2004 10 - arquitextos esp 263 - a imagem da cidade turística

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    Texto Especial 263 outubro 2004

    | Autor| Assunto| Nmeros|Textos especiais| Pgina principal| Vitruvius|

    A imagem da cidade turstica: promoo de paisagens e de identidadesculturais (1)Maria da Glria Lanci da Silva

    Maria da Glria Lanci da Silva, mestree doutora pela FAUUSP, autora do livro"Cidades Tursticas: identidades ecenrios de lazer" (Aleph Editora, So

    Paulo, 2004) e pesquisadora sobre opapel da cultura na renovao decentros urbanos

    Representao e imagem da cidade

    Ns facilmente falamos da realidade da cidade como coisa ou forma,que so o resultado de uma ao cultural de classificao. Classificamosum ambiente como cidade e ento reificamos essa cidade como coisa.A noo de cidade, a cidade ela mesma, uma representao [...] Acidade como objeto de pesquisa sempre aportica, um objeto-crise quedesestabiliza nossa certeza sobre o real (2).

    Entender a cidade como representao implica em analisar as imagens que elaevoca. As representaes manifestam-se sobre os mais variados suportes,pictricos e descritivos, como a literatura, a fotografia e o documento histrico.Porm, tanto os precisos mapas de planejamento urbano quanto as cenas de umfilme so impresses subjetivas do objeto real denominado cidade, portantoparciais e reduzidas, vistas selecionadas tomadas diretamente da paisagemurbana (a fotografia, o desenho de observao) ou de aspectos especficos dasociedade urbana (estatsticas, mapas).

    Embora uma compreenso da representao da cidade possa levar a uma crticado seu carter ideologizado, ou seja, entendendo que a representao se interpeentre ns e a realidade, impedindo-nos de enxergar as coisas como elasrealmente so, no podemos negar sua eficcia em estabelecer um forte eimediato vnculo com a cidade e, de certa forma, apreend-la como um todo. A

    leitura de um mapa produzido a partir de estatsticas de criminalidade, porexemplo, pode nos induzir a evitar circular em certos bairros da cidade; o quechamamos de uma propaganda negativa. Porm atravs dessa representaoda realidade o crime distribudo espacialmente que os rgos responsveispela segurana pblica podem exercer um controle mais preciso sobre o territrio.

    Se por um lado as representaes reificam a cidade, por outro elas provemuma percepo instantnea da realidade, e isso tambm vlido para asrepresentaes artsticas. Representaes no so apenas fices da cidade masfazem parte do sistema de entendimento sobre o que a cidade: representar acidade uma forma de conhecer o seu funcionamento, a vida urbana e mesmoregistrar a histria coletiva de seus moradores. Para um observador externo, asrepresentaes permitem ter um contato mais amplo e multifacetado da realidade.

    As representaes constituem um rico material de estudo e ao mesmo tempo umcampo bastante traioeiro para a anlise da cidade. Primeiro porque muitas vezeselas de fato tomam o lugar do real e segundo porque somos tentados a adotaressa simplificao do real como verdadeira, nos afastando da complexidade doespao urbano. No exemplo do mapa da criminalidade, a ateno direcionadasobre um nico foco impede a distino de outros aspectos um bairro com altosndices fica marcado como violento e tratado por esse vis, sendo evitado pormoradores de outros bairros. A representao tomada como verso simblica da

    Mapa turstico de Campos do Jordo (SP). Os mapas tursticos sorepresentaes que no tm compromisso com escala, preciso efidelidade ao aspecto real do territrio. No entanto a sua amplautilizao comprova a popularidade e eficcia para informar ao turistaque ver, apreciar e consumir. Fonte: Guia Turstico de Campos doJordo. 2001. Adaptao: Maria da Glria Lanci da Silva

    Folheto turstico do Pelourinho, centro histrico de Salvador (BA). Apolmica reforma promovida na dcada de 1990, criticada peladescaracterizao dos edifcios e expulso da populao local,transformou o bairro decadente em centro turstico. Fonte: GovernoEstado da Bahia / Bahiatursa. 1997.

