20 thiago saltarelli

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251 2009 - jul.-dez. - n. Especial - v. 19 - A LETRI A IMITAÇÃO, EMULAÇÃO, MODELOS E GLOSAS o paradigma da o paradigma da o paradigma da o paradigma da o paradigma da mímesis mímesis mímesis mímesis mímesis na literatura na literatura na literatura na literatura na literatura dos séculos XVI, XVII e XVIII dos séculos XVI, XVII e XVIII dos séculos XVI, XVII e XVIII dos séculos XVI, XVII e XVIII dos séculos XVI, XVII e XVIII Thiago Saltarelli* Universidade Federal de Minas Gerais R ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO ESUMO As poéticas dos séculos XVI, XVII e XVIII, ditas “clássicas” por retomarem elementos da Antiguidade greco-latina, pautam-se largamente pela noção de mímesis na elaboração de seus pressupostos e preceptivas. O artigo busca, portanto, investigar a evolução e amplificação do conceito de mímesis ao longo dos séculos e refletir sobre sua permanência naquelas poéticas, salientando suas novidades e especificidades, desenvolvidas pela literatura da época. P ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS ALAVRAS - CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE CHAVE Mímesis, glosa, Literatura clássica Desde as primeiras abordagens da mímesis entre os antigos gregos, esta se constituiu como um dos fundamentos da criação artística, sem que tal ideia fosse posta à prova pelo menos até o século XVIII. Inicialmente, ela esteve ligada a um contexto mítico, religioso, quando não se tratava ainda de potencializar uma imagem do real, mas de exprimir uma realidade oculta, relacionada diretamente com os deuses. A ideia de mimetizar significava ser possuído pelo deus, e assim, de certa forma, imitá-lo ou materializá-lo por meio de um estado de êxtase. Daí se depreende a estreita ligação da noção de mímesis com os cultos de Dioniso, deus dos excessos. Tal vínculo com os cultos dionisíacos estabeleceu uma relação direta entre a mímesis e a música, a dança e aquilo que hoje designamos de mímica, tomando a própria raiz da palavra grega. A partir dessa associação, o conceito de mímesis, incorporado ao universo das manifestações artísticas, ainda que rudimentares, vai ganhando cada vez mais destaque. Entra no âmbito da filosofia e em seguida no da poética, tornando-se, como dissemos acima, fundamento da criação artística. Nesse sentido, é interessante pensarmos no teatro. Tendo Dioniso como patrono e utilizando máscaras, ele de certa forma remete o conceito de mímesis para o seu sentido primitivo, de alguém que, tomado por uma instância desconhecida, torna-se outra pessoa. A noção de mímesis percorre o período medieval até que, a partir da Renascença, é retomada com novo vigor pelas poéticas dos séculos XVI, XVII e XVIII, em geral ditas “clássicas” justamente por resgatarem diversos elementos da * [email protected]

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  • 2 5 12009 - jul.-dez. - n. Especial - v. 19 - A L E T R I A

    IMITAO, EMULAO, MODELOS E GLOSASo p a r a d i g m a d a o p a r a d i g m a d a o p a r a d i g m a d a o p a r a d i g m a d a o p a r a d i g m a d a m m e s i sm m e s i sm m e s i sm m e s i sm m e s i s n a l i t e r a t u r a n a l i t e r a t u r a n a l i t e r a t u r a n a l i t e r a t u r a n a l i t e r a t u r a

    d o s s c u l o s X V I , X V I I e X V I I Id o s s c u l o s X V I , X V I I e X V I I Id o s s c u l o s X V I , X V I I e X V I I Id o s s c u l o s X V I , X V I I e X V I I Id o s s c u l o s X V I , X V I I e X V I I I

    Thiago Saltarelli*Universidade Federal de Minas Gerais

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OAs poticas dos sculos XVI, XVII e XVIII, ditas clssicaspor retomarem elementos da Antiguidade greco-latina,pautam-se largamente pela noo de mmesis na elaborao deseus pressupostos e preceptivas. O artigo busca, portanto,investigar a evoluo e amplificao do conceito de mmesis aolongo dos sculos e refletir sobre sua permanncia naquelaspoticas, salientando suas novidades e especificidades,desenvolvidas pela literatura da poca.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V EMmesis, glosa, Literatura clssica

    Desde as primeiras abordagens da mmesis entre os antigos gregos, esta seconstituiu como um dos fundamentos da criao artstica, sem que tal ideia fosse posta prova pelo menos at o sculo XVIII. Inicialmente, ela esteve ligada a um contextomtico, religioso, quando no se tratava ainda de potencializar uma imagem do real,mas de exprimir uma realidade oculta, relacionada diretamente com os deuses. A ideiade mimetizar significava ser possudo pelo deus, e assim, de certa forma, imit-lo oumaterializ-lo por meio de um estado de xtase. Da se depreende a estreita ligao danoo de mmesis com os cultos de Dioniso, deus dos excessos. Tal vnculo com os cultosdionisacos estabeleceu uma relao direta entre a mmesis e a msica, a dana e aquiloque hoje designamos de mmica, tomando a prpria raiz da palavra grega. A partir dessaassociao, o conceito de mmesis, incorporado ao universo das manifestaes artsticas,ainda que rudimentares, vai ganhando cada vez mais destaque. Entra no mbito dafilosofia e em seguida no da potica, tornando-se, como dissemos acima, fundamentoda criao artstica. Nesse sentido, interessante pensarmos no teatro. Tendo Dionisocomo patrono e utilizando mscaras, ele de certa forma remete o conceito de mmesispara o seu sentido primitivo, de algum que, tomado por uma instncia desconhecida,torna-se outra pessoa. A noo de mmesis percorre o perodo medieval at que, a partirda Renascena, retomada com novo vigor pelas poticas dos sculos XVI, XVII eXVIII, em geral ditas clssicas justamente por resgatarem diversos elementos da

