2. o mercado da mÚsica e a indÚstria do...

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Messias G. Bandeira – Construindo a Audiosfera - O mercado da música e a indústria do disco 45 2. O MERCADO DA MÚSICA E A INDÚSTRIA DO DISCO “A música que não foi gravada desapareceu da história sem rastro” 26 . Andre Millard (1996, p.12) A frase acima sugere a dimensão adquirida pelo conjunto da música popular junto à sociedade contemporânea a partir do processo de gravação sonora. Certamente, ela não se aplica às experiências históricas da música erudita ou das comunidades tribais, cujo repasse pode ocorrer através das formas escritas ou da transmissão oral entre as gerações, ainda que estas sofram pela ausência de um registro material. Não será difícil, porém, avaliar a importância da música gravada para as sociedades. A análise da indústria fonográfica torna-se fundamental para este trabalho, já que esta se transformou, ao longo do século XX, na principal articuladora de produtos musicais em escala mundial. Sua composição diversa, geralmente associada às concepções de sinergia e convergência, projeta uma rede transnacional de agentes e consumidores, sendo um dos melhores exemplos do fenômeno da mundialização dos produtos culturais na sociedade contemporânea. Ou seja, a indústria fonográfica pode ser entendida, conforme veremos a seguir, como um dos principais elementos das chamadas indústrias culturais; mais do que isso: neste particular, ela opera, ao longo dos seus quase cem anos de existência, uma transformação no campo da produção musical, sendo responsável pela formação de audiências globais. Se, por um lado, a história da música popular possui um lastro social, cultural e antropológico, onde há uma infinidade de aspectos estruturantes de sua configuração (grupos sociais, questões de identidade, gênero etc.), por outro, há uma história concomitante (e convergente) da tecnologia musical (instrumentos musicais, discos, fitas, técnicas de gravação etc.) que também se apresenta enquanto elemento constitutivo desta 26 The music which went unrecorded faded from history without a trace” (MILLARD, 1996, p. 12).

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Messias G. Bandeira – Construindo a Audiosfera - O mercado da música e a indústria do disco

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2. O MERCADO DA MÚSICA E A INDÚSTRIA DO DISCO

“A música que não foi gravada desapareceu da história sem rastro”26.

Andre Millard (1996, p.12)

A frase acima sugere a dimensão adquirida pelo conjunto da música popular junto à

sociedade contemporânea a partir do processo de gravação sonora. Certamente, ela não se

aplica às experiências históricas da música erudita ou das comunidades tribais, cujo

repasse pode ocorrer através das formas escritas ou da transmissão oral entre as gerações,

ainda que estas sofram pela ausência de um registro material. Não será difícil, porém,

avaliar a importância da música gravada para as sociedades. A análise da indústria

fonográfica torna-se fundamental para este trabalho, já que esta se transformou, ao longo

do século XX, na principal articuladora de produtos musicais em escala mundial. Sua

composição diversa, geralmente associada às concepções de sinergia e convergência,

projeta uma rede transnacional de agentes e consumidores, sendo um dos melhores

exemplos do fenômeno da mundialização dos produtos culturais na sociedade

contemporânea. Ou seja, a indústria fonográfica pode ser entendida, conforme veremos a

seguir, como um dos principais elementos das chamadas indústrias culturais; mais do que

isso: neste particular, ela opera, ao longo dos seus quase cem anos de existência, uma

transformação no campo da produção musical, sendo responsável pela formação de

audiências globais.

Se, por um lado, a história da música popular possui um lastro social, cultural e

antropológico, onde há uma infinidade de aspectos estruturantes de sua configuração

(grupos sociais, questões de identidade, gênero etc.), por outro, há uma história

concomitante (e convergente) da tecnologia musical (instrumentos musicais, discos, fitas,

técnicas de gravação etc.) que também se apresenta enquanto elemento constitutivo desta

26 “The music which went unrecorded faded from history without a trace” (MILLARD, 1996, p. 12).

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evolução. Veremos, então, que o êxito da música popular está diretamente associado à

junção entre o avanço dos sistemas de gravação sonora e a exploração de um determinado

estilo musical. Será importante delimitar, aqui, o viés econômico que orienta a indústria

fonográfica, pois, desde o seu nascedouro, podemos notar suas vocações mercadológica e

multinacional.

Um aspecto importante será a correlação entre o avanço dos suportes de gravação e

reprodução de áudio e o êxito da música popular a partir da década de 1950. Antes,

ainda no século XIX, veremos as primeiras iniciativas de reprodução de música gravada,

tendo o fonógrafo como de ponto de partida, até o surgimento das chamadas “indústrias

culturais” e indústria do entretenimento, onde o mercado fonográfico ocupa lugar de

destaque. Não buscamos, porém, contemplar todos os aspectos relacionados à indústria

fonográfica e à música popular, uma vez que tal estudo demandaria dramáticos esforços já

empreendidos por inúmeros estudiosos, conforme visto no capítulo anterior. Assim,

buscamos, neste capítulo, esquadrinhar a cadeia de produção musical no âmbito da

música popular para verificarmos a real extensão das mudanças operadas pelas novas

tecnologias de difusão de áudio pela Internet.

2.1 O DESLOCAMENTO DA EXPERIÊNCIA MUSICAL: O FONÓGRAFO COMO

VETOR DE POPULARIZAÇÃO DA MÚSICA

2.1.1. Os sistemas de notação musical e os elementos de coletividade: a música como

uma experiência coletiva dependente da reprodução

Enquanto uma experiência coletiva, a música requisita a presença física de seus

intérpretes e ouvintes. Os instrumentistas se alinham aos compositores na medida em que

constroem repertórios variados: obras compostas há centenas de anos são passíveis de

reprodução graças à representação gráfica musical. Eram comuns, até o século XIX, as

grandes reuniões e os rituais coletivos, onde músicos e intérpretes tornavam-se

personagens centrais. Seus instrumentos também eram indispensáveis, pois deles

dependia o processo de reprodução musical. Nos Estados Unidos, por exemplo, o piano

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era o centro das atenções nos grandes salões festivos, símbolo da reunião para

“entretenimento”.

A representação musical foi decisiva para a perpetuação da música no ocidente. Da

música monótona (de um só tom) gregoriana — entoada nos mosteiros da idade média —

às obras eruditas dos grandes compositores, o repasse das obras estava associado a um

círculo de representação, leitura e interpretação de sinais. A pauta (ou o “pentagrama”)

tornou-se o elemento comum a músicos e intérpretes, desde que lhe fossem apreendidas

as formas de composição, de escrita e de execução. O ofício de copiar músicas sacras e

seculares, de forma manuscrita, surgiu na Europa, a partir da metade do século XIII, em

Paris, caracterizando a escrita como o primeiro suporte mediático na transmissão da

música. Simon Frith (2001, p.29) assinala que a primeira revolução no armazenamento

musical foi uma combinação entre notação e imprensa. A notação musical, portanto, foi a

primeira forma de registro da música, ainda que ela se destinasse apenas a representar os

sons graficamente para uma interpretação posterior. Esta relação pictográfica está na

origem dos processos de registro musical, compondo um conjunto amplo de

representação da linguagem musical, como descreve Wittgenstein:

O disco fonográfico, o pensamento musical, a notação musical, as ondas sonoras, todos eles estão uns para os outros naquela relação interna de representação pictorial que é a que existe entre a linguagem e o mundo (WITTGENSTEIN, Tractatus, 4.014).

Aliás, o próprio fonógrafo (também chamado de “grafofone”), como veremos adiante, era

concebido enquanto uma forma de “escrita auditiva”, com a “agulha no papel da pena”

(MCLUHAN, 2003, p. 310). Assim estabelecidas, as únicas formas de acesso às obras

musicais seriam, de fato, através da presença física a concertos ou da execução das músicas

pelos intérpretes em ambiente privado. Talvez pequenos elementos de reprodução

musical, como caixas de música ou o realejo, possam servir de exemplo da dificuldade de

alcance da reprodução musical até o final do século XIX. É importante ressaltar que o

repasse da experiência musical é diretamente dependente da cópia, seja ela impressa (da

representação gráfica), mecânica ou digital. Nesta perspectiva, o disco será, por excelência,

o meio de armazenamento e difusão da música popular no século XX, e a história da

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gravação vai preceder o seu êxito.

