(2) gabriele cornelli e thiago rodrigo oliveira costa...síntese,belohorizonte,v.43,n.135,2016 41...

41
39 Síntese, Belo Horizonte, v. 43, n. 135, 2016 Síntese - Rev. de Filosofia . 43 . 135 (2016): 39-79 PARMÊNIDES E A TRADIÇÃO MÍTICA ARCAICA * Parmenides and the archaic mythic tradition Gabriele Cornelli ** Thiago R. O. Costa *** Resumo: Neste artigo nós analisamos duas importantes interpretações compa- radas do poema de Parmênides com a tradição mítica arcaica: a de Alexander P. D. Mourelatos e a de Alberto Bernabé. O objetivo é determinar qual seja a posição de Parmênides relativamente à tradição mítica arcaica. Palavras-chave: História da Filosofia Antiga, Parmênides, orfismo, Homero, hesíodo. Abstract: This article will compare two interpretations of Parmenides’ Poem with the archaic mythic tradition: the interpretations of Alexander P. D. Mourelatos and Alberto Bernabé. The aim is to determine Parmenides’ view of the archaic mythic tradition. Keywords: History of ancient philosophy, Parmenides, orphism, Homer; hesiodus. * Artigo recebido no dia 13/05/2013 e aprovado para publicação no dia 16/07/2013. ** Prof. do Departamento de Filosofia da Universidade Nacional de Brasília (UNB). *** Prof. Doutorando em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra e professor as- sistente de filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Upload: others

Post on 10-Sep-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

39Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Siacutentese - Rev de Filoso3a

w 43 x 135 (2016) 39-79

PARMEcircNIDES E A TRADICcedilAtildeO MIacuteTICA ARCAICA

Parmenides and the archaic mythic tradition

Gabriele Cornelli Thiago R O Costa

Resumo Neste artigo noacutes analisamos duas importantes interpretaccedilotildees compa-radas do poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica a de AlexanderP D Mourelatos e a de Alberto Bernabeacute O objetivo eacute determinar qual seja aposiccedilatildeo de Parmecircnides relativamente agrave tradiccedilatildeo miacutetica arcaica

Palavras-chave Histoacuteria da Filoso+a Antiga Parmecircnides or+smo Homerohesiacuteodo

Abstract This article will compare two interpretations of Parmenidesrsquo Poem withthe archaic mythic tradition the interpretations of Alexander P D Mourelatosand Alberto Bernabeacute The aim is to determine Parmenidesrsquo view of the archaicmythic tradition

KeywordsHistory of ancient philosophy Parmenides orphism Homer hesiodus

Artigo recebido no dia 13052013 e aprovado para publicaccedilatildeo no dia 16072013 Prof do Departamento de Filoso3a da Universidade Nacional de Brasiacutelia (UNB) Prof Doutorando em Estudos Claacutessicos pela Universidade de Coimbra e professor as-sistente de 3loso3a da Universidade Federal de Goiaacutes (UFG)

40 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Oobjetivo deste artigo eacute compreender a relaccedilatildeo de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo miacutetica arcaica Por ldquotradiccedilatildeo miacutetica arcaicardquo noacutes estamosnos referindo (i) agrave poesia eacutepica de Homero e de Hesiacuteodo e (ii) agrave

religiatildeo dos misteacuterios em geral e ao or3smo em particular

As questotildees que motivam aqui a nossa investigaccedilatildeo satildeo por que Parmecirc-nides escolheu escrever em verso quando a prosa cientiacute3ca jaacute havia seestabelecido entre os fiacutesicos da Jocircnia E em escrevendo em verso porque o fez recorrendo ao discurso miacutetico tradicional quando havia a suadisposiccedilatildeo um modelo de poesia criacutetico-cientiacute3ca

Parmecircnides conheceu as criacuteticas de Xenoacutefanes aos discursos de ldquorevelaccedilatildeordquoreligiosos tradicionais (DK 21B18 e 21B34) mesmo assim apresentou a sua3loso3a sob a forma da revelaccedilatildeo de uma deusa ele conheceu tambeacutem osresultados extraordinaacuterios da investigaccedilatildeo da natureza particularmente nocampo da astronomia (DK 28B10 28B14 e 28B15) natildeo obstante reprodu-ziu as representaccedilotildees antropomoacuter3cas das Filhas do Sol bem como todoo juiacutezo religioso e moral acerca de Heacutelios (DK 28B19 e 28B10)1 Comoa3rmou Fernando Muniz (2009 95) ldquose Parmecircnides escolheu o hexacircme-tro escolheu de certo modo retrocederrdquo A questatildeo que nos envia nestajornada de investigaccedilatildeo eacute por quecirc

Alguns Elementos da Dimensatildeo Formal do Estudo doPoema de Parmecircnides

O Sobre a Natureza de Parmecircnides foi reconstituiacutedo a partir das citaccedilotildeesque dele foram feitas por outros autores ao longo de aproximadamente ummilecircnio2 Os autores que contribuiacuteram sem sabecirc-lo para a sobrevivecircnciado poema foram Platatildeo (B7 e B8) Aristoacuteteles (B7 B8 B13 e B16) SextoEmpiacuterico (B1 B7 e B8) Simpliacutecio (B1 B2 B6 B7 B8 B9 B11 B12 B13e B19) Proclo (B2 e B5) Clemente de Alexandria (B3 B4 B7 B8 e B10)Plotino (B3) Plutarco (B10 B13 B14 e B15) Schol Basil (B15a) Galeno(B17) e Cael Aurelian (B18)3

O texto original havia sido escrito em versos hexacircmetros dactiacutelicos quesegundo Fernando Muniz (2007 37) estatildeo na meacutetrica empregada e apro-priada agrave ldquofala das Musasrdquo e ldquodos oraacuteculosrdquo Anteriormente citamos uma

1 Notemos que o termo ldquokatharoacutesrdquo (puro iacutentegro limpo natildeo contaminado) que em B102 eacuteaplicado ao Sol pertence fundamentalmente ao campo moral natildeo ao da astronomia2 Cf CORDERO (2011 13-16)3 As referecircncias completas podem ser encontradas em DK inclusivamente as referecircncias aos frag-

mentos falsos (de B21 a B25) e ao fragmento incerto (B20) Simpliacutecio (In Aristotelis Physicorum

Libros Commentaria 914428) eacute uma exceccedilatildeo entre os demais porque a razatildeo pela qual cita os

diversos versos do poema de Parmecircnides eacute tambeacutem a da escassez (spaacutenis) da obra em sua eacutepoca

41Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

fonte antiga que a3rmava que Parmecircnides havia escrito ao modo de He-siacuteodo e de Xenoacutefanes4 Salvo pela referecircncia a Xenoacutefanes os historiadoresda 3loso3a reconhecem unanimemente a conexatildeo do poema de Parmecircni-des com a tradiccedilatildeo eacutepica arcaica de Homero e Hesiacuteodo que ultrapassa aidentidade quanto agrave meacutetrica e ao gecircnero literaacuterio

Outro elemento formal importante do poema eacute o seu dialeto O poemafoi escrito no dialeto jocircnico antigo tambeacutem chamado homeacuterico ou pan--helecircnico Antocircnio Freire (2001 250) observa que ldquoo dialeto homeacuterico natildeoconstitui propriamente uma liacutengua falada em determinada regiatildeo Eacuteantes uma linguagem convencional baseada no jocircnico e em certas formaseoacutelicas aacutercado-ciacutepricas e aacuteticas de que se utilizou o autor da ldquoIliacuteadardquo e daldquoOdisseiardquo e que inYuenciou os diversos gecircneros poeacuteticos lirismo elegiae dramardquo Natildeo eacute o nosso objetivo um estudo sistemaacutetico dos elementosformais do poema mas podemos citar alguns exemplos sobre a variaacuteveldialetal na qual o poema foi escrito

No primeiro verso do poema temos ldquohiacuteppoi taiacute ()rdquo (B11) ldquotaiacuterdquo eacute o nomi-nativo feminino plural do artigo no dialeto homeacuterico portanto ldquoas eacuteguasrdquo5

No seacutetimo verso do segundo fragmento temos ldquo() megrave eograven ()rdquo (B17)ldquoeoacutenrdquo eacute o nominativoacusativo neutro singular do dialeto homeacuterico noqual ocorre um acreacutescimo do ldquoεrdquo (egravepsiloacuten) a algumas formas do particiacutepiodo verbo ldquoeimiacuterdquo6 No primeiro verso do sexto fragmento temos ldquo() eograveneacutemmenai ()rdquo (B61) ldquoeacutemmenairdquo eacute uma variaccedilatildeo comum (por acreacutescimo daterminaccedilatildeo ldquo-mevairdquo ou ldquo-menrdquo) do in3nitivo do verbo ldquoeimiacuterdquo ldquoeicircnairdquo7

Esses satildeo apenas alguns exemplos de uma seacuterie de outros que poderiamser apresentados mas que fogem ao nosso propoacutesito Para um examedetalhado das caracteriacutesticas formais do poema (meacutetrica composiccedilatildeovocabulaacuterio fraseologia etc) recomendamos o primeiro capiacutetulo do livroThe Route of Parmenides de Alexander Mourelatos (2008) bem como umestudo do dialeto homeacuterico8

O conjunto de caracteriacutesticas apresentado (1 a escolha pela poesia peloverso 2 a escolha do hexacircmetro dactiacutelico para a meacutetrica dos versos e3 a escolha do dialeto homeacuterico) mostra que com efeito ao menos noniacutevel formal Parmecircnides inscreveu o seu texto na tradiccedilatildeo miacutetica arcaica

4 DLIX2211-125 Cf FREIRE (2001 251) Em Os Pensadores Originaacuterios (1993 43) Seacutergio Wrublewski se equivoca

ao traduzir ldquohiacuteppoi taiacuterdquo por ldquoos cavalosrdquo o mesmo equiacutevoco eacute cometido por Gerd A Bornheim em

Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos (2003 54) Atualmente a melhor traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa do

poema de Parmecircnides eacute a de Fernando Santoro (2009)6 FREIRE (2001 250)7 FREIRE (2001 253) Em B26 temos ldquoeacutemmenrdquo que eacute igual a ldquoeicircnairdquo8 Mourelatos (2008 1-46) trata-se da versatildeo revisada e expandida da original de 1970 ocuparemo-nos

apenas com alguns dos motivos e temas destacados por ele Para um estudo preliminar do dialeto ho-

meacuterico recomendamos FREIRE (2001 250-255) SMYTH (1984 1-4B) e E RAGON (2008 241-250)

42 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O poema estaacute estruturado da seguinte maneira ele eacute dividido em duasgrandes partes A primeira vai de B11 ateacute B123 A segunda abarca todo orestante do poema Esta uacuteltima por sua vez eacute subdividida em duas outraspartes a primeira delas vai de B124 ateacute B852 a segunda vai de B853 ateacuteo 3nal em B193 isto desconsiderando os fragmentos duvidosos e prova-velmente falsos de B20 a B25 A primeira parte (de B124 ateacute B852) dasegunda parte (de B124 ateacute o 3nal) eacute tambeacutem dividida em duas outraspartes sendo a primeira de B124 ateacute B82 e a segunda de B82 ateacute B852

Estrutura

I Primeira Parte vai de B11 ateacute B123II Segunda Parte vai de B124 ateacute o 3nal (B193)

a Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B852i Primeira Parte da Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B82ii Segunda Parte da Primeira Subparte de II vai de B82 ateacute B852

b Segunda Subparte de II vai de B853 ateacute B193

A parte ldquoIrdquo corresponde agrave narrativa do ldquokoucircrosrdquo em primeira pessoa dasua viagem ateacute a morada da Deusa (Theaacute) mais precisamente ateacute o mo-mento no qual ela a Deusa ldquotomardquo a palavra Observemos que a rigor anarrativa permanece na primeira pessoa a voz de todo o poema continuasendo a do ldquojovemrdquo que a partir daqui (124) narra o que a deusa lhe eriadito como se a deusa estivesse falando

A parte ldquoIIrdquo corresponde agrave fala da deusa interpretada (posta em cena) pelojovem Esse discurso iraacute durar ateacute o 3nal do poema em B193 Por essarazatildeo podemos dizer que todo o poema consiste na narrativa do jovemde sua viagem e do discurso por ele ouvido da Deusa Isso pode serinferido da morfologia dos verbos do poema Os verbos empregados em123 para introduzir a palavra da Deusa satildeo (i) prosaudaacuteo na terceira pes-soa do singular do indicativo ativo imperfeito ldquome προσηύδαrdquo que podeser traduzido por ldquo[ela] dirigia a palavra a mimrdquo e (ii) phemiacute na terceirapessoa do singular do indicativo meacutedio-passivo imperfeito ldquoeacutepos phaacutetordquoque pode ser traduzido por ldquoo discurso era ditordquo ou ldquoo discurso eracontadordquo ou ldquoo discurso era narradordquo ou ldquoo discurso era pronunciadordquoou ainda ldquoo conto era ditordquo En3m haacute muitas possibilidades de traduccedilatildeoque querem dizer grosso modo que um discurso ou que uma histoacuteriaum conto era contado narrado anunciado etc O tempo no qual a histoacuteriaocorreu eacute claramente o do passado A histoacuteria narrada no poema natildeoconsiste em uma narrativa ldquoao vivordquo dos acontecimentos enquanto eles sedatildeo mas sim na interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos passados comose eles estivessem se dando no presente (na parte II) Eacute por essa razatildeo a

43Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos (ieacute da performaccedilatildeo da narra-tiva) que haacute verbos tanto no tempo presente quanto no tempo passadoos verbos no presente satildeo marcaccedilotildees para a encenaccedilatildeo enquanto que osverbos no passado datildeo caraacuteter narrativo ao conto Podemos demonstrarisso pela anaacutelise dos verbos em 124 e em 125

124 ldquoOh jovem companheiro de guias imortais

125 eacuteguas as que te conduzem chegando a nossa morada ()rdquo

Ocirc kourrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros Henioacutechoisin

masc mascfemneutr mascfem Masc

form indecl nominativo dativo nominativo Dativo

singular plural singular Plural

Hiacuteppois Taiacute se pheacuterousin hikaacutenon hemeacuteteron Docirc

mascfem feminino 2ordf pessoa partmascneutr partmasc mascneutr neutr

ind3ordf pess

dativo nominativo acusativo atvdat atvnom acusnomvoc nomacusvoc

plural Plural singular presplural pressing singular singular

Observemos que ldquohiacuteppoisrdquo e ldquotaiacuterdquo natildeo estatildeo no mesmo caso e que ldquoatha-naacutetoisirdquo ldquohenioacutechoisinrdquo e ldquohiacuteppoisrdquo concordam em gecircnero caso e nuacutemeroPor essa razatildeo pode ser que as ldquoimortais guiasrdquo de 124 sejam as ldquoeacuteguasrdquode 125 ldquotaiacuterdquo por sua vez retoma ldquohiacuteppoisrdquo Essa eacute uma das caracteriacutesticasimportantes a serem destacadas do dialeto homeacuterico os artigos podemequivaler a pronomes demonstrativos ou a pronomes relativos por issoa traduccedilatildeo de ldquotaiacuterdquo por ldquoas querdquo poderiacuteamos ainda traduzir ldquotaiacuterdquo porldquoestas querdquo

ldquo[124] Oh jovem companheiro de guias imortais [125] eacuteguas estas quete conduzem chegando a nossa morada [126] ltsejagt bem vindo ()rdquo

Argumentaacutevamos que uma anaacutelise de 124 e 125 nos permitiria observarque a histoacuteria narrada ocorreu no passado e eacute encenada no presente comose estivesse ocorrendo no momento em que eacute contada Pois como vimosos verbos que introduzem a fala da Deusa (de 124 125 e seguintes) es-tavam no imperfeito ldquome προσηύδαrdquo e ldquoeacutepos phaacutetordquo O jovem o narrador

44 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (ldquodirigia a palavra a mimrdquo)e entatildeo o discurso (eacutepos) foi dito (phaacuteto) (ldquoo discurso era ditordquo) Naquelapassagem claramente narrativa os verbos estatildeo no passado imperfeito jaacutena fala da Deusa (124-25) que agravequela passagem se segue os verbos estatildeono presente ldquopheacuterousinrdquo e ldquohikaacutenonrdquo o primeiro no indicativo presente cujosujeito eacute ldquotaiacuterdquo e o segundo no particiacutepio presente cujo sujeito eacute ldquohemeacuteterondocircrdquo Isto eacute a histoacuteria eacute narrada como se a proacutepria Deusa estivesse nestemomento falando quando na verdade ela falou ao jovem no passado (oque sabemos por 123) Trata-se portanto de uma interpretaccedilatildeo cecircnicada fala da Deusa por parte do narrador da histoacuteria cuja voz se confundecom a do proacuteprio ldquojovemrdquo da narrativa

Em siacutentese a estrutura comporta algumas divisotildees e subdivisotildees Temosa narrativa que o jovem faz da sua viagem ateacute a morada da Deusa (ParteI) temos a interpretaccedilatildeo cecircnica da fala da Deusa feita pelo jovem como seesta fala a da Deusa (Parte II) estivesse ocorrendo no presente Ademaisessa fala (eacutepos) comporta por sua vez outras divisotildees internas

A Deusa apresentaraacute ao jovem duas doacutexai a dos mortais e a doacutexa delaproacutepria que consiste no ldquocoraccedilatildeo da verdaderdquo Antes de iniciar a apresen-taccedilatildeo das doacutexai dela e dos mortais haacute uma raacutepida introduccedilatildeo (estamos nosreferindo aos versos de B124 a B22) Na sequecircncia a Deusa apresentaraacuteas vias de investigaccedilatildeo fazendo algumas observaccedilotildees e comentarios (deB23 a B82) depois apresentaraacute o coraccedilatildeo da verdade (de B82 a B852)e 3nalmente as doacutexai dos mortais (de B853 a B193)

Estrutura

I (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B11 ateacute B123II (A fala da Deusa) de B124 ateacute o 3nal (B193)

a (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo + O Coraccedilatildeoda Verdade) de B124 ateacute B852

i (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo) deB124 ateacute B821 (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo) de B124 a B222 (As Vias de Investigaccedilatildeo) de B23 a B82

ii (O Coraccedilatildeo da Verdade) de B82 ateacute B852b (As Especulaccedilotildees dos Mortais) de B853 ateacute B193

As partes do poema satildeo entatildeo o proecircmio (B11 a B123) a introduccedilatildeo agraveinvestigaccedilatildeo (B124 a B22) que Mourelatos chama de ldquoseccedilatildeo programaacuteti-

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 2: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

40 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Oobjetivo deste artigo eacute compreender a relaccedilatildeo de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo miacutetica arcaica Por ldquotradiccedilatildeo miacutetica arcaicardquo noacutes estamosnos referindo (i) agrave poesia eacutepica de Homero e de Hesiacuteodo e (ii) agrave

religiatildeo dos misteacuterios em geral e ao or3smo em particular

As questotildees que motivam aqui a nossa investigaccedilatildeo satildeo por que Parmecirc-nides escolheu escrever em verso quando a prosa cientiacute3ca jaacute havia seestabelecido entre os fiacutesicos da Jocircnia E em escrevendo em verso porque o fez recorrendo ao discurso miacutetico tradicional quando havia a suadisposiccedilatildeo um modelo de poesia criacutetico-cientiacute3ca

Parmecircnides conheceu as criacuteticas de Xenoacutefanes aos discursos de ldquorevelaccedilatildeordquoreligiosos tradicionais (DK 21B18 e 21B34) mesmo assim apresentou a sua3loso3a sob a forma da revelaccedilatildeo de uma deusa ele conheceu tambeacutem osresultados extraordinaacuterios da investigaccedilatildeo da natureza particularmente nocampo da astronomia (DK 28B10 28B14 e 28B15) natildeo obstante reprodu-ziu as representaccedilotildees antropomoacuter3cas das Filhas do Sol bem como todoo juiacutezo religioso e moral acerca de Heacutelios (DK 28B19 e 28B10)1 Comoa3rmou Fernando Muniz (2009 95) ldquose Parmecircnides escolheu o hexacircme-tro escolheu de certo modo retrocederrdquo A questatildeo que nos envia nestajornada de investigaccedilatildeo eacute por quecirc