    * [email protected]

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    Antiguidade greco-romana de modo explcito e voluntrio. Entretanto, no se podedizer que essa noo se manteve inalterada desde os gregos, tendo o conceito de mmesispassado por um srie de modificaes.

    Em Plato, o conceito de mmesis est inextrincavelmente vinculado aos outrosdomnios contemplados pelo conjunto de sua filosofia, como a linguagem, a poltica, amoral e a educao, entre outros. O filsofo parte do pressuposto de que h trs realidadespossveis de serem criadas: o arqutipo, que a realidade verdadeira, denominada idaem grego, criada por um deus; a cpia do arqutipo, ou phainmenon, criada pelo artficeou arteso; a cpia da cpia do arqutipo, ou mmema, criada pelo pintor e pelo poeta.1

    A cpia feita pelo artfice, encontrada na natureza, no mundo humano, imitaodireta da ida, ou seja, da Verdade (altheia), ao passo que a cpia feita pelo artista,encontrada na arte, j imitao da aparncia (phntasma). A mmesis, ento, entendida basicamente como imitao da natureza, ou seja, da aparncia.2 Traduzidocomo imitatio pelos latinos, esse conceito adquire estatuto ontolgico na filosofiaplatnica, na medida em que se insere na discusso sobre as realidades e sobre a Verdade.Sendo as cpias criadas tanto pelo artfice quanto pelo artista imitaes da realidadearquetpica engendrada pelo deus, o f i lsofo as classif ica segundo o grau dedistanciamento da Verdade ideal. Nesse sentido, a arte incluindo a a poesia encontra-se trs graus afastada da realidade verdadeira, j que cpia de uma cpia.Assim, ela estimula a parte concupiscvel da alma (epithymetikn), responsvel pelosapetites do instinto e pelo julgamento sem medida, ao invs de promover odesenvolvimento da parte racional (logistikn), que mede, pesa e calcula.3 Por isso,constitui-se num elemento nocivo elevao moral e racional do homem. Uma vez quea filosofia platnica nunca se desprende de uma dimenso moral e pedaggica, a mmesis,para ser boa, ou pelo menos aceitvel, deveria debruar-se sobre um objeto belo e bom,tentando transform-lo num modelo justo para o ensino dos homens.

    Aristteles parte do mesmo princpio platnico da mmesis como imitao,4 masrejeita a noo de uma mera cpia da natureza, afastada da ida ou arqutipo, paraconceb-la como representao. Isso significa que a natureza no precisa ser recriadaexatamente como , mas como poderia e deveria ser.5 O artista no imita a realidade deforma absolutamente fidedigna, mas nela promove uma melhoria. Tal concepo dammesis advm de duas principais inovaes da filosofia aristotlica em relao platnica. Primeiro, a de que a natureza ou o mundo dos homens ganha estatuto derealidade independente, no mais sendo concebida como simples imitao de umarqutipo ou de uma ida. certo que permanece o pressuposto de que para tudo huma Causa primeira,6 pressuposto que, nas reinterpretaes neo-escolsticas da filosofiade Aristteles promovidas a partir do sculo XV, ser intensificado e tender a identificar

    1 Cf. PLATO. A Repblica, X, 596-598.2 Cf. PLATO. A Repblica, X, 598.3 Cf. PLATO. A Repblica, X, 603-606; e LAGE. Teoria e crtica literria na Repblica de Plato, p. 62-66.4 Cf. ARISTTELES. Potica, 1, 2 (as referncias da Potica seguem a edio de Eudoro de Sousa).5 Cf. ARISTTELES. Potica, 9, 50, que contempla, dentre outros tpicos, a discusso sobre o universale o particular.6 Cf. ARISTTELES. Metafsica, a, cap. 2.

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    essa Causa primeira com Deus. Contudo, a realidade emprica participa, enquantoverdade, da substncia do mundo. Em segundo lugar, Aristteles considera que o objetoprincipal da mmesis, para a poesia, a prxis humana, ou seja, as aes desempenhadaspelos homens.7 Da decorre que a arte imita no as coisas da natureza, porm suas leis,princpios e propores. O importante, ento, que essas leis estejam em acordo com anatureza e entre si, formando uma imitao no do verdadeiro, mas do semelhante aoverdadeiro. Esse , propriamente, o conceito de verossimilhana desenvolvido porAristteles,8 o qual adquire tamanha importncia que ainda nos dias de hoje utilizadonos estudos literrios. Uma obra verossmil pressupe a representao de uma lgica danatureza, no sua cpia idntica. Sobre essa questo, Adma Muhana afirma o seguinte:

    Se tanto a natureza como o poema so fruto de leis e propores oriundas da ratio, e se aimitao um processo de fazer como o da natureza, sem ser o mesmo ou cpia dela, aobra do poeta ser uma semelhante que existe na natureza, independentemente denela existir ou no. o que significa verossimilhana, conceito que corresponde autonomiada obra potica em relao s coisas naturais.9

    Observemos que a autonomia da obra potica em relao s coisas naturais segue aautonomia das mesmas coisas naturais em relao ao arqutipo, da qual j falamosacima. Assim, para Aristteles, a mmesis imitao idealizada e verossmil da natureza,em que a razo das leis e propores mantm-se como elemento comum entre a realidadeimitada e a obra. A verossimilhana torna-se o novo ideal a ser buscado pela poesia,que passa a ser definida por um carter mais tcnico e operacional, em oposio aocarter ontolgico subjacente noo de Verdade almejada por Plato. Essa mudana endossada por Plutarco, que no De audiendis poetis abre mo da preocupao ontolgicade Plato: a arte potica no se preocupa, em absoluto, com a verdade.10

    O cruzamento de todas essas noes demmesis gerou interessantes representaesalegricas do prprio conceito. Uma delas constana Nova Iconologia del Cavalier Cesare RipaPerugino, cuja primeira edio data de 1593.Dentre as diversas alegorias apresentadas na obra,h uma que representa a imitao , a qualreproduzimos a seguir:

    7 Cf., por exemplo, ARISTTELES. Potica, 2, 7 e 9, 54.8 Cf. ARISTTELES. Potica, 9, 50 e 15, 83-88.9 MUHANA. A epopia em prosa seiscentista: uma definio do gnero, p. 44.10 PLUTARCO. De audiendis poetis, 2, 17 d.

    Imitatione. RIPA, Cesare. Iconologia.

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    Essa figura sintetiza a relao entre arte e natureza contida na noo de mmesisou de imitatio, segundo a traduo dos latinos. Representada como uma mulher, elaporta, na mo direita, um mao de pincis, instrumentos da arte e da imitao das corese das figuras produzidas pela natureza. A mo esquerda segura uma mscara, a qualalude ao teatro e noo de aparncia. A seus ps, h um animal, descrito pelo tratadistacomo uma scimia (macaco). Este remete imitao da prxis humana, pois, como afirmaRipa, la maschera, & la scimia ci dimostrano limitatione dellattioni humane: questaper essere animale atto per imitare lhuomo coi suoi gesti (...).11

    Retomando a questo do desenvolvimento do conceito de mmesis, observamosque a natureza deixa de ser referncia absoluta para se tornar apenas um modelo daimitao, cujo procedimento no uma cpia, mas uma razo, uma ratio.12 Com o tempo,essa noo de modelo comea a se deslocar do mbito da natureza para o mbito daprpria arte. Adma Muhana elucida esse desenvolvimento lgico na seguinte passagem:

    [...] se a poesia imitao de algo que est na natureza (as aes humanas), e se nanatureza em que o homem existe encontra-se tambm a poesia como efeito de uma aohumana, imitar na poesia a poesia imitar a natureza.13

    Assim, desde que alguns escritores foram consagrados pela tradio como exemplos deexcelncia artstica e agrupados num cnone, tornaram-se paradigma para as geraesfuturas, as quais passaram a imitar tais modelos. Com isso, a mmesis ganhou tambm oestatuto de imitao de escritores cannicos, cujos gneros, linguagem e estilo forammimetizados por muitos artistas. Essa forma de mmesis estar largamente presente naproduo potica a partir da Renascena.

    Os primeiros a estabelecer um cnone foram os fillogos alexandrinos, selecionandoassim modelos a serem imitados. Posteriormente, essa recomendao j se encontra emescritores da poca do Imprio Romano, sejam de lngua latina ou grega, como Ccero,Horcio, Quintiliano, o pseudo-Longino e Luciano de Samsata.14 O Tratado da imitao,de Dionsio de Halicarnasso, do sculo I a.C., uma das principais obras que teorizamsobre tal concepo. s vezes ofuscado, nos dias de hoje, pelo brilho de Plato, deAristteles e dos latinos, esse tratado uma excelente fonte para a discusso sobre aimitao de escritores-modelo, atividade denominada de emulao. Esta pode ser definida,conforme o faz o tradutor da verso que consultamos, como um esforo que leva oimitador a igualar, se no a ultrapassar, o prprio modelo, definio corroborada porQuintiliano, segundo o qual s pela imitao no h crescimento, pois tambm serocelebrados aqueles que forem considerados como tendo superado os seus antecessores e

    11 RIPA. Iconologia, p. 181-182: A mscara e o macaco nos mostram a imitao das aes humanas: estepor ser animal apto a imitar o homem com seus gestos (...). (traduo livre de nossa autoria).12 cf. MUHANA. A epopia em prosa seiscentista: uma definio do gnero, p. 40.13 MUHANA. A epopia em prosa seiscentista: uma definio do gnero, p. 41.14 Cf., por exemplo: CCERO. De oratore, II, 22, 90-92; HORCIO. Epistula ad Pisones, 48-53 e 131-135; QUINTILIANO. Institutiones oratoriae, X, II (o livro X constitui-se numa espcie de catlogo demodelos, dentro do qual, no captulo II, Quintiliano discorre sobre a imitao); Pseudo-LONGINO. Dosublime, XIII-XIV; e LUCIANO DE SAMSATA. Como se deve escrever a histria, 34.

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    ensinado os seus sucessores.15 Pode-se perceber, ento, que no conceito de emulaoencontram-se as noes de rivalidade e superao. O sentimento da emulao despertano artista um desejo de rivalizar com o que parece haver de melhor em cada um dosantigos e de superar as particularidades dessas obras.16 Nesse ponto interessantelembrar que o termo grego traduzido pelos latinos como aemulatio zlosis, o qual estna origem da palavra portuguesa zelo, mas tambm da espanhola celo, da francesa jalousiee da italiana gelosia. Enquanto no portugus a palavra denota cuidado ou proteo, noespanhol, no francs e no italiano ela significa cime, inveja. Essa polissemia gerada naevoluo do sentido da palavra define bem a relao do escritor com seu modelo: trata-sede uma relao dbia, de cuidado e cime, simultaneamente. Ao mesmo tempo em queo escritor admira seu modelo, guarda-lhe inveja, mas uma inveja positiva. Tal sentimento esclarecido por Aristteles, nos captulos X e XI da Retrica, onde estabelece umaoposio entre a phthnesis, traduzvel como inveja, e a zlosis, traduzvel como emulao.A primeira se trata da inveja propriamente dita, negativa, que leva algum a quererdestruir seu rival. A segunda se refere ao sentimento de admirao e respeito em relaoao rival, que leva o imitador a querer super-lo a partir da tkhne e do estilo do prpriomodelo. No coincidncia que, sculos mais tarde, na Renascena francesa, Ronsardse debruce sobre a mesma questo no discurso moral De lenvie (Da inveja). De acordocom o poeta francs, lenvye est le plus meschant et le plus villain vice de tous (...)Lenvye a pour subject de sa malice le plus belles vertus, quelle ronge en son cueur, etse ronge elle mesme voullant ronger et menger autruy.17 Ao contrrio, lmulationest (...) une passion louable, comme ayant son estre dune bonne volunt denssuyvre etdimmiter ce quelle void estre le plus excellent (...).18 Assim, tanto o sentimento deinveja quanto o de emulao so despertados pelas belas virtudes, mas a respostafornecida por cada um a tal estmulo que os diferencia. Enquanto a inveja gera malciae corri o corao daquele que a nutre, a emulao estimula o respeito e a admirao.Portanto, conforme Ronsard, quem desejar se aperfeioar no mbito moral deve semprebuscar a emulao em detrimento da inveja: Et fault (...) en lieu denvyeux devenirimmitateurs pour tacher ressembler celluy dont les vertus et les honneurs nous rendentjaloux et envyeux.19 (grifo nosso). Retomando a questo da imitao de uma tkhne ede um estilo, Dionsio de Halicarnasso parece confirmar as ideias de Aristteles quandodiz:

    15 QUINTILIANO. Institutiones oratoriae, X, II, 9 e 28 apud DIONSIO DE HALICARNASSO. Tratadoda imitao, p. 50.16 DIONSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitao, p. 51-52.17 RONSARD. Oeuvres compltes, v. 2, p. 1.040; 1.042-1.043: A inveja o mais vil e perverso vciodentre todos (...) A inveja tem como razo de sua malcia as mais belas virtudes, as quais ela corri emseu corao, e corri a si mesma desejando corroer e devorar outrem. (traduo livre de nossa autoria).18 RONSARD. Oeuvres compltes, v. 2, p. 1.040: A emulao (...) uma paixo louvvel, tendo em suaessncia uma boa disposio de seguir e de imitar o que ela observa ser o mais excelente (...). (traduolivre de nossa autoria).19 RONSARD. Oeuvres compltes, v. 2, p. 1.044: E necessrio (...) em lugar de invejosos nos tornarmosimitadores para nos esforarmos por assemelhar quele cujas virtudes e honras nos tornam ciumentos einvejosos. (traduo livre de nossa autoria).

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    Com efeito, a imitao no a utilizao dos pensamentos, mas sim o tratamento, comoarte, semelhante ao dos antigos. E imita Demstenes no aquele que diz o mesmo queDemstenes, mas sim o que diz maneira de Demstenes.20

    No Renascimento, essa mesma relao pode ser identificada no apenas entreescritores antigos e modernos como tambm entre a lngua latina e as lnguasvernaculares. O latim ainda tido como uma lngua de excelncia, mas j no a queserve aos escritores. Ao contrrio, ele serve de referncia para a organizao lexical esinttica dos novos idiomas, aos quais imprime prestgio ao ser imitado, concedendo-lheso estatuto de lngua de cultura. Ele torna-se uma lngua modelo, anloga a um mestrea quem se busca emular para superar. No h mais a obrigao de se escrever em latim,mas deve-se escrever maneira latina, o que trouxe uma renovao na estrutura daslnguas vernculas, sobretudo as romnicas. Logo, a categoria da emulao mostra-sebastante produtiva no s para o estudo da literatura como tambm das lnguas da eradenominada clssica, entre os sculos XVI e XVIII.

    Um outro dado importante presente no Tratado da imitao a recomendao dese imitarem diversos modelos, e no apenas um. Assim como a mmesis aristotlicapromove um aperfeioamento da realidade, unindo num universal perfeito o melhor decada particularidade da natureza, a emulao deve promover um aperfeioamento dosmodelos, unindo o que cada um tenha de melhor numa forma nica, perfeita e bela.Assim se dar a superao desses modelos. Aqui se nota, portanto, a importncia dada leitura e erudio no Tratado da imitao. Logo, deve-se procurar embelezar o discursocom os recursos provenientes de todos os autores. Esses recursos, se reunidos com aajuda da arte num nico molde de um s corpo discursivo-oratrio-artstico, tornam oestilo indubitavelmente melhor.

    A categoria da aemulatio, bem como da mmesis em geral, sobreviveu durante aIdade Mdia latina e chegou com fora ao perodo denominado clssico, entre aRenascena e o Sculo das Luzes. Alguns dos principais tratados de retrica, potica eestilo dessa poca abordam a questo da imitao e da emulao. Na Nova arte deconceitos, do licenciado portugus Francisco Leito Ferreira, o autor, numa metforaengenhosa, compara a atividade do escritor, que deve selecionar os melhores modelos,com a das abelhas, que buscam o plen das melhores flores:

    Assim como a abelha no tece o doce favo do suco de quaisquer flores, mas procura opasto das mais fragrantes; da mesma sorte, o bom imitador no se deve servir, para suaimitao, de quaisquer figuras, frases e conceitos, mas, lendo e observando os escritos demelhor nota no gnero de obra que fizer, imitar o mais singular, sutil e engenhoso deles,reduzindo a tais regras a sua imitao, que no parea que trasladou ou traduziu, senoque, competindo com o imitado, o igualou ou excedeu.21

    Entretanto, o autor muitas vezes parece incorrer no prprio erro que condena, dando-nosa impresso de ter apenas traduzido passagens de outros tratadistas como Emanuele

    20 DIONSIO DE HALICARNASSO. Tratado da imitao, p. 50.21 FERREIRA. Nova arte de conceitos. Apud TEIXEIRA. A poesia aguda do engenhoso fidalgo ManuelBotelho de Oliveira, p. 58.

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    Tesauro e Baltasar Gracin. Comparem-se, por exemplo, os seguintes trechos da Artedello stile, do cardeal italiano Sforza Pallavicino, e da Nova arte de conceitos, nos quais osautores definem a emulao:22

    Da mesma forma, o poeta seiscentista portugus D. Francisco Manuel de Melo trata daimitao em sua obra Hospital das letras, espcie de compndio de potica e crticaliterria. Mostrando-se partidrio da ideia de que se deve buscar imitar mais de ummodelo, reprova aqueles que seguem apenas um, de modo servil. Numa determinadapassagem, Justo Lpsio, um dos personagens que dialogam na obra, afirma:

    A imitao, para louvvel, quer-se feita com grande destreza, porque o simples sqito deum s, que vai diante, pertence aos animais, e no aos homens. Quem imita melhor,acrescente, diminua e troque; ou, seno, seja tido por bisonho.23

    Por essa razo so condenados muitos dos imitadores de Gngora, que o copiam deforma absolutamente inbil e servil:

    Todos os que em seus dias e depois deles versificamos temos tomado seu estilo (...) paraver se podamos escrever, imitando aquela alteza, que juntamente majestade. Poucos oconseguiram, precipitados, como demnios, do resplandor s trevas; donde disseram muitosmal-intencionados que este engenho viera para maior dano que proveito do mundo,pondo somente os olhos nos desbaratados, e no nos instrudos.24

    A mesma ideia ser postulada, alguns anos depois, por La Fontaine, na ptre Huet(Epstola a Huet, bispo de Soissons). Embora defendendo a excelncia dos antigos nocontexto da Querelle des Anciens et des Modernes, da qual falaremos mais frente, opoeta e fabulista prega uma imitao no subserviente aos modelos:

    On me verra toujours pratiquer cet usage;Mon imitation nest point un esclavage:Je ne prends que lide, et les tours, et les loisQue nos matres suivaient eux-mmes autrefois.Si dailleurs quelque endroit plein chez eux dexcellence

    Peut entrer dans mes vers sans nulle violence,

    PALLAVICINO

    Emulare finalmente procurar di conseguire conaltri modi nellanimo de lettori un simile maggior piacere di quello che hanno conseguitogli Scrittori emulati.

    FERREIRA

    A emulao no imitador, he hu procurar pordifferentes modos mover nos animos dos Leytores,& ouvintes hum semelhante, ou mayor deleyte,daquele que movero os Escritores emulados (...)

    22 PALLAVICINO. Arte dello stile; e FERREIRA. Nova arte de conceitos. Apud CASTRO. Retrica eteorizao literria em Portugal: do Humanismo ao Neoclassicismo, p. 175.23 MELO. Hospital das letras, p. 124. Segundo o editor, bisonho aqui significa inbil.24 MELO. Hospital das letras, p. 109.

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    Je ly transporte, et veux quil nait rien daffect,Tchant de rendre mien cet air dantiquit.25

    Recapitulando o nosso percurso, viemos acompanhando, at aqui, o desenvolvimentoda noo de imitao, partindo de Plato e chegando at o incio do sculo XVIII. Docruzamento dos conceitos de mmesis e de zlosis, de imitatio e de aemulatio, surge a ideia deque imitar a natureza (...) equivale a inventar os casos retricos, ou seja, escolher astpicas ou lugares da tradio potica e disp-los conforme a convenincia dos gnerosliterrios.26 Acreditamos que essa definio dada por Ivan Teixeira resume bem asprincipais caractersticas da imitao, por exemplo, o fato de ela se encontrar na esferado psedos etmoisin homoa,27 ou da fico, uma vez que os casos retricos so inventadose no literalmente copiados da natureza, e tambm a importncia da tradio e dos modelospara essa inveno. Tambm podemos depreender da os procedimentos da organizaoretrica do discurso: a escolha das tpicas caracteriza a fase da inventio, enquanto a suadisposio conforme a convenincia dos gneros caracteriza o processo da dispositio.Tudo isso ser, digamos, temperado com as figuras prprias da elocutio, tambm retiradasda tradio. Esta adquire tamanho relevo que, como j apontamos acima, multiplicam-se os cnones e catlogos de modelos indicativos dos escritores, consagrados pela tradio,que devem ser imitados ou emulados. O prprio Dionsio de Halicarnasso elabora seucatlogo, no livro segundo do Tratado da imitao, distribuindo os modelos selecionadosem picos, lricos, trgicos, comedigrafos, historiadores, filsofos e oradores, e seguetecendo diversos comentrios sobre eles.

    Os catlogos prosseguem e, a partir do Renascimento, a imitao dos antigostorna-se um dos preceitos fundamentais da criao potica. O poeta portugus AntnioFerreira, na Carta XII a Diogo Bernardes, faz um elogio da imitao e da erudio:

    Na boa imitao, e uso, que o feroEngenho abranda, ao inculto d arte,No conselho do amigo douto espero.

    (...)Do bom escrever, saber primeiro fonte.

    Enriquece a memria de doutrinaDo que um cante, outro ensine, outro te conte.28

    25 LA FONTAINE. Oeuvres diverses, p. 645-647: Serei visto praticar sempre este uso/ minha imitaono uma escravido/ tomo apenas a idia, os contornos e as leis/ os quais nossos mestres, eles mesmos,seguiam outrora./ Se, alm disso, alguma passagem de excelncia dos antigos/ pode entrar nos meusversos sem nenhuma violncia,/ para a a transporto, e desejo que ela no tenha nada de afetado,/esforando-me por tornar meu aquele ar de antigidade. (traduo livre de nossa autoria).26 TEIXEIRA. Mecenato pombalino e poesia neoclssica, p. 251.27 Na Teogonia, de Hesodo, as Musas afirmam: dmen psedea poll lgein etmoisin homoa, ou seja,sabemos muitas mentiras dizer semelhantes a fatos. (Cf. HESODO. Teogonia: a origem dos deuses,verso 27). Assim, cria-se uma categoria intermediria entre a altheia a verdade absoluta e o psedos o totalmente falso ou mentiroso. O psedos etmoisin homoa refere-se ao que falso, mas semelhante verdade, isto , ao que inventado, mas segue as leis da natureza verdadeira, o que tambm apontapara a categoria do eiks, ou seja, do verossmil.28 Citao retirada de SPINA. Introduo potica clssica, p. 11.

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    Joachim du Bellay, na Deffense et illustration de la langue franoyse, igualmente, recomendaa imitao dos antigos gregos e latinos:

    Se compose doncques celuy qui voudra enrichir sa langue, limitation des meilleursauteurs grecs et latins; et toutes leurs plus grandes vertus, comme un certain but,dirige la pointe de son stile; car il ny a point de doute, que la plus grandpart de lartificene soit contenue en limitation. (...)29

    Mas tambm postula a imitao de alguns escritores mais recentes, como os humanistasitalianos: Pour le sonnet doncques tu as Petrarque et quelques modernes Italiens.Chante moy (...) marines lexemple de Sennazar gentil homme Napolitain.30

    As ideias de imitao de mais de um modelo e de superao desses modelos anteriorespodem estar na base de uma progressiva imitao de escritores contemporneos a partirde fins do sculo XVI. Os antigos deixam gradativamente de ser autoridade nica paraceder lugar aos modernos que porventura tenham atingido um mesmo nvel de perfeio.Obviamente essas mudanas no foram aceitas por todos, gerando conflitos que levaram,por exemplo, Querelle des anciens et des modernes, na Frana do sculo XVII. Trata-sede uma polmica surgida na Academia Francesa, que opunha duas correntes, a saber:os Antigos, liderados por Boileau, que concebiam a criao artstica como imitao dosgregos e latinos, os quais teriam atingido o mais alto patamar da perfeio formal, segundoseus defensores; e os Modernos, encabeados por Charles Perrault, partidrios de umarenovao da criao literria, com base na ideia de que os clssicos gregos e romanosno eram insuperveis e de que o sculo de Lus XIV poderia produzir artistas de altssimaqualidade. A disputa teve incio em 1687, quando Perrault apresenta Academia opoema Le sicle de Louis le Grand, no qual promove o elogio do Rei Sol e relega aAntiguidade clssica a segundo plano enquanto modelo de criao artstica, como sepode observar nos provocativos versos iniciais:

    La belle antiquit fut toujours vnrable;Mais je ne crus jamais quelle ft adorable.Je vois les anciens, sans plier les genoux;Ils sont grands, il est vrai, mais hommes comme nous;Et lon peut comparer, sans craindre dtre injuste,Le sicle de Louis au beau sicle dAuguste.31