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    realidade substitui a experincia concreta da relao entre o observador e seuobjeto e a cidade deixa de ser o campo privilegiado da troca social.

    A representao permite que ambientes urbanos sejam visveis como cidadesnicas. Isso traz implicaes polticas medida que a parte visvel da realidadeest condicionada ao poder e foras sociais e econmicas, que estabelecem, porexemplo, leis sobre a propriedade privada, valores de mercado, zoneamentourbano e estticas arquitetnicas.

    A representao pode ser entendida como um produto da incorporao deimagens, e neste processo as fronteiras entre o real e o imaginado podem serconstantemente modificadas. Para Kevin Lynch, a imagem formada peloconjunto de sensaes experimentadas ao observar e viver em determinadoambiente.

    As imagens do meio ambiente so o resultado de um processo bilateralentre o observador e o ambiente. O meio ambiente sugere distines erelaes e o observador [] seleciona, organiza e dota de sentido aquiloque v [...]. Assim, a imagem de uma dada realidade pode variarsignificativamente entre diferentes observadores (3).

    A imagem implica a concepo mental apreendida e estabelecida pelo indivduoque resume seu conhecimento, suas avaliaes e preferncias sobre o ambienteem que vive. Devido a seu carter subjetivo, a imagem urbana resultante parcial(no representa toda a cidade, mas fragmentos) e simplificada (porque representa

    informaes selecionadas pelo indivduo), podendo ser tambm produto decarter cultural e coletivo: pessoas que compartilham situaes similares notempo e no espao, expostas s mesmas experincias perceptivas, tendem acompor imagens mentais tambm semelhantes.

    A percepo do ambiente mais aguada quando se trata de um lugar turstico,onde a paisagem um fator de atrao. O turista, sensvel s representaes,tem sua ateno voltada para o aspecto visual dos lugares e para aquilo que eletem de pitoresco, de diferente e atrativo aos sentidos, principalmente o que podeser contemplado pelo olhar: a beleza, a composio e a harmonia das formas ecores no passam despercebidas. a partir dessa constatao que o mercadoatua como elemento de ligao entre o lugar imaginado e o lugar real, utilizando-se de representaes.

    A mercantilizao da imagem da cidade

    Na cidade contempornea os lugares com significncia cultural os bairroshistricos, monumentos, ruas e distritos de lazer e entretenimento atuam comoelementos chave no desenvolvimento econmico. Para os locais com grandeapelo turstico, a paisagem e a cultura que ela possa revelar, traduzindo em cores,formas e sons o que de mais tpico ou identitrio h a se descobrir, manter asqualidades visuais do espao urbano prioritrio.

    Atentos mercadoria cultura, empreendedores privados do apoio a iniciat ivaspblicas de recuperao de fachadas, mobilirio urbano, limpeza e iluminao,novos projetos de comunicao visual, recuperao de imveis histricos eequipamentos culturais. Em contrapartida, recebem do mesmo Poder Pblicofinanciamentos para novos negcios como restaurantes e bares, galerias de arte,

    teatros, cinemas e toda a sorte de empreendimentos que dinamizem o turismo e olazer, atraindo visitantes.

    No Brasil vrios casos demonstram que, pelo menos nos estgios iniciais de seudesenvolvimento, essa parceria pblico-privado mostrou-se eficiente narecuperao parcial da cidade, notadamente em centros histricos como os deSalvador, Recife e So Lus. Entretanto, parte a discusso sobre os reaisbenefcios sociais e econmicos de tais iniciativas, inmeras criticas tmressaltado a descaracterizao e maquiagem do espao urbano nesses stios.

    A remodelao de cidades por vezes implica na camuflagem e remoo deelementos indesejveis; da mesma forma, aspectos desejveis so enfatizadosou simplesmente inventados, sem qualquer relao com a histria e cultura locais.A criao dessas novas paisagens para o consumo turstico toca em uma

    delicada questo: at que ponto tais empreendimentos contribuem para amanuteno e sobrevivncia da paisagem e da cultura local? E ainda mais: qual olimite a ser imposto entre o real / autntico e o imaginrio / falsificado?

    O city marketing e a espetacularizao da cidade so polticas que tendem amascarar a realidade, desviando a ateno das pessoas dos problemasrelacionados ao desenvolvimento urbano e social das cidades, concentrando ofoco de interesse no aspecto econmico com resultados a curto prazo (4). Os

    Folheto turstico da Costa do Saupe (BA). O complexo hoteleiro inclui,entre outros atrativos, esta recriao de cidade colonial, denominadaVila Nova da Praia, uma montagem cnica de refernciasarquitetnicas estilizadas. Um no-lugar? Fonte: Costa do SaupeResort. 2001

    Folheto turstico da Costa do Saupe (BA). O complexo hoteleiro inclui,entre outros atrativos, esta recriao de cidade colonial, denominadaVila Nova da Praia, uma montagem cnica de refernciasarquitetnicas estilizadas. Um no-lugar? Fonte: Costa do SaupeResort. 2001

    Mapa de roteiros tursticos do Estado da Bahia. Elaborado pelo rgooficial de turismo, a Bahiatursa, prope sua nova geografia mesclanddenominaes tradicionais (Baa de Todos os Santos) e inventandooutras (Caminhos do Oeste). Fonte: Bahiatursa / 2002. Adaptao:Maria da Glria Lanci da Silva

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    governos locais argumentam que, em contrapartida, aes sobre o espao fsico einvestimentos em setores estratgicos para a manuteno ou alterao daimagem da cidade produzem efeitos mais imediatos e positivos para as finanaspblicas e, em conseqncia do aumento dos recursos, polticas sociais eurbanas em longo prazo podem ser beneficiadas.

    Sobre a mercantilizao das cidades Bianchini (5) observa que em meados dadcada de 1980 houve uma mudana das polticas de aspecto scio-culturais naEuropa, que vinham sendo desenvolvidas desde o final da Segunda Guerra, paraaes de desenvolvimento econmico e regenerao urbana. Segundo Bianchinia linguagem do subsdio foi gradualmente substituda pela linguagem doinvestimento. A poltica cultural passou a ser vista como uma estratgia

    econmica para compensar a perda de empregos no setor industrial. Nessecontexto, o turismo emerge como uma indstria ps-moderna, perfeitamenteadaptada ao novo direcionamento poltico.

    Os aspectos que interferem na escolha de destinos, preferncias de gosto ecriao de repertrios visuais indicam que a opo por aes estratgicas,pontuais e de resultados mais imediatos na interveno sobre o espao urbano ea paisagem adequada ao perfil do turismo de massa. Sabemos que o olhar doturista se volta para aquilo que especial, espetacular, incomum e novo. Almdesse aspecto devemos considerar que o contato do turista com a localidadevisitada em uma viagem de lazer efmero e superficial, e raramente seestabelece um vnculo permanente com o lugar.

    Guy Debord (6) argumenta que o incremento do espetculo na vida

    contempornea uma conseqncia natural em uma sociedade que valoriza cadavez as aparncias em detrimento do ser. O que esta sociedade produz denominado por Debord como autenticamente espetacular. A espetacularizaodas cidades, portanto, pode ser entendida como mero resultado de mudanas nocontexto social e cultural que, obviamente, compactuam com polticas econmicasque sustentam a produo real de cidades idealizadas.

    John Urry afirma que h dois tipos de olhar o lugar turstico: o olhar romnticoe o olhar coletivo. No conceito romntico o turista enfatiza a natureza, aprivacidade e um relacionamento pessoal e semi-espiritual com o objeto doolhar (7). O turista nesta situao adota um carter introspectivo, valoriza o que intocado, exclusivo ou raro, e uma experincia de percepo solitria dos lugares.Ao contrrio, o olhar coletivo privilegia as grandes cidades, os locais pblicos, aaglomerao de pessoas. O turista adquire um carter cosmopolita e atribui

    qualidade aos lugares de acordo com o nmero de pessoas, turistas ou no, queo freqentam.