Alguns Elementos da Dimensatildeo Formal do Estudo doPoema de Parmecircnides

O Sobre a Natureza de Parmecircnides foi reconstituiacutedo a partir das citaccedilotildeesque dele foram feitas por outros autores ao longo de aproximadamente ummilecircnio2 Os autores que contribuiacuteram sem sabecirc-lo para a sobrevivecircnciado poema foram Platatildeo (B7 e B8) Aristoacuteteles (B7 B8 B13 e B16) SextoEmpiacuterico (B1 B7 e B8) Simpliacutecio (B1 B2 B6 B7 B8 B9 B11 B12 B13e B19) Proclo (B2 e B5) Clemente de Alexandria (B3 B4 B7 B8 e B10)Plotino (B3) Plutarco (B10 B13 B14 e B15) Schol Basil (B15a) Galeno(B17) e Cael Aurelian (B18)3

O texto original havia sido escrito em versos hexacircmetros dactiacutelicos quesegundo Fernando Muniz (2007 37) estatildeo na meacutetrica empregada e apro-priada agrave ldquofala das Musasrdquo e ldquodos oraacuteculosrdquo Anteriormente citamos uma

1 Notemos que o termo ldquokatharoacutesrdquo (puro iacutentegro limpo natildeo contaminado) que em B102 eacuteaplicado ao Sol pertence fundamentalmente ao campo moral natildeo ao da astronomia2 Cf CORDERO (2011 13-16)3 As referecircncias completas podem ser encontradas em DK inclusivamente as referecircncias aos frag-

mentos falsos (de B21 a B25) e ao fragmento incerto (B20) Simpliacutecio (In Aristotelis Physicorum

Libros Commentaria 914428) eacute uma exceccedilatildeo entre os demais porque a razatildeo pela qual cita os

diversos versos do poema de Parmecircnides eacute tambeacutem a da escassez (spaacutenis) da obra em sua eacutepoca

41Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

fonte antiga que a3rmava que Parmecircnides havia escrito ao modo de He-siacuteodo e de Xenoacutefanes4 Salvo pela referecircncia a Xenoacutefanes os historiadoresda 3loso3a reconhecem unanimemente a conexatildeo do poema de Parmecircni-des com a tradiccedilatildeo eacutepica arcaica de Homero e Hesiacuteodo que ultrapassa aidentidade quanto agrave meacutetrica e ao gecircnero literaacuterio

Outro elemento formal importante do poema eacute o seu dialeto O poemafoi escrito no dialeto jocircnico antigo tambeacutem chamado homeacuterico ou pan--helecircnico Antocircnio Freire (2001 250) observa que ldquoo dialeto homeacuterico natildeoconstitui propriamente uma liacutengua falada em determinada regiatildeo Eacuteantes uma linguagem convencional baseada no jocircnico e em certas formaseoacutelicas aacutercado-ciacutepricas e aacuteticas de que se utilizou o autor da ldquoIliacuteadardquo e daldquoOdisseiardquo e que inYuenciou os diversos gecircneros poeacuteticos lirismo elegiae dramardquo Natildeo eacute o nosso objetivo um estudo sistemaacutetico dos elementosformais do poema mas podemos citar alguns exemplos sobre a variaacuteveldialetal na qual o poema foi escrito

No primeiro verso do poema temos ldquohiacuteppoi taiacute ()rdquo (B11) ldquotaiacuterdquo eacute o nomi-nativo feminino plural do artigo no dialeto homeacuterico portanto ldquoas eacuteguasrdquo5

No seacutetimo verso do segundo fragmento temos ldquo() megrave eograven ()rdquo (B17)ldquoeoacutenrdquo eacute o nominativoacusativo neutro singular do dialeto homeacuterico noqual ocorre um acreacutescimo do ldquoεrdquo (egravepsiloacuten) a algumas formas do particiacutepiodo verbo ldquoeimiacuterdquo6 No primeiro verso do sexto fragmento temos ldquo() eograveneacutemmenai ()rdquo (B61) ldquoeacutemmenairdquo eacute uma variaccedilatildeo comum (por acreacutescimo daterminaccedilatildeo ldquo-mevairdquo ou ldquo-menrdquo) do in3nitivo do verbo ldquoeimiacuterdquo ldquoeicircnairdquo7

Esses satildeo apenas alguns exemplos de uma seacuterie de outros que poderiamser apresentados mas que fogem ao nosso propoacutesito Para um examedetalhado das caracteriacutesticas formais do poema (meacutetrica composiccedilatildeovocabulaacuterio fraseologia etc) recomendamos o primeiro capiacutetulo do livroThe Route of Parmenides de Alexander Mourelatos (2008) bem como umestudo do dialeto homeacuterico8

O conjunto de caracteriacutesticas apresentado (1 a escolha pela poesia peloverso 2 a escolha do hexacircmetro dactiacutelico para a meacutetrica dos versos e3 a escolha do dialeto homeacuterico) mostra que com efeito ao menos noniacutevel formal Parmecircnides inscreveu o seu texto na tradiccedilatildeo miacutetica arcaica

4 DLIX2211-125 Cf FREIRE (2001 251) Em Os Pensadores Originaacuterios (1993 43) Seacutergio Wrublewski se equivoca

ao traduzir ldquohiacuteppoi taiacuterdquo por ldquoos cavalosrdquo o mesmo equiacutevoco eacute cometido por Gerd A Bornheim em

Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos (2003 54) Atualmente a melhor traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa do

poema de Parmecircnides eacute a de Fernando Santoro (2009)6 FREIRE (2001 250)7 FREIRE (2001 253) Em B26 temos ldquoeacutemmenrdquo que eacute igual a ldquoeicircnairdquo8 Mourelatos (2008 1-46) trata-se da versatildeo revisada e expandida da original de 1970 ocuparemo-nos

apenas com alguns dos motivos e temas destacados por ele Para um estudo preliminar do dialeto ho-

meacuterico recomendamos FREIRE (2001 250-255) SMYTH (1984 1-4B) e E RAGON (2008 241-250)

42 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O poema estaacute estruturado da seguinte maneira ele eacute dividido em duasgrandes partes A primeira vai de B11 ateacute B123 A segunda abarca todo orestante do poema Esta uacuteltima por sua vez eacute subdividida em duas outraspartes a primeira delas vai de B124 ateacute B852 a segunda vai de B853 ateacuteo 3nal em B193 isto desconsiderando os fragmentos duvidosos e prova-velmente falsos de B20 a B25 A primeira parte (de B124 ateacute B852) dasegunda parte (de B124 ateacute o 3nal) eacute tambeacutem dividida em duas outraspartes sendo a primeira de B124 ateacute B82 e a segunda de B82 ateacute B852

Estrutura

I Primeira Parte vai de B11 ateacute B123II Segunda Parte vai de B124 ateacute o 3nal (B193)

a Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B852i Primeira Parte da Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B82ii Segunda Parte da Primeira Subparte de II vai de B82 ateacute B852

b Segunda Subparte de II vai de B853 ateacute B193

A parte ldquoIrdquo corresponde agrave narrativa do ldquokoucircrosrdquo em primeira pessoa dasua viagem ateacute a morada da Deusa (Theaacute) mais precisamente ateacute o mo-mento no qual ela a Deusa ldquotomardquo a palavra Observemos que a rigor anarrativa permanece na primeira pessoa a voz de todo o poema continuasendo a do ldquojovemrdquo que a partir daqui (124) narra o que a deusa lhe eriadito como se a deusa estivesse falando

A parte ldquoIIrdquo corresponde agrave fala da deusa interpretada (posta em cena) pelojovem Esse discurso iraacute durar ateacute o 3nal do poema em B193 Por essarazatildeo podemos dizer que todo o poema consiste na narrativa do jovemde sua viagem e do discurso por ele ouvido da Deusa Isso pode serinferido da morfologia dos verbos do poema Os verbos empregados em123 para introduzir a palavra da Deusa satildeo (i) prosaudaacuteo na terceira pes-soa do singular do indicativo ativo imperfeito ldquome προσηύδαrdquo que podeser traduzido por ldquo[ela] dirigia a palavra a mimrdquo e (ii) phemiacute na terceirapessoa do singular do indicativo meacutedio-passivo imperfeito ldquoeacutepos phaacutetordquoque pode ser traduzido por ldquoo discurso era ditordquo ou ldquoo discurso eracontadordquo ou ldquoo discurso era narradordquo ou ldquoo discurso era pronunciadordquoou ainda ldquoo conto era ditordquo En3m haacute muitas possibilidades de traduccedilatildeoque querem dizer grosso modo que um discurso ou que uma histoacuteriaum conto era contado narrado anunciado etc O tempo no qual a histoacuteriaocorreu eacute claramente o do passado A histoacuteria narrada no poema natildeoconsiste em uma narrativa ldquoao vivordquo dos acontecimentos enquanto eles sedatildeo mas sim na interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos passados comose eles estivessem se dando no presente (na parte II) Eacute por essa razatildeo a

43Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos (ieacute da performaccedilatildeo da narra-tiva) que haacute verbos tanto no tempo presente quanto no tempo passadoos verbos no presente satildeo marcaccedilotildees para a encenaccedilatildeo enquanto que osverbos no passado datildeo caraacuteter narrativo ao conto Podemos demonstrarisso pela anaacutelise dos verbos em 124 e em 125

124 ldquoOh jovem companheiro de guias imortais

125 eacuteguas as que te conduzem chegando a nossa morada ()rdquo

Ocirc kourrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros Henioacutechoisin

masc mascfemneutr mascfem Masc

form indecl nominativo dativo nominativo Dativo

singular plural singular Plural

Hiacuteppois Taiacute se pheacuterousin hikaacutenon hemeacuteteron Docirc

mascfem feminino 2ordf pessoa partmascneutr partmasc mascneutr neutr

ind3ordf pess

dativo nominativo acusativo atvdat atvnom acusnomvoc nomacusvoc

plural Plural singular presplural pressing singular singular

Observemos que ldquohiacuteppoisrdquo e ldquotaiacuterdquo natildeo estatildeo no mesmo caso e que ldquoatha-naacutetoisirdquo ldquohenioacutechoisinrdquo e ldquohiacuteppoisrdquo concordam em gecircnero caso e nuacutemeroPor essa razatildeo pode ser que as ldquoimortais guiasrdquo de 124 sejam as ldquoeacuteguasrdquode 125 ldquotaiacuterdquo por sua vez retoma ldquohiacuteppoisrdquo Essa eacute uma das caracteriacutesticasimportantes a serem destacadas do dialeto homeacuterico os artigos podemequivaler a pronomes demonstrativos ou a pronomes relativos por issoa traduccedilatildeo de ldquotaiacuterdquo por ldquoas querdquo poderiacuteamos ainda traduzir ldquotaiacuterdquo porldquoestas querdquo

ldquo[124] Oh jovem companheiro de guias imortais [125] eacuteguas estas quete conduzem chegando a nossa morada [126] ltsejagt bem vindo ()rdquo

Argumentaacutevamos que uma anaacutelise de 124 e 125 nos permitiria observarque a histoacuteria narrada ocorreu no passado e eacute encenada no presente comose estivesse ocorrendo no momento em que eacute contada Pois como vimosos verbos que introduzem a fala da Deusa (de 124 125 e seguintes) es-tavam no imperfeito ldquome προσηύδαrdquo e ldquoeacutepos phaacutetordquo O jovem o narrador

44 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (ldquodirigia a palavra a mimrdquo)e entatildeo o discurso (eacutepos) foi dito (phaacuteto) (ldquoo discurso era ditordquo) Naquelapassagem claramente narrativa os verbos estatildeo no passado imperfeito jaacutena fala da Deusa (124-25) que agravequela passagem se segue os verbos estatildeono presente ldquopheacuterousinrdquo e ldquohikaacutenonrdquo o primeiro no indicativo presente cujosujeito eacute ldquotaiacuterdquo e o segundo no particiacutepio presente cujo sujeito eacute ldquohemeacuteterondocircrdquo Isto eacute a histoacuteria eacute narrada como se a proacutepria Deusa estivesse nestemomento falando quando na verdade ela falou ao jovem no passado (oque sabemos por 123) Trata-se portanto de uma interpretaccedilatildeo cecircnicada fala da Deusa por parte do narrador da histoacuteria cuja voz se confundecom a do proacuteprio ldquojovemrdquo da narrativa

Em siacutentese a estrutura comporta algumas divisotildees e subdivisotildees Temosa narrativa que o jovem faz da sua viagem ateacute a morada da Deusa (ParteI) temos a interpretaccedilatildeo cecircnica da fala da Deusa feita pelo jovem como seesta fala a da Deusa (Parte II) estivesse ocorrendo no presente Ademaisessa fala (eacutepos) comporta por sua vez outras divisotildees internas

A Deusa apresentaraacute ao jovem duas doacutexai a dos mortais e a doacutexa delaproacutepria que consiste no ldquocoraccedilatildeo da verdaderdquo Antes de iniciar a apresen-taccedilatildeo das doacutexai dela e dos mortais haacute uma raacutepida introduccedilatildeo (estamos nosreferindo aos versos de B124 a B22) Na sequecircncia a Deusa apresentaraacuteas vias de investigaccedilatildeo fazendo algumas observaccedilotildees e comentarios (deB23 a B82) depois apresentaraacute o coraccedilatildeo da verdade (de B82 a B852)e 3nalmente as doacutexai dos mortais (de B853 a B193)

Estrutura

I (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B11 ateacute B123II (A fala da Deusa) de B124 ateacute o 3nal (B193)

a (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo + O Coraccedilatildeoda Verdade) de B124 ateacute B852

i (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo) deB124 ateacute B821 (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo) de B124 a B222 (As Vias de Investigaccedilatildeo) de B23 a B82

ii (O Coraccedilatildeo da Verdade) de B82 ateacute B852b (As Especulaccedilotildees dos Mortais) de B853 ateacute B193

As partes do poema satildeo entatildeo o proecircmio (B11 a B123) a introduccedilatildeo agraveinvestigaccedilatildeo (B124 a B22) que Mourelatos chama de ldquoseccedilatildeo programaacuteti-

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 3: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

41Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

fonte antiga que a3rmava que Parmecircnides havia escrito ao modo de He-siacuteodo e de Xenoacutefanes4 Salvo pela referecircncia a Xenoacutefanes os historiadoresda 3loso3a reconhecem unanimemente a conexatildeo do poema de Parmecircni-des com a tradiccedilatildeo eacutepica arcaica de Homero e Hesiacuteodo que ultrapassa aidentidade quanto agrave meacutetrica e ao gecircnero literaacuterio

Outro elemento formal importante do poema eacute o seu dialeto O poemafoi escrito no dialeto jocircnico antigo tambeacutem chamado homeacuterico ou pan--helecircnico Antocircnio Freire (2001 250) observa que ldquoo dialeto homeacuterico natildeoconstitui propriamente uma liacutengua falada em determinada regiatildeo Eacuteantes uma linguagem convencional baseada no jocircnico e em certas formaseoacutelicas aacutercado-ciacutepricas e aacuteticas de que se utilizou o autor da ldquoIliacuteadardquo e daldquoOdisseiardquo e que inYuenciou os diversos gecircneros poeacuteticos lirismo elegiae dramardquo Natildeo eacute o nosso objetivo um estudo sistemaacutetico dos elementosformais do poema mas podemos citar alguns exemplos sobre a variaacuteveldialetal na qual o poema foi escrito

No primeiro verso do poema temos ldquohiacuteppoi taiacute ()rdquo (B11) ldquotaiacuterdquo eacute o nomi-nativo feminino plural do artigo no dialeto homeacuterico portanto ldquoas eacuteguasrdquo5

No seacutetimo verso do segundo fragmento temos ldquo() megrave eograven ()rdquo (B17)ldquoeoacutenrdquo eacute o nominativoacusativo neutro singular do dialeto homeacuterico noqual ocorre um acreacutescimo do ldquoεrdquo (egravepsiloacuten) a algumas formas do particiacutepiodo verbo ldquoeimiacuterdquo6 No primeiro verso do sexto fragmento temos ldquo() eograveneacutemmenai ()rdquo (B61) ldquoeacutemmenairdquo eacute uma variaccedilatildeo comum (por acreacutescimo daterminaccedilatildeo ldquo-mevairdquo ou ldquo-menrdquo) do in3nitivo do verbo ldquoeimiacuterdquo ldquoeicircnairdquo7

Esses satildeo apenas alguns exemplos de uma seacuterie de outros que poderiamser apresentados mas que fogem ao nosso propoacutesito Para um examedetalhado das caracteriacutesticas formais do poema (meacutetrica composiccedilatildeovocabulaacuterio fraseologia etc) recomendamos o primeiro capiacutetulo do livroThe Route of Parmenides de Alexander Mourelatos (2008) bem como umestudo do dialeto homeacuterico8

O conjunto de caracteriacutesticas apresentado (1 a escolha pela poesia peloverso 2 a escolha do hexacircmetro dactiacutelico para a meacutetrica dos versos e3 a escolha do dialeto homeacuterico) mostra que com efeito ao menos noniacutevel formal Parmecircnides inscreveu o seu texto na tradiccedilatildeo miacutetica arcaica

4 DLIX2211-125 Cf FREIRE (2001 251) Em Os Pensadores Originaacuterios (1993 43) Seacutergio Wrublewski se equivoca

ao traduzir ldquohiacuteppoi taiacuterdquo por ldquoos cavalosrdquo o mesmo equiacutevoco eacute cometido por Gerd A Bornheim em

Os Filoacutesofos Preacute-Socraacuteticos (2003 54) Atualmente a melhor traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa do

poema de Parmecircnides eacute a de Fernando Santoro (2009)6 FREIRE (2001 250)7 FREIRE (2001 253) Em B26 temos ldquoeacutemmenrdquo que eacute igual a ldquoeicircnairdquo8 Mourelatos (2008 1-46) trata-se da versatildeo revisada e expandida da original de 1970 ocuparemo-nos

apenas com alguns dos motivos e temas destacados por ele Para um estudo preliminar do dialeto ho-

meacuterico recomendamos FREIRE (2001 250-255) SMYTH (1984 1-4B) e E RAGON (2008 241-250)

42 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O poema estaacute estruturado da seguinte maneira ele eacute dividido em duasgrandes partes A primeira vai de B11 ateacute B123 A segunda abarca todo orestante do poema Esta uacuteltima por sua vez eacute subdividida em duas outraspartes a primeira delas vai de B124 ateacute B852 a segunda vai de B853 ateacuteo 3nal em B193 isto desconsiderando os fragmentos duvidosos e prova-velmente falsos de B20 a B25 A primeira parte (de B124 ateacute B852) dasegunda parte (de B124 ateacute o 3nal) eacute tambeacutem dividida em duas outraspartes sendo a primeira de B124 ateacute B82 e a segunda de B82 ateacute B852

Estrutura

I Primeira Parte vai de B11 ateacute B123II Segunda Parte vai de B124 ateacute o 3nal (B193)

a Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B852i Primeira Parte da Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B82ii Segunda Parte da Primeira Subparte de II vai de B82 ateacute B852

b Segunda Subparte de II vai de B853 ateacute B193

A parte ldquoIrdquo corresponde agrave narrativa do ldquokoucircrosrdquo em primeira pessoa dasua viagem ateacute a morada da Deusa (Theaacute) mais precisamente ateacute o mo-mento no qual ela a Deusa ldquotomardquo a palavra Observemos que a rigor anarrativa permanece na primeira pessoa a voz de todo o poema continuasendo a do ldquojovemrdquo que a partir daqui (124) narra o que a deusa lhe eriadito como se a deusa estivesse falando

A parte ldquoIIrdquo corresponde agrave fala da deusa interpretada (posta em cena) pelojovem Esse discurso iraacute durar ateacute o 3nal do poema em B193 Por essarazatildeo podemos dizer que todo o poema consiste na narrativa do jovemde sua viagem e do discurso por ele ouvido da Deusa Isso pode serinferido da morfologia dos verbos do poema Os verbos empregados em123 para introduzir a palavra da Deusa satildeo (i) prosaudaacuteo na terceira pes-soa do singular do indicativo ativo imperfeito ldquome προσηύδαrdquo que podeser traduzido por ldquo[ela] dirigia a palavra a mimrdquo e (ii) phemiacute na terceirapessoa do singular do indicativo meacutedio-passivo imperfeito ldquoeacutepos phaacutetordquoque pode ser traduzido por ldquoo discurso era ditordquo ou ldquoo discurso eracontadordquo ou ldquoo discurso era narradordquo ou ldquoo discurso era pronunciadordquoou ainda ldquoo conto era ditordquo En3m haacute muitas possibilidades de traduccedilatildeoque querem dizer grosso modo que um discurso ou que uma histoacuteriaum conto era contado narrado anunciado etc O tempo no qual a histoacuteriaocorreu eacute claramente o do passado A histoacuteria narrada no poema natildeoconsiste em uma narrativa ldquoao vivordquo dos acontecimentos enquanto eles sedatildeo mas sim na interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos passados comose eles estivessem se dando no presente (na parte II) Eacute por essa razatildeo a

43Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos (ieacute da performaccedilatildeo da narra-tiva) que haacute verbos tanto no tempo presente quanto no tempo passadoos verbos no presente satildeo marcaccedilotildees para a encenaccedilatildeo enquanto que osverbos no passado datildeo caraacuteter narrativo ao conto Podemos demonstrarisso pela anaacutelise dos verbos em 124 e em 125

124 ldquoOh jovem companheiro de guias imortais

125 eacuteguas as que te conduzem chegando a nossa morada ()rdquo

Ocirc kourrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros Henioacutechoisin

masc mascfemneutr mascfem Masc

form indecl nominativo dativo nominativo Dativo

singular plural singular Plural

Hiacuteppois Taiacute se pheacuterousin hikaacutenon hemeacuteteron Docirc

mascfem feminino 2ordf pessoa partmascneutr partmasc mascneutr neutr

ind3ordf pess

dativo nominativo acusativo atvdat atvnom acusnomvoc nomacusvoc

plural Plural singular presplural pressing singular singular

Observemos que ldquohiacuteppoisrdquo e ldquotaiacuterdquo natildeo estatildeo no mesmo caso e que ldquoatha-naacutetoisirdquo ldquohenioacutechoisinrdquo e ldquohiacuteppoisrdquo concordam em gecircnero caso e nuacutemeroPor essa razatildeo pode ser que as ldquoimortais guiasrdquo de 124 sejam as ldquoeacuteguasrdquode 125 ldquotaiacuterdquo por sua vez retoma ldquohiacuteppoisrdquo Essa eacute uma das caracteriacutesticasimportantes a serem destacadas do dialeto homeacuterico os artigos podemequivaler a pronomes demonstrativos ou a pronomes relativos por issoa traduccedilatildeo de ldquotaiacuterdquo por ldquoas querdquo poderiacuteamos ainda traduzir ldquotaiacuterdquo porldquoestas querdquo

ldquo[124] Oh jovem companheiro de guias imortais [125] eacuteguas estas quete conduzem chegando a nossa morada [126] ltsejagt bem vindo ()rdquo

Argumentaacutevamos que uma anaacutelise de 124 e 125 nos permitiria observarque a histoacuteria narrada ocorreu no passado e eacute encenada no presente comose estivesse ocorrendo no momento em que eacute contada Pois como vimosos verbos que introduzem a fala da Deusa (de 124 125 e seguintes) es-tavam no imperfeito ldquome προσηύδαrdquo e ldquoeacutepos phaacutetordquo O jovem o narrador

44 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (ldquodirigia a palavra a mimrdquo)e entatildeo o discurso (eacutepos) foi dito (phaacuteto) (ldquoo discurso era ditordquo) Naquelapassagem claramente narrativa os verbos estatildeo no passado imperfeito jaacutena fala da Deusa (124-25) que agravequela passagem se segue os verbos estatildeono presente ldquopheacuterousinrdquo e ldquohikaacutenonrdquo o primeiro no indicativo presente cujosujeito eacute ldquotaiacuterdquo e o segundo no particiacutepio presente cujo sujeito eacute ldquohemeacuteterondocircrdquo Isto eacute a histoacuteria eacute narrada como se a proacutepria Deusa estivesse nestemomento falando quando na verdade ela falou ao jovem no passado (oque sabemos por 123) Trata-se portanto de uma interpretaccedilatildeo cecircnicada fala da Deusa por parte do narrador da histoacuteria cuja voz se confundecom a do proacuteprio ldquojovemrdquo da narrativa

Em siacutentese a estrutura comporta algumas divisotildees e subdivisotildees Temosa narrativa que o jovem faz da sua viagem ateacute a morada da Deusa (ParteI) temos a interpretaccedilatildeo cecircnica da fala da Deusa feita pelo jovem como seesta fala a da Deusa (Parte II) estivesse ocorrendo no presente Ademaisessa fala (eacutepos) comporta por sua vez outras divisotildees internas

A Deusa apresentaraacute ao jovem duas doacutexai a dos mortais e a doacutexa delaproacutepria que consiste no ldquocoraccedilatildeo da verdaderdquo Antes de iniciar a apresen-taccedilatildeo das doacutexai dela e dos mortais haacute uma raacutepida introduccedilatildeo (estamos nosreferindo aos versos de B124 a B22) Na sequecircncia a Deusa apresentaraacuteas vias de investigaccedilatildeo fazendo algumas observaccedilotildees e comentarios (deB23 a B82) depois apresentaraacute o coraccedilatildeo da verdade (de B82 a B852)e 3nalmente as doacutexai dos mortais (de B853 a B193)

Estrutura

I (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B11 ateacute B123II (A fala da Deusa) de B124 ateacute o 3nal (B193)

a (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo + O Coraccedilatildeoda Verdade) de B124 ateacute B852

i (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo) deB124 ateacute B821 (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo) de B124 a B222 (As Vias de Investigaccedilatildeo) de B23 a B82

ii (O Coraccedilatildeo da Verdade) de B82 ateacute B852b (As Especulaccedilotildees dos Mortais) de B853 ateacute B193

As partes do poema satildeo entatildeo o proecircmio (B11 a B123) a introduccedilatildeo agraveinvestigaccedilatildeo (B124 a B22) que Mourelatos chama de ldquoseccedilatildeo programaacuteti-

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 4: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

42 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O poema estaacute estruturado da seguinte maneira ele eacute dividido em duasgrandes partes A primeira vai de B11 ateacute B123 A segunda abarca todo orestante do poema Esta uacuteltima por sua vez eacute subdividida em duas outraspartes a primeira delas vai de B124 ateacute B852 a segunda vai de B853 ateacuteo 3nal em B193 isto desconsiderando os fragmentos duvidosos e prova-velmente falsos de B20 a B25 A primeira parte (de B124 ateacute B852) dasegunda parte (de B124 ateacute o 3nal) eacute tambeacutem dividida em duas outraspartes sendo a primeira de B124 ateacute B82 e a segunda de B82 ateacute B852

Estrutura

I Primeira Parte vai de B11 ateacute B123II Segunda Parte vai de B124 ateacute o 3nal (B193)

a Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B852i Primeira Parte da Primeira Subparte de II vai de B124 ateacute B82ii Segunda Parte da Primeira Subparte de II vai de B82 ateacute B852

b Segunda Subparte de II vai de B853 ateacute B193

A parte ldquoIrdquo corresponde agrave narrativa do ldquokoucircrosrdquo em primeira pessoa dasua viagem ateacute a morada da Deusa (Theaacute) mais precisamente ateacute o mo-mento no qual ela a Deusa ldquotomardquo a palavra Observemos que a rigor anarrativa permanece na primeira pessoa a voz de todo o poema continuasendo a do ldquojovemrdquo que a partir daqui (124) narra o que a deusa lhe eriadito como se a deusa estivesse falando

A parte ldquoIIrdquo corresponde agrave fala da deusa interpretada (posta em cena) pelojovem Esse discurso iraacute durar ateacute o 3nal do poema em B193 Por essarazatildeo podemos dizer que todo o poema consiste na narrativa do jovemde sua viagem e do discurso por ele ouvido da Deusa Isso pode serinferido da morfologia dos verbos do poema Os verbos empregados em123 para introduzir a palavra da Deusa satildeo (i) prosaudaacuteo na terceira pes-soa do singular do indicativo ativo imperfeito ldquome προσηύδαrdquo que podeser traduzido por ldquo[ela] dirigia a palavra a mimrdquo e (ii) phemiacute na terceirapessoa do singular do indicativo meacutedio-passivo imperfeito ldquoeacutepos phaacutetordquoque pode ser traduzido por ldquoo discurso era ditordquo ou ldquoo discurso eracontadordquo ou ldquoo discurso era narradordquo ou ldquoo discurso era pronunciadordquoou ainda ldquoo conto era ditordquo En3m haacute muitas possibilidades de traduccedilatildeoque querem dizer grosso modo que um discurso ou que uma histoacuteriaum conto era contado narrado anunciado etc O tempo no qual a histoacuteriaocorreu eacute claramente o do passado A histoacuteria narrada no poema natildeoconsiste em uma narrativa ldquoao vivordquo dos acontecimentos enquanto eles sedatildeo mas sim na interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos passados comose eles estivessem se dando no presente (na parte II) Eacute por essa razatildeo a

43Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos (ieacute da performaccedilatildeo da narra-tiva) que haacute verbos tanto no tempo presente quanto no tempo passadoos verbos no presente satildeo marcaccedilotildees para a encenaccedilatildeo enquanto que osverbos no passado datildeo caraacuteter narrativo ao conto Podemos demonstrarisso pela anaacutelise dos verbos em 124 e em 125

124 ldquoOh jovem companheiro de guias imortais

125 eacuteguas as que te conduzem chegando a nossa morada ()rdquo

Ocirc kourrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros Henioacutechoisin

masc mascfemneutr mascfem Masc

form indecl nominativo dativo nominativo Dativo

singular plural singular Plural

Hiacuteppois Taiacute se pheacuterousin hikaacutenon hemeacuteteron Docirc

mascfem feminino 2ordf pessoa partmascneutr partmasc mascneutr neutr

ind3ordf pess

dativo nominativo acusativo atvdat atvnom acusnomvoc nomacusvoc

plural Plural singular presplural pressing singular singular

Observemos que ldquohiacuteppoisrdquo e ldquotaiacuterdquo natildeo estatildeo no mesmo caso e que ldquoatha-naacutetoisirdquo ldquohenioacutechoisinrdquo e ldquohiacuteppoisrdquo concordam em gecircnero caso e nuacutemeroPor essa razatildeo pode ser que as ldquoimortais guiasrdquo de 124 sejam as ldquoeacuteguasrdquode 125 ldquotaiacuterdquo por sua vez retoma ldquohiacuteppoisrdquo Essa eacute uma das caracteriacutesticasimportantes a serem destacadas do dialeto homeacuterico os artigos podemequivaler a pronomes demonstrativos ou a pronomes relativos por issoa traduccedilatildeo de ldquotaiacuterdquo por ldquoas querdquo poderiacuteamos ainda traduzir ldquotaiacuterdquo porldquoestas querdquo

ldquo[124] Oh jovem companheiro de guias imortais [125] eacuteguas estas quete conduzem chegando a nossa morada [126] ltsejagt bem vindo ()rdquo

Argumentaacutevamos que uma anaacutelise de 124 e 125 nos permitiria observarque a histoacuteria narrada ocorreu no passado e eacute encenada no presente comose estivesse ocorrendo no momento em que eacute contada Pois como vimosos verbos que introduzem a fala da Deusa (de 124 125 e seguintes) es-tavam no imperfeito ldquome προσηύδαrdquo e ldquoeacutepos phaacutetordquo O jovem o narrador

44 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (ldquodirigia a palavra a mimrdquo)e entatildeo o discurso (eacutepos) foi dito (phaacuteto) (ldquoo discurso era ditordquo) Naquelapassagem claramente narrativa os verbos estatildeo no passado imperfeito jaacutena fala da Deusa (124-25) que agravequela passagem se segue os verbos estatildeono presente ldquopheacuterousinrdquo e ldquohikaacutenonrdquo o primeiro no indicativo presente cujosujeito eacute ldquotaiacuterdquo e o segundo no particiacutepio presente cujo sujeito eacute ldquohemeacuteterondocircrdquo Isto eacute a histoacuteria eacute narrada como se a proacutepria Deusa estivesse nestemomento falando quando na verdade ela falou ao jovem no passado (oque sabemos por 123) Trata-se portanto de uma interpretaccedilatildeo cecircnicada fala da Deusa por parte do narrador da histoacuteria cuja voz se confundecom a do proacuteprio ldquojovemrdquo da narrativa

Em siacutentese a estrutura comporta algumas divisotildees e subdivisotildees Temosa narrativa que o jovem faz da sua viagem ateacute a morada da Deusa (ParteI) temos a interpretaccedilatildeo cecircnica da fala da Deusa feita pelo jovem como seesta fala a da Deusa (Parte II) estivesse ocorrendo no presente Ademaisessa fala (eacutepos) comporta por sua vez outras divisotildees internas

A Deusa apresentaraacute ao jovem duas doacutexai a dos mortais e a doacutexa delaproacutepria que consiste no ldquocoraccedilatildeo da verdaderdquo Antes de iniciar a apresen-taccedilatildeo das doacutexai dela e dos mortais haacute uma raacutepida introduccedilatildeo (estamos nosreferindo aos versos de B124 a B22) Na sequecircncia a Deusa apresentaraacuteas vias de investigaccedilatildeo fazendo algumas observaccedilotildees e comentarios (deB23 a B82) depois apresentaraacute o coraccedilatildeo da verdade (de B82 a B852)e 3nalmente as doacutexai dos mortais (de B853 a B193)

Estrutura

I (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B11 ateacute B123II (A fala da Deusa) de B124 ateacute o 3nal (B193)

a (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo + O Coraccedilatildeoda Verdade) de B124 ateacute B852

i (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo) deB124 ateacute B821 (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo) de B124 a B222 (As Vias de Investigaccedilatildeo) de B23 a B82

ii (O Coraccedilatildeo da Verdade) de B82 ateacute B852b (As Especulaccedilotildees dos Mortais) de B853 ateacute B193

As partes do poema satildeo entatildeo o proecircmio (B11 a B123) a introduccedilatildeo agraveinvestigaccedilatildeo (B124 a B22) que Mourelatos chama de ldquoseccedilatildeo programaacuteti-

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 5: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

43Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da interpretaccedilatildeo cecircnica dos acontecimentos (ieacute da performaccedilatildeo da narra-tiva) que haacute verbos tanto no tempo presente quanto no tempo passadoos verbos no presente satildeo marcaccedilotildees para a encenaccedilatildeo enquanto que osverbos no passado datildeo caraacuteter narrativo ao conto Podemos demonstrarisso pela anaacutelise dos verbos em 124 e em 125

124 ldquoOh jovem companheiro de guias imortais

125 eacuteguas as que te conduzem chegando a nossa morada ()rdquo

Ocirc kourrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros Henioacutechoisin

masc mascfemneutr mascfem Masc

form indecl nominativo dativo nominativo Dativo

singular plural singular Plural

Hiacuteppois Taiacute se pheacuterousin hikaacutenon hemeacuteteron Docirc

mascfem feminino 2ordf pessoa partmascneutr partmasc mascneutr neutr

ind3ordf pess

dativo nominativo acusativo atvdat atvnom acusnomvoc nomacusvoc

plural Plural singular presplural pressing singular singular

Observemos que ldquohiacuteppoisrdquo e ldquotaiacuterdquo natildeo estatildeo no mesmo caso e que ldquoatha-naacutetoisirdquo ldquohenioacutechoisinrdquo e ldquohiacuteppoisrdquo concordam em gecircnero caso e nuacutemeroPor essa razatildeo pode ser que as ldquoimortais guiasrdquo de 124 sejam as ldquoeacuteguasrdquode 125 ldquotaiacuterdquo por sua vez retoma ldquohiacuteppoisrdquo Essa eacute uma das caracteriacutesticasimportantes a serem destacadas do dialeto homeacuterico os artigos podemequivaler a pronomes demonstrativos ou a pronomes relativos por issoa traduccedilatildeo de ldquotaiacuterdquo por ldquoas querdquo poderiacuteamos ainda traduzir ldquotaiacuterdquo porldquoestas querdquo

ldquo[124] Oh jovem companheiro de guias imortais [125] eacuteguas estas quete conduzem chegando a nossa morada [126] ltsejagt bem vindo ()rdquo

Argumentaacutevamos que uma anaacutelise de 124 e 125 nos permitiria observarque a histoacuteria narrada ocorreu no passado e eacute encenada no presente comose estivesse ocorrendo no momento em que eacute contada Pois como vimosos verbos que introduzem a fala da Deusa (de 124 125 e seguintes) es-tavam no imperfeito ldquome προσηύδαrdquo e ldquoeacutepos phaacutetordquo O jovem o narrador

44 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (ldquodirigia a palavra a mimrdquo)e entatildeo o discurso (eacutepos) foi dito (phaacuteto) (ldquoo discurso era ditordquo) Naquelapassagem claramente narrativa os verbos estatildeo no passado imperfeito jaacutena fala da Deusa (124-25) que agravequela passagem se segue os verbos estatildeono presente ldquopheacuterousinrdquo e ldquohikaacutenonrdquo o primeiro no indicativo presente cujosujeito eacute ldquotaiacuterdquo e o segundo no particiacutepio presente cujo sujeito eacute ldquohemeacuteterondocircrdquo Isto eacute a histoacuteria eacute narrada como se a proacutepria Deusa estivesse nestemomento falando quando na verdade ela falou ao jovem no passado (oque sabemos por 123) Trata-se portanto de uma interpretaccedilatildeo cecircnicada fala da Deusa por parte do narrador da histoacuteria cuja voz se confundecom a do proacuteprio ldquojovemrdquo da narrativa

Em siacutentese a estrutura comporta algumas divisotildees e subdivisotildees Temosa narrativa que o jovem faz da sua viagem ateacute a morada da Deusa (ParteI) temos a interpretaccedilatildeo cecircnica da fala da Deusa feita pelo jovem como seesta fala a da Deusa (Parte II) estivesse ocorrendo no presente Ademaisessa fala (eacutepos) comporta por sua vez outras divisotildees internas

A Deusa apresentaraacute ao jovem duas doacutexai a dos mortais e a doacutexa delaproacutepria que consiste no ldquocoraccedilatildeo da verdaderdquo Antes de iniciar a apresen-taccedilatildeo das doacutexai dela e dos mortais haacute uma raacutepida introduccedilatildeo (estamos nosreferindo aos versos de B124 a B22) Na sequecircncia a Deusa apresentaraacuteas vias de investigaccedilatildeo fazendo algumas observaccedilotildees e comentarios (deB23 a B82) depois apresentaraacute o coraccedilatildeo da verdade (de B82 a B852)e 3nalmente as doacutexai dos mortais (de B853 a B193)

Estrutura

I (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B11 ateacute B123II (A fala da Deusa) de B124 ateacute o 3nal (B193)

a (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo + O Coraccedilatildeoda Verdade) de B124 ateacute B852

i (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo) deB124 ateacute B821 (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo) de B124 a B222 (As Vias de Investigaccedilatildeo) de B23 a B82

ii (O Coraccedilatildeo da Verdade) de B82 ateacute B852b (As Especulaccedilotildees dos Mortais) de B853 ateacute B193

As partes do poema satildeo entatildeo o proecircmio (B11 a B123) a introduccedilatildeo agraveinvestigaccedilatildeo (B124 a B22) que Mourelatos chama de ldquoseccedilatildeo programaacuteti-

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 6: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

44 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

nos diz que a Deusa dirigiu a palavra a ele (ldquodirigia a palavra a mimrdquo)e entatildeo o discurso (eacutepos) foi dito (phaacuteto) (ldquoo discurso era ditordquo) Naquelapassagem claramente narrativa os verbos estatildeo no passado imperfeito jaacutena fala da Deusa (124-25) que agravequela passagem se segue os verbos estatildeono presente ldquopheacuterousinrdquo e ldquohikaacutenonrdquo o primeiro no indicativo presente cujosujeito eacute ldquotaiacuterdquo e o segundo no particiacutepio presente cujo sujeito eacute ldquohemeacuteterondocircrdquo Isto eacute a histoacuteria eacute narrada como se a proacutepria Deusa estivesse nestemomento falando quando na verdade ela falou ao jovem no passado (oque sabemos por 123) Trata-se portanto de uma interpretaccedilatildeo cecircnicada fala da Deusa por parte do narrador da histoacuteria cuja voz se confundecom a do proacuteprio ldquojovemrdquo da narrativa

Em siacutentese a estrutura comporta algumas divisotildees e subdivisotildees Temosa narrativa que o jovem faz da sua viagem ateacute a morada da Deusa (ParteI) temos a interpretaccedilatildeo cecircnica da fala da Deusa feita pelo jovem como seesta fala a da Deusa (Parte II) estivesse ocorrendo no presente Ademaisessa fala (eacutepos) comporta por sua vez outras divisotildees internas

A Deusa apresentaraacute ao jovem duas doacutexai a dos mortais e a doacutexa delaproacutepria que consiste no ldquocoraccedilatildeo da verdaderdquo Antes de iniciar a apresen-taccedilatildeo das doacutexai dela e dos mortais haacute uma raacutepida introduccedilatildeo (estamos nosreferindo aos versos de B124 a B22) Na sequecircncia a Deusa apresentaraacuteas vias de investigaccedilatildeo fazendo algumas observaccedilotildees e comentarios (deB23 a B82) depois apresentaraacute o coraccedilatildeo da verdade (de B82 a B852)e 3nalmente as doacutexai dos mortais (de B853 a B193)

Estrutura

I (A Narrativa da Viagem do Jovem) de B11 ateacute B123II (A fala da Deusa) de B124 ateacute o 3nal (B193)

a (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo + O Coraccedilatildeoda Verdade) de B124 ateacute B852

i (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo + As Vias de Investigaccedilatildeo) deB124 ateacute B821 (Introduccedilatildeo agrave Investigaccedilatildeo) de B124 a B222 (As Vias de Investigaccedilatildeo) de B23 a B82

ii (O Coraccedilatildeo da Verdade) de B82 ateacute B852b (As Especulaccedilotildees dos Mortais) de B853 ateacute B193

As partes do poema satildeo entatildeo o proecircmio (B11 a B123) a introduccedilatildeo agraveinvestigaccedilatildeo (B124 a B22) que Mourelatos chama de ldquoseccedilatildeo programaacuteti-

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 7: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

45Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

cardquo9 as vias de investigaccedilatildeo (B23 a B82) o coraccedilatildeo da verdade (B82 aB852) e as especulaccedilotildees dos mortais (B853 a B193)

A histoacuteria narrada se passa na sua maior parte na morada de Theaacute aDeusa (que defenderemos ser tambeacutem a morada de Hemeacutera a deusaDia) isto porque a maior parte do poema consiste no discurso da Deusao qual eacute proferido na sua proacutepria casa A jornada em direccedilatildeo agrave moradade Hemeacutera segue a partir da morada de Nuacutex (a deusa Noite) Essa eacute umaindicaccedilatildeo de que o trajeto percorrido coincide com o trajeto do carro deHeacutelios (o deus Sol) Essa evidecircncia eacute apoiada pela presenccedila das Heliaacutedes(as deusas Filhas de Heacutelios) que podem ser natildeo menos que as guias docaminho (confrontar os versos B15 com B19)10 Nada mais razoaacutevel queas Heliaacutedes como guias do caminho de Heacutelios isto eacute aquele que vai damorada de Nuacutex agrave morada de Hemeacutera

As personagens centrais do poema satildeo as eacuteguas as Heliaacutedes o jovem aDeusa Theacutemis e Diacuteke Haacute muitas outras deusas e alguns deuses citadaspela Deusa ou presentes nos discursos dos mortais Observariacuteamos queapenas nos discursos dos mortais eacute que aparecem 3guras divinas mascu-linas como o proacuteprio Heacutelios Haacute tambeacutem divindades cuja presenccedila nopoema eacute percebida mesmo nos momentos nos quais elas natildeo satildeo dire-tamente nomeadas Esse eacute o caso por exemplo de Aitheacuter (o deus Luz)cuja presenccedila eacute perceptiacutevel nos portais que separam as moradas de Nuacutexe de Hemeacutera (B113)

Jaacute sabemos que o poema de Parmecircnides estaacute conectado agrave tradiccedilatildeo miacuteticaanterior por razotildees formais bem como jaacute tomamos conhecimento das pos-siacuteveis conexotildees de Parmecircnides comAmiacutenias e Xenoacutefanes os representantesda 3loso3a de sua eacutepoca e contexto geograacute3co Agora passaremos a umaanaacutelise mais pormenorizada dessas conexotildees tambeacutem no niacutevel dos conteuacute-dos do poema Comeccedilaremos com a tradiccedilatildeo miacutetica arcaica eacutepica e oacuter3capara em seguida passar agraves suas assimilaccedilotildees criacuteticas no protopitagorismoe na 3loso3a de Xenoacutefanes

9MOURELATOS (2008 4) Mourelatos distingue uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo para cada uma das partes

principais do poema (o coraccedilatildeo da verdade e as doacutexai dos mortais) mas de 124 a 22 temos muito

mais uma apresentaccedilatildeo do programa de pesquisa geral que uma apresentaccedilatildeo de um dos programas

de pesquisa em particular Por outro lado poder-se-ia argumentar que de 851 a 861 temos a ldquoseccedilatildeo

programaacuteticardquo referente agraves doacutexai mas o mais correto eacute dizer que temos um comentaacuterio sobre as doacutexai

que serve como uma introduccedilatildeo agraves doacutexai e natildeo uma ldquoseccedilatildeo programaacuteticardquo como quer Mourelatos10 Haacute uma interessante possibilidade interpretativa na qual o substantivo que aqui funciona como

um adjetivo ldquokoucircrairdquo (de koacutere em B15) esteja quali2cando as eacuteguas (em B14) jaacute que concorda

com o substantivo ldquohiacuteppoirdquo em nuacutemero gecircnero e caso Se assim for a relevacircncia das Filhas do Sol

no poema eacute reduzida

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 8: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

46 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Parmecircnides e a Poesia Eacutepica

A literatura comparada natildeo nos permite negar que no poema de Parmecircni-des estejam presentes imagens palavras personagens objetos em siacutenteseldquomotivosrdquo e ldquotemasrdquo11 da poesia eacutepica da qual Parmecircnides se serve Mas quehaja tais elementos ou natildeo natildeo eacute a questatildeo hermenecircutica fundamental Aquestatildeo relevante para a interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides eacute que sentidoesses elementos oriundos da tradiccedilatildeo possuem no poema de Parmecircnides12

A apariccedilatildeo dos mesmos nomes por exemplo natildeo implica na identidadedos seus sentidos13 Fernando Santoro (2007) observou apropriadamenteque a diferenccedila do discurso miacutetico e do discurso fiacutesico natildeo estaacute nos ob-jetos que estes discursos colocam mas no modo como esses objetos satildeopostos Heacutelios eacute nomeado no poema de Parmecircnides em B102 mas em umcontexto no qual o imperativo eacute conhecer a natureza de

E [tu] conheceraacutes a natureza eteacuterea de todos os sinais no eacuteter tantoda chama do Sol luminoso puro quanto donde se geraram as accedilotildeesinvisiacuteveisldquo(101) eiacutesei drsquo aitheriacutean te phyacutesin taacute trsquo em aitheacuteri paacutenta (102) seacutematakaigrave katharacircs euageacuteos eeliacuteoio (103) lampaacutedos eacutergrsquo aiacutedela kaigrave hoppoacutethenexegeacutenontordquo

Este eacute um contexto de investigaccedilatildeo tipicamente astronocircmica tal comoo eacute aquele de Soacutecrates descrito por Aristoacutefanes nas Nuvens (225-227)14Se as doacutexai dos mortais satildeo a segunda via de investigaccedilatildeo de3nida porParmecircnides entatildeo essas referecircncias aos deuses da tradiccedilatildeo natildeo se fazemcertamente do mesmo modo e portanto possuem jaacute um sentido outrorelativamente agravequele da tradiccedilatildeo miacutetica O nosso objetivo eacute medir coma maior precisatildeo possiacutevel a que distacircncia Parmecircnides estaacute da tradiccedilatildeoque lhe antecede e da qual ele extrai sem qualquer duacutevida muitos doselementos que emprega na constituiccedilatildeo da sua reYexatildeo 3losoacute3ca

A Jornada Eacutepica

Uma das comparaccedilotildees de maior destaque do poema de Parmecircnides coma tradiccedilatildeo eacutepica eacute a da jornada do koucircros com a jornada de Odisseu Haacute

11 MOURELATOS (2008 11)12 Muitos inteacuterpretes cometem o erro de assumir uma resposta para essa questatildeo antes da anaacutelise

comparativa fazendo da anaacutelise natildeo uma investigaccedilatildeo da questatildeo mas tatildeo somente um meio pelo

qual podem buscar subsidiar a sua posiccedilatildeo tomada de antematildeo Erro esse (Petitio Principii) que

devemos evitar com o maior cuidado13 MOURELATOS (2008 6) foi muito cuidadoso ao examinar o problema mesmo tendo se inclinado

por um ldquocontexto semacircnticordquo comum ldquoThe likelihood is that what came with the Homeric World

was also its semantic context in the epicrdquo14 Cf SANTORO (2009 84ss)

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 9: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

47Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

muitos elementos comuns agraves duas narrativas (como a presenccedila de escoltaspara Odisseu e para o koucircros15 a comparaccedilatildeo das naus com os raacutepidoscavalos16 e a presenccedila fundamental das divindades que indicam ou sina-lizam o caminho a ser percorrido17) o que sugere a possibilidade de umaequivalecircncia formal eou temaacutetica18 Uma equivalecircncia formal das jornadasconsistiria na identidade das estruturas textuais formais subjacentes agraves duasnarrativas Enquanto que uma equivalecircncia temaacutetica consistiria na identida-de temaacutetica (seja de motivo seja de tema) das duas narrativas o que eacute bemmais plausiacutevel Ambas as narrativas recorrem a certo nuacutemero de elementoslexicais comuns como os termos hodoacutes keacuteleuthos peacutempo (dentre outros)19 econsistem com efeito na narrativa de uma ou mais jornadas No caso deOdisseu trata-se da jornada ou viagem de retorno a sua paacutetria a Iacutetacajaacute no caso do poema de Parmecircnides haacute uma primeira jornada do koucircros agravemorada da Deusa e uma segunda jornada do pensamento ao coraccedilatildeo daverdade e agraves especulaccedilotildees dos mortais (confrontar B22 com B126-32) Eacutereconheciacutevel nas duas narrativas a identidade temaacutetica quanto ao motivoda jornada Mas a identidade formal e a identidade temaacutetica quanto aotema da jornada natildeo satildeo reconheciacuteveis Isso porque a estrutura das jornadaseacute com efeito distinta Enquanto Odisseu se esforccedila por retornar ao seular sua bem conhecida terra natal O ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute raptado elevado sem saber o porquecirc da sua partida nem o destino da sua jornadaque eacute ao contraacuterio da Iacutetaca de Odisseu um lugar muito distante das rotasdos humanos (B126-28) Se por um lado a viagem de Odisseu consistena sua intencional jornada de retorno por outro a viagem do koucircros eacute deida e eacute mais um rapto que uma jornada engajada (ainda que possa resultardo meacuterito do jovem raptado) Portanto apesar da identidade ldquogeneacutericardquodo motivo da jornada natildeo haacute coincidecircncia dos temas pois se tratam dejornadas distintas sendo uma delas uma jornada engajada de retorno e aoutra uma jornadarapto de ida

A Investigaccedilatildeo e a Revelaccedilatildeo

Outro toacutepos das anaacutelises comparadas do poema de Parmecircnides com atradiccedilatildeo eacutepica eacute o da confrontaccedilatildeo do motivo da investigaccedilatildeodescobertacom o motivo da inspiraccedilatildeorevelaccedilatildeo Neste como em alguns outros pon-

15 MOURELATOS (2008 18-19)16 MOURELATOS (2008 22-23) Essa eacute uma passagem interessante da argumentaccedilatildeo de Mourela-

tos porque ela envolve o paralelo entre os cavalos e as naus dos focenses o grupo eacutetnico ao qual

Parmecircnides pertence17 MOURELATOS (2008 20-21 e 23)18 Estamos aqui nos referindo com ldquotemaacuteticardquo tanto ao que Mourelatos (2008 11) chamou de

ldquomotivordquo quanto ao que ele chamou de ldquotemardquo19 MOURELATOS (2008 4-11)

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 10: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

48 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

tos do poema a posiccedilatildeo de Parmecircnides natildeo eacute niacutetida Sabemos que ospoemas de Homero e de Hesiacuteodo recorrem ao recurso da invocaccedilatildeo dasMusas Hesiacuteodo eacute muito mais claro que Homero e que Parmecircnides aomenos na Teogonia e fornece informaccedilotildees mais precisas sobre a sua rela-ccedilatildeo com as Musas as deusas 3lhas da Memoacuteria20 Homero natildeo informacomo ldquorecebeurdquo o seu canto e como Parmecircnides recorre agrave Theaacute (Il11 eB122) sem lhe nomear

O fato basilar eacute que o discurso verdadeiro na obra de todos os trecircs poe-tas natildeo parte deles proacuteprios ainda que os empreguem como porta-vozesde uma verdade a eles transmitida pelas divindades Essa invocaccedilatildeo dainspiraccedilatildeo por meio da qual a verdade pode vir-a-ser tiacutepica da eacutepica seassemelha agrave revelaccedilatildeo da Deusa parmenidiana mas apenas no que con-cerne ao estranhamento do poeta quanto agrave verdade do discurso que ele natildeoeacute capaz de reconhecer como seu ou que para ser e3caz precisa funcionarcomo um discurso de autoridade O caso eacute que seja pelo estranhamentoda verdade seja pela funccedilatildeo da autoridade ou ambos essa semelhanccedilado poema de Parmecircnides com a tradiccedilatildeo eacute problemaacutetica No primeirocaso o menos criacutetico Parmecircnides estaria retrocedendo em um ponto jaacuteesclarecido por Xenoacutefanes (B18 B14 B16 e B15)21 No segundo se poriana companhia dos enganadores falaciosos Mas apesar das semelhanccedilashaacute tambeacutem dessemelhanccedilas muito relevantes As Musas de Homero e deHesiacuteodo diferentemente da Deusa de Parmecircnides natildeo requeriam dos seuspoetas um exame racional das suas palavras ldquojulga [kricircnai] pelo raciociacutenio[loacutegoi]rdquo disse a Deusa ao jovem em B75 Entatildeo a posiccedilatildeo de Parmecircnidesnatildeo parece ser nem a dos poetas inspirados pelas Musas (porta-vozesdos deuses) nem a do criacutetico Xenoacutefanes (intelectual autocircnomo) mas umaposiccedilatildeo intermediaacuteria

Dia e Noite

Igualmente difiacutecil de situar eacute a posiccedilatildeo do poema quando ao domiacuteniocosmoloacutegico que evoca As hipoacuteteses mais evidentes satildeo (i) a jornadaconsiste em uma anaacutebasis indo dos domiacutenios da Noite para os do Diano Urano (ii) a jornada consiste em uma kataacutebasis indo dos domiacutenios doDia para os da Noite no Taacutertaros Aqui tambeacutem devemos ser prudentesPara Mourelatos (2008 15) ldquoa topogra3a da jornada estaacute desfocada aleacutemdo reconhecimentordquo Sua avaliaccedilatildeo se apoia nos seguintes pontos

20 Na Teogonia (22) Hesiacuteodo diz claramente que o seu canto foi ensinado pelas Musas ldquoas quais

um dia ensinaram [ediacutedaxan] Hesiacuteodo belo cantordquo21 Voltaremos a esse ponto

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 11: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

49Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Por um lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da anaacutebasis)

1 A presenccedila das Heliaacutedes eacute um sinal favoraacutevel a que a direccedilatildeo dajornada seja a da luz (ldquoeis phaacuteosrdquo cf B19-10) uma vez que elas satildeodivindades luminares

2 Se o sujeito de ldquoprolipoucircsairdquo (B110) for o conjunto formado pelasHeliaacutedes pelas eacuteguas pelo carro e pelo koucircros entatildeo ldquoeis phaacuteosrdquo (B19)estabelece a direccedilatildeo da jornada ou seja basta que as Heliaacutedes estejamsendo acompanhadas pelas ldquohiacuteppoirdquo (B14) para que a jornada estejase dirigindo ldquoeis phaacuteosrdquo Com efeito em B15 eacute dito que as ldquokoucircrairdquoldquohodograven hegemoacuteneuonrdquo isto eacute ldquoguiavam o caminhordquo e as Heliaacutedessatildeo ldquokoucircrairdquo (B19) Haacute trecircs possibilidades em jogo (i) o adjetivoldquokoucircrairdquo (de B15) refere-se agraves Heliaacutedes (ii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) refere-se agraves ldquohiacuteppoirdquo (de B14) e (iii) o adjetivo ldquokoucircrairdquo (deB15) natildeo se refere nem agraves Heliaacutedes nem agraves hiacuteppoi mas a outras jovensque soacute aparecem na narrativa neste momento22

3 Os ldquopyacutelairdquo (B111) podem ser os portotildees de Urano (ldquopyacutelai ouranoucircrdquoIl5749) guardados pelas ldquoHocircrairdquo (Il5749) das quais sabemos queDiacuteke eacute uma delas (Teogonia 902)

4 Eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel agrave trajetoacuteria ldquoeis phaacuteosrdquo a qualidadedos portais que satildeo ditos ldquoaitheacuteriairdquo (B113) ldquoluminososrdquo

5 Mourelatos entende que a jornada ldquopara a luzrdquo eacute apropriada para aexperiecircncia de ldquoiluminaccedilatildeordquo que estaacute sendo transmitida no poema(cf B13)

Por outro lado (evidecircncias favoraacuteveis agrave hipoacutetese da kataacutebasis)

1 Sabemos de Teogonia (740) que as rotas da Noite e do Dia estatildeo noTaacutertaro

2 No Taacutertaro (Teogonia 740) contiguo aos portais haacute um abismo oqual tambeacutem eacute mencionado por Parmecircnides (B118)

3 O caminho realizado pelo jovem eacute dito ldquopolyacutephemonrdquo (ldquofamosordquoB12) e a Deusa diz ao jovem que ele natildeo foi encaminhado a elapor uma ldquomoira kakegraverdquo (ldquomaacute sorterdquo = morte B126) ou seja pareceser uma referecircncia ao caminho da psycheacute apoacutes a morte no Taacutertaro

4 O adjetivo ldquopolyacutepoinosrdquo de Diacuteke bem como as referecircncias ao seuofiacutecio de guardiatilde detentora das chaves parecem remeter ao acircmbitodas divindades infernais

Desses conjuntos de evidecircncias agraves hipoacuteteses antiteacuteticas Mourelatos con-cluiu que o lugar no qual a jornada se daacute bem como o do seu destino

22 Essa terceira eