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2. Globalização, Governança Global e a Formação de uma Classe Capitalista Transnacional O Século XX chegou ao fim celebrando uma grande articulação entre a Organização das Nações Unidas e o capital transnacional. A finalidade do presente estudo é entender o significado dessa articulação em um contexto histórico mundial marcado pela globalização do capital. Temas usualmente restritos à esfera de responsabilidade dos Estados ou do sistema de Estados foram apropriados pela agenda do capital: segurança coletiva, direitos humanos, desenvolvimento, meio-ambiente, entre outros. Uma colaboração cada vez mais estreita entre as esferas do público e do privado busca garantir os pilares da construção de um mundo “melhor administrado”. Trata-se do processo chamado de governança global. As demandas por aprofundamento e engajamento de atores diversos na governança global resultam da intensa expansão da integração global em vários níveis, sobretudo nas esferas da produção, do comércio e do consumo, nas últimas décadas, e os respectivos impactos de aumento da pobreza e perda de parte da autonomia e da cidadania por parte de indivíduos e grupos em todas as partes do mundo. Ainda que possam ser analisadas de forma fragmentada em seus aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais, entre outros, as transformações pelas quais o mundo passou e segue passando são mais bem apreendidas tomando-as em sua totalidade. Também precisam ser situadas em chave histórica, já que derivam de desdobramentos de crises anteriormente observadas. Há que se verificar, contudo, não apenas as mudanças no decorrer da história, mas também os agentes propulsores dessas mudanças, discutindo as estratégias utilizadas por atores políticos e econômicos que se encontravam em posição privilegiada para promover e engendrar transformações que lhes garantissem superar crises, além de manter e ampliar o poder. Quer-se discutir, portanto, o caráter da atuação de entes que buscaram constantemente adaptar o mundo a seus interesses,

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2.

Globalização, Governança Global e a Formação de uma

Classe Capitalista Transnacional

O Século XX chegou ao fim celebrando uma grande articulação entre a

Organização das Nações Unidas e o capital transnacional. A finalidade do

presente estudo é entender o significado dessa articulação em um contexto

histórico mundial marcado pela globalização do capital. Temas usualmente

restritos à esfera de responsabilidade dos Estados ou do sistema de Estados foram

apropriados pela agenda do capital: segurança coletiva, direitos humanos,

desenvolvimento, meio-ambiente, entre outros. Uma colaboração cada vez mais

estreita entre as esferas do público e do privado busca garantir os pilares da

construção de um mundo “melhor administrado”. Trata-se do processo chamado

de governança global. As demandas por aprofundamento e engajamento de atores

diversos na governança global resultam da intensa expansão da integração global

em vários níveis, sobretudo nas esferas da produção, do comércio e do consumo,

nas últimas décadas, e os respectivos impactos de aumento da pobreza e perda de

parte da autonomia e da cidadania por parte de indivíduos e grupos em todas as

partes do mundo.

Ainda que possam ser analisadas de forma fragmentada em seus aspectos

políticos, econômicos, sociais, culturais, entre outros, as transformações pelas

quais o mundo passou e segue passando são mais bem apreendidas tomando-as

em sua totalidade. Também precisam ser situadas em chave histórica, já que

derivam de desdobramentos de crises anteriormente observadas. Há que se

verificar, contudo, não apenas as mudanças no decorrer da história, mas também

os agentes propulsores dessas mudanças, discutindo as estratégias utilizadas por

atores políticos e econômicos que se encontravam em posição privilegiada para

promover e engendrar transformações que lhes garantissem superar crises, além

de manter e ampliar o poder. Quer-se discutir, portanto, o caráter da atuação de

entes que buscaram constantemente adaptar o mundo a seus interesses,

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particularmente no que se refere à utilização de discursos com função

essencialmente legitimadora da manutenção do status quo, mesmo que por vezes

esses discursos aparentem apresentar soluções para as contradições geradas no e

pelo sistema.

Quem são os agentes que participaram dessas transformações? Que

processos e estruturas entraram em crise e precisaram ser modificados? Como e

porque essas transformações produziram o surgimento de novas organizações e a

adaptação de outras que atuam em âmbito mundial? Até que ponto as análises de

diferentes teóricos conseguiram acompanhar e explicar essas transformações? É

através de análises que tentem responder a tais indagações que se pode melhor

entender os imperativos de legitimação de uma emergente classe capitalista

transnacional como característica essencial da política no Século XXI. Para tanto,

torna-se necessário resgatar os processos históricos que possibilitaram o

surgimento e a articulação dessa classe, assim como as abordagens teórico-

conceituais que buscam definir a classe capitalista transnacional como ator de

influência central tanto nas recentes transformações de impacto mundial quanto

nas análises mainstream sobre essas transformações.

O presente capítulo busca cumprir com três objetivos centrais: (a) resgatar

o caráter histórico da globalização da economia e da política, a partir da década de

1970, nas bases de uma doutrina do neoliberalismo cujo impacto se estende das

técnicas de governo ao modo de vida das pessoas; (b) verificar chaves

interpretativas dessas transformações da ordem mundial, desde descrições sobre o

processo de globalização até as diferentes demandas (ou diferentes discursos) por

um maior aprofundamento da governança global, apresentando então os principais

componentes teóricos da teoria crítica e dos estudos críticos da globalização que

servem de base analítica desta tese; (c) analisar como autores da teoria crítica e

dos estudos críticos da globalização discutem os processos de formação e de

legitimação de uma emergente classe capitalista transnacional, assim como os

mecanismos de legitimação dessa classe, com vistas à continuidade de seu

processo de construção de hegemonia.

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2.1.

A Transformação da Ordem Mundial

Para compreender com mais profundidade e detalhe as transformações

recentes na ordem mundial seria necessário um enfoque histórico de longa

duração (longue durée1). Em tal perspectiva, o resgate histórico poderia tomar

como base diferentes periodizações: um processo de séculos de exploração do

homem pelo homem da Antiguidade aos nossos dias, com base em ideologias,

desde as religiosas até as da racionalidade moderna; uma abordagem que remonte

aos 500 anos do processo de construção de uma modernidade ocidental que

transita da colonização mercantilista aos ideais liberais que se articulavam com

um mundo imperialista; um enfoque a partir das revoluções burguesas e dos

processos de formação dos Estados-modernos, analisando ainda os processos

econômicos e políticos que levaram o mundo às duas grandes guerras da primeira

metade do Século XX. Contudo, para uma compreensão mais específica das

transformações recentes, optou-se aqui por um recorte histórico que nos leva às

crises na década de 1970 dos arranjos do pós-Segunda Guerra Mundial,

evidenciando como essas crises e as soluções encontradas levaram a uma

mudança no paradigma da produção, a um processo de intensa

transnacionalização da acumulação capitalista e à articulação de uma classe

capitalista transnacional exitosa na ampla aplicação da doutrina neoliberal em

todas as regiões do mundo.

2.1.1.

Crises e adaptações no processo de acumulação capitalista: a

aplicação do receituário neoliberal e sua contestação

Do final da Segunda Guerra Mundial até o começo dos anos 1970, as

forças capitalistas estiveram centradas em torno das políticas econômicas,

políticas e de segurança dos Estados Unidos para o mundo não comunista, em

período identificado com a idéia de uma pax americana (Cox, 1987, 209-267;

Gill, 2003, 163). O caráter da acumulação capitalista neste período é observável

1 O termo se refere à obra de Fernand Braudel, mencionado por vários dos autores (Mittelman 2005, Rosenberg 2005, Gill 2003, Robinson 2004).

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através dos seguintes fatores: a ampla oferta e o baixo preço de matérias-primas,

com destaque para o petróleo; uma convergência das economias capitalistas em

torno de um liberalismo com alto engajamento do Estado na esfera econômica e

social (fordismo-keynesianismo, economia corporativa ou liberalismo enraizado)

(Gill, 2003, 94;161) e “a habilidade dos Estados Unidos em manter o crescimento

da demanda agregada global através de déficits em sua balança de pagamentos,

parcialmente gerados por pesadas despesas militares em territórios estrangeiros”

(Gill, 2003, 94) “e por investimentos estrangeiros de corporações dos EUA” (Gill,

2003, 163).

Entretanto, após uma fase de prosperidade das economias ocidentais, sob a

égide dos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, um conjunto de elementos

críticos possibilitou uma nova adaptação do processo de acumulação capitalista,

contribuindo para um realinhamento de forças em torno do neoliberalismo a partir

do começo da década de 1970. É assim que se observa nos Estados Unidos o

impacto dos seguintes fatores geradores da transformação do sistema de

acumulação do capital: “desaceleração do crescimento econômico, aumento da

inflação e do desemprego, recorrência e severidade crescente das recessões e um

crescimento do déficit fiscal em todos os níveis de governo” além de “crises

periódicas do dólar” (Gill, 2003, 164; com mais detalhes em Cox, 1987, 274-279).

Tais fatores implicaram em decisões que mudaram o caráter dos acordos político-

econômicos do pós-guerra como é o caso da deliberação do então presidente dos

Estados Unidos, Richard Nixon, de desvincular o dólar do ouro, ou seja, o fim do

padrão ouro-dólar (Gill, 2003, 164). Às crises nos Estados Unidos, soma-se a crise

da oferta e aumento do preço do petróleo. O impacto dessas mudanças foi mais

bem observado na década de 1990, diante do fim da ordem bipolar e da abertura

de grande parte dos países do bloco socialista, com concomitante convergência de

grande parte dos Estados em torno da dinâmica do capital em sua vertente

neoliberal.

Essas mudanças se vinculam a uma agenda político-econômica de

transformação de uma economia internacional para uma economia global

(Robinson, 2004), ou seja, uma transição gradual de uma economia centrada em

um sistema de Estados e relações econômicas internacionais para uma

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transnacionalização do capital, na qual se verifica uma diminuição do poder dos

Estados, diante da emergência de uma classe capitalista transnacional. Cumpre

destacar que, quando se trata de globalização do capital, esta não se verifica

apenas na mobilidade transnacional do consumo e da circulação de mercadorias,

mas também - e particularmente – da esfera da produção. (Robinson, 2004, 10).

Em tal perspectiva, Robinson nota que os “novos modelos de acumulação flexível

envolvem duas dimensões diferentes: novas tecnologias (...) e inovações

organizacionais.” (Robinson, 2004, 17). Ou seja, percebe-se tanto um

investimento em novas tecnologias destinadas especialmente a aprimorar a

funcionalidade e margem de lucro do capital, quanto novas estratégias

organizacionais como a terceirização de serviços (outsourcing /subcontracting) e

o deslocamento das plantas de produção (maquiladora/offshore) (Robinson, 2004,

17-18). A essas dimensões deve-se somar também a privatização e comodificação

(mercantilização) de bens antes considerados públicos ou sob tutela do Estado

(água, luz, saúde, transportes, estradas, entre outros). Tal assalto do privado sobre

o público é o que Harvey denomina de “acumulação por espoliação” (Harvey,

2004, 2005).

As políticas que compõem a chamada agenda neoliberal foram assumidas

conjuntamente por um amplo grupo de Estados como as bases de uma nova ordem

mundial após o fim da Guerra Fria, no que se tornou conhecido como o

“Consenso de Washington”. Particularmente na década de 1990, verifica-se uma

ampliação na adaptação de Estados e sociedades a essas políticas, ainda que a

aplicação do receituário neoliberal tenha se dado de forma desigual ou não-

uniforme entre os Estados.

Em que pese a ampla aplicação de políticas neoliberais por todo o mundo

na década de 1990, o cenário global sofreu diversas mudanças, principalmente na

década de 2000, as quais de certa forma, se não retrocederam, ao menos frearam

os impulsos de expansão da globalização neoliberal. As possibilidades de uma

grande articulação internacional na agenda de livre comércio, a chamada Rodada

de Doha, terminou por ser emperrada, principalmente na reunião da Organização

Mundial do Comércio em Cancún (2003), quando um grupo de países do Sul se

articulou em um bloco denominado G-20, impedindo o andamento das

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negociações por conta do protecionismo dos países do Norte em setores

essenciais, como a agricultura. Os ataques aos principais símbolos econômico e

militar dos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, resultaram em uma

agenda de Guerra contra o Terror e em uma política cada vez mais unilateral dos

Estados Unidos, pautada mais na coerção do que no consenso. O aclamado

processo de integração da União Européia foi surpreendentemente paralisado pelo

“Não” à Constituição Européia resultado do plebiscito/referendo na França e na

Holanda e, em seguida, a negociação de um Tratado Constitucional se deparou

também com um “Não” da Irlanda, uma das principais beneficiárias até então da

construção supra-nacional na Europa, o que evidencia os limites na aceleração de

processos construídos pelos burocratas da União Européia e dos governos, sem o

devido amadurecimento de um demos europeu.

Os processos acima elencados demonstram sobretudo que não há sempre

uma conexão automática entre os Estados e as forças capitalistas globalizantes.

Contudo, ainda que possam ser observadas aqui e ali políticas de cunho

tradicional internacional assim como freios ao processo de globalização por parte

de Estados, ou mesmo uma desaceleração nas negociações de acordos de livre

comércio, tais processos dificilmente persistem no longo prazo, como se observou

na aprovação do Tratado Constitucional europeu ou diante do fracasso das

intervenções dos Estados Unidos em nome de uma Guerra ao Terror no Iraque e

Afeganistão. Como será analisado posteriormente, segue a tendência de

naturalização da globalização neoliberal mesmo que com adaptações de função

legitimadora, assim como aprofunda-se a transnacionalização do capital com

destaque inclusive para a ação de empresas oriundas de Estados periféricos que

passam a buscar acumular capital em outras regiões do mundo. Ou seja, do ponto

de vista político-ideológico, percebe-se que o neoliberalismo foi absorvido em um

grau tal que exerce uma função própria de dificultar a emergência de projetos

alternativos:

Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito

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num grau com o qual os seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (Anderson, 1995, 23).

Nesse sentido, cabe ressaltar como, do ponto de vista político, a vertente

neoliberal da globalização impactou o pensamento e a práticas política nacional e

internacionalmente, implicando em transformações dos Estados e das

organizações internacionais.

2.1.2.

De uma política internacional a uma política global

O processo de globalização da economia se fez acompanhar de uma

globalização da política. Observa-se um processo gradual de deslocamento de

uma política internacional para uma política global. Em outras palavras, de uma

política centrada nos conflitos e interações entre Estados, para uma política que

envolve relações entre diversos atores (Estados, empresas transnacionais,

organizações não-governamentais, redes e organizações que envolvem Estados e

outros atores). Atores como empresas e organizações não-governamentais

(ONGs) que costumavam influenciar políticas no âmbito estatal, passam a

estabelecer relações de influência na configuração da ordem mundial, para além

dos Estados. “O Estado-nacional não é mais o princípio organizativo do

capitalismo e o ‘container’ institucional do desenvolvimento de classe e da vida

social” (Robinson, 2004, 40) Embora esta abordagem traduza a evidência de uma

série de circunstâncias do tempo presente e contribua para explicar um poder

exercido de forma cada vez mais intensa por uma emergente classe capitalista

transnacional, há que se ter cuidado ao falar de uma esfera do global como

indicativo de um fim do nacional/internacional. Ou seja, mesmo com uma

significativa transferência de poder dos Estados para entidades supranacionais e

para atores privados que adquiriram o controle de setores antes controlados pelos

Estados (Hobsbawn, 1994, 553-554), ainda é a forma do Estado enquanto

comunidade política que segue sendo demandada (e assim legitimada) tanto para

garantir a regulação do funcionamento do sistema econômico capitalista (mesmo

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que se trate de regular a flexibilização), quanto para enfrentar os problemas

sociais e ambientais gerados pela globalização (Hobsbawn, 1994, 554).

Se, por um lado, tem-se uma visão de que as mudanças no mundo da

produção ensejam a formação de um sistema global único (Robinson, 2004, 15),

por outro lado não há que se pensar em um câmbio de grau tal que tenha

implicado em um deslocamento fundamental do poder na ordem mundial. Se o

sistema capitalista agia em grande parte através de Estados centrais como os

Estados Unidos durante quase todo o Século XX, o fato de que uma classe

capitalista transnacional tenha se articulado e busque exercer seu poder de forma

cada vez mais independente do poder de Estados não significa necessariamente

um efetivo câmbio na ordem mundial. Os Estados Unidos ainda retêm grande

poder à medida que seguem sendo uma importante força promotora do capital

transnacional (Negri, 2007). Por se tratar de um período de transição histórica

ainda não concluído e, portanto, sujeito a contingências, há que se ter cuidado

com quaisquer análises de que o Estado não tem mais importância ou de que a

única forma de capital agora é global (Robinson, 2004). Assim, diante de um

complexo processo de transição paradigmática (Santos, 2002), qualquer leitura da

política como meramente mais global e menos internacional deve ser devidamente

problematizada, para que não se trate de absorver rapidamente um enfoque de

supostas rupturas, perdendo-se de vista não tanto as potencialidades, mas

sobretudo as limitações ou ressalvas que a história apresenta.

Observe-se ainda que as transformações articuladas pelo pensamento

neoliberal não teriam o poder de manter e ampliar a dominação sistêmica se não

estivessem cada vez mais entranhadas na arte de governar a população, no

controle da vida das pessoas. Tal questão remete às mudanças identificadas por

Foucault no século XVIII com relação à base da legitimação do Estado em um

“princípio de verdade” conferido pelo mercado (Foucault, 2008, 45-47), o que se

constata pela importância dada à disciplina de Economia como forma mensuração

dos custos da administração da esfera do social. É justamente quando se observa

uma incapacidade do Estado para gerir a Economia em bases keynesianas e

garantir o Estado de Bem-estar social que se verifica uma crise de

governamentalidade (Foucault, 2008, 92-95). Ora, mas não teriam essas crises

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sido causadas justamente pelo liberalismo econômico, pela economia de mercado?

Não, como o mercado é justamente a base da verdade em que se assenta o Estado,

é a este último que são atribuídas as responsabilidades por todos os problemas

econômico-sociais. Diante da nova crise de governamentalidade, sobretudo na

década de 1970, resta ao Estado se submeter a uma regulação ainda maior do

mercado, o que se traduz na absorção pelos Estados de políticas neoliberais

(Foucault, 2008, 157-165). Essa é a centralidade dos Estados no funcionamento de

uma ordem mundial pautada pelo neoliberalismo:

Não haverá o jogo do mercado, que se deve deixar livre, e, depois, a área em que o Estado começará a intervir, já que precisamente o mercado, ou antes, a concorrência pura, que é a própria essência do mercado, só pode aparecer se for produzida, e produzida por uma governamentalidade ativa. Vai-se ter portanto uma espécie de justaposição total dos mecanismos de mercado indexados à concorrência e da política governamental. O governo deve acompanhar de ponta a ponta uma economia de mercado (Foucault, 2008, 164-165).

2.2.

Teoria Crítica e Estudos Críticos da Globalização

Uma leitura particular sobre os processos de globalização e governança

global vêm sendo desenvolvida por autores de Relações Internacionais vinculados

à teoria crítica, sobretudo de base gramsciana. Além de Robert Cox, autor que

estabeleceu as bases do pensamento neogramsciano em Relações Internacionais,

deve-se salientar que a base de sustentação teórica das questões oferecidas por

esta tese se encontra na análise de outros autores que fundamentam parte de seus

estudos nas análises de Gramsci, como William Robinson, Stephen Gill, Ulrich

Brand, entre outros, que se afinam (ou mesmo se apresentam) com um eixo de

pesquisas descrito como “estudos críticos da globalização”. É sobretudo com base

em autores dos estudos críticos da globalização que esta Tese busca estabelecer

um diálogo.