    O olhar romntico e o olhar coletivo so habilmente manejados pelo mercadopara atrair clientes especficos, para a praia selvagem ou o point do vero, e possvel observar, principalmente na propaganda, que so a partir dessasimagens pr-concebidas e simplificadas que so criados os paradigmas doslugares tursticos. As imagens estabelecidas para um lugar turstico geralmenteso associaes de elementos naturais, como o clima, a vegetao e as formasdo relevo, e de elementos culturais, como as festas populares, os museus, aarquitetura e os monumentos pblicos. Da composio bem dosada entre o panode fundo visual proporcionado pelo ambiente fsico e a vida cultural dos lugaressurge o que denominamos cenrios do lazer (8).

    Cenografia, autenticidade e identidade cultural

    Espao e territrio so transformados para realar aspectos visuais quecorrespondam aos anseios dos turistas de fruio de belas paisagens. Atendendoa essa demanda o mercado cunhou uma srie de predicativos para categorizartipos de atrativos e de atividades: turismo cultural, turismo de negcios, turismorural, turismo religioso, turismo de aventura e outros. A imagem ento colada aessas categorias pela veiculao de cenas especficas: a cidade histrica, ocentro metropolitano, o campo buclico, a multido de peregrinos, a naturezaselvagem. Da apropriao de imagens com o objetivo de compor repertrios delugares tursticos que possam ser mais facilmente identificveis pelo turistasurgem os espaos cenarizados para o lazer.

    Um dos aspectos mais evidentes dessa cenarizao uma espcie de

    arquitetura de fachada que pode ser identificada por edifcios semelhantes emforma, dimenso e partido projetual, mas diferenciados por ornamentos,modificados ao sabor da moda ou segundo os temas especficos. Essa produocnica ainda mais valoriza quando associada a determinadas paisagensnaturais e situaes geogrficas peculiares a figura do chal de madeira no altoda montanha ou da casa rstica coberta com sap em uma praia selvagem soimagens emblemticas da adequao entre arquitetura e ambiente.

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    A cenografia de cidades e lugares tursticos tpicos do sculo XX criticada sob oargumento de que essa reproduo de cenrios , em muitos casos, aleatria,sem qualquer vnculo com a cultura, identidade, histria ou com a paisagem(referindo-se a elementos da natureza) original dos lugares. Alguns autoresafirmam que esta uma produo de no-lugares ou de falsos lugares,simulacros do real. A artificialidade patente em alguns lugares tursticos no criada sem razo. Adyr Balastreri observa que o espao turstico resulta, emmuitos casos, da captao do imaginrio coletivo na tentativa de resposta. Poroutro lado, o espao criado reforado pela mdia que gera e alimenta o processofantasioso (9). Guy Debord analisa o turismo como a circulao de pessoasconsiderada como consumo, um subproduto da circulao de mercadorias, quepode ser caracterizado como o lazer de ir ver o que se tornou banal, pois o

    prprio planejamento econmico das viagens encarrega-se de igualar os espaos(10).

    Analisando as relaes entre ps-modernidade e turismo e lazer, Rojek (11)observa que turismo e lazer transformaram-se, na sociedade contempornea, emuma atividade de consumo e no mais em uma questo de identidade e auto-realizao. Esse ps-turismo e ps-lazer, como denomina Rojek, valorizam afico e a dramaturgia, o espetculo e a sensao, uma vez que a autenticidadeno necessariamente uma preocupao do ps-modernismo. A experincia deconsumo acompanhada de um senso de ironia, pois quem consome estconsciente de tratar-se de um produto fictcio mas extremamente prazeroso eexcitante, o que no diminui ou desvaloriza o produto de consumo.

    Neste contexto as atraes temticas esto tornando-se uma caracterstica

    comum dos lugares tursticos. Os temas so trabalhados pelos empreendedoresprivados e Poder Pblico como forma de identificar o lugar e atrair mais turistas. Aidentificao, inclusive, passa por um processo de regionalizao geogrficaimposta por novas subdivises do territrio, uma espcie de domesticao doslugares. John Urry observa que o espao dividido em termos de signos quesignificam determinados temas, mas no temas que se relacionemnecessariamente com a verdadeira histria ou com processos geogrficos, o queequivale a dizer que essa regionalizao , muitas vezes, meramente fictcia (12).A identificao de regies tursticas induz a criao de uma cenarizaoigualmente temtica, sobretudo quando a arquitetura pe-se a servio da nfaseou da reproduo macia do patrimnio histrico reinterpretado ou daconstruo da pura fantasia.

    A tematizao explica-se pelo fato de que a percepo da paisagem umaexperincia subjetiva e resulta de uma interpretao particular do ambiente. Noslugares tursticos, por exemplo, visitantes e nativos focalizam aspectos diferentesdo mesmo ambiente. Segundo Yi-Fu Tuan, a percepo do visitantefreqentemente se reduz a usar os seus olhos para compor quadros; j o nativotem uma percepo mais complexa do meio que s expressa com dificuldade eindiretamente atravs do comportamento, da tradio local, do conhecimento e domito (13). O que para o turista uma experincia essencialmente esttica, para onativo uma avaliao do prprio modo de vida.

    Histria e memria so atributos de uma civilizao que indiscutivelmenteconferem identidade aos lugares e portanto imprimem autenticidade. Massabemos que, como produto de interpretaes e da prpria dinmica social, sotambm atributos passveis de releituras e alteraes. O conflito entre obras derevitalizao urbana e a histria do lugar emerge com a discusso do que verdadeiro e deve ser mantido e entre o que falso e deve ser obliterado. Num

    projeto de grande porte como a reconstruo e remodelao de um centrohistrico tudo se passa, portanto, sobre o ponto de vista daqueles que irodeterminar o valor do patrimnio construdo e das tradies e memrias culturais.

    A cultura da valorizao de objetos descontextualizados da dinmica social e oconsumo da natureza mistificada constituem tambm aspectos significativos dasrelaes sociais estabelecidas nos lugares tursticos. Como bem observouMichael Hough o turismo pode contribuir para a proteo e manuteno do carterregional, mas quando valores sociais e ambientais esto ausentes a diversidadeda paisagem cultural e natural degradada e o que poderia ser um lugar especialtorna-se um lugar qualquer, sem identidade (14). Este o grande desafio para osgovernos locais quando se inserem num setor to competitivo e dinmico como o do mercado turstico. Buscar a diferena e preservar a identidade regional semsubmeter-se aos encantos da globalizao, que tende a padronizar os lugares,

    uma opo que implica um esforo de investimento no capital humano e cultural alongo prazo, ou seja, em polticas que priorizem a populao local e seudesenvolvimento como cidados participantes.

    Concluses

    O crescente aumento da demanda do mercado turstico um dos fatores

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    responsveis pela produo e consumo da paisagem urbana, seja no seu aspectocultural seja no aspecto natural. Tal processo sustentado pela formao econsolidao de imagens de lugares como, por exemplo, parasos tropicais.Considerando o aspecto visual como principal elemento de atrao turstica, tantoPoder Pblico quanto o mercado esforam-se em enfatizar belezas naturais eproduzidas. Trata-se, portanto, no s de mostrar o que existe mas reproduzir ecriar novos espaos segundo critrios estticos.

    Embora possamos incluir neste processo a produo virtual do espao, como asimagens veiculadas pelos meios de comunicao, a viagem de turismo umcomplemento necessrio e crucial para a venda de lugares. A experincia deestar como turistas nos lugares de lazer oferece a estranheza necessria aos

    indivduos para que possam interagir de forma diferente com as paisagens,mesmo as mais cotidianas. Percorrer lugares com outros olhos desperta ointeresse para a descoberta da beleza, de composies e aspectos inusitados dapaisagem. Essa experincia individual o componente essencial para a formaodas imagens coletivas sobre os lugares de lazer. A estratgia de mercantilizao,portanto, ir atuar no reforo e incremento dessa experincia, e mesmo induzi-la.

    A principal caracterstica do turismo de massa nas sociedades modernas apopularizao das viagens. Urry chega a afirmar que um elemento crucial, navida moderna, sentir que a viagem e as frias so necessrias. Preciso tirar umasfrias: eis a mais segura reflexo de um discurso moderno... (15) O marketingturstico explora o trabalho considerando-o uma atividade que exaure as forasfsicas e espirituais do trabalhador, que s podero ser recuperadas com asviagens de frias, que, obviamente, sero pagas com o dinheiro ganho com o

    trabalho, estabelecendo uma relao interdependente entre o lazer e a produoeconmica.

    As viagens de turismo na sociedade capitalista atribuem uma condio social aotrabalhador: quanto maior o seu poder aquisitivo, mais sofist icadas sero suasfrias, o que geralmente se caracteriza por viagens para pases estrangeiros,consumo de produtos caros e atividades exticas. O turismo tambm se tornouum elemento de avaliao do status social do trabalhador, uma medida do seunvel scio-econmico e padro de vida. A ascenso social pode ser configuradapela mudana da classe econmica para a primeira classe dos aviescomerciais, ou da viagem de fim-de-semana praia mais prxima para umcruzeiro de vrias semanas no Caribe.

    A diviso entre o trabalho e o lazer compreende no s uma diviso de tempos

    como de lugares. Para as cidades representa cumprir funes dentro do sistemade produo e consumo: a cidade do trabalho o espao da produo enquantoque a do lazer a do consumo. Assim como o lazer uma recompensa ps trabalho, que deve ser separado deste como algo a ser atingido, a organizao decidades para o lazer no entorno da cidade do trabalho pode ser entendida comouma rede de sustentao das atividades de lazer do plo produtor, cumprindo afuno da praa ou parque urbanos em escala regional.

    O turismo tornou-se, de certa forma, uma resposta necessidade da sociedadeindustrial de alternar trabalho e lazer e organiz-los em tempos e lugaresdiferentes. Ao longo do ltimo sculo o turismo exerceu um efeito estabilizadorsobre a sociedade e a economia, como concluiu Jost Krippendorf (16),acomodando o ciclo de produo e consumo. O espao urbano destinado aoturismo deve corresponder expectativa de um consumo da natureza pelotrabalhador. Assim, o espao de trabalho e de moradia seria um espaoprimordialmente de produo, e nos espaos de lazer h uma nfase noconsumo, sejam bens produzidos pelo trabalho, seja o prprio espao construdoe herdado, seja a natureza. No lugar turstico as edificaes, as ruas, as praas,os jardins, o sol, a montanha, o mar, o clima, quase tudo, enfim, pode ser dointeresse do turista e objeto de consumo.

    A necessidade de conservar aspectos naturais do territrio e ao mesmo tempoatender as demandas de uso que podem comprometer seus atributospaisagsticos, elementos estratgicos para a valorizao dos lugares tursticos,criam conflitos tpicos dentro dos processos tursticos. Em outras palavras, asustentabilidade econmica do turismo est na sua capacidade de gerar novasatraes, descobrir novas paisagens, exaltar qualidades ambientais, seja dosmesmos lugares, atravs da construo de artefatos diversos, ou pela exploraode lugares virgens turisticamente, nos empreendimentos pioneiros. O processo

    de (re) produo contnua do espao que a atividade nos sugere torna-se,paradoxalmente, um fator de risco para a degradao e depreciao dos lugaresde lazer.

    A propaganda e o marketing nada mais fazem que enfatizar determinadasrepresentaes da cidade criando e veiculando imagens, smbolos, slogans, enarrativas sobre o espao urbano, e seu objetivo claramente vender lugares

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    atravs da promoo. H diferentes maneiras de realizar essa operao e cadacampanha publicitria dirigida a atingir objetivos especficos de acordo com oproduto venda. No caso da cidade turstica podemos afirmar que esse produto a paisagem o aspecto visual, as feies do territrio, a aparncia dos lugares imbuda de uma identidade cultural.

    interessante observar que, em relao propaganda de lugares tursticos,muito raramente vemos cenas de trabalho ou ambientes simbolizando artefatostecnolgicos. Mesmo numa rea de produo no se mostra o trabalho ou ocomrcio, mas o produto e as pessoas celebrando uma festa do vinho, porexemplo, numa regio de vincolas. Estamos, portanto, sempre em contato comrepresentaes do cotidiano do trabalho, um recorte e um aspecto destacado de

    todo.

    No sem razo que uma das estratgias do mercado de turismo ressaltar asantteses entre realidade e imaginrio, entre festa e cotidiano, entre lugares detrabalho e lugares de lazer. Agncias de viagem veiculam imagens de lugaresquase idlicos, induzindo o distanciamento da realidade, persuadindo os turistas aidealizarem os lugares que visitaro como que elaborados unicamente para suadiverso. Quando o turista entra em contato com a realidade concretaprovavelmente no deixar de notar os bastidores da vida real; porm os lugaresque frequenta o hotel, o restaurante, o centro comercial apresentam umcenrio ou mesmo uma fachada arquitetnica que o coloca a salvo da convivnciacom o lado menos glamuroso da cidade, os bairros pobres da periferia e as reasdegradadas.

    As imagens das cidades tursticas, sejam elas parciais ou intencionalmentetotalizantes, falsificadas ou autnticas, divulgam e cristalizam paisagens eidentidades culturais selecionadas pelo mercado. O objetivo imediato dapropaganda continua sendo manter, atravs das representaes, um valorsimblico suficientemente forte para atrair turistas. Para a populao e governoslocais, porm, impe-se o desafio de desmistificar, mais do que essas imagens, oprocesso pelo qual elas so produzidas e continuamente reelaboradas, tomandopara si o controle das decises sobre a turisficao do espao urbano e dacultura (17).

    Notas

    1Texto disponvel em CdROM "Turismo, Lazer e Revitalizao. II Seminrio Internacional Vises

    Contemporneas". Editado pelo Laboratrio de Lazer e Espaos Tursticos (LABLET),PROARQ/FAUUFRJ.

    2SHIELDS, Rob. A guide to urban representation and what to do about it: alternative traditions of urbantheory. In KING, Anthony D. (editor). Re-presenting the city. Ethinicity, capital and culture in the 21stcentury metropolis. Basingstoke, Macmillan, 1996, p. 227.

    3LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. So Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 16.

    4HARVEY, David. Condio ps-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudana cultural. SoPaulo, Loyola, 7 ed, 1998.

    5

    BIANCHINI, Franco. The relationship between cultural resources and urban tourism policies: issues fromEuropean debates. In DODD, D; VAN HEMEL, A. M. Planning cultural tourism in Europe. BoekmanFoundation, Amsterdam, 1999.

    6DEBORD, Guy. A sociedade do espetculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.

    7URRY, John. O olhar do turista. Lazer e viagens nas sociedades contemporneas. Traduo CarlosEugnio M. Moura. So Paulo, Studio Nobel, 1996, p. 69.

    8SILVA, Maria da Glria Lanci. Os cenrios do lazer: turismo e transformao da paisagem urbana. Tesede Doutorado. So Paulo, FAUUSP, 2003.

    9

    RODRIGUES, Adyr Balastreri. Turismo e espao. So Paulo, Hucitec, 1999, p. 26-27.

    10DEBORD, Guy. Op. cit., p. 112.

    11ROJEK, Chris. Ways of scape: modern transformations in leisure and travel. London, MacMillan, 1993, p.133-135.

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    12URRY, John. Op. cit., p. 193-194.

    13TUAN, Yi-Fu. Topofilia. Um estudo da percepo, atitudes e valores do meio ambiente. So Paulo, Difel,1980, p.75.

    14HOUGH, Michael. Out of place. Restoring identity to the regional landscape. New Haven / London, YaleUniversity Press, 1990, p. 149.

    15URRY, John. Op. cit., p. 20.

    16KRIPPENDORF, Jost. Sociologia do turismo: para uma nova compreenso do lazer e das viagens. Rio deJaneiro, Civilizao Brasileira, 1989, p.18.

    17Tambm foram consultados os seguintes ttulos: 1. FEATHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura.Globalizao, ps-modernismo e identidade. So Paulo, SESC / Studio Nobel, 1997; 2. GOLD, John R.;WARD, Stephen (ed.). Place promotion. The use of publicity and marketing to sell towns and regions.West Sussex, John Willey & Sons, 1994; 3. ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas ps-modernas. InRevista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Rio de Janeiro, Instituto do Patrimnio Histrico eArtstico Nacional / Ministrio da Educao e Cultura, vol.24, 1996.

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