha no meio de chiados e estalidos

    do estetoscpio, a reconhecer uma estrutura histo-

    lgica onde de fato se encontram manchas multicolo-

    ridas no microscpio, a identificar uma leso patolgi-

    ca entre borres, claros e escuros da chapa radiogr-fica. O uso do termo enculturado no inocente. Ao

    faz-lo, pretendi propor que a questo da comunica-

    o interdisciplinar inscreve-se em um registro simi-

    lar ao da comunicao intertnica. Anos de trabalho

    de campo etnogrfico afinal arranharam o etnocen-

    trismo dos antroplogos, que agora admitem que o seu

    mandato de intrpretes interculturais pelo menos

    descabido (Geertz, 1973; Fabian, 1979; Asad, 1994).

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 41

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    13/21

    Para alcanar a desejada sntese da complexida-

    de, certo que ser necessrio produzir discursos

    capazes de atravessar fronteiras disciplinares. Para

    que uma efetiva comunicao interdisciplinar (inter-

    paradigmtica, intertnica, etc.) se estabelea, ser

    imprescindvel um compartilhamento de linguagem

    e de estruturas lgicas e simblicas (Vasconcelo,s

    2002). Paradoxalmente, caso isso ocorra, ser porqueas fronteiras j no fazem sentido. Mas no esta

    abertura das fronteiras disciplinares justamente a

    demanda que se impe cincia contempornea? No

    ser exatamente esta a via privilegiada (qui a ni-

    ca via) de acesso aos objetos complexos de que falva-

    mos acima? Mas ser que os modelos propostos aci-

    ma poderiam dar conta dessa tarefa, ou seja, operar

    como estratgias de apreenso-aproximao introdu-

    zindo complexidade nos processos de produo do

    conhecimento?

    Transdisciplinaridade como ProjetoEpistemolgico

    Como se a to almejada sntese pudesse ser produzi-

    da por meio de uma operao de adio, a multidis-

    ciplinaridade e a interdisciplinaridade auxiliar do

    esquema Jantsch prometem superar a fragmentao

    pela somatria. No primeiro caso, esta seria resultante

    de algum processo espontneo, de duvidosa possibi-

    lidade de ocorrncia, como se a sntese pudesse emer-

    gir pelo mero contato entre campos disciplinares dis-

    tintos. No segundo caso, os autores do esquema indi-

    cam uma possibilidade de sntese pela via digamos

    totalitria, imposta por um campo disciplinar hie-

    rarquicamente superior. Pragmaticamente avaliando

    a factibilidade desse modelo, a sua eficcia certamen-

    te depender de que modalidade de sntese estamos

    falando. Se considerarmos aquele tipo de sntese su-

    bordinada ao projeto tecnolgico da produo indus-

    trial, resultante da soma dos atributos de objetos sim-ples do reducionismo cartesiano, ento a chamada

    interdisciplinaridade auxiliar poder constituir a es-

    tratgia mais econmica (portanto mais eficiente)

    para a produo de objetos complicados. Se, por ou-

    tro lado, estivermos tratando de objetos complexos,

    as limitaes dessa estratgia so to evidentes que

    dispensam comentrio. De todo modo, trata-se de

    uma modalidade de ao conjunta entre disciplinas

    cientficas que resiste a uma crtica pragmtica,

    mesmo revelando a sua incapacidade de dar conta

    das demandas de atualizao da prtica cientfica

    frente complexidade.

    Por outro lado, modelos de pluridisciplinaridade

    e interdisciplinaridade, tal como definidos no esque-

    ma analisado, parecem revelar mais um carter ideo-lgico, prescritivo ou normativo, do que propriamente

    uma proposta de prtica de apreenso-aproximao

    dos objetos complexos. Nesse sentido, a pluridiscipli-

    naridade e a interdisciplinaridade plena enquadram-

    se na famlia dos programas micropolticos. Entretan-

    to, a sua contribuio potencial para a construo de

    uma cincia da complexidade, no sentido j aponta-

    do, me parece reduzida, posto que buscam compor o

    objeto complexo atravs de uma sntese tipo interpa-

    radigmtica. Essa sntese seria obtida graas circu-lao dos discursos produzidos pelos distintos cam-

    pos disciplinares, tarefa impossvel pela via da comu-

    nicao, conforme argumentei acima. Cabe incorporar

    nesse mesmo grupo de estratgias criticveis no pla-

    no lgico a transdisciplinaridade tal como definida

    no esquema analisado, na medida em que este a assu-

    me como uma radicalizao da interdisciplinaridade.