Robert Cox é reconhecido pelo desenvolvimento de estudos que transpõem

a base da teoria política gramsciana para o estudo das relações internacionais. Em

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artigo de 1983, explica o papel desempenhado pelas organizações internacionais

como expressão das normas universais da hegemonia mundial. Primeiramente, ele

explica os conceitos de guerra de movimento, guerra de posição, revolução

passiva e bloco histórico, todos essencialmente associados ao conceito de

hegemonia em Gramsci. Em seguida, apresenta a tese de Gramsci de que os

processos de construção de hegemonias se dão dentro de cada Estado, ou seja, há

uma precedência do Estado como espaço em que se desenvolvem as forças

hegemônicas, antes de qualquer reestruturação das relações internacionais. As

nações poderosas são justamente aquelas que trabalharam mais as formas do

Estado e as relações sociais, restando às nações periféricas a revolução passiva, a

absorção das bases ideológicas das nações desenvolvidas. Ao aplicar o conceito

gramsciano de hegemonia às relações internacionais, Robert Cox o opõe às

noções que considera equivocadas de imperialismo ou de dominação de um

Estado sobre o outro (Cox, 1996).

Cox observa que há períodos de hegemonia mundial (hegemônicos) e

períodos em que há apenas dominação (não-hegemônicos). A hegemonia mundial

não se dá apenas numa regulação de conflitos entre Estados, mas é sempre

permeada por uma sociedade civil global, num processo de expansão da

hegemonia interna (nacional) de uma classe social dominante. Esse processo

hegemônico é sempre melhor observado nos países centrais do que na periferia,

onde os valores hegemônicos sempre estarão coexistindo com velhas estruturas de

poder num processo de revolução passiva. As organizações internacionais, com

suas normas e mecanismos, estão entre as principais formas de expressão da

hegemonia mundial, decorrendo das forças e Estados hegemônicos, servindo à

expansão da hegemonia, legitimando ideologicamente a ordem mundial e

cooptando as elites econômicas e intelectuais dos países periféricos. Observa-se

que nesse estudo desenvolvido por Cox em 1983, a reflexão com base em

Gramsci de uma perspectiva contra-hegemônica estaria restrita à emergência de

um novo bloco histórico através do desenvolvimento de novas bases político-

sociais em sociedades nacionais estabelecendo um processo de guerra de posição

na ordem mundial (Cox, 1996).

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Como exposto, outros autores tomam como base os estudos de Gramsci,

assim como as análises iniciais de Cox aplicando os estudos de Gramsci às

Relações Internacionais, para desenvolver suas análises críticas sobre a

globalização e a governança global. Este é o caso de Robinson, Gill, Brand,

Murphy, entre outros. Deve-se ressalvar, contudo, que pesquisas descritas como

estudos críticos da globalização não aglutinam apenas a vertente neogramsciana

da teoria crítica de RI, mas também uma diversidade de outros enfoques. Em obra

organizada como uma ampla compilação de Estudos Críticos da Globalização (e

com este título), Appelbaum e Robinson observam que tais estudos se

caracterizam por buscar ao mesmo tempo “entender a globalização e engajar-se no

ativismo social global” (Appelbaum; Robinson, 2005, xiii).

Seguindo a interpretação de Cox (com base em Gramsci) de períodos de

hegemonia e não-hegemonia, Gill e Brand analisam que a globalização neoliberal

e a governança global não devem ser tratadas como hegemonia, já que se trata

mais de uma política de supremacia (Gill, 2003, 118-119) ou de uma potencial

hegemonia em construção (Brand, 2005). Para Gill, a idéia de hegemonia em

Gramsci pressupõe uma fusão de interesses de classes o que ainda não se observa

no atual estágio de globalização do capital:

By a situation of supremacy I mean rule by a non-hegemonic

bloc of forces that exercises dominance for a period over

apparently fragmented populations until a coherent form of

opposition emerges. For example, bourgeois hegemony implies

the construction of an historical bloc that transcends social

classes and fuses their direction into an active and largely

legitimate system of rule (Gill, 2003, 118-119).

Daí decorre a importância de processos de legitimação como esferas de

construção de uma hegemonia global da classe capitalista transnacional. A fusão

de interesses de classes em função do interesse maior da classe capitalista poderia

constituir então um novo bloco histórico hegemônico.

Gill desenvolve os conceitos de neoliberalismo disciplinador e de neo-

constitucionalismo como formas de observar os processos em curso no sistema

capitalista mundial (Gill, 2003). Ele defende que o atual processo de globalização

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se caracteriza por um bloco histórico neoliberal que exerce políticas de

supremacia, ou seja, tem um projeto de hegemonia ainda não consolidado. Para

tanto, esse bloco articula “disciplina de mercado com a direta aplicação do poder

político” (Gill, 2003, 118).

O neoliberalismo disciplinador envolve tanto o disciplinamento pelas vias

do poder estrutural do capital quanto o panóptico (Gill, 2003, 130), categoria

foucaultiana que Gill utiliza para discutir as formas hodiernas de controle social.

No nível macro, esse processo se institucionaliza, como observa Gill, dando

origem a seu conceito de neo-constitucionalismo, o qual vem a ser:

Disciplinary neo-liberalism is institutionalized at the macro-

level of Power in the quasi-legal restructuring of state and

international political forms” (…) reflected in the policies of

the Bretton Woods organizations (…) and quasi-constitutional

regional arrangements such as NAFTA or Maastricht, and the

multilateral regulatory framework of the new World Trade

Organization (Gill, 2003, 131).

Isso se coaduna com a crítica de Gramsci ao que ele chama de

economicismo - a doutrina de livre comércio - e à pretensão desta doutrina de

defender uma separação entre sociedade civil (o mercado) e o Estado, já que é

justamente através do Estado que se estabelecem políticas visando garantir o livre

comércio, o qual apenas na aparência (e no discurso neoliberal) se pretende um

movimento espontâneo da economia (Gramsci, 1988, 210). Este também é o

entendimento de Saskia Sassen que reforça a centralidade do papel do Estado no

processo de globalização mesmo que seja para formalizar a transferência de uma

esfera de autoridade do estatal para o privado, ou seja, os Estados não

simplesmente aceitam a globalização neoliberal, eles trabalham para se adaptar a

ela (Sassen, 2006, 230-232; Sassen, 2007, 46-48). Foucault nas conferências em

que tratou do tema da governamentalidade, já expunha o fato de que o

neoliberalismo se imiscui na ação governamental, demandando uma permanente

intervenção dos Estados para garantir a aplicação de políticas econômicas e

sociais (Foucault, 2008, 181-205). Trata-se de uma “arte neoliberal de governar”:

O problema do neoliberalismo é (...) saber como se pode regular o exercício global do poder político com base nos

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princípios de uma economia de mercado. Não se trata portanto de liberar um espaço vazio, mas de relacionar, de referir, de projetar numa arte geral de governar os princípios formais de uma economia de mercado (Foucault, 2008, 181).

Constata-se o que Gill descreve como um crescente processo de

“accountability de governos para mercados” (Gill, 2003, 131). Ora, tais processos

de reestruturação de base semi-legal se assemelham à idéia de uma governança

global em função da globalização neoliberal. Embora Gill não trate do assunto,

deve-se destacar que seu conceito de neo-constitucionalismo será útil para analisar

a emergência de normas de responsabilidade associadas às corporações

transnacionais, em um movimento regulatório que apenas complementa ou corrige

possíveis falhas de funcionamento do sistema. Cumpre ressaltar que o

neoliberalismo disciplinador não se reduz às ações de uma classe capitalista

transnacional e suas possíveis articulações com organizações internacionais, já

que inclui diversos agentes privados com interferência em políticas públicas

globais, tais como empresas de consultoria de gerenciamento (business gurus),

agências de bond-rating (qualificação de títulos transacionados no mercado) e

outras “burocracias internacionais” tais como empresas de contabilidade e de

seguros (Van Der Pijl, 1998, 160-162; Gill, 2003, 137; Strange, 1999, 93;

Amoore, 2006, 49; Sassen, 2006, 242-246 )

Assim como Gill, Ulrich Brand se utiliza de conceitos de Foucault, no caso

aqui o de discurso, além de categorias gramscianas, para definir a governança

global como “um discurso potencialmente hegemônico de política pós-fordista”.

(Brand, 2005, 161). Brand vai além em sua crítica à governança global, pois

explica que tal processo se apresenta como sendo uma esfera de regulação,

quando na verdade trata-se de uma re-regulação, ou seja, um formato de

manutenção de uma ordem neoliberal com gerenciamento de crises, mas sem

contestar o sistema (Brand, 2005, 155-156)

Ulrich Brand analisa que a governança global surge em um contexto de

manejo das crises geradas pelas disfunções da globalização, ou seja, trata-se de

uma nova adaptação em termos de gerenciamento de crises. Daí se depreende que

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a noção de regimes internacionais visava legitimar uma ordem liberal pautada em

Estados Nacionais, ao passo que a idéia de governança global se articula com as

transformações da política neoliberal pós-fordista. Portanto, para Brand a

definição de governança global não deve ser a de instituição problem solving,

mas sim de um conceito operacional que pode servir à globalização neoliberal, a

partir de um processo de capital global sustentável (Brand, 2005, 171), ou seja,

maior do que a função de resolver os impactos negativos da transnacionalização

do capital é o papel de garantir a hegemonia da forma capitalista neoliberal em

escala global. Ou seja, a função da governança global deve ser analisada para

além do enfoque de resolver os impactos negativos da transnacionalização do

capital, e sim evidenciando-a como sendo uma governança global neoliberal

(Overbeek, 2004) com pretensão de garantir a continuidade do projeto

hegemônico da forma capitalista neoliberal em escala global.

Entre os autores de teoria crítica e, mais especificamente, de estudos

críticos da globalização, destacam-se ainda os estudos de William Robinson e

Craig Murphy. Robinson se engaja particularmente no que se refere à construção

de “uma teoria do capitalismo global”, a qual se centra nas transformações da

esfera da produção e no surgimento de uma classe capitalista transnacional e de

um Estado Transnacional. Ele defende que é através de uma compreensão da

dinâmica do capitalismo global que se pode garantir a resistência, o

empoderamento da população diante dessas transformações (Robinson, 2004).

Deve-se enfatizar ainda os estudos de Craig Murphy, por sua análise

particular do potencial papel das organizações internacionais na construção

histórica da governança global (Murphy, 1994), observando também com base em

categorias gramscianas as contradições presentes em novos e antigos processos

construídos em organizações internacionais (Murphy, 1994, 2000). Para

compreender melhor tal perspectiva, optou-se por realizar um estudo mais

apurado sobre a análise de Murphy com respeito às organizações internacionais

no terceiro capítulo desta tese, o qual se destina a uma análise específica de

processos de construção de hegemonia do capitalismo global historicamente em

organizações internacionais.

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2.3.

Teorias sobre a globalização

Ainda que esta Tese tenha como base teórica as análises de autores de

estudos críticos da globalização, faz-se necessário apontar outros enfoques

teóricos sobre questões relacionadas com a globalização, com ênfase em dois

pólos relevantes: a sistematização realizada por Scholte sobre o tema e a crítica

radical negacionista de Rosenberg. Cumpre antes observar que as teorias sobre a

globalização produzidas principalmente nas décadas de 1990 e 2000 não possuíam

uma definição consensual sobre o que estavam denominando como tal. Mais do

que isso, nota-se como foi possível produzir um conceito com tamanha

repercussão sem que fosse necessário se chegar a uma clara definição. Nesse

sentido, os debates se davam em torno da caracterização do significado de eventos

que indicariam supostas mudanças, ou seja, de certa forma a definição estaria

vinculada às diferentes conotações dadas a estes eventos. Assim, percebe-se que o

discurso da globalização se baseia mais em um acordo de que ela existe,

independente de acordos outros sobre o significado desta existência (Bartelson,

2000).

Diante de um intricado debate sobre o significado da globalização, Scholte

busca sintetizar a complexidade relacionada à idéia de globalização como sendo a

difusão de conexões transplanetárias entre as pessoas, a qual mais recentemente se

observaria também por um viés de supra-territorialidade (Scholte, 2005). Sua

crítica se destina às visões reducionistas de globalização como

internacionalização, liberalização, universalização e ocidentalização, as quais não

acrescentariam nada de novo ao conceito. Em sua obra didática sobre a

globalização, é especialmente relevante a abordagem que diferencia os conceitos

de globalização (como processo) e de globalidade (como condição) de uma idéia

de globalismo, a qual Scholte observa não poder ser verificada, devido à

diversidade temporal e espacial na qual se encontra a globalização. Destarte, deve-

se tratar de processos e condições, mas não de um estado das coisas. Nas análises

de Scholte, também é observada uma preocupação conceitual peculiar em não

utilizar adjetivos como estatal, nacional e internacional, demonstrando seu desafio

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de se afastar de qualquer marco que faça conexão com termos vinculados às idéias

de Estado e nação (Scholte, 2005).

Contudo, há aqueles como Hirst e Thompson que negam à globalização

um papel transformador. Assim, os céticos embora reconheçam mudanças

ocorridas nas últimas décadas, criticam a forma com a qual os globalistas vêm

tratando a extensão do impacto produzidos por essas mudanças:

Quanto mais de perto observávamos, mais superficiais e infundadas tornavam-se as declarações dos partidários mais radicais da globalização. Particularmente, começamos a nos inquietar com três fatos: primeiro, a ausência de um modelo da nova economia global comumente aceito e de uma referência a como ela se diferencia dos estágios anteriores da economia internacional; em segundo lugar, na ausência de um modelo claro contra o qual medir as tendências, a inclinação fortuita a citar exemplos de internacionalização de setores e processos como se fossem uma evidência do crescimento de uma economia dominada por forças autônomas do mercado global; e, em terceiro, a lacuna de fundo histórico, a tendência a retratar mudanças correntes como únicas e sem precedentes, firmemente fixadas para persistirem por muito tempo no futuro (Hirst & Thompson, 1998, 14).

Em um denso artigo publicado na International Politics, em 2005, Justin

Rosenberg proclamou a morte da globalização. Tratava-se, segundo ele, de uma

morte dupla, ou seja, não apenas da pretensão teórico-conceitual, mas também da

durabilidade das evidências empíricas que eram parte dos fenômenos

experimentados pelo mundo e interpretados por intelectuais na década de 1990.

Ele entende que é através de uma análise conjuntural da década de 1990 que se

pode compreender o porquê de ter surgido uma reivindicação teórica denominada

erroneamente de globalização e como uma possível interpretação dos fatos com

base nesta pretensa teoria encontra-se em crise ou declínio alguns anos depois.

Não é que Rosenberg ignore que mudanças efetivamente ocorreram, mas

questiona como foi feita uma correspondência subjetiva entre os fatos e uma

construção ideológica de globalização (Rosenberg, 2005, 03). Para Rosenberg,

foram dois os fatores causais que contribuíram para a aceleração das mudanças na

década de 1990: a implementação de políticas neoliberais desreguladoras nos

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países ocidentais, sobretudo a partir da década de 1980, somada ao vácuo sócio-

político gerado pelo fim do regime soviético. Para entender a dimensão

representada por esse vácuo, ele sugere uma interpretação com base em Marx

sobretudo nas teses de “inter-relação entre soberania e relações transnacionais” e

de “tendências orgânicas de desenvolvimento do capital” (Rosenberg, 2005). O

problema central das teorias da globalização, para Rosenberg, se refere à

reificação do espaço e do tempo (e de sua compressão) como categorias

explicativas da globalização. Para interpretar as transformações observadas, ele

remete ao conceito marxista-trotskista de “desenvolvimento combinado e

desigual”, entendendo que o capital vive em um permanente processo de

adaptações às conjunturas específicas de cada época, mas que isso não implica em

uma mudança substantiva no caráter geral da acumulação capitalista.

Em síntese, os estudos de globalização seriam considerados para os céticos

como uma impropriedade teórica e, diante disso, mesmo esforços voltados à

compreensão de uma governança global ou de uma sociedade civil global seriam

uma total perda de tempo (Scholte, 2005, 18). Cabe ressaltar que nem todos os

autores comungam de uma divisão exclusiva entre globalistas e céticos. Para

Scholte, há os que se colocam entre os dois, já que levam em conta a disparidade

nos processos experimentados por países, grupos e classes sociais (Scholte, 2005,

17).

Os teóricos da globalização tendem a coincidir no entendimento de que a

globalização não apresenta apenas resultados positivos, mas que há uma série de

efeitos nocivos, com os quais se deve operar. No dizer de Giddens, “estamos

sendo impelidos rumo a uma ordem global que ninguém compreende plenamente,

mas cujos efeitos se fazem sentir sobre todos nós” (Giddens, 2003, 17). É por

conta disso que as análises das implicações da globalização não se separam de

aspectos normativos relacionados a preocupações específicas de cada intelectual.

Tem-se aqui presente a idéia de um processo em curso, ou seja, de algo inacabado,

de uma estreita articulação na experiência do teórico com o empírico, aspecto que

é denunciado por Rosenberg como um problema para a teoria da globalização. De

qualquer maneira, entende-se que a peculiaridade da globalização está justamente

no que ela implica em termos de oportunidades abertas à construção, no que

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Rosenberg também converge (Rosenberg, 2005, 51), embora os globalistas

reforcem constantemente a permanência de um caráter de aceleração das forças

globalizantes.

Nessa análise sobre as implicações da globalização, Giddens observa

movimentos que operam em várias direções contraditórias e antagônicas. Assim, a

globalização tanto “puxa para cima” desempoderando o Estado-Nação, quanto

“empurra para baixo” empoderando “novas pressões por autonomia local” e o

“ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”

(Giddens, 2003, 23). Por outro lado, dá-se ainda um movimento ou pressão para

os lados com a criação de “novas zonas econômicas e culturais dentro e através

das nações” (Giddens, 2003, 23).

Por último, com relação à periodização histórica, ou seja, à possibilidade

ou não da globalização caracterizar uma mudança de época, Scholte busca

distinguir dois períodos relativos à globalização relacionando-os a eventos

históricos: a fase da globalização incipiente (1850-1950) e a fase contemporânea

de globalização acelerada (1950-hoje). Para chegar a tais conclusões, produz uma

comparação entre os dois períodos com base no desenvolvimento dos seguintes

referentes: comunicações, viagens, organizações, Direito, produção, mercados,

dinheiro, finanças, ecologia social, militarismo e consciência global (Scholte,

2005).

Ora, como observado no começo deste capítulo, a globalização é um

processo histórico intimamente relacionado com a necessidade constante de

acumulação do capital, mas que nas últimas décadas teve impacto não só

econômico, mas político, social e cultural, com especificidades tais que deu

origem a diversas teorias explicativas da globalização. Dentre essas

especificidades, deve-se destacar o neoliberalismo como forma dominante

acompanhado do processo de formação de uma classe capitalista transnacional.

Neste sentido, ainda que seja pertinente a análise de que se possa referir à

globalização como um fenômeno de mais de quinhentos anos como defendem

Wallerstein e outros autores que comungam da perspectiva do sistema-mundo

capitalista, defende-se aqui uma leitura de globalização associada a

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transformações mais recentes, as quais representam um novo redimensionamento

do espaço mundial nas bases de uma intensificação de processos cuja

complexidade pode ser mais bem entendida através de um enfoque que traga à

tona as diversas nuances de transnacionalização de diversas esferas da vida.

2.4.

Governança Global e a questão do multilateralismo

Para compreender o debate apresentado com relação aos desafios para a

governança global a partir das últimas décadas do Século XX, observam-se as

análises do construtivismo social e multilateralismo de John Ruggie Em alguma

medida, esses autores convergem com a idéia de responsabilidade das corporações

no processo de globalização, tomam a globalização como um processo de

aprofundamento da interdependência e dão as boas-vindas à participação de tais

atores não-estatais na política global.

O conceito de governança global se fortaleceu nos debates políticos e na

academia com os trabalhos realizados pela Comissão de Governança Global no

começo da década de 1990. A deterioração da dignidade humana demandava

ações dos Estados e mesmo de atores não-estatais para que fossem assegurados

padrões mínimos de garantias sociais. Embora aparentemente a reação aos

problemas causados ou aprofundados pela globalização neoliberal aparente estar

restrito à crítica marxista da acumulação do capital, observa-se o envolvimento de

políticos, economistas e pesquisadores em Relações Internacionais de vertentes as

mais diversas, entendendo que, para parte dessas vertentes, a construção de uma

arquitetura de governança global não se choca com os interesses de longo prazo

de manutenção do sistema capitalista.

É assim que são observadas, entre outras, as seguintes implicações

vinculadas a agendas para engajamento: avanços e retrocessos, potencialidades e

deficiências no que se refere à globalização da segurança, da igualdade e da

democracia (Scholte, 2005); emergência e necessidade de fortalecer o

cosmopolitismo (Held, 2003); regionalismos e desafios para a democracia e para a

cidadania (Gómez, 2000).

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Deve-se resgatar ainda que o próprio conceito de governança global pode

ser tratado como articulado a outros processos anteriores à atual fase de

globalização do capital. Assim, Murphy identifica um processo gradativo de

governança global desde 1850 com mudanças vinculadas ao tipo de produção

capitalista em cada momento (Murphy, 1994). O próprio fim da Guerra Fria é

visto por John Ruggie como resultante da produção de normas e instituições

multilaterais (Ruggie, 1992, 561), já que a bipolaridade caminhava conjuntamente

com a tática norte-americana de construir um multilateralismo principalmente

através da Organização das Nações Unidas-ONU, onde até a União Soviética e

seus aliados tinham assento. Ao tratar da definição de multilateralismo, Ruggie

observa que o conceito também é tratado de formas diversas e quase sempre com

imprecisão (Ruggie, 1992, 565). Sua maior preocupação é a de ressaltar a

dimensão qualitativa do multilateralismo (Ruggie, 1992, 566), constantemente

negligenciada por autores que tratam do tema. Ainda que o termo seja associado

às normas e instituições internacionais presentes desde o começo da era moderna,

o que distingue o multilateralismo é justamente o fato de se conduzir por

princípios que ordenam relações entre Estados (Ruggie, 1992, 567). Para Ruggie,

o multilateralismo que temos é expressão do modelo de hegemonia dos Estados

Unidos, pois reflete seu ambiente doméstico (Ruggie, 1992, 568). Cumpre

observar, entretanto, que para Ruggie a função essencial dos arranjos

institucionais de base multilateral é sua capacidade adaptativa e reprodutiva que

assegura a estabilidade nas transformações do sistema internacional (Ruggie,

1992, 568), função que se assemelha àquela de balança de poder. É por isso que,

embora pareçam termos dicotômicos, que foram construídos com base em

correntes distintas de relações internacionais (realismo e liberalismo), terminam

por comunicar-se a partir de uma perspectiva integrada de neoliberalismo e

neorealismo, no que ficou conhecido como o consenso neo-neo nos estudos de

Relações Internacionais.

A atuação de Ruggie nos processos em curso na ONU sobre a

responsabilidade das corporações transnacionais se coaduna com sua produção

acadêmica e sua inserção no debate teórico de Relações Internacionais (RI). Para

o autor, o neo-utilitarismo em RI, observado nos consensos entre neoliberalismo e

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neorealismo, está restrito às regras regulatórias com ênfase em interesses e

preferências estáveis. O construtivismo social possibilita analisar os fatores

ideacionais, estudando o impacto da intencionalidade coletiva na política

internacional. É através desses fatores ideacionais que se podem entender as

transformações sistêmicas, pois evidenciam as identidades e aspirações que estão

sendo construídas no nível dos agentes (Ruggie, 1998). Em artigos publicados

sobre o Pacto Global e nos relatórios de seu mandato sobre as Normas em Direitos

Humanos, Ruggie reforça o caráter de aprendizado e conscientização gradativos

que permeia o envolvimento das empresas transnacionais no debate de

responsabilidade social na ONU (Ruggie, 2004). Entende ser possível o processo

de incorporação normativa por parte das empresas de uma conduta mais

responsável, com implicações para a construção de uma governança global que

conduza à superação dos malefícios gerados pela globalização econômica. A

dinâmica de adesão voluntária das empresas nas bases de responsabilidade social

corporativa (CSR, em inglês) permite dispensar a adoção de normas obrigatórias

por parte da ONU: “the more effective the CSR, the less the pressure will be to

accomplish the same ends by other – and potentially far less friendly – means”

(Ruggie, 2004, 41).

De forma similar, ainda que sem o aprofundamento da questão dos fatores

ideacionais, Keohane discute o papel desempenhado por atores não-estatais na

globalização, que ele traduz como um alto grau de interdependência, reforçando o

conceito por ele trabalhado na década de 1970. Ele conclama acadêmicos e

cidadãos a investirem em processos de accountability que garantam uma

governança multilateral legítima (Keohane, 2005). Tal governança só seria

possível com concessões estratégicas por parte de Estados e organizações

poderosas, já que “(...) global governance can impose limits on powerful states

and other powerful organizations, but it also helps the powerful, because they

shape the terms of governance” (Keohane, 2005, 134).

2.5.

A formação de uma classe capitalista transnacional

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Tendo observado os principais pressupostos analíticos de autores da teoria

crítica e, particularmente, seus enfoques na linha de estudos críticos da

globalização e da governança global, passa-se então a discutir, com base nesses

autores, como se deu o processo de formação de uma classe capitalista

transnacional e a necessidade de legitimação desta classe para o aprofundamento

do processo de acumulação capitalista da globalização.

A estratégia de acumulação capitalista na perspectiva da globalização

neoliberal pode ser mais bem observada quando se evidencia o processo de

formação e a agência de uma classe capitalista transnacional. Entender como se

constituiu historicamente uma classe capitalista transnacional é essencial para que

se possa analisar o interesse dessa classe em debates sobre atribuição de

responsabilidades para as empresas transnacionais em organizações que atuam

globalmente. As percepções sobre o processo de construção desta classe, ainda

que desenvolvidos mais recentemente por Gill e Robinson, já eram explorados por

Cox em estudos como o seu célebre artigo de 1981 engajando-se na crítica ao

Neo-realismo em RI sob o título “Social Forces, States and World Orders:

Beyond International Relations Theory”. Nesse artigo, Cox apontava para a

amplitude da articulação desta classe capitalista transnacional, indicando que “At

the apex of an emerging global class structure is the transnational managerial

class. Having its own ideology, strategy and institutions of collective action, it is a

class both in itself and for itself” (Cox, 1986, 234). A percepção de uma classe

não só em si, mas para si, é posteriormente aprofundada por Gill e Robinson.

O conceito de classe implica em uma forma relacional, já que as classes

existem em oposição umas as outras. Entende-se por classe “um grupo de pessoas

que partilham de uma relação comum com o processo de produção e reprodução

social” (Robinson, 2004, 37). É através de um enfoque com base em relações de

classe que se pode evidenciar a articulação entre produção e poder, entre a esfera

da economia e a da política (Cox, 1987, 03). Para evidenciar grupos específicos

dentro de uma mesma classe, deve-se resgatar a interpretação marxista de

fracionamento de classes (Grasmci, Cox, Robinson, Gill, Van Der Pijl),

observando que além do fracionamento da classe capitalista em industrial,

comercial e financeira – e mais recentemente informacional, pode-se perceber

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“the idea that under globalization a new class fractionation, or axis, is occurring

between national and transnational fractions of classes” (Robinson, 2004, 37). O

processo de formação de classe envolve dimensões de estrutura e de agência, de

uma classe em si para uma classe para si, como explica Robinson com base em

Karl Marx:

A class-in-itself is a group whose members objectively share a

similar position in the economic structure of society

independent of the degree to which they are aware of their

collective condition or to which they consciously act on the

basis of this condition. A class-for-itself is a class group whose

members are conscious of constituting a particular group with

shared interests and would be expected to act collectively in

pursuit of those interests. The study of class formation therefore

involves structural and agency, or objective and subjective,

levels of analysis (Robinson, 2004: 38).

Pode-se entender também a idéia de uma classe em si e uma classe para si,

aprofundando os aspectos estruturais (base material) e de agência coletiva que

caracterizam respectivamente cada um desses enfoques (Robinson, 2004, 38). A

classe em si tem como base uma relação de propriedade . Na classe capitalista,

tem-se aqueles que têm a propriedade ou o controle dos meios de produção, seja

físico, seja financeiro (Gill, 2003, 167). Já o enfoque de classe para si resgata a

subjetividade desta classe como autoconsciente tanto de seus interesses comuns

quanto da necessidade de unir forças em torno de uma estratégia comum (Gill,

2003, 168). É assim que quando Gill opta pelo conceito de “elites globalizantes”,

este traz imbuído um elemento estratégico diretivo dentro do capitalismo

globalizado: “Globalizing elites – intellectual and practical apparatuses within

transnational capitalism – are at the apex of the social hierarchies that

characterize the new, emerging world order” (Gill, 2003, 159).