    29 DU BELLAY. La dfense et illustration de la langue franaise, p. 58: Harmonize-se ento aquele quedeseja enriquecer sua lngua com a imitao dos melhores autores gregos e latinos; e a todas as suasmaiores virtudes, como a um objetivo certeiro, dirija a ponta de seu estilo; pois no h dvida de que amelhor parte do artifcio esteja contida na imitao (...). (traduo livre de nossa autoria).30 DU BELLAY. La dfense et illustration de la langue franaise, p. 87: Para o soneto, ento, tens Petrarcae alguns modernos italianos. Que eu cante (...) marinas ao exemplo de Sannazzaro, fidalgo napolitano.(traduo livre de nossa autoria).31 PERRAULT. Oeuvres choisies, p. 290: A bela antigidade foi sempre venervel; / Mas no creio queela foi adorvel. / Eu miro os antigos sem dobrar os joelhos, / Eles so grandes, verdade, mas homenscomo ns; / E podemos comparar, sem temer ser injustos, / O sculo de Lus ao belo sculo de Augusto.(traduo livre de nossa autoria).

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    Tal fato provocou um protesto imediato da parte de Boileau. No ano seguinte, Perraultprossegue com a polmica, ao publicar quatro volumes de um Parallle des anciens et desmodernes.

    Alguns estudiosos tendem a apontar, como origem da Querelle francesa, uma primeiraquerela italiana entre antigos e modernos, da poca da Renascena. De qualquer forma, fato que esses debates j se encontravam na ordem do dia antes de 1687 e em outrasnaes europeias. D. Francisco Manuel de Melo, por exemplo, morto em 1666, nos dum exemplo disso no mbito portugus. O autor, embora reconhecendo o valor dosescritores antigos consagrados pela tradio, admite a imitao dos modernos e noconsidera impossvel que estes sejam melhores:

    (...) se conferirmos os estilos dos poetas antigos e modernos, estes faro muita vantagemqueles, porque a argentaria e lentijuela que hoje se gasta sem dvida mais brilhante eagradvel que a melanclica frase dos antigos. Se hoje ressuscitassem ao mundo aquelesfamosos Smacos, Orfeus e Clenandros, e ateimassem em trajar o entendimento pelasmedidas do tempo entanguido, a gente fugeria deles. No digo, por isto, que deixemos devenerar e reconhecer mil brasas ardentes, dissimuladas por entre aquelas cinzas frias,como vemos em o ouro, que, nascendo de um parto com a Terra, no apodrece em suasentranhas, antes por benefcio da idade se sublima em valor e pureza. Nego, contudo, oque afirmam outros, que s em aqueles primeiros sculos fosse liberal a natureza emproduzir altos juzos (...) Honrai, Senhor, a antiguidade, para que da posteridade sejaishonrado; mas no honremos uma por desonrar outra.32

    Alis, retomando a questo da doutrina e do saber, recomendados por Antnio Ferreira,D. Francisco afirma que os modernos so melhores doutrinadores em se tratando de casosespecficos, por estarem mais prximos dos costumes de seus leitores contemporneos:

    Aqueles autores que universalmente ensinam no importa que sejam antigos, antesporventura so melhores, porque nas primeiras idades do mundo, dado que as cinciasno estivessem to descobertas nos mestres, estava mais pura a aptido nos discpulos;porm aqueles que especialmente nos ensinam sobre pontos determinados bem que sejammodernos, ou porque esses resolvem j as dvidas opostas da malcia, ou porque, sendo maisvizinhos a ns, se conformam com os nossos usos e praticam os remdios da sua corrupo.33

    De qualquer forma, fato que vrios artistas passaram a emular seus contemporneos.O caso de Gngora, discutido por D. Francisco, um timo exemplo. Assim, os escritoresdos sculos XVI e XVII passam a realizar um volumoso nmero de glosas dos autoresadmirados. Esse ato aponta fundamentalmente para a permanncia do paradigma da mmesisenquanto a caracterstica mais essencial do poien, isto , do fazer potico dessa poca.

    Assim, podemos apontar duas acepes para a palavra glosa. A primeira, de sentidomais estrito, refere-se ao procedimento de composio potica em que um autor tomaum poema alheio e desenvolve seus versos, inserindo-os, com ou sem modificaes, nocorpo de seu prprio poema. Hans Janner, um dos poucos crticos que se dedicaram aoestudo minucioso da glosa, elucida algumas de suas caractersticas. Em primeiro lugar,toda glosa comprende dos partes: una poesa temtica elegida o impuesta que se llama

    32 MELO. Hospital das letras, p. 101-102.33 MELO. Hospital das letras, p. 231.

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    generalmente texto, y estrofas (la glosa propiamente dicha) en las que se interpretanlos distintos versos de texto.34 Por outro lado,

    (...) es condicin de la glosa propiamente dicha el que cada uno o cada dos de los versostemticos se glosen en sus estrofas respectivamente. Los versos del texto han de insertarsede tal manera generalmente al final de la estrofa de la glosa que queden incorporadosorgnicamente a sta por el sentido y por la rima.35

    Uma definio muito semelhante nos d um tratado de potica do sculo XVII, a ArtePotica, e da Pintura, e Simetria com alguns Princpios da Perspectiva, de Filipe Nunes,publicada em 1615. Diz o autor:

    As Grosas constam de texto, e grosa. O texto o mote, ou seja, de ua ou duas regras, oude qualquer outro modo que se oferecer. E pode ser de sonetos, de outavas, de liras, ou aalvedrio do Poeta, metendo o verso que grosa no fim do soneto, outava, ou lira. E note-seque quando grosarem vo sempre seguindo algua matria, e no ua para um verso, eoutra para o outro, que defeito grande.36

    Por essa razo, no se pode definir uma forma fixa para a glosa, pois sua realizao dependeda mtrica e das rimas do poema escolhido para ser glosado. De ah procede (...) la peculiaridadde que no se pueda fijar su estructura exterior por un solo esquema,37 segundo Janner.Entretanto, o estudioso identifica uma forma consagrada pela tradio devido ao seuuso mais frequente:

    El problema mtrico de la glosa, pues, viene dado principalmente por las formas de lasestrofas y los sistemas de rimas a aqullas vinculados, sin determinarse por un sistema fijo,como el soneto o el terceto. Durante la evolucin de la glosa en el siglo XVI, sin embargo,se impuso una forma especial que yo he denominado normal y que es el resultado de[un] desarrollo histrico (...) Intgrase este tipo normal de la glosa por un texto de cuatroversos octoslabos,38 y la misma glosa por cuatro dcimas octoslabas cuyos dcimos versosson los cuatro versos temticos que entran en ellas rimando y formando sentido (...)39

    De fato, essa forma tem largo alcance na tradio potica quinhentista, e um timoexemplo de seu emprego pode ser encontrado em Cames, nas glosas ao seguinte mote:

    Campos bem-aventurados,Tornai-vos agora tristes,Que os dias em que me vistesAlegre, j so passados.40

    34 JANNER. La glosa en el siglo de oro, p. 72.35 JANNER. La glosa en el siglo de oro, p. 72.36 NUNES. Arte potica, p. 100.37 JANNER. La glosa en el siglo de oro, p. 72.38 A classificao dos versos aqui utilizada segue o sistema de escano conhecido como contagemespanhola, diverso da contagem francesa, utilizada nos manuais de versificao da lngua portuguesadesde o sculo XIX. Para maiores informaes sobre esse tpico, cf. ALI. Versificao portuguesa;AZEVEDO FILHO. Estruturalismo e crtica de poesia; AZEVEDO FILHO. A tcnica do verso em portugus;e, ainda, CHOCIAY. Teoria do verso, 1974.39 JANNER. La glosa en el siglo de oro, p. 72.40 CAMES. Obras, p. 743.

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    Outros exemplos de glosas stricto sensu, do sculo XVII, podem ser encontrados nosprincipais cancioneiros da poesia seiscentista portuguesa, a Fnix Renascida e o Postilhode Apolo, cujas pginas esto cheias de glosas de diversos escritores considerados modelos,entre eles Gngora, Quevedo e sobretudo Cames. Alm disso, a ttulo de curiosidade,e para demonstrar que o conceito de glosa era extremamente difundido nos sculosXVI e XVII, lembremos aqui que ele tambm se aplica a outros domnios artsticos foradas letras. Na msica, por exemplo, h um interessante Tratado de glosas sobre clusulasy otros gneros de puntos en la msica de violones, de autoria do espanhol Diego Ortiz,publicado em Roma em 1553. Ali podemos identificar a mesma noo de glosa,compartilhada com o domnio potico. Sobre temas alheios, muitas vezes annimos etomados da tradio, denominados clausulas, o compositor ensina a desenvolver melodiase improvisos guardando suas principais caractersticas rtmicas, meldicas e harmnicas.

    Da seguinte afirmao de Janner retiramos a segunda acepo de glosa, de cartermais geral e abrangente: la glosa no es solamente una forma mtrica, un molde, sinoque procede de una idea, de un propsito que es el de comentar poesas de plumaajena.41 De certo modo tal acepo retoma e conclui nosso percurso, pois a concebemoscomo reescrita, releitura ou interpretao de um outro texto, de um tema, de um estilo,de um gnero desenvolvido por outrem. Nessa acepo a glosa se confunde com a prpriaimitao. Podemos entend-la como a retomada das tpicas e das convenes retricasde um escritor consagrado pela tradio como modelo, seja ele antigo ou moderno.Em suma, o ato de glosar e, em seu sentido lato, entendamos tambm mimetizar, imitar,emular, canonizar etc. define bem a vasta literatura chamada de clssica compreendidaaproximadamente entre o sculo XVI e o XVIII, ou entre a Renascena e o Iluminismo,perodo tambm denominado de Era clssica, por diversos historiadores da literatura.

    RRRRR E S U M EE S U M EE S U M EE S U M EE S U M E Les potiques des sicles XVIe, XVIIe et XVIIIe, appelesclassiques pour reprendre des lments de lAntiquitgrco-latine, se rglent largement par la notion de mmesispour llaboration de ses prsuppositions et prceptes. Donc cetarticle cherche tudier lvolution et lamplification duconcept de mmesis au long des sicles et rflchir sur sapermanence dans celles potiques-l, en distinguant sesnouveauts et spcificits, dveloppes par la littrature delpoque.

    MMMMMOTSOTSOTSOTSOTS-----CLSCLSCLSCLSCLSMmesis, glose, Littrature classique

    41 JANNER. La glosa en el siglo de oro, p. 73.

    AA

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