    Entretanto, a proposta da metadisciplinaridade de

    Bibeau (1996)1, no sentido de uma linguagem axiom-

    tica comum a um grupo de disciplinas conexas, pare-

    ce destoar do restante do esquema, por isso mesmo

    abrindo uma interessante possibilidade de constru-

    o metaterica. Trata-se do nico modelo que per-

    mite um tratamento da questo interdisciplinar en-

    quanto problema relacionado s formas de comuni-

    cao possveis entre matrizes disciplinares distintas.

    O seu problema fundamental, considerando a estru-

    tura da crtica aqui desenvolvida, que tambm no

    escapa aos argumentos levantados contra os postula-

    dos 1, 2 e 3. Tal como os outros modelos acima descons-

    trudos, tambm trata os campos disciplinares comoentidades mticas abstratas, produtoras de inter-re-

    laes fetichizadas e idealizadas. E como fazer para

    incorporar tanto a crtica lgica quanto a perspectiva

    pragmtica? Creio, e penso que nisto se resume a mi-

    nha contribuio pessoal, que a resposta para essa

    questo passa por redefinir o conceito de transdisci-

    plinaridade.

    42 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    14/21

    A proposta esquematizada na Figura 7 baseia-se

    na possibilidade de comunicao no entre campos

    disciplinares mas entre agentes em cada campo, atra-

    vs da circulao no dos discursos (pela via da tra-

    duo) mas pelo trnsito dos sujeitos dos discursos.

    Tomemos a srie V-Zpara representar os campos dis-

    ciplinares que se relacionam em torno do objeto com-

    plexo Oc, cada um tendo acesso a uma faceta particu-lar deste objeto. Por seu turno, a srie a-h refere-se

    aos agentes da prtica cientfica, sendo que os sujei-

    tos a, b, c, d so capazes de transitar entre pelo menos

    dois campos disciplinares (c, no esquema apresenta-

    do, poder circular por trs campos) enquanto os es-

    pecialistas e, f, g, h permanecem restritos aos seus

    respectivos campos.

    Figura 7 - Transdisciplinaridade (proposta para

    discusso)

    Com a inteno de melhor clarificar a proposta por

    meio de um exemplo, mas certamente correndo o risco

    de no conseguir respeitar a complexidade do objeto,

    apliquemos o esquema de Jantsch ao campo da Sade

    Coletiva. Certamente que no haver campo cientfico

    contemporneo mais justificadamente transdiscipli-

    nar, nem objeto de conhecimento com mais alto grau

    de complexidade que os fenmenos da sade-doena-cuidado.3

    Consideremos V como o campo disciplinar da

    Epidemiologia, ao tempo em que Zrepresentar o cam-

    po da Clnica, Y, o da Biologia, eX, as Cincias Sociais

    em Sade. Cada um desses campos disciplinares dis-

    pe de um ponto de observao privilegiado em rela-

    o a cada faceta de Oc; nenhum deles, no entanto,

    capaz de apreender todos os ngulos do objeto. Veja-

    mos agora os nossos agentes: a, especializado em

    Antropologia Mdica e em Ecologia, transita do cam-

    po das Cincias Sociais para o campo da Biologia;b

    portador de uma dupla formao em Imunobiologia eem Clnica Mdica, podendo deslocar-se do campo bi-

    olgico para o campo clnico sem dificuldades; c ca-

    paz de atravessar os campos da Clnica, da Epidemio-

    logia e das Cincias Sociais em Sade; finalmente, d

    possui uma formao na subrea que tem sido deno-

    minada de Epidemiologia Social. Os especialistas f

    (sociologia da comunicao), g (histopatologia), h

    (neuropsiquiatria) e e(epidemiologia de doenas cr-

    nicas) so competentes na mtodo-lgica, nos conte-

    dos e na linguagem dos seus respectivos campos dis-ciplinares, tal como o so os seus colegas transdis-

    ciplinares. Apenas para concluir este exerccio, ima-

    ginemos que o objeto complexo seja Depresso e que

    sua abordagem enquanto importante problema de sa-

    de coletiva depender da produo eficiente de um dis-

    curso coordenado, resultante de operaes cognitivas

    de diversas naturezas, relativamente vlido como ob-

    jeto-modelo sinttico destinado a orientar a ao so-

    bre aquele complexo de mltiplas determinaes.

    Retornando ao plano geral, dessa maneira, a sn-

    tese poder ser construda em dois nveis: (a) uma sn-tese paradigmtica no mbito de cada campo cient-

    fico e (b) uma sntese transdisciplinar construda na

    prtica transitiva dos agentes cientficos particulares.

    A primeira dessas snteses permite uma participao

    interessada inclusive dos especialistas, que podero

    ter o seu vis disciplinar e paradigmtico enriquecido

    com aportes transdisciplinares. Porm somente a se-

    gunda sntese seria aquela capaz de dar conta do ob-

    jeto complexo Oc, por meio de totalizaes provisri-

    as, construdas por meio de uma prtica cotidianatransversal dos sujeitos do conhecimento e opera-

    das na concretude dos seus aparelhos cognitivos.

    Finalizei o texto base deste argumento comentan-

    do o perfil dos novos mutantes metodolgicos pron-

    3 Como propus em outro momento (Almeida Filho 2000a), o complexo sade-doena-cuidado um daqueles objetos indisciplinados,no-lineares, mltiplos, plurais, emergentes, multifacetados, que exigem dos pesquisadores um tratamento sinttico e totalizante.

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 43

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    15/21

    tos para o trnsito interdisciplinar, transversais, ope-

    radores transdisciplinares da cincia, capazes de

    trans-passar fronteiras, vontade nos diferentes cam-

    pos de trans-formao, agentes transformadores e

    transformantes, enculturados nos distintos campos

    cientficos que estruturam os campos de prticas

    transdisciplinares.

    Sero (ou so, porque de fato j esto por a) mutantesmetodolgicos, sujeitos prontos para o trnsitointerdisciplinar, transversais, capazes de trans-pas- sar fronteiras, vontade nos diferentes campos detrans-formao, agentes transformadores e transfor-mantes. A formao desses agentes ser essencial-mente anfbia, com etapas sucessivas de treinamen-to-socializao-enculturao em distintos campos ci-entficos. Esta metfora biolgica (s para atestarque a era da transdisciplinaridade j comeou) atra-

    ente para ilustrar a questo, pois os anfbios so ani-mais que passam parte da vida em um meio biolgicoe parte em outro meio ambiente e que, por isso mesmo,possuem uma enorme capacidade de adaptao.(Almeida Filho, 1997, p.18)

    Assim, para alm de uma sntese paradigmtica

    no mbito de cada campo cientfico, defendi a neces-

    sidade de uma sntese transdisciplinar construda na

    prtica transitiva dos agentes cientficos particula-

    res. Avaliando o potencial de aplicao dessa concep-

    o alternativa de transdisciplinaridade ao contextoda sade pblica contempornea, Paim e Almeida Fi-

    lho (1998) adiantam que a formao desses agentes

    seria essencialmente anfbia, com etapas sucessivas

    de treinamento-socializao-enculturao nos distin-

    tos campos cientficos que estruturam o campo de

    prticas da Sade Coletiva.

    Crticas e Debates

    Este posicionamento tem sido objeto de intensos de-bates, o que me tem trazido mais oportunidades de

    avanar e aprofundar alguns dos seus pontos princi-

    pais. Castiel (1997) fez uma crtica pertinente ao me

    atribuir uma expectativa otimista de homogeneidade

    interna nos distintos campos disciplinares. Ayres

    (1997) tambm ps em dvida o meu otimismo propo-

    sitivo, assinalando que nada garante que do trnsito

    dos sujeitos cientficos resultar alguma transdisci-

    plinaridade e que a natureza do meu ato de definir

    uma transdisciplinaridade poderia abortar uma pro-

    missora vocao subversiva da proposta. Acho que

    isso possvel, mas s a prtica nos permitir saber.

    Concordo que snteses paradigmticas compartilha-

    das so condio essencial para qualquer movimento

    de sntese transdisciplinar. Porm o movimento da

    transdisciplinaridade se deve iniciar com algum graude concordncia dos estatutos de cientificidade dos

    objetos nos respectivos campos. As contribuies de

    Sevalho (1997) e Portocarrero (1997) trouxeram bai-

    la os objetos fronteirios, objetos hbridos, quase-ob-

    jetos, objetos complexos, objetos estruturados, semi-

    estruturados e no-estruturados revelados pelos es-

    tudos sociais das cincias. A partir dessa plataforma,

    poder-se-ia avanar a proposta de uma nova famlia

    de objetos cientficos simultaneamente fronteirios,

    hbridos, mestios e complexos, os trans-objetos.Nesse caso, diferente do que assinala Castiel (1997),

    os objetos complexos no compreendem apenas sis-

    temas adaptativos com graus diferenciados de com-

    plexidade, e sim tambm produtos culturais resul-

    tantes de uma prtica social.

    Aceitando o debate (Almeida Filho, 1997b), recorri

    distino austiniana entre ato locucionrio (onde a

    fala expressa algum sentido), ato ilocucionrio (que

    traz uma inteno ao dizer algo) e ato perlocucionrio

    (em que falar produz certos efeitos, desejados ou no)

    para me posicionar em relao questo central dodebate: ser que a mera locuo da srie propositiva

    multi-pluri-inter-meta-trans-disciplina na verdade

    no esconderia um projeto de construo semntica

    e pragmtica de um objeto-em-campo?. No como for-

    malismo nem como mais uma proposta doutrinria,

    o meu ato ilocucionrio vagamente pretendeu uma

    certa subverso atenuada de cunho ostensivamen-

    te pragmtico. Com o texto alvo desse debate, preten-

    di faz-lo pela via da desconstruo do discurso con-

    vencional da disciplinaridade, seguida da construode uma proposta de definio provisria e interessa-

    da da transdisciplinaridade como superao pragm-

    tica do esquema vigente.

    Avaliando essa linha de abordagem da transdisci-

    plinaridade, Carvalheiro (1997) levanta crticas rele-

    vantes que merecem ser incorporadas ao seu desdo-

    bramento. Em primeiro lugar, a anlise do tema da

    traduo impossvel como um elemento de enfraque-

    44 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    16/21

    cimento do potencial de integrao interdisciplinar

    foi claramente equivocada. A comunicao imperfei-

    ta ser justamente a brecha por onde se pode infiltrar

    possibilidades de emergncia do novo (talvez a alte-

    ridade castoriadiana). Ainda bem que no se pode tra-

    duzir perfeitamente, diriam os artistas, porque a est

    a liberdade de criao e recriao. Em segundo lugar,

    constatando que a transdisciplinaridade situa-se noregistro de uma dupla ruptura epistemolgica, Car-

    valheiro (1997) faz sria restrio (com a qual concor-

    do integralmente) concepo de que a mobilidade

    transdisciplinar seria privilgio exclusivo dos campos

    da cincia.

    Retomando o fio da sua contribuio pioneira re-

    flexo epistemolgica em sade, de certo modo por ele

    inaugurada no Brasil com o pequeno clssico Sade &Sistemas (1978), Mario Chaves (1998) props uma abor-

    dagem multidimensional como plataforma de luta te-rica contra o processo de contnua fragmentao e in-

    tensa disciplinaridade do conhecimento, a partir dos

    conceitos de transdisciplinaridade e complexidade.

    A idia de transdisciplinaridade da linhagem te-

    rica Piaget-Jantsch-Morin a que se filia Mario Cha-

    ves indica uma integrao das disciplinas de um cam-

    po particular sobre a base de uma axiomtica geral

    compartilhada. Baseada em um sistema de vrios n-

    veis e com objetivos diversificados, sua coordenao

    assegurada por referncia a uma base de conheci-

    mento comum, com tendncia horizontalizao dasrelaes interdisciplinares. Desse modo, a transdisci-

    plinaridade implica a criao de um campo novo que

    idealmente seria capaz de desenvolver uma autono-

    mia terica e metodolgica perante as disciplinas que

    o originaram, como teria ocorrido com a moderna eco-

    logia, oriunda da biologia evolucionista, em sua inter-

    face com a qumica orgnica e as geocincias.

    O conceito de complexidade sumarizado no texto

    de Chaves a partir de uma retificao da suposta cono-

    tao do senso comum que o toma como equivalentea caos, desordem e obscuridade, para valoriz-lo como

    fundamento de uma nova cincia. Frente ao dilema

    de tratar a complexidade como teoria ou como para-

    digma, Chaves (1998) prefere seguir Edgar Morin

    (1990), profeta do holismoepistemolgico do fin desicle, com a expresso pensamento complexo. Des-se modo, Chaves pretende articular os dois conceitos,

    considerando complexidade em nvel superior de

    abrangncia em relao a transdisciplinaridade. Com-

    plexidade refere-se a uma propriedade totalizante do

    Mundo Real (grifado pelo autor no seu texto), en-quanto transdisciplinaridade seria seu equivalente na

    esfera do conhecimento. Em suas prprias palavras:

    A complexidade est para o mundo real como a trans-

    disciplinaridade est para o mundo acadmico.

    No que concerne definio do que efetivamen-te complexidade, Chaves(1998) seleciona dois impor-

    tantes aspectos: por um lado, complexidade como a

    propriedade de sistemas que mantm a distino en-

    tre as partes, (... que) associa sem tirar a identidade

    das partes que a compem, mas sempre consideran-

    do que o todo maior que a soma das partes. Por ou-

    tro lado, a complexidade aparece por ele referida enpassantcomo a coexistncia de mundos entrelaadosem um mesmo espao-tempo. Aqui encontro um pri-

    meiro ponto de crtica: na minha opinio, as opesde Chaves frente polissemia do conceito de comple-

    xidade privilegiam justamente aspectos de mais dif-

    cil operacionalizao nos processos concretos de pro-

    duo de conhecimento.

    Em Complexidade e Pesquisa Interdisciplinar,Eduardo Vasconcelos (2002) se prope a responder

    algumas das crticas que eu teria feito sua obra an-

    terior (Vasconcelos, 1997). Como comum em contro-

    vrsias acadmicas, muitas vezes as tintas tornam-

    se mais carregadas do que efetivamente o so. Eu no

    atribu uma perspectiva acrtica, a-histrica, idealistae reificada da noo de disciplina, muito menos qual-

    quer imputao de ingenuidade, ao importante esfor-

    o intelectual pioneiro e ainda quase solitrio de Vas-

    concelos. Talvez tenha assinalado somente excessivo

    (mas perdovel) respeito matriz geradora do esque-

    ma Piaget-Jantsch que tem fortes traos neo-kan-

    tianos e um vis de imperialismo epistemolgico.

    Alis, este vis encontra-se bem identificado e forte-

    mente criticado no trabalho recente do autor (Vascon-

    celos 2002), onde constato uma anlise detalhada ecuidadosa dos obstculos e limitaes anlise das

    prticas inderdisciplinares a partir do referencial da

    pedagogia social de base piagetiana.

    De todo modo, Vasconcelos (2002) retoma o esque-

    ma evolutivo de Jantsch no sentido da construo de

    um projeto interdisciplinar de prtica cientfica em

    uma perspectiva que considero mais crtica. Primei-

    ro, amplia o escopo da questo para alm da discipli-

    Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005 45

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    17/21

    naridade, incluindo interaes e interfaces no so-

    mente entre campos disciplinares, mas tambm co-

    nexes interparadigmticas, intertericas, multipro-

    fissionais, etc. Segundo, inspirado em propostas de

    construo de um novo senso comum emancipatrio

    correspondentes segunda virada epistemolgica

    (Boaventura Santos, 1989; 2003), contextualiza a

    questo das prticas multi-pluri-inter/trans ao con-ceito de campos de saber/fazer e a conecta ao tema