Com a globalização da economia, observa-se, portanto, a imposição de

uma estrutura de classes global sobre as estruturas nacionais de classe (Cox, 1986,

234). Contudo, deve-se perceber que uma parte das relações sociais e esferas de

poder situadas em “território nacional” compõe a estrutura do capitalismo global

(Sassen, 2006), ainda que se observe uma considerável resistência subjacente de

classes capitalistas e trabalhadoras de caráter nacional. Ou seja, ao se

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compreender a esfera do global como uma rede interconectada (Hardt; Negri,

2001), deve-se ter em evidência de que há sempre conexões nacionais como parte

da classe capitalista global:

The members of this transnational class are not limited to those

who carry out functions at the global level, such as executives

of multinational corporations or as senior officials of

international agencies, but include those who manage the

internationally oriented sectors within countries, the finance

ministry officials, local managers of enterprises linked into

international productions and so on (Cox, 1983, 234).

Impelidas a globalizar-se, a participar de um processo de acumulação para

além das fronteiras impostas pelo Estado, necessidade histórica própria do modo

de produção capitalista, aquelas empresas que ainda tinham uma feição

estritamente nacional buscam cada vez mais a transnacionalização da produção e

do consumo de suas mercadorias. É assim, em chave histórica e diante das

contradições inerentes ao processo de acumulação capitalista, que se percebe o

caráter de constituição e de agência da emergente classe capitalista transnacional

(Sklair, 1991, 38). Para Sklair, faz-se necessário compreender uma sutil

diferenciação, ainda que complementar, no caráter específico econômico

(corporações transnacionais), político (classes capitalistas transnacionais) e

cultural-ideológico (agentes e instituições transnacionais) de cada um dos atores

que compõem a classe dominante global: “the transnational corporations strive to

control global capital and material resources, the transnational capitalist classes

strive to control global Power, and the transnational agents and institutions of the

culture-ideology of consumerism strive to control the realm of ideas” (Sklair,

1991, 82).

Mesmo diante da crise de hegemonia dos Estados Unidos a partir da

década de 1970, o projeto de hegemonia do capitalismo global e o suporte à

articulação de uma classe capitalista transnacional foram assegurados em grande

parte pelos Estados Unidos com seu peso econômico, político e militar.

Entretanto, com o final da Guerra Fria, percebe-se um amplo movimento da classe

capitalista transnacional para reedificar a hegemonia do capital sob outras bases

(Gill, 2003, 160), para além de uma relação de dependência específica de um ou

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outro Estado. “At the same time the ideas, institutions and material capabilities of

the vanguard elements of the globalizing elites of contemporary capitalism are

seeking to reconstruct new patterns of dominance and supremacy at the core of

the system” (Gill, 2003, 159).

O processo gradativo de constituição da classe capitalista transnacional

como uma classe para si esteve diretamente associado à difusão e à aplicação das

teses do neoliberalismo produzidas por Friedman e Hayek, entre outros. Tal

processo de construção de uma hegemonia neoliberal foi produzido em grande

parte pela ação de “redes bem organizadas de produção e disseminação da

doutrina neoliberal operando com relativa autonomia dos centros de poder político

e corporativo” (Plehwe & Walpen, 2006, 28). Um dos momentos-chave desse

processo foi a fundação da Sociedade de Mont-Pèlerin (Plehwe & Walpen, 2006;

Van Der Pijl, 1998, 129-130), mas também pode-se observar a evolução da

articulação da classe capitalista transnacional em uma rede complexa de conexões

em espaços como a Câmara Internacional de Comércio, a Conferência Bilderberg,

a Comissão Trilateral, o Fórum Econômico Mundial e o Conselho Mundial de

Business para o Desenvolvimento Sustentável (Carrol & Carlson, 2006).

Em 1947, após alguns anos de articulação de intelectuais norte-americanos

e europeus em torno de estudos de crítica à politização da economia e em defesa

do livre mercado, é fundada a Sociedade de Mont-Pèlerin (nome que faz

referência ao vilarejo na Suíça onde ocorreu o primeiro encontro) (Plehwe &

Walpen, 2006, 30-31). Organizado pelo próprio Hayek e tendo como base seus

escritos neoliberais, além de seu ativismo pelo neoliberalismo, a Sociedade se

organizou com a participação de membros de várias regiões do mundo (ainda que

a grande maioria fosse de norte-americanos e europeus) em torno de princípios ou

objetivos, além de contar com diversas interfaces tanto com fundações e grupos

de pensamento que atuam no âmbito nacional quanto com outros grupos da classe

capitalista transnacional, como o Fórum Econômico Mundial (Plehwe & Walpen,

2006, 30-40).

Para uma análise das adaptações das agendas neoliberais das redes da

classe capitalista transnacional, espaços onde essa classe se articula e define

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políticas (policie), destaca-se aqui o estudo realizado por Carroll & Carlson

(2006), no qual eles identificam cinco organizações com o momento histórico em

que foram criadas e o caráter do discurso neoliberal de então. Assim, observa-se

de uma variante neoliberal conservadora de livre mercado, representada pela

Câmara Internacional do Comércio (1919), passando por um neoliberalismo

estruturalista identificado com a Conferência de Bilderberg (1952), o Fórum

Econômico Mundial (1971) e a Comissão Trilateral (1973), até chegar a nova

forma de um neoliberalismo regulacionista com o Conselho de Negócios Mundial

para o Desenvolvimento Sustentável (1995) (Carroll & Carlson, 2006, 55-60). Em

geral, as organizações que foram criadas tendo como base determinada vertente de

agenda neoliberal mantém o perfil sob o qual foram fundadas. Contudo, essas

organizações compõem uma integrada rede global de políticas corporativas

(global corporate-policy network), já que há um grande número de interconexões

entre os membros filiados que compõem ao mesmo tempo os conselhos ou

diretorias de mais de uma organização, gerando assim um constante diálogo e

interface entre elas (Carroll & Carlson, 2006, 60-68).

De todos os espaços de articulação da classe capitalista transnacional,

destaca-se aqui o surgimento do Fórum Econômico Mundial (FEM), na década de

1970, como paradigmático de um deslocamento cada vez maior do capitalismo,

como sugere Cox, de uma estrutura político-econômica internacional para a

emergência de uma estrutura político-econômica global (Cox, 1996; Pigman,

2007, 06), entendendo-se por isso o avanço no processo de articulação das

corporações transnacionais com vistas a uma expansão de sua atuação em todo o

mundo, harmonizando processos de gerenciamento e buscando a flexibilização

dos limites nacionalmente impostos à entrada de capital estrangeiro.

O FEM é também conhecido como Fórum de Davos, já que é nesta cidade

da Suíça que o fórum costuma se reunir anualmente. É uma fundação do setor

privado e sem fins lucrativos, com o objetivo de intercambiar informações e idéias

entre os principais líderes econômicos não-estatais do mundo. Surgiu inicialmente

na Europa, em 1971, com a crise das instituições de Bretton Woods, devido ao

ressentimento das empresas européias diante das norte-americanas que cresciam

mais rapidamente por empregar modernos métodos de gerenciamento (Pigman,

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2007). Com apoio da RAND Corporation2, organizou-se a primeira reunião do

fórum, com a finalidade inicial de fazer com que as empresas da Europa

aprendessem com a dinâmica empresarial dos Estados Unidos. Já na década de

1980, o Fórum Econômico se havia tornado um espaço privilegiado de diálogo e

aprendizado entre os principais líderes de negócios do mundo, não mais restrito a

uma cooperação entre o setor privado Europa-EUA (Pigman, 2007).

Diante das novas demandas enfrentadas por um acelerado processo de

globalização na década de 1990, o Fórum Econômico Mundial decide cuidar de

questões globais que extrapolam a partilha de informações e idéias no restrito

campo do desempenho empresarial. A estratégia então é intitulada de going

public, ou seja, tratar de políticas públicas em âmbito global. É nesse processo que

os interesses do FEM começam a se aproximar com os ideais da ONU, sobretudo

com o pleito de Annan de aproximar as Nações Unidas do mundo dos negócios

(Pigman, 2007). Para Negri, o FEM é a “é a expressão de uma consciência

capitalística da globalização”, na qual “o capital aparece não só aberto à inovação

mas, sobretudo, tem a oferecer uma imagem de civilidade. Aqui o capital não se

apresenta como negociação, mas como modo de vida” (Negri, 2007, 13).

O emaranhado de articulações entre atores da elite globalizante (Gill)

observado no Fórum Econômico Mundial e em outras organizações aqui referidas

demonstra de que não se trata de uma exclusiva classe capitalista transnacional

bem delineada e constituída, mas de um processo em curso com suas contradições

(Robinson, 2004, 47) e o envolvimento de outros atores. Assim, é relevante

esclarecer que tal processo envolve não apenas empresas transnacionais (os que

controlam os meios de produção capitalista), mas também a elite “técnica” de

profissionais das organizações de capitalistas, das burocracias das organizações

internacionais, das empresas de consultoria, das principais redes e organizações

não-governamentais. Essa elite constitui o que Pijl denomina de cadres - os que

cuidam da gerência ou administração do sistema e que, em última instância, são

responsáveis pela coesão social do mesmo (Van der Pijl, 1998).

2 Um dos principais Think Tanks dos Estados Unidos.

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The capitalist class is viewed as not directly concerned with the

question of different trajectories of capitalism. This task is

performed by organic intellectuals drawn from the stratum

broadly described as the cadres, as seen for example in the

composition of the Trilateral Commission in which academics

and senior civil servants and planners (cadres), mainly from the

OECD countries, participate and prepare the analyses

considered by the chieftains of transnational firms and

government leaders (Gill, 2003, 172).

Com a aplicação do receituário neoliberal a partir da década de 1980, o

caráter da cadres muda, assim como os desafios de manter a coesão social. As

cadres se afastam cada vez mais dos trabalhadores e de uma agenda econômico-

corporativa ou keynesiana e são amplamente cooptadas pela doutrina neoliberal

(Van der Pijl, 1998, 159-165). Aos poucos, como Van der Pijl observa, se percebe

a necessidade de reaproximar as cadres dos que resistem à dominação do sistema

capitalista, engendrando um novo tipo de coesão social global, o que é um dos

eixos centrais de análise crítica desta tese.

Ora, mas para bem entender melhor o intricado processo de construção da

classe capitalista transnacional, três questões ainda precisam ser aprofundadas.

Tais questões persistem após as análises aqui empreendidas sobre os processos de

transformações da ordem mundial e as teorias que buscaram explicá-las. Em

primeiro lugar, há que se discutir qual é a relação da emergência dessa classe com

o debate sobre um suposto imperialismo norte-americano. Uma segunda questão é

a que se refere à relação da classe capitalista transnacional com as esferas do

nacional e do sub-nacional. Trata-se de oposição ou complementaridade? Por

último, precisa-se analisar como se pode argumentar sobre uma estrutura

emergente de classes em âmbito transnacional, com base em uma classe

capitalista transnacional, sem que se aborde o contraponto de uma classe em

oposição a esta, uma espécie de proletariado global. Cada uma destas questões

será analisada em seguida.

Sobre a identificação da globalização econômica com um tipo de poder

hegemônico ou imperialista dos Estados Unidos no mundo (Agnew, 2005),

entende-se aqui que tais argumentos se justificam em dois aspectos essenciais de

origem histórica: no papel desempenhado pelos EUA de promoção da

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transnacionalização do capitalismo antes e depois do Consenso (neoliberal) de

Washington; e na influência global da cultura norte-americana de negócios (Cox,

1996). Engajando-se com os que criticam sua abordagem de formação de uma

classe capitalista transnacional se organizando para além do poder dos Estados,

com ênfase nos Estados Unidos, Cox esclarece que

It is sometimes argued that this is merely a case of U.S.

capitalists giving themselves a hegemonic aura, an argument

that by implication makes of imperialism a purely national

phenomenon. There is no doubting the U.S. origin of the values

carried and propagated by this class, but neither is there any

doubt that many non-U.S. citizens and agencies also participate

in it nor hat its world view is global and distinguishable from

the purely national capitalisms which exist alongside it. Though

the transnational managerial class American culture, or a

certain American business culture, has become globally

hegemonic (Cox, 1996, 253).

Assim, em que pese o poder político, econômico e militar que detém os

Estados Unidos e sua contribuição histórica à internacionalização e

transnacionalização do capital, verifica-se cada vez mais um perfil de autonomia

da classe capitalista transnacional, a qual mesmo com conexões nacionais, busca

se desvincular de uma política de benefícios específicos para este ou aquele

Estado. “Davos é símbolo da superação do imperialismo, o sonho realizado de

juntar, para além das dimensões nacionais, a unidade do projeto capitalístico num

plano global” (Negri, 2007, 13). Com isso, percebe-se o interesse dessas classes

na busca de uma hegemonia global não apenas no centro, mas também na

periferia do sistema. É através da ampliação das práticas da classe capitalista

transnacional para as regiões anteriormente denominadas de Segundo e Terceiro

Mundo que se tenta consolidar a hegemonia global do capital (Sklair, 1991, 38).3

Nesse entendimento, buscando discutir a segunda questão sobre a relação

de uma classe capitalista transnacional com o nacional/sub-nacional, observa-se

que tal relação tem transitado cada vez mais de um caráter de oposição para um de

complementaridade. Com isso, Sassen discute os limites de uma análise de classe

3 Note-se que a análise de Sklair estimula um relevante campo de pesquisa, ainda que esse não seja o enfoque dessa tese. Caberia explorar com mais profundidade como se deu a absorção do discurso e da prática de responsabilidade social das empresas do centro para a periferia do sistema.

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global, já que, por um lado, entende que se trata na verdade de “classes globais”

(no plural) e, por outro, verifica nessas classes uma “posição ambígua entre o

global e o sub-nacional” (Sassen, 2006, 298). Assim, primeiramente ela verifica

outras classes além das cadres de profissionais e executivos descritas por Van Der

Pijl: redes que articulam funcionários setoriais de governos de Estados envolvidos

no enfrentamento de questões transnacionais como migrações e financiamento ao

terrorismo; ativistas da sociedade civil global e de redes de grupos em diáspora;

assim como “comunidades transnacionais de imigrantes” (Sassen, 2006, 298-299).

Junto a essas contradições, observa-se uma relevante crítica àqueles que

conclamam as “classes globais” a engajarem-se em uma agenda cosmopolita de

governança global. Ela analisa que essas classes são fragmentadas e que têm

interesses específicos, o que não se identifica com um prisma de cosmopolitismo

(Sassen, 2006, 299-300).

Por último, indaga-se sobre a necessidade de discutir forças de resistência

globais, como a emergência de uma classe trabalhadora transnacional, em um

entendimento de que as classes devem ser estudadas como parte de um processo

dialético. Tratando dessa questão, Robinson explica que sua análise termina

realmente sendo parcial, já que, mesmo que possa ser observada a existência de

uma classe trabalhadora transnacional em si, ainda não se pode dizer que já existe

uma agência tal que caracterize o proletariado global como uma classe para si

(Robinson, 2004, 43).

Embora também analise que “(...) tendencies towards the globalization of

capitalism (...) condition the limits of the possible for different agents and social

movements in world order” (Gill, 2003, 161), Gill observa com os protestos de

massa contra a globalização e a articulação de atores resistindo a políticas

neoliberais em todo o mundo, a possibilidade de se constituir o que ele chama de

um príncipe pós-moderno (Gill, 2003), ou seja, em lugar de uma figura política

nas bases de um partido como apresentado na obra “O Príncipe” de Maquiavel,

ter-se-ia uma soma de processos difusos de resistência, uma forma de ação

coletiva complexa, respondendo de forma plural a uma dominação também plural

(Gill, 2003, 221). Como símbolo de uma ação coletiva complexa resistindo à

globalização neoliberal e por “uma outra globalização”, observa-se a partir de

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2001 o processo de construção e realização dos encontros periódicos do Fórum

Social Mundial (FSM) e seus múltiplos desdobramentos em fóruns sociais em

regiões, países e cidades de várias partes do mundo4. Alguns autores também

identificam a existência de um movimento de justiça social global (global social

justice movement), com ênfase na ampla articulação em redes de organizações

não-governamentais (ONGs), embora deva-se fazer uma ressalva de que uma

parte considerável dessas ONGs vêm se associando com a classe capitalista

transnacional voluntariamente ou por cooptação através de uma agenda de

governança global sem viés anti-sistêmico. Ainda que a resistência se apresente

um tanto dispersa, com dificuldades e contradições, ela tem exercido um papel

fundamental de “politizar as contradições do capitalismo global” (Brand, 2006).

2.6.

Legitimação e construção da hegemonia do capital

A insatisfação difusa com as falsas promessas, em parte canalizada para

processos de resistência organizada, ainda que fragmentada, e o aprofundamento

de crises econômicas e sociais geradas pela aplicação de políticas neoliberais

demandaram da classe capitalista transnacional um engajamento ainda maior em

ações que buscassem legitimar a forma neoliberal de globalização, buscando

cooptar a resistência ou reforçando discursos para conquistar “corações e mentes”.

“By the turn of the century the transnational elite had moved from the offensive to

the defensive as the system began to enter a crisis of legitimacy” (Robinson, 2004,

146).

Os conceitos de legitimidade e legitimação são analisados com enfoques

diferentes por autores de Relações Internacionais. Seguindo o eixo teórico de

análise aqui proposto, esses conceitos de legitimidade e legitimação se vinculam à

percepção gramsciana de hegemonia desenvolvida por Robert Cox em Relações

Internacionais. Observa-se que, para Cox, o sentido de legitimação está

diretamente associado ao caráter ideológico da prática hegemônica (Cox, 1983).

4 Sobre o Fórum Social Mundial como espaço inovador de articulação de atores políticos e sociais que resistem à globalização neoliberal, assim como para uma análise de seu histórico, de suas potencialidades, contradições e desafios, consultar Gómez 2005, Sousa Santos 2005a e 2005b, Milani 2007, Roy 2004.

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Como analisa Sklair, os aspectos econômico e político da dominação de classe já

estavam bem expostos em Marx, mas foi através dos estudos de Gramsci sobre a

“esfera cultural-ideológica”que se pôde perceber que as “oportunidades de

controle ideológico em escala global mudaram incontestavelmente” (Sklair, 1991,

73). Para Cox, a hegemonia é concebida como uma mediação entre poder,

ideologia e instituições (Cox, 1996, 224-225). Questiona-se, em tal perspectiva, o

papel exercido pelas organizações internacionais na legitimação de normas,

instituições e práticas da ordem mundial e, portanto, em que medida as

organizações internacionais devem refletir orientações que favoreçam as elites

econômicas e sociais. (Cox, 1996).

No final do Século XX e começo do Século XXI, diante de pressões de

diversos grupos sociais e Estados, e em face das sucessivas crises financeiras

enfrentadas pelo capital global, a emergente classe capitalista transnacional viu-se

obrigada a buscar novas esferas de legitimação a fim de evitar maiores ameaças a

seu projeto de hegemonia. Com isso, ainda que se mantenham as bases de uma

expansão global do capital e a busca pela comodificação de novos setores da vida

social, uma parte significativa da classe capitalista transnacional tem se dirigido

mais para o envolvimento com o debate de políticas de controle do capital

financeiro, visando a estabilização sistêmica, assim como com questões sociais (e

ambientais), entendendo que seria seu papel cuidar de novas formas de ajuste e

compensação econômico-social (Robinson, 2004, 163) e ambiental, o que implica

em tratar inclusive de abrir espaço para acordar com as organizações

internacionais sobre novas formas de regulação. Tem-se evidenciado, em tal

perspectiva, um emergente debate sobre uma espécie de “neo-keynesianismo

global” (Robinson, 2004) ou “regime global de bem-estar” (Mueller, 2001) em

setores das elites econômicas e políticas. Não é possível saber até que ponto este

debate será desenvolvido, o que depende naturalmente do aprofundamento ou não

das crises e das contradições sociais do capitalismo nos próximos anos. Contudo,

já há um tempo a demanda por maior regulação não é apenas de grupos que se

opõem à transnacionalização do capital.

The clamor for reform within the summits of global Power

points to the rise of an as yet ill-defined global neo-

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keynesianism, a project that would attempt to attenuate some of

the sharpest contradictions of the system and at the same time

win support from popular and oppositional forces and therefore

hold out the prospect of regenerating hegemony. The contours

of such a project are not clear, but it would most likely involve

a neoregulatory regime supervised by the transnational state (Robinson, 2004,164).

Este tema já se impõe cada vez mais na agenda de organizações

internacionais dominadas pelos países centrais, como o G8, assim como na de

redes que articulam a classe capitalista transnacional. Há uma auto-consciência e

uma convergência das redes da classe capitalista transnacional em torno de uma

concepção pluralista do neoliberalismo, permitindo o engajamento desta classe

inclusive em uma agenda neoliberal de cunho reformista ou regulacionista (Carrol

& Carlson, 2006). Isso se deve a uma reiterada percepção de que a fraqueza dos

Estados e do sistema de Estados para regular, administrando as crises e os custos

sociais, deveria ser acompanhada de uma transferência de atribuições para a classe

capitalista transnacional, a qual pouco a pouco se engaja mais no processo de

assumir responsabilidades. Contudo, deve-se explicitar que os processos de

resistência e as demandas por uma governança global humanizada “contribuem

(mais) para a reforma das constelações hegemônicas neoliberais contemporâneas

do que para o seu fracasso” (Plehwe, Walpen, Neunhöffer, 2006, 17).

O que está em jogo é, portanto, a forma que irá tomar “um regime de

regulação ou neo-keynesianismo global” que em última instância “irá emergir das

conseqüências políticas das dinâmicas de enfrentamentos entre diversas forças

sociais e instituições ao redor do mundo” (Robinson, 2004, 167). Contudo, deve-

se atentar, desde logo, para o fato de que não se trata de um projeto anti-

hegemônico, mas sim de uma tendência já observável em mudanças de políticas

de organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, as

quais em última ordem visam uma consolidação de um projeto de hegemonia do

capitalismo global (Mueller, 2001).

Processos de legitimação também são aplicados por estratégias de

cooptação da oposição, trazendo-a para uma política de centro, o que foi traduzido

por Gramsci com o termo transformismo, ao tratar de processos correlatos na

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política partidária italiana de sua época (Gill, 2003, 221). É assim que a classe

capitalista transnacional busca exercer um controle das regras do jogo no sistema,

da forma e dos espaços onde se fazem e se definem políticas, constrangendo

aqueles que se afastam de enfoques considerados aceitáveis:

a concept of control (here the neoliberal one) works to

demarcate an area of possible solutions and define

legitimate courses of action for the cadres most directly

(...) The discipline of capital can operate through

progressive NGOs as easily as it does, much more

expressly of course, in the recommendations of

management consultancies (Van Der Pijl, 1998, 162).

Tal flexibilidade do neoliberalismo em se ajustar a um controle da ordem

mundial através de uma estrutura política flexível em consonância com uma

estrutura econômica de acumulação flexível é traduzida por Gill como uma

política de supremacia, uma pós-hegemonia, já que um paradigma de governança

global com institucionalidade difusa e plural termina por contribuir para uma

constante dominação das elites globalizantes, dificultando uma resistência de

caráter contra-hegemônico (Gill, 2003), ou seja, trata-se de uma doutrina cujo

foco não está tanto em práticas consensuais, mas sim em um permanente esforço

de esvaziar a possibilidade de surgirem projetos alternativos.

Neoliberal hegemony is better understood as the capacity to

permanently influence political and economic developments

along neoliberal lines, both by setting the agenda for what

constitutes appropriate and good government, and criticizing

any deviations from the neoliberal course as wrong-headed,

misguided or dangerous (Plehwe & Walpen, 2006: 44).

O esvaziamento de alternativas é parte essencial do processo de

legitimação. Se a ordem mundial sob o prisma da globalização neoliberal tem

como conseqüência efeitos perversos humanos, sociais e ambientais, os quais

precisariam ser melhor administrados na lógica da governança global, a oposição

a tal projeto de globalização é recebida como atraso ou barbárie. Sob esse ponto

de vista, é relevante resgatar o caráter contraditório da utilização do tema dos

direitos humanos pelos Estados centrais e pela classe capitalista transnacional

diante dos desafios de garantir a globalização do capital. Primeiramente, percebe-

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se que o discurso dos direitos humanos foi amplamente utilizado, a partir da

década de 1970, não apenas para garantir a liberalização da economia e da política

nos países periféricos, associada à entrada de capital estrangeiro, mas também nos

países centrais, diante das crises de funcionamento do sistema capitalista e da

desestruturação de parte do Estado de Bem-Estar social (Lechner, 1979), ou seja,

diante de uma crise de legitimação dos próprios Estados centrais. Se “a moral

universalista do capitalismo perde forças no momento mesmo em que se

universalizam as relações capitalistas de produção, a tarefa não solucionada do

capital é a de gerar um direito e uma moral que acordem com sua

internacionalização” (Lechner, 1979, 21). Ironicamente, porém, com o

aprofundamento da globalização do capital, diversos grupos e organizações

sociais passam a apresentar uma série de denúncias de violações de direitos

humanos perpetradas por corporações transnacionais, tanto em cumplicidade com

os Estados, quanto diante da subserviência dos mesmos que não lograriam

responsabilizá-las. Tais violações de direitos humanos são parte fundamental da

crise de legitimidade do capitalismo global. É nesse cenário que se observa o

surgimento de um novo discurso que visa deslocar parte da responsabilidade em

direitos humanos dos Estados para as empresas, como forma de legitimação.

Diante de um discurso de apropriação de responsabilidades antes

vinculadas aos Estados por parte das corporações transnacionais, aprofunda-se a

questão do esvaziamento de alternativas, já que a solução para os problemas do

capitalismo é cada vez mais direcionada para a classe capitalista transnacional.

Como explica Gill:

The operation of the neo-liberal myth of progress in modernist

capitalism is intended implicitly to engender a fatalism that

denies the construction of alternatives to the prevailing order,

and thus, negates the idea that history is made by collective

human action (Gill, 2003, 139).

Eis o enigma em que se insere este estudo: se as bases para o

aprofundamento da globalização do capital implicam em uma classe capitalista

que assume um papel de responsabilidade em questões globais, não se tornaria

difícil, para não dizer impossível, dissociar o global do sistema capitalista? Em

outras palavras, se as concessões impostas ao capital para que siga seu processo

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de acumulação global resultam não em um desempoderamento, mas na absorção

de responsabilidades pelos capitalistas, isto não contribuiria ainda mais para a

legitimação e construção da hegemonia do capitalismo global, dificultando ainda

mais possíveis alternativas a um mundo cada vez mais identificado com o sistema

capitalista?

Nesse particular da legitimação através de uma atribuição de

responsabilidades no âmbito global, nota-se o papel desempenhado pelas

organizações internacionais como potenciais mediadoras entre as empresas

transnacionais, os Estados e as organizações sociais. A legitimação da classe

capitalista transnacional implica em uma leitura de como esta classe busca se

legitimar através das organizações internacionais, como visto em Cox, ou seja,

que tipo de influência essa classe exerce e que tipo de respaldo encontra nas

organizações internacionais.

No tempo da Guerra Fria, havia uma reiterada percepção (e um medo) de

que o mundo caminhava para uma destruidora guerra nuclear, o que de certo

modo era reforçado pelo discurso de corrida armamentista das grandes potências.

No período final da Guerra Fria e, principalmente, na década de 1990, o mundo

convive com uma persistente idéia no senso comum, na mídia e na academia de

que forças globalizantes, o processo de globalização, conduzem a uma inevitável

sociedade global, a qual apenas permitiria aos sujeitos um espaço limitado na

esfera da construção de uma governança global essencialmente assentada na

acumulação capitalista e permeada, entre outros aspectos, pela atribuição de

responsabilidades a atores não-estatais, com destaque para as corporações

transnacionais. Faz-se necessário, portanto, olhar para a agência por trás desta

visão da ordem mundial, ou seja, evidenciar com base nas contradições dos

processos histórico-sociais os interesses de classe que estiveram e estão em jogo

na hora de definir responsabilidades que vinculam cada vez mais o sistema global

à forma de capital.

O processo transnacional de formação do capital global e de uma classe

capitalista transnacional passa por conferir responsabilidades. Como irá se discutir

nos próximos capítulos, o processo que articula a idéia de responsabilidade com

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as corporações transnacionais é essencial como prática legitimadora com vistas à

construção de uma hegemonia. Ao se tratar do neoliberalismo como um projeto,

está se tratando também de um projeto de hegemonia em torno do capitalismo

global, ou seja, de uma hegemonia em construção, projetada para o futuro,

enquanto se consolida a articulação de uma classe capitalista transnacional.

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