2.2. AS TÉCNICAS DE REGISTRO E GRAVAÇÃO DE ÁUDIO: O

DESLOCAMENTO DA EXPERIÊNCIA MUSICAL A PARTIR DOS AVANÇOS

TECNOLÓGICOS

A gravação sonora pode ser entendida como um processo de registro de áudio a partir de

sua execução, transferindo-o para um suporte físico (fitas, discos, CD´s etc.). A posterior

reprodução completa um ciclo que vai da composição à recepção de obras musicais,

envolvendo compositores, músicos, intérpretes e ouvintes. Assim, veremos que a gravação

sonora irá permitir a reprodução musical de maneira específica, sendo esta definida pela

vontade do ouvinte quanto ao momento ou obra a ser escutada. O que parece ser um

simples corolário, entretanto, explica em boa medida o rápido desenvolvimento dos

sistemas de registro e reprodução de áudio. A complexidade deste processo exige um

detalhamento de suas categorias para a compreensão da cadeia de produção musical na

sociedade contemporânea.

Podemos afirmar que a música gravada foi uma das primeiras iniciativas da produção em

massa do entretenimento caseiro. O surgimento dos aparelhos de gravação e reprodução

de áudio será fundamental não apenas à massificação de obras musicais, mas, também, ao

deslocamento da experiência musical das casas de concerto para outros ambientes. Daí

virão as primeiras formas de massificação de produtos culturais como estes são

compreendidos pelas ciências da comunicação mais contemporaneamente. A música

gravada irá transformar o processo de acesso às obras, seja pela experiência da formação

de audiências massivas, seja pela criação de um “mundo sonoro particular”, como sugere

Millard (1996, p.1) quando afirma que o fonógrafo substituía “os prazeres vitorianos do

coreto e da sala de concertos”. Além disso, a gravação irá definir a separação dos

contextos de criação, execução e recepção da música, ajudando, porém, a perpetuar

gêneros musicais como o jazz ou o rock.

Um dos aspectos mais peculiares da cultura contemporânea diz respeito, exatamente, ao

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consumo em massa de obras musicais, processo alavancado pela reprodução industrial de

diversos formatos e suportes para tais obras, entre eles o disco e a fita cassete. Walter

Benjamin, no célebre ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica —

dedicado, sobretudo, à análise dos efeitos da reprodução técnica das imagens —, também

discorria sobre o próprio disco como um objeto transformador da experiência musical:

[...] a técnica pode transportar a reprodução para situações nas quais o próprio original jamais poderia se encontrar. Sob a forma de foto ou de disco, ela permite sobretudo aproximar a obra do espectador ou do ouvinte.[...] o melômano pode ouvir a domicílio o coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre (BENJAMIN, 1978, p. 213).

Neste sentido, podemos afirmar que a reprodução técnica de discos não apenas favorece a

popularização de um determinado tipo de música, mas é exigida na popularização dessa

música, como sugere Benjamin em relação ao filme, onde a técnica de produção funda a

técnica de reprodução. Este deslocamento da música para os espaços privados, para a

difusão pública e massiva (no rádio, por exemplo), obviamente, só foi possível graças às

tecnologias de registro e reprodução de áudio com origem no fonógrafo.

2.2.1. O surgimento do fonógrafo

O século XIX será, notadamente, o período do surgimento de inúmeros sistemas de

comunicação de base que irão configurar os meios de comunicação de massa do século

seguinte. O telégrafo, o telefone, a fotografia, o cinema, ainda que de forma incipiente,

possuirão aspectos experimentais27, mas, juntamente com o fonógrafo, irão transformar

toda a cadeia de produção da cultura no século posterior. A história da música popular e

da indústria fonográfica encontra, no final do século XIX, o período de formação das

primeiras companhias do disco, embora, nos seus primórdios, não houvesse uma

associação direta entre a “indústria da música” e a “indústria do disco”.

Inúmeros nomes podem ser elencados como precursores da criação do processo de

27 Basta lembrar, por exemplo: o telégrafo elétrico, de 1837; a transmissão da primeira mensagem por telégrafo usando o código Morse, realizada por Samuel Morse em 1843; a demonstração do telefone por Alexander Graham Bell em 1876; a primeira projeção pública de um filme, por Lumière, em 1895. Cf. Briggs e Burke (2004; p. 149, 173, 339 e 340).

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gravação de áudio. Entre eles, podemos citar o médico Thomas Young, que tentou, em

1806, registrar as vibrações de um garfo. Já em 1859, o bibliotecário francês Leon Scott

desenvolveu o “vibrograph”, posteriormente designado como “phonoautograph”

(KOENIGSBERG, 1990). Charles Cros28, outro francês, tentou desenvolver o

“paleophone”, mas nenhum deles conseguiu obter êxito na gravação e reprodução de

áudio.

À época, nos Estados Unidos, um grupo de compositores e editores começou a se formar

em torno da Broadway e da 28ª Avenida, em Nova Iorque, região que, mais tarde, seria

chamada de Tin Pan Alley29. Ali se concentrava boa parte de músicos que dominaria o

circuito da música popular até a Segunda Guerra Mundial. A “música de partitura” era

executada “ao vivo”, mas a composição e a publicação representavam as principais fontes

de receita para os músicos.

É neste contexto que, em novembro de 1877, o norte-americano Thomas Edison cria o

fonógrafo, conhecido como a “máquina falante”, marco inicial do processo de gravação

sonora. Aparelho baseado em cilindros e movido a manivela, o mesmo era capaz de gravar

e reproduzir sons, embora Edison estivesse preocupado, inicialmente, apenas com a

gravação da voz humana30. O aparelho — patenteado em 1878 sob o registro 200.521

(SCHOENHERR, 2002) — despertou pouco interesse entre músicos e editores, e o

próprio Edison, de acordo com Garofalo (1997, p. 17) colocava seu invento na terceira ou

quarta posição de prioridades de suas criações.31

Uma série de contribuições favoreceu o desenvolvimento do fonógrafo, como o

“gramofone” — que usava disco no lugar do cilindro — criado nos Estados Unidos em

1888 pelo imigrante alemão Emile Berliner. Neste mesmo ano, Edison criava a Edison

Speaking Phonograph Company, também contribuindo para o desenvolvimento do seu

28 Cf. Flichy (1991, p. 94). 29 Em alusão ao som “tinny” (metálico) dos pianos que eram tocados na região. 30 “Mary had a little lamb” teria sido a primeira gravação da voz humana realizada pelo fonógrafo de Edison (SCHOENHERR, 2002). 31 Edison parecia mais preocupado em conferir ao emergente aparelho um caráter prático, como o telefone, buscando uma exploração comercial do mesmo. Este entendimento obstruía a possibilidade de vislumbrar o fonógrafo num viés do entretenimento, o que demonstrava, de acordo com McLuhan (2003, p.311), sua “incapacidade de apreender o significado da revolução elétrica em geral”.

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invento. Inicialmente pensado no viés exclusivamente de negócios, o fonógrafo logo

assumiu sua vocação de instrumento a serviço do entretenimento. Curiosamente, a partir

de 1889, seu acionamento se dava através de moedas (as famosas “jukeboxes”). Talvez um

prenúncio da relação entre música e mercado que se perpetuaria na história da música

popular.

As primeiras empresas a explorar as possibilidades do fonógrafo e do gramofone criaram

uma massa de ouvintes interessados no novo aparelho. A partir de 1890, algumas dessas

máquinas já podiam ser encontradas nas casas de consumidores; o gramofone — ou

“Victrola”, introduzida pela Victor Talking Machine Company — esboçava, assim, a

possibilidade de reprodução de áudio em ambiente privado, criando, porém, a figura do

consumidor de discos. No final do século XIX, alguns números começavam a

impressionar: em 1897, foram vendidos quinhentos mil discos; já em 1899, as

companhias atingiam a marca de 2,8 milhões de discos vendidos nos Estados Unidos

(SHUKER, 1999, p. 134). As primeiras companhias do disco são conhecidas até hoje,

como a HMV (do inglês His Master´s Voice), a Columbia (fundada em 1889) e a Victor

(criada em 1901)32. Várias empresas surgiram rapidamente na Europa e no resto do

mundo. O quadro a seguir demonstra, percentualmente, o expressivo crescimento da

presença do fonógrafo nos lares americanos no início do século XX em relação a outros

elementos de consumo:

TABELA 1:

Presença do fonógrafo nos lares americanos no início do século XX em relação a outros

bens de consumo

Piano Fonógrafo Telefone Automóvel

1900 – 3% 6% 0,05%

1910 20% 15% 25% 2%

1920 – 50% 37% 33%

Fonte: Patrice Flichy, 1991, p. 104.

Podemos notar que o fonógrafo teve um rápido crescimento durante as primeiras décadas

do século XX, ocupando, ao final da Primeira Guerra Mundial, uma posição privilegiada

32 Ibid., p. 134.

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nos Estados Unidos, presente em cinqüenta por cento dos lares. Assim, o novo

equipamento deixa de ser apenas um objeto de decoração, o que usualmente se atribuía

ao piano, para ocupar uma posição de destaque, tomando, inclusive, o lugar deste último

nas casas, como assinalam Briggs e Burke (2004, p. 186)33. Baseado neste quadro, Flichy

(1991, p. 105) afirma que o fonógrafo será, após a imprensa, o primeiro mídia de massa.

2.2.2. As fases do processo de gravação e reprodução de áudio: formação e expansão da

indústria fonográfica e sua relação com a comunicação massiva.

A invenção do fonógrafo criou um contexto de inovações técnicas para registro e

reprodução de áudio, facilitando a difusão de músicas em larga escala. As primeiras

gravadoras apostavam seus esforços no desenvolvimento de técnicas de registro, buscando

oferecer uma melhor qualidade na reprodução de músicas. Entretanto, como veremos a

seguir, até a década de 1950, o objeto das investidas técnicas era, sobretudo, a quantidade

de músicas que poderia ser inserida num disco. Assim, quanto maior o número de

músicas no disco, maior a capacidade de venda de um determinado título.

Do ponto de vista do processo de gravação e reprodução de áudio, vários autores

identificam, basicamente, três etapas sucessivas da história do disco, tendo o fonógrafo

como ponto de partida: a fase acústica, que vai de 1877 à década de 1920; a segunda fase,

da fita magnética, quando de sua utilização para gravação, perdurando-se até a década de

1970; e a terceira fase — da gravação digital —, iniciada em 1982 com o surgimento do

compact disc, o CD. Uma das análises mais importantes acerca da história da música

gravada e da evolução da indústria fonográfica foi feita por André Millard, na obra

“America on Record: a history of recorded sound”. Ele sugere uma divisão tripartite desta

evolução: a) a “era acústica”, cobrindo o período que vai do surgimento do fonógrafo ao

final da década de 1920, quando um novo sistema elétrico de gravação substituiu o

fonógrafo; b) a “era elétrica”, de 1930 ao final da década de 1970, período representado

pelos discos de 78 rpm, pelo advento dos discos de 45 rpm e pelo LP de 33rpm, além do

surgimento da “cultura do cassete”; c) a “era digital”, iniciada em 1982 pelo CD. Assim,

33 Briggs e Burke (2004, p. 186) afirmam que “o gramofone tomou o lugar do piano nas casas”.

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as técnicas de registro de áudio foram elementos estruturantes — mas não determinantes

— na formatação da indústria fonográfica e do entretenimento de massa. Para Millard,

A indústria de som gravado era uma arena de alta tecnologia na qual organizações empresariais competiam para melhorar a reprodução de som. A história desta luta é essencialmente de tecnologias competitivas nas quais uma inovação constante trazia novos produtos desenvolvidos. Ao contrário da indústria elétrica ou do automóvel, onde a inovação era abundante mas o formato básico permaneceu o mesmo, o negócio da máquina falante sofreu a rivalidade de sistemas tecnológicos completamente diferentes: cilindro versus disco, disco versus fita, e acústico versus reprodução elétrica34 (MILLARD, 1996, p. 124, grifo nosso).

Por sua vez, tomando como viés de análise a correlação entre consumo de discos e cenas

musicais, teremos outro arco cronológico de formação e expansão da indústria

fonográfica. O rádio, o cinema, o jazz e o rock’n’roll serão associados a cada período de

desenvolvimento da indústria fonográfica. Por volta de 1920, o rádio começava seu

processo de popularização nos Estados Unidos através das primeiras transmissões

públicas. Vamos notar, ao longo de sua história, que o rádio será responsável pela criação

de um novo mercado para a música, oferecendo uma descentralização/capilaridade na

distribuição de obras musicais e promovendo um alargamento dos repertórios ao oferecer

uma diversidade jamais vista. Tratava-se, assim, do primeiro processo de transmissão

massiva de música gravada, corroborada pelas vendas de gramofones.

Já em 1921, a indústria fonográfica sinalizava seu potencial econômico ao estabelecer a

marca de cem milhões de discos produzidos no ano (MUGGIATI, 1973, p. 53).

Entretanto, esta curva ascendente fora interrompida pela grave crise econômica de 1929,

representada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. Neste período, o cinema

começava a utilizar o áudio, inicialmente através de discos, e, posteriormente, no próprio

filme (o início da “era elétrica”, segundo MILLARD, 1996, p. 7). Surgia, então, a RKO

Radio Pictures, que pode ser entendida como um dos primeiros conglomerados de mídia,

aglutinando negócios em rádio, cinema, discos e entretenimentos diversos.

34 Tradução livre do trecho: “The industry of recorded sound was a high-tech arena in which business organizations competed with one another to improve the reproduction of sound. The history of this struggle is essentially one of competing technologies, in which constant innovation brought forth and new improved products. Unlike the electrical or automobile industry, where innovation abounded but the basic format remained the same, the talking-machine business experienced the rivalry of completely different

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A segunda etapa do período de expansão da indústria do disco, ainda no viés do

consumo, vai ser caracterizada pela junção do advento da música no cinema nas décadas

de 1930 e 1940 e da multiplicação de jukeboxes como uma alternativa à música executada

no rádio, despertando o interesse por novos artistas. Outro vetor importante de difusão

de discos era a emergente indústria de Hollywood35. Aliás, o desenvolvimento das

tecnologias de gravação de áudio foi resultado da difusão de idéias e técnicas entre

realizadores de filmes e gravadoras, conforme Millard36.

Porém, a década seguinte será especialmente marcada pelo advento do rock’n’roll, gênero

musical caracterizado pela fusão entre a “black music” e a “country music”, estilos marginais

até então. Uma nova onda de consumidores se formava entre os jovens, favorecendo a

produção de discos em larga escala, cujo período foi decisivo para a configuração da

música popular. Conforme descreve Shuker (1999, p. 280), “no início dos anos de 1950,

a transição do Tin Pan Alley para o rock’n’roll refletiu mudanças demográficas, sociais e

culturais importantes da sociedade americana”. A magnitude deste período também é

assinalada por Lull:

A década de 1950 é muito mais que uma era na história de música popular. É um reconhecido, distinto e romântico espaço cultural. Estilos característicos de roupa, dança, linguagem e relações de gênero são, entre os aspectos culturais, associados à era original do rock and roll (LULL, 2000, p.175)37.

Período de grandes transformações, a música lhe servirá de trilha sonora através de

grandes manifestações musicais, do surgimento de artistas reconhecidos mundialmente,

da configuração do rock and roll enquanto um “produto da cultura de massa”. Os países

mais industrializados, neste período, irão demonstrar um rápido crescimento na venda de

discos e o fonograma se transformará, como afirma Burnett (1996, p. 44), num suporte

technological systems: cylinder versus disc, disc versus tape, and acoustic versus electrical reproduction” (MILLARD, 1996, p.124). 35 Vale lembrar que a televisão foi ao ar, pela primeira vez, em 1936, numa transmissão da BBC de Londres. A primeira demonstração do aparelho, porém, ocorreu em 1927, realizada pelo físico escocês John Longie Baird. 36 Ibid., p. 7. 37 Tradução livre do trecho: “The Fifties is much more than an era in the history of popular music. It is a recognized, distinct, and romanticized cultural space. Characteristic styles of dress, dance, language, and

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estabelecido para a difusão de músicas.

Burnett (1996) também reconhece que o terceiro período de expansão da indústria

fonográfica tem início no final da década de 1950, onde o crescimento das vendas de

discos foi bastante considerável. Cabe elencar alguns aspectos que favoreceram este

contexto: a) a maior capacidade de armazenamento de músicas no disco de vinil — que se

firmava como um suporte padrão no mundo inteiro; b) o foco dos estúdios de Hollywood

na audiência jovem; c) o desenvolvimento da televisão enquanto um suporte de

entretenimento caseiro. Formava-se, assim, um círculo sinérgico entre música, rádio,

cinema e televisão, modelando um cenário que permanece singular até os dias de hoje.

Isto significa dizer que a evolução da indústria fonográfica dependerá, necessariamente,

do desenvolvimento concomitante destes elementos da cultura de massa.

Vogel (1998) também identifica as décadas de 1950 a 1970 como o período de expansão

da indústria fonográfica. O final da década de 1970, porém, vai registrar a interrupção

deste crescimento, onde o mercado parecia apontar para um processo de estabilização de

consumo e produção de discos. Provavelmente um refluxo que antecedia as

transformações dramáticas na esfera da música pop nos anos seguintes a partir da era

digital (do CD e das novas tecnologias).

2.2.3. Os suportes e formatos de gravação

Como decorrência da criação do fonógrafo e do gramofone, começava uma história

paralela dos formatos de gravação e reprodução de áudio. A enorme lista de suportes

comporta o disco de vinil, a fita cassete, o compact disc, os recentes formatos digitais de

áudio, entre outros. Os diversos formatos de gravação e reprodução de músicas

favorecem, em boa medida, o surgimento de novas formas de produção musical.

Obviamente, cada suporte estabelecia padrões e limites para a música popular através de

um processo histórico de oferta e demanda, de negociação junto aos públicos, de testes de

formatos e evolução tecnológica. Por exemplo, podemos verificar, historicamente, a

gender relations are among the cultural features associated with the original rock-and-roll era” (LULL, 2000,

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relação direta entre a evolução da capacidade de armazenamento de músicas no disco de

vinil e o aumento no consumo deste formato. Vale afirmar, também, que a própria

duração de uma canção popular — geralmente situada entre três e três minutos e meio —

obedece a um processo histórico de adequação do “tamanho da música” e de sua

“topologia” (introdução, voz, solo, desfecho).

Os formatos de gravação e reprodução de música são fundamentais à análise da música

popular, pois “fornecem dados empíricos para os estudos históricos sobre os ciclos

mercadológicos, mudanças de gosto dos consumidores e oportunidades de mudanças para

os músicos” (SHUKER, 1999, p. 135). Podemos notar que, no processo de evolução da

indústria do disco, cada formato de gravação irá projetar um conjunto de aspectos

econômicos e culturais específico. No que diz respeito ao consumo e à recepção, veremos

transformações significativas no comportamento dos ouvintes a cada mudança de

suporte. Ou seja, o simples processo de atualização dos sistemas de reprodução musical já

garante uma mudança extraordinária de uma “cultura fonográfica”38. A formação de

públicos, gêneros e cenas musicais também dependerá, em boa medida, da capacidade de

difusão de obras e canções, na qual cada suporte terá maior ou menor grau de assimilação

entre os consumidores. O marketing agregado a cada suporte exerce grande influência

junto ao público. Note-se, por exemplo, a moda atual no consumo de discos de vinil,

formato obscurecido pelo surgimento do CD na década de 1980 e em franca decadência

de consumo desde então.

Os avanços tecnológicos irão acelerar a disputa entre as companhias, tendo a tecnologia

de gravação e reprodução como pano de fundo. Entretanto, será na quantidade de

músicas que cada disco pode comportar que residirá o desenvolvimento dos formatos,

embora uma melhor qualidade de gravação também estivesse no horizonte das pesquisas.

A Columbia, a RCA-Victor — empresa resultante da fusão, em 1929, entre a Radio

Corporation of América e a Victor Record Company — e a Decca tomarão a dianteira nas

batalhas pela tecnologia de reprodução musical. Na década de 1930, o disco de ebonite

de 10 polegadas, com 78 rotações por minuto (rpm), apresentava-se como o formato

p.175). 38 Veremos no capítulo V, por exemplo, a dramática transformação operada pela tecnologia digital ao envolver músicos e ouvintes através das redes de comunicação mediadas por computadores.

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padrão. A RCA-Victor, por sua vez, recusava-se a adotar um padrão comum à Columbia,

desenvolvendo um disco de vinil de 7 polegadas, de 45 rpm. Após alguns anos de disputa

entre os formatos e velocidades de reprodução (o que será denominado de “guerra das

velocidades”39), as companhias chegaram a um acordo para a produção de ambos os

formatos40. A Columbia foi responsável pela criação do “long play” (LP), disco de vinil de

alta qualidade de reprodução sonora para a época. Em 1948, a mesma empresa

desenvolveu o LP de 12 polegadas, com 33¹/³ rpm.

As mudanças significativas que ocorreram na indústria da música naquele período já

apontavam para a formação de um processo de concentração econômica que caracteriza o

mercado fonográfico até os dias de hoje. Entre 1948 e 1949, RCA, Decca, CBS e Capitol

lançaram mais de oitenta por cento dos artistas mais ouvidos (GAROFALO, 1996, p.98).

Este período de expansão, conforme visto anteriormente, vai atravessar três décadas de

crescimento constante na produção e no consumo de discos. O rock’n’roll assume a

condição de mais influente estilo musical do século XX, repercutindo em diversos

aspectos socioculturais, econômicos e políticos (MUGGIATI, 1973). A própria música

popular irá se imiscuir com o fenômeno, sendo, muitas vezes, confundida com o

rock’n’roll. A internacionalização das cenas culturais, sobretudo no âmbito da música,

será uma decorrência direta da popularização de inúmeros artistas de rock, cuja origem se

deve às companhias independentes de disco da década de 1950. Nomes importantes

como Elvis Presley, Buddy Holly, Chuck Berry e, posteriormente, Beatles, Rolling Stones,

David Bowie, entre incontáveis artistas, revezar-se-ão nas chamadas “paradas de discos”,

representando, desde então, a relação entre rock, cultura de massa e avanços tecnológicos.

O disco de vinil — que comporta os formatos de 7, 10 e 12 polegadas (compacto, EP — do

inglês “extended play” — e LP, respectivamente) aglutinou as características de um produto

da cultura de massa, tendo o LP se transformado no formato de maior circulação do

mercado fonográfico até a década de 1970. A despeito do longo debate acerca da

qualidade e durabilidade do CD, o LP transformou-se num item raro para colecionadores

ou especialistas em determinados tipos de música, sobretudo para os DJ´s41. Já a chamada

39 Cf. Schoenherr (2002). 40 Cf. Shuker (1999, p.135). 41 Ver Brewster e Broughton (1999).

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“cultura do cassete” (MILLARD, 1996, p.6) teve seu ápice a partir de 1977 — quando a

indústria celebrava o centésimo aniversário do fonógrafo. Neste mesmo ano, um projeto

de pesquisa no Japão começava a esboçar uma nova etapa para a música popular e para a

cultura contemporânea como um todo: a era digital.

A década de 1980 será o período da retomada nas vendas do disco, representada pelo

advento do compact disc, introduzido em 1982 a partir do esforço conjunto das

companhias Philips e Sony. Inaugurava-se, então, a “era digital” de gravação e reprodução

de áudio, ao que Frith (2001, p.32) se refere como “a terceira revolução no

armazenamento musical”42. Rapidamente — se comparado à história do LP —, o CD irá

substituir o disco de vinil e, cerca de dez anos após seu surgimento, o compact disc vai

dominar quase que completamente as vendas, juntamente com a fita cassete. O produto

era visto como uma novidade, despertando o interesse de consumidores por artistas novos

e antigos. As gravadoras também ofereciam uma renovação de seus catálogos através do

relançamento de títulos antigos no formato digital.

A fase digital da indústria fonográfica projeta uma preocupação maior das companhias de

disco com a qualidade de gravação e reprodução de músicas. Sob o pretexto do avanço

tecnológico que domina os discursos publicitários e econômicos do período, haverá uma

rápida migração da produção industrial de discos de vinil para o CD. A relação analógico

vs. digital começava a esboçar uma dicotomia que podia ser expressa, também, na relação

antigo vs. moderno. É possível verificar em alguns CD´s a classificação dos formatos

analógico (A) e digital (D), de acordo com os processos de gravação, mixagem e

reprodução. Por exemplo, um disco com o rótulo “AAD” significa que fora gravado e

mixado em padrões analógicos e masterizado43 em tecnologia digital. Já um disco com o

rótulo “DDD” significa que foi gravado, mixado e masterizado em suportes totalmente

digitais44. Veremos, no capítulo IV, a história recente das tecnologias de áudio digital de

uma maneira mais detalhada.

42 Para Frith (2001), três etapas circunscrevem a história do armazenamento da música: a combinação de notação musical com a imprensa, a tecnologia de gravação através de discos e cilindros e a tecnologia digital propriamente dita. 43 A masterização é o processo de equalização de volumes, freqüências e efeitos das músicas gravadas, gerando uma peça matriz para a reprodução em série de discos. 44 Para um detalhamento destes aspectos técnicos, ver Pizzotti (2003).

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2.3. A INDÚSTRIA FONOGRÁFICA E A CADEIA DE PRODUÇÃO MUSICAL

O eixo de análise da música popular pode ser desdobrado em diversos aspectos, os quais

apontam, grosso modo, para um fenômeno massivo, político, social, econômico, cultural. A

cultura de massa, enquanto um elemento difusor de artistas e cenas musicais, corrobora a

dinâmica da produção da música popular, baseada no excesso e na efemeridade, mas

também na diversidade, na segmentação e na popularização. Assim, parece-nos bem

adequado que, no espectro de estudo da música popular, haja uma associação direta entre

produção industrial e cultura de massa.

Por sua vez, o conjunto compreendido como “indústria fonográfica” é resultante da

convergência de aspectos culturais, econômicos, políticos e tecnológicos. Estes elementos

emprestaram, nos últimos cinqüenta anos, uma série de contribuições à configuração

deste complexo conjunto. Assim, “fazer, produzir e ouvir música” obedece, em certo

sentido, a um expediente que se desenvolveu no interior da cultura de massa que, desde a

década de 1950, estruturava um modelo, ao mesmo tempo, popular e totalizante. À

época, suas principais categorias já se colocavam à mostra, tendo como suporte um estilo

musical de amplo apelo popular:

O que quer se diga sobre o rock'n'roll, no início da década de 1950, o surgimento de artistas afro-americanos no mercado, gravando o rhythm and blues por gravadoras independentes, mudou todas as regras da indústria da música de cabeça para baixo - especialmente aquelas relativas ao artista e repertório, técnicas de gravação, estratégias de marketing, distribuição nacional e preferência de consumo45 (GAROFALO, 1996, p. 98).

Estas “regras” ainda organizam os modos de produção e consumo da música popular,

ainda que tenhamos mudanças significativas do ponto de vista dos suportes de gravação e

reprodução, dos meios de comunicação, dos estilos musicais, da sociedade como um

todo. Se Alexander Goehr (1990, p. 125) sugere uma topografia e uma política para a

45 Tradução livre do trecho: “Whatever else may be said about rock'n'roll, in the early 1950s, the appearence in the mainstream market of African American artists recording rhythm and blues for independent labels turned all the rules of the music industry - especially those concerning artist and repertoire, recording techniques, marketing strategies, national distribution, and consumer preference- upside down”

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música — aproximando-a de um modelo comunicacional46—, buscamos aqui detalhar o

que chamamos de “cadeia de produção musical”, no sentido de complexificar as

propostas de análise da estrutura de produção da música popular, geralmente associadas

ao tripé produção–distribuição–consumo. Assim, requisitamos, para esta análise, um viés

essencialmente comunicacional, sem perder de perspectiva as dimensões econômicas e

culturais do processo.

2.3.1. A Cadeia de Produção Musical

A cadeia de produção musical circunscreve uma série de processos e atores, ora se

aproximando de um modelo industrial rígido, ora assumindo as especificidades de um

sistema flexível e autônomo de difusão cultural, como será discutido adiante. Para o

momento, esforçamo-nos em viabilizar o estudo da arquitetura desta cadeia baseado nas

suas competências e atribuições ante um sistema de economia de mercado. O conjunto

de atores, processos e ambientes pode conformar um panorama do processo de produção

musical, como descrevemos na Figura 01. Este quadro também serve de descrição do

percurso desenvolvido pelos artistas, da criação até a sua inserção no mercado

fonográfico.

(GAROFALO, 1996, p. 98).

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46 Conforme descrito no capítulo 1 deste trabalho.

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No pólo de criação, de acordo com a figura proposta, encontramos os compositores e

autores de músicas e letras, arranjadores, intérpretes, músicos e produtores musicais, os

quais vêm adquirindo o status de “autores”47 nos últimos anos. Este conjunto sempre

esteve associado ao processo “nobre” da composição e autoria, embora as gravadoras

demonstrassem amplo desejo pelos famosos “hitmakers”, isto é, aqueles compositores

capazes de produzir músicas de amplo apelo popular. Na cadeia de produção musical,

verificamos que o processo de criação passou a ser secundário diante das possibilidades de

edição, resgate de obras, sampling e re-apropriação, como de praxe na cultura de massa.

Por sua vez, o que chamamos de “campo da mediação” (localizado no campo inferior do

quadro) será responsável pela facilitação dos aspectos técnicos, operacionais,

administrativos e comunicacionais do processo de produção na música popular.

Subdivididos em “campo da mediação técnica-administrativa-jurídica” e “campo da

difusão mediática” propriamente dita, estes elementos são representados por: a)

engenheiros de som, técnicos, estúdios, gravadoras, editoras musicais, distribuidores,

lojas, fábricas de discos, agentes, empresários; b) rádio, cinema, televisão, publicidade,

videoclipe, divulgadores, espetáculos, entre outros. No campo da recepção e do consumo,

localizam-se os processos de reprodução e audição, através do público consumidor. Este

consumo se estende, também, aos produtos correlatos da música popular, como

acessórios, equipamentos eletrônicos, além de roupas e peças inerentes à moda. Há,

ainda, uma zona de interinfluência capaz de integrar jornalistas, críticos musicais e artistas

num processo sinérgico de difusão de obras e cenas musicais.

O que estamos propondo, aqui, é que, a partir do fenômeno de digitalização e difusão de

músicas pela Internet, presenciamos uma ruptura deste processo, onde a cadeia de

produção musical parece ruir diante do novo contexto. Ao menos neste momento central

de apropriação das tecnologias de áudio para a Internet, veremos uma fragilização de

diversos conectores desta cadeia, bem como a vulnerabilidade de instâncias e de seus

“atores” tradicionais. Antes, porém, tomemos a perspectiva econômica como mais um

subsídio para nosso estudo.

47 Acerca da posição do autor na música popular, ver o capítulo VI.

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2.3.1.1 A economia da música popular e o contexto da indústria fonográfica: estrutura, alcance e

ingerência.

Um dos aspectos mais importantes de análise da música popular reside nas suas categorias

econômicas. Inúmeros trabalhos elaborados por Attali (1977), Vogel (1998), Negus (1992,

1996), Martin (1996), Compaine e Gomery (2000), Turow (1991), Longhurst (1995),

entre outros, demonstram a complexidade da cadeia de produção musical e de sua

dimensão mercadológica. Seu caráter sistêmico sugere angulações diversas, como

produção e consumo, análise de formatos e projeções de vendas de unidades, formação

de mercados secundários, execução de músicas e recolhimento de royalties, entre outros.

Dolfsma (2000, p.2) assinala, por exemplo, que, além de efeitos culturais, a música

popular tem efeitos econômicos importantes, ocupando cerca de cinqüenta por cento da

indústria do disco e apresentando-se como o conjunto mais expressivo do setor.

Como demonstra o economista David Throsby (2002, p. 14), o mercado musical também

assume grande responsabilidade no desenvolvimento econômico de alguns países. A

produção musical pode gerar riqueza a partir de shows e festivais, difusão local e nacional

e, eventualmente, alguns artistas alcançam o mercado internacional de música,

promovendo a cultura local. Compreender a música enquanto uma “mercadoria” — o que

geraria uma polêmica de grandes proporções entre os artistas, ainda que estes estejam

submetidos a uma lógica de mercado —, segundo Throsby (1998), pode ampliar sua

avaliação de uma forma de expressão cultural para, também, um meio de

desenvolvimento econômico.

Para este estudo, então, interessa-nos a relação entre estes aspectos gerais da indústria

fonográfica e o fenômeno da difusão de músicas pela Internet, pois, conforme descrito na

apresentação, há mudanças significativas neste conjunto. Cabe-nos delimitar, antes, a

noção de “indústria” que mantém relação direta com os media e, em especial, com a

música popular. Para Turow,

Uma indústria é um conglomerado de organizações que trabalham juntas, de maneira regulamentada, para criar e distribuir produtos ou serviços. Por exemplo, nós temos uma indústria do jornal, uma indústria da revista, uma indústria do outdoor e uma indústria do livro. Estas indústrias são constituídas

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de organizações que estão envolvidas em fases diferentes da produção e distribuição de múltiplas cópias das mensagens48 (TUROW, 1997, p. 12).

No conjunto da música popular, podemos verificar que há uma organização própria em

torno da fabricação industrial de discos, numa dependência clara entre produção em

larga escala e consumo. Ou seja, a maximização dos lucros das grandes companhias do

disco está submetida, entre outros aspectos, a um processo industrial de fabricação e

distribuição de “mercadorias”, a exemplo de outras indústrias tradicionais.

No âmbito da música, as grandes gravadoras projetam atividades que vão além do simples

processo de gravação e venda de discos. Elas aglutinam, também, os processos de edição

de obras musicais, controle de royalties e direitos autorais, de distribuição, divulgação,

marketing, comercialização e, em inúmeros casos, de agenciamento dos artistas. A

polarização destas atividades na órbita das gravadoras vai criar um monopólio de alcance

mundial, sobretudo no que diz respeito à distribuição de discos, fitas, CD´s e vídeos. Daí

a criação de um processo sinérgico na difusão de artistas, acesso aos meios de

comunicação, ações mundiais e, ao mesmo tempo, localizadas. Trata-se de uma espécie de

“glocalização” da música popular.

Esta concentração de atividades sugere um perfil refratário destas companhias, onde a

dinâmica efêmera do mercado fonográfico baliza a escolha dos artistas, a definição de

nichos de mercado, as estratégias de marketing e divulgação, os relacionamentos com os

meios de comunicação etc. O caráter corporativo é, sem dúvida, acentuado pela

composição da IFPI — International Federation of the Phonographic Industry —, associação

sediada em Londres e responsável pela representação de gravadoras e selos musicais em

todo o mundo, agregando cerca de 1.500 empresas em mais de setenta países49. Como

bem aponta Burnett (1996, p. 17), as gravadoras possuem uma rede internacional de

48 Tradução livre do trecho: “An industry is a conglomeration of organizations that work together in a regulated fashion to create and distribute products or services. For example, we have a newspaper industry, a magazine industry, a billboard industry, and a book industry. these industries are composed of organizations that are involved in different phases of producing and distributing multiple copies of the messages” (TUROW, 1997, p. 12). 49 Para uma descrição completa da IFPI (dados estatísticos, empresas associadas, estimativas de lucro etc.), visitar o site <http://www.ifpi.org>. Associações similares se reproduzem em vários países, como a RIAA

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cooperação formando um “lobby” de amplo alcance, estabelecendo, inclusive, relações

com outros órgãos internacionais, como as organizações de controle de direitos autorais.

Baseadas numa economia de grande escala na produção e distribuição de discos, as

gravadoras são capazes de lidar com inúmeros mercados segmentados ao mesmo tempo,

definindo nichos de vendas bem como políticas de preços. Uma simples análise do elenco

de cada grande gravadora registrará uma gradação similar de estilos entre elas, que vai do

rock ao hip hop, da música romântica ao reggae. Ou seja, aqui também está presente a

noção empresarial da pulverização de investimentos em “diversos produtos”, diluindo-se

os riscos e buscando explorar os segmentos mais exitosos. A reprodução de discos em

larga escala reduz, drasticamente, os custos com: produção musical; honorários de artistas,

músicos, intérpretes, arranjadores; processos de mixagem e masterização; fabricação e

distribuição dos discos; gastos com publicidade — atualmente, o maior orçamento no

processo de “lançamento” de um artista ou na divulgação de discos.

As grandes gravadoras possuem uma estrutura altamente hierarquizada, verticalmente

estabelecida. As companhias são configuradas em diversos setores, onde a

departamentalização sugere a noção de fordismo sob o ponto de vista da cadeia de

produção industrial de discos. Isto implica uma ressignificação da própria idéia de

produção musical, através de uma visão essencialmente empresarial da música, onde a

noção de que a obra não passa de um produto a ser formatado, embalado, comunicado e

comercializado é recorrente. Assim, a histórica relação mercado X arte parece atingir o

limite das imbricações no campo da música popular. Numa breve análise mercadológica,

o desenvolvimento de um determinado segmento musical pode ter relação com a prática

econômica historicamente estabelecida da exploração de recursos à exaustão, levando ao

esgotamento de recursos pela não-renovação. Contudo, a idéia do pós-fordismo — a

superação das formas tradicionais de organização da produção industrial — parece

adequar-se bem às grandes companhias de discos através da especialização flexível e do

marketing agressivo50.

(Recording Industry Association of America), IFPI Latin America (antiga FLAPF — Federación Latinoamericana de Productores de Fonogramas y Videogramas), ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos) etc. 50 Cf. Vogel (1998); Frith (1996).

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Ao longo das últimas décadas, as gravadoras representavam o horizonte último do artista,

exatamente por oferecer uma estrutura “cômoda” que vai da gravação à difusão e venda

de discos. Os adiantamentos financeiros também servem como pólos de atração para os

artistas, e são comuns — no mercado fonográfico — as grandes negociações entre artistas e

gravadoras51. Por outro lado, a indústria fonográfica possui uma relação direta com a

propriedade intelectual e direitos autorais, dependendo destes elementos para a

manutenção de suas atividades econômicas. Veremos, no capítulo 6 que, durante a

década de 1990, a indústria fonográfica vai deslocar seu objeto de receita das vendas de

discos para a cobrança de royalties e direitos autorais.

2.3.1.2. Gravadoras independentes, apropriação tecnológica e alternância de estilos musicais

Um fenômeno particular na esfera da música popular pode ser delimitado pelas

gravadoras independentes ou “selos”. Geralmente organizadas por fãs de determinados

estilos musicais, as gravadoras independentes são o resultado, por um lado, da

insatisfação com o mercado fonográfico estabelecido (comumente conhecido no meio

pelo termo “mainstream”) e, por outro, do barateamento do processo de gravação e

reprodução de discos. Inúmeros artistas, sobretudo a partir do movimento punk, irão

trilhar o percurso independente na tentativa de alcançar maior autonomia sobre suas

carreiras. Este percurso vem sendo mediado por pequenas companhias de discos, que

lidam de forma mais rápida na prospecção dos artistas e na difusão segmentada dos

mesmos:

As companhias independentes de gravação, ou "indies" como são chamadas freqüentemente, são, via de regra, operações relativamente de pequena magnitude que normalmente surgem e tentam operar fora das instituições estabelecidas da indústria de música52 (KRUSE, 1995, p. 191).

51 Reportamo-nos, aqui, aos artistas m início de carreira, os quais desenvolvem estratégias diversas na busca por uma gravadora. A “fita demo”, por exemplo, serve como “demonstração” (em fita cassete) do trabalho de um determinado artista em início de carreira. Hoje substituída pelo CD-R (compact disc “gravável”) ou pelo MP3, a gravação de uma “demo” representa o primeiro passo de um artista em direção à divulgação do seu trabalho, quando sua música (ou o CD-R) pode ser enviada a gravadoras, divulgadores, rádios ou ao público em geral. Cf. Oliveira e Lopes (2002). 52 Tradução livre do trecho: “Independent record companies, or "indies" as they are often called, as a rule are relatively small scale operations that usually originate and try to operate outside of the established mainstream institutions of the music industry” (KRUSE, 1995, p. 191).

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A música pop, mais especificamente o rock’n roll (presente desde o movimento intelectual

beatnik), que foi emprestado à contracultura e serviu de trilha sonora às grandes

transformações sociais celebradas pelos jovens nos anos 60, ganhou um novo alento com

o movimento punk na virada da década de 1970 para 1980. Se o rock’n’roll introduziu

mudanças expressivas na década de 1950, o movimento punk irá redimensionar a música

popular como um todo: do comportamento dos jovens às publicações editoriais; da

subversão dos padrões do mercado fonográfico à explosão do surgimento de fanzines; da

ressignificação dos espetáculos musicais à assimilação do “visual punk” pela indústria da

moda.

Em linhas gerais, o movimento punk introduziu uma nova relação dos jovens com a

música, isto é, com o processo de criação, gravação e veiculação da mesma. O lema “do it

yourself” (“faça você mesmo”) traduz bem a noção de um processo no qual o artista deveria

se apropriar de todas as etapas inerentes ao seu trabalho. Numa radicalização do espírito

alternativo da contracultura, o movimento fomentava a fabricação quase artesanal de

discos, a distribuição e venda informais destes, a realização de espetáculos em locais

pequenos, a denúncia de uma indústria musical ofuscada por seus vetores comerciais, a

divulgação de artistas obscuros, a edição de fanzines como uma resposta à burocracia das

grandes publicações e como instrumento capaz de dar conta do universo underground de

uma maneira mais imediata, eficiente e adequada, o engajamento político apenas através

do anarquismo.

Etapa fundamental na história da cultura pop e repercutindo ainda na moda, no cinema

e nas artes em geral, o movimento punk foi também rapidamente assimilado pela

indústria da música, encontrando nele um novo fôlego para o já saturado mercado

fonográfico. O movimento punk articulava, então, a sedimentação do projeto

underground53 na esfera da música ao reunir, através de seus ideais, artistas, tribos urbanas

de jovens sem perspectivas, desempregados ou inconformados com as instâncias sociais

vigentes (MARTIN, 1996, p. 262). A ruptura instaurada por aquele movimento

contribuiu ainda mais para o embate entre a cultura alternativa e o establishment, já que ia

53 Conforme BANDEIRA, 1999.

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de encontro aos preceitos da indústria da música e seus componentes correlatos (revistas,

programas de TV, rádios etc.).

No final da década de 1980, a explosão da música tecno, do hip-hop e da world music

renovou o cenário musical mundial, tanto do ponto de vista artístico quanto comercial

(GUIBERT, 2000). Novas cenas musicais se apresentaram desde então, alternando estilos

e modelos diferenciados, sempre baseados no jogo de difícil delimitação de

interinfluência de público e mercado. A simples identificação dos estilos já demonstra

esta dificuldade. Há, atualmente, uma discussão em torno das categorias musicais que

servem de classificação para os artistas. Os gêneros musicais — termos largamente

explorados por críticos de música para definir, comparativamente, as obras e estilos —

sofrem de grandes questionamentos, pois estão situados entre a dificuldade de

delimitações estéticas adequadas e a sedução de categorizações mercadológicas

circunstanciais.

Desta maneira, a indústria fonográfica engendrou uma concentração singular de

estruturas para a produção da música popular que vai da criação artística propriamente

dita à fase de consumo e fruição das obras musicais. Intermediárias no processo de

produção musical, as gravadoras ainda contam com extensões como o “show business”, o

glamour dos grandes eventos, a espetacularização. As relações entre artista, público,

gravadoras e meios de comunicação também modelam o funcionamento de boa parte da

indústria do disco. Vale lembrar, porém, que apenas uma parte da música popular é

contemplada pela cadeia de produção musical, ficando boa parte deste conjunto

reservada à produção independente que não atinge o mercado fonográfico. Isto vai

corroborar a ruptura desta cadeia pela apropriação das novas tecnologias por artistas,

músicos e fãs.

Cabe-nos, por fim, uma última discussão acerca da posição da indústria fonográfica no

contexto das indústrias culturais.

2.3.2. A indústria cultural e o mercado fonográfico: o predomínio da variante

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mercadológica sobre a cultura

A efervescência dos aspectos comunicacionais massivos no século XX foi acompanhada

por uma série de estudos e correntes teóricas. Inúmeros estudiosos se debruçaram sobre

dos fenômenos emergentes, onde o cinema, o mercado editorial, o disco, a fotografia,

entre outros, receberam importantes registros históricos de análises. Particularmente, as

contribuições de Adorno (musicólogo e filósofo, vale lembrar) são peculiares para o

contexto histórico dos estudos da Comunicação e para o próprio trabalho, onde a música,

notadamente, recebeu especial atenção, seja através de uma análise dialética, seja na

perspectiva da cultura de massa, como vimos no capítulo I. Este eixo é fundamental para

a associação entre música popular e os conceitos diversos como indústria cultural,

indústrias culturais, indústrias do entretenimento.

Adorno vai mobilizar todo o seu conjunto de articulações teóricas em torno da condição

da cultura, numa lógica difusa entre produção e consumo que se estabelece a partir dos

sistemas massificadores de bens culturais. Precisamente, sua atenção se volta para os

novos conceitos de bem cultural (o rádio e seus programas; o mercado editorial e seus

livros, revistas e jornais; o cinema e seus filmes). Entretanto, é na capacidade de

estandardização de conteúdos destes “emissores” junto ao campo da recepção que

Adorno e a própria Teoria Crítica da Comunicação vão centrar sua análises.

A Teoria Crítica — refutando as teorias convencionais e representando uma contraposição

à communication research em relação à abordagem “administrativa” — está associada a uma

crítica ao sistema de economia de mercado, detendo-se nos fenômenos estruturais da

sociedade contemporânea: o capitalismo e a industrialização. O termo indústria cultural

foi utilizado pela primeira vez por Adorno e Horkheimer na “Dialética do Iluminismo,

fragmentos filosóficos” (de 1947), em substituição ao termo cultura de massa, pois a nova

designação refletia a junção dos aspectos culturais com os sistemas industriais de

reprodução. O antagonismo assinalado por Adorno entre os produtos da indústria

cultural e a cultura erudita vai marcar seus estudos de maneira significativa, o que,

certamente, obstruiu-lhe a perspectiva de verificar na cultura popular importantes

elementos para uma melhor compreensão da sociedade contemporânea.

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Numa análise acerca dos efeitos da criação do fonógrafo e dos contextos sociais daí

provenientes, McLuhan demonstra, contudo, que

Talvez não seja muito contraditório dizer que quando um meio de comunicação se torna um meio de experiência em profundidade, as velhas categorias — “clássico” e “popular”, “erudita” e “popular” — já não têm razão de ser (MCLUHAN, 2003, p.317).

É neste sentido que podemos assinalar a complexidade oferecida pela indústria do disco e

da música popular. Se, por um lado, a efemeridade e a fluidez caracterizam a música

popular nos seus flagrantes regimes de alternância e similaridade entre os “produtos”, por

outro, o acesso a obras diversas e a popularização de obras “canônicas” vão operar

mudanças expressivas nas culturas. Para Bourdieu (1979, p.17), o gosto musical define

claramente uma classe social, o que pode ser aferido pelos estilos musicais, freqüência a

espetáculos ou o consumo de discos de um determinado grupo. Ou seja, há uma

associação direta entre preferências musicais, modos de consumo, gostos culturais e

classes sociais. A indústria cultural, então, vai equalizar estes elementos num mesmo eixo

de funcionamento, com fronteiras pouco perceptíveis diante da ampla oferta.

A economia política da comunicação vai nos legar uma importante análise das estruturas

específicas das chamadas “indústrias culturais”. Desenvolvendo-se na década de 1960, esta

corrente vai se debruçar, inicialmente, sobre a disparidade dos fluxos da informação e

produtos culturais entre os países. Para a música popular, veremos que suas contribuições

são fundamentais, como afirma Shuker (2003, p. 98): “a economia política tem sido um

aspecto central de análises de operação da indústria de música, especialmente as

gravadoras”54.

A partir da segunda metade da década de 1970, veremos o surgimento de um novo foco

da economia política de comunicação, onde a discussão em torno das “indústrias

culturais” — e não mais “indústria cultural” — será centralizada pela escola francesa. A

54 Tradução livre do trecho: “Political economy has been a central feature of analyses of the operation of the music industry, especially its sound recording companies” (SHUKER , 2003, p. 98).

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passagem do singular ao plural, lembra-nos Mattelart (2000, p. 113), “revela o abandono

de uma visão demasiado genérica dos sistemas de comunicação”. Está em jogo, aí, o

desequilíbrio entre o processo de internacionalização dos mercados e as políticas

governamentais de democratização cultural.

2.3.3. A transnacionalização das companhias do disco

O rápido crescimento nas vendas de discos das primeiras décadas do século XX

antecipava a dependência da produção musical do perfil mercadológico tão característica

do nosso tempo. Assim, a música popular atende aos preceitos estabelecidos pela

Indústria Fonográfica (SHUKER, 1995), um segmento criado a partir do êxito da música

popular e responsável pela reprodução industrial, comercialização e difusão de produtos e

obras musicais através de diversos formatos (discos de vinil, cassetes, fitas de vídeo e, mais

contemporaneamente, compact-disc, digital video disc etc.). Desta forma, o contexto da

música popular (a música pop, num cenário característico do nosso século) é subjacente à

constituição da indústria do disco. Podemos afirmar, então, que a música pop é feita,

exatamente, para ser reproduzida, para o consumo em massa.

As grandes gravadoras — também denominadas de “majors” — são quase que onipresentes

em todo o mundo, representadas, principalmente, pelas companhias Warner Music

(EUA), Sony Music (Japão), BMG (Alemanha), EMI (Reino Unido) e Universal (França),

esta última, fruto da fusão com a holandesa Polygram. O mercado fonográfico global

(BURNETT, 1996), composto por estes e outros grandes conglomerados corporativos,

arrecadou, no ano de 1998, um valor estimado em trinta e seis bilhões de dólares,

segundo dados da IFPI. Entretanto, as “big five”, isto é, as cinco maiores companhias

fonográficas supracitadas, possuem maior representatividade na IFPI, bem como no

mercado global da música; basta assinalar que, no mesmo ano de 1998, estas empresas

somaram quase que 80% das vendas mundiais de discos e produtos musicais, enquanto

que companhias intermediárias e independentes foram responsáveis pelo restante das

vendas, conforme podemos ver no gráfico a seguir:

FIGURA 2

A divisão do mercado fonográfico mundial em 1998

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Universal (21,1%)

EMI (14,1%)

Warner (13,4%)

Sony (17,4%)

BMG (11,4%)

Independentes (22,6%)

Fonte: gráfico elaborado a partir dos dados da MBI

55

A análise de Vogel (1998) vai conferir à indústria fonográfica o título de conjunto mais

expressivo do segmento de entretenimento do ponto de vista econômico, com

importantes segmentos relacionados. Se tomarmos como parâmetro o volume total de

negócios da chamada Indústria do Entretenimento56, notaremos a posição privilegiada

ocupada pela Indústria Fonográfica nesse contexto. Vale lembrar, também, que

gravadoras intermediárias ou pequenos selos são representativos nesse setor, atuando de

forma isolada ou através de associações de menor envergadura57. Certamente, os Estados

Unidos lideram este mercado desde o seu início:

Historicamente, a indústria da música se concentrou nos Estados Unidos, com o Reino Unido realizando importantes contribuições artísticas para uma hegemonia anglo-americana da música popular. Este domínio anglo-americano foi reduzido nos últimos anos com a reafirmação do mercado europeu e o surgimento dos conglomerados de mídia japoneses como principais atores na indústria da música (SKUKER, 1995, p. 31)58.

55 Music Business International (MBI, 2000). 56 Turow (1991) aprofunda o conceito de Indústria do Entretenimento associando-o à complementaridade estabelecida entre os meios de comunicação de massa, as tecnologias de difusão e o caráter politicamente dispersivo daqueles meios. Para Vogel (1998), a indústria do entretenimento vem alargando suas atividades, compreendendo segmentos diversos, tais como: indústria fonográfica, filmes, Internet, esportes, jogos e videogames, TV a cabo, publicidade, mercado editorial, produtos multimídia, parques temáticos, performing arts (dança, teatro, ópera) e cultura. De acordo com uma recente pesquisa da PRICEWATERHOUSECOOPERS (2004), a indústria da “mídia e do entretenimento” movimentou 1,2 trilhão de dólares em 2003, número que deve chegar a 1,7 trilhão de dólares em 2008, crescendo a uma taxa de 6,3 % ao ano e, portanto, superior ao crescimento global (5,7%) no período. 57 A Association of Independent Music, sediada em Londres, por exemplo, agrega mais de 400 gravadoras independentes (www.aim.com). No Brasil, a ABMI (Associação Brasileira dae Música Independente) conta com cerca de sessenta empresas associadas (www.abmi.com.br). 58 Tradução livre do trecho: “Historically, the music industry has been centred in the United States, with the United Kingdom making a significant artistic contribution to an Anglo-American popular music hegemony. This Anglo-American dominance has waned inrecent years, with the reassertion of the European market and the emergence of Japanese media conglomerates as major players in the music industry” (SKUKER, 1995, p. 31).

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Estas organizações, contudo, superam as barreiras geográficas. Tomadas enquanto

instituições comerciais, as gravadoras são a personificação da indústria fonográfica.

Presentes em todo o mundo, elas criaram estruturas de articulação e capilaridade que

anteciparam, em muito, a própria noção de globalização, tão comum nos estudos de

economia e sociologia contemporâneos. A ubiqüidade destas organizações é reforçada por

pontos de presença configurados por lojas, agentes, divulgadores, representantes

comerciais, entre outros. Uma pequena quantidade de gravadoras domina cerca de 80%

do mercado mundial de discos. As companhias BMG, EMI, Sony, Warner e Vivendi

Universal se apresentam enquanto organizações transnacionais, atuando em outros

segmentos que não apenas a música: cinema, televisão, imprensa, TV a cabo etc., também

fazem parte do rol de atuação destas empresas (BURNETT, 1992, 1996).

Contudo, podemos aferir a importância deste segmento não apenas através do seu êxito

comercial, mas também pela ingerência exercida em vários outros campos, indo desde as

manifestações populares às narrativas audiovisuais (trilhas sonoras musicais para o cinema

e a televisão), da movimentação do mercado editorial (imprensa musical, livros,

bibliografias, catálogos) à moda internacionalizada (ORTIZ, 1994) — representada por

roupas, acessórios etc. — através do eventual sucesso de cenas musicais. Como afirma

Lévy, “a difusão das gravações provocou na música popular fenômenos de padronização

comparáveis aos que a impressão teve sobre as línguas” (Lévy, 1999, p.138).

De fato, a Indústria Fonográfica não se resume, apenas, às grandes gravadoras, mas diz

respeito a um complexo conjunto formado por gravadoras intermediárias e

independentes, distribuidoras, editoras musicais, estúdios, fábricas de discos, lojas,

imprensa especializada, rádios, programas e emissoras de televisão (tal qual a MTV, Music

Television), entre outros.

Assim disposta, a Indústria Fonográfica articula a veiculação e a difusão de produtos

musicais em quase todo o mundo, assumindo o controle de todo o processo técnico-

artístico: da fase de pré-produção do artista (escolha de músicos, repertórios musicais,

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agenda de lançamentos), passando pela produção técnica (escolha de estúdios, gravação,

mixagem, masterização e prensagem de discos), até a veiculação propriamente dita

(divulgação junto aos meios de comunicação de massa, distribuição dos discos e venda

para as lojas)59.

A transnacionalização das empresas de comunicação e dos conglomerados de mídia

rompeu o predomínio do “imperialismo mediático” sob o comando dos Estados Unidos.

O deslocamento geopolítico das empresas, através da globalização dos meios de

comunicação, imprimiu uma maior diversidade inclusive na propriedade dos meios de

comunicação. Japoneses, europeus e companhias investidoras de conglomerados da

indústria do petróleo dividem o mercado mundial da mídia juntamente com os Estados

Unidos.

Certamente, esta diversidade irá emergir juntamente com os modelos diferenciados de

conteúdos, audiências, regulações e organização, como assinala Hirsch (1992, p. 678).

Para ele, estas questões são essenciais à análise dos media, pois até os formatos de

distribuição de conteúdos e os canais de difusão de cada país serão afetados por esta

pluralidade. A indústria do disco é, portanto, um ótimo exemplo para a análise das

culturas contemporâneas, uma vez que consegue aglutinar eixos de operação tecnológicos,

sociais, econômicos e políticos. A seguir, veremos como este segmento será ordenado no

âmbito do novo contexto sócio-tecnológico.

59 Os chamados artistas independentes — isto é, aqueles que não estão atrelados às grandes gravadoras do mercado fonográfico — assumem por completo todas estas etapas, mantendo um maior controle sobre seu processo de criação. Para uma análise deste contexto, ver BANDEIRA (1999).