    dos novos paradigmas. Finalmente, buscando uma

    salutar abertura pragmtica, Vasconcelos (2002) ar-

    ticula o esquema evolutivo de Jantsch a uma tipologia

    descritiva de sistemas equivalentes a quatro modali-

    dades de prtica (multi-, pluri-, pluri-auxiliar, inter-)

    e a um campo (trans-). Convergimos no que diz respei-

    to aos dois primeiros pontos, especialmente porque

    j haviam ambos sido includos na srie de crticas

    resumida acima. Ainda assim, e para manter o debatevivo, eu diria com relao ao terceiro ponto que no

    faz sentido considerar a conexo inter- exclusiva-

    mente como prtica nem a modalidade trans- como

    campo. Pelo contrrio, creio que o dinamismo dos

    trnsitos, das travessias, das transies aponta mui-

    to mais para processos prxicos do que para formas

    topolgicas estruturadas tipo campos.

    Eplogo

    Mas, enfim, em que a concepo de transdisciplinari-dade por mim proposta se distingue e qui avana

    em relao idia de transdisciplinaridade de Piaget-

    Jantsch-Morin e seus seguidores?

    A noo de transdisciplinaridade havia sido origi-

    nalmente concebida por Jean Piaget (1967) articulada

    proposio de uma epistemologia gentica que, no

    obstante o seu potencial, foi concebida enquanto me-

    taprojeto, um devir inalcanvel, e no como concei-

    to senso-estrito. As proposies posteriores dos seus

    discpulos, principalmente no campo da filosofia daEducao, conforme a sistematizao de Jantsch

    (1972), no conseguem, insisto, escapar do idealismo

    neo-kantiano e sua avaliao otimista do potencial

    transformador da prxis humana. A encontro um pri-

    meiro elemento de crtica, quando se prope que o

    sonho piagetiano (ou mais precisamente, dos seus

    herdeiros intelectuais) da transdisciplinaridade teria

    hoje dadas as condies de ser realidade.

    A proposta de articulao entre complexidade e

    transdisciplinaridade de Morin (1990; 1999; 2003) e

    seguidores (Freitas, Morin e Nicolescu, 1994) remete

    capacidade do pensamento complexo de lidar com a

    incerteza e a possibilidade de auto-organizao, alm

    da sua dependncia da noo de unidade do conheci-

    mento. justamente nessa utopia da sntese desen-

    volvida nos textos citados acima que concentro o focoda minha crtica, sob trs aspectos: Em primeiro lu-

    gar, o abstracionismo de Morin, apesar de expressar

    um pensamento criativo, fascinante e sedutor, cada

    vez mais se afasta do rigor epistemolgico necess-

    rio aos embates pela consolidao de novas formas de

    prtica cientfica. Em segundo lugar, creio que a sua

    definio quase estruturalista de transdisciplinarida-

    de, com nfase em disciplinas, superposies, inters-

    tcios e espaos vazios, perde a oportunidade de con-

    siderar o carter transitivo, praxiolgico e desan-corado daquele conceito. Em terceiro lugar, o seu tra-

    tamento das relaes entre transdisciplinaridade e

    complexidade, propondo uma duvidosa equivalncia

    de nvel simultnea a uma especificidade terica, re-

    sulta em hierarquizao e discriminao dos espaos

    de aplicao dos conceitos.

    Realmente, conforme corretamente assinalado por

    Vasconcelos (2002), as relaes entre complexidade e

    transdisciplinaridade haviam sido pouco exploradas

    no texto-base desse debate. Isto ocorreu talvez porque

    me parecia mais adequado concentrar a discussosobre o problema dos limites (a propsito, uma das ver-

    tentes de definio da complexidade), porque no me

    agrada a noo de interface: trata-se de uma aceita-

    o implcita da inevitabilidade das fronteiras (ou fa-

    ses, ou faces) disciplinares, justamente o que a per-

    meabilidade e a transitividade da idia-prtica da

    transdisciplinaridade buscam superar. Mais do que

    definir ou especificar uma construo doxolgica com

    a idia de transdisciplinaridade, pretendi observar e

    registrar uma potencialidade de desenvolvimento deobjeto, mtodo e campo cientfico, propondo formas

    de crtica e articulao lgica, epistemolgica e pra-

    xiolgica de um dado discurso-prtica. Realmente no

    consegui encontrar maneira mais apropriada de abor-

    dar a hermenutica cientfica vigente do que o recur-

    so desgastada noo kantiana dos juzos sintticos

    que subjaz na dualidade anlise-sntese (Samaja,

    1996). No obstante, mantenho o argumento de que,

    46 Sade e Sociedade v.14, n.3, p.30-50, set-dez 2005

  • 8/6/2019 2005 Transdisciplinaridade e o Paradigma Ps-disciplinar na Sade

    18/21

    em uma perspectiva de crtica histrica, toda opera-

    o de sintetizao produz totalizaes provisrias,

    atravs de uma prtica cotidiana de produo de ob-

    jetos prxicos.

    Alm disso, no me parece adequado usar a cate-

    goria complexidade para resumir o conjunto de pro-

    priedades dos objetos concretos, realando as razes

    empricas dos processos complexos como elementosessenciais para a constituio do novo paradigma.

    Uma leitura epistemolgica das perspectivas paradig-

    mticas alternativas no refora a determinao do

    emprico sobre o conceitual. A mera existncia de um

    objeto concreto no gera objetos de conhecimento,

    porm a produo de objetos de conhecimento pode

    gerar objetos concretos. H cada vez mais exemplos

    na histria da cincia de gerao de objetos concre-

    tos, como verificamos na Fsica moderna (Powers,

    1982) ou mesmo em todos os objetos no mundo dainformtica, que um espao ciberntico (o famoso

    cyberspace), um mundo absolutamente criado e queagora se constitui como realidade, neste caso como

    realidade virtual.

    Enfim, concordo com Boaventura Santos (2004) de

    que necessitamos uma transformao radical do sis-

    tema de formao dos sujeitos da cincia, no contex-

    to de um novo paradigma. Conforme assinala Morin

    (1990, p.125-6), precisamos pensar/repensar o saber,

    no sobre a base de uma pequena quantidade de co-

    nhecimentos como nos sculos XVII e XVIII, mas con-siderando o estado atual de disperso, proliferao,

    parcelamento dos conhecimentos. De acordo: porm

    devemos procurar no um enciclopedismo com base

    na genialidade de sujeitos individuais como na Renas-

    cena ou no Iluminismo, e sim uma forma renovada

    de enciclopedismo construdo coletivamente. Cada vez

    mais o processo de produo do conhecimento cient-

    fico ser social, poltico-institucional, matricial, am-

    plificado. Nesse cenrio, a produo competente da

    cincia viabilizar abordagens totalizantes, apesar deparciais e provisrias, snteses transdisciplinares dos

    objetos da complexidade.

    Em suma, esta proposio realista de transdiscipli-

    naridade sustenta-se na relao/tenso entre cincia

    enquanto rede de instituies do campo cientfico e

    cincia como modo de produo de conhecimento,

    mediada em todas as instncias pelo conceito de pr-

    tica cientfica (Pickering, 1992; Samaja, 1996; 2004).

    Trata-se de uma abordagem materialista-histrica da

    cincia, fundamentando uma definio pragmtica da

    transdisciplinaridade como processo, estratgia de

    ao, modalidade de prtica, e no como propriedade

    ou atributo de relaes modelares entre campos disci-

    plinares. Dessa maneira, far mais sentido assinalar o

    carter instrumental da transdisciplinaridade como

    prtica de transformao da cincia normal em cin-cia revolucionria, para respeitar a terminologia

    kuhniana, na emergncia de novos paradigmas no cam-

    po cientfico e de novas estratgias de ao no campo

    da prtica social. Ser que dessa maneira seremos obri-

    gados a superar o paradigma das disciplinas? Isto im-

    plicar a emergncia de uma cincia ps-disciplinar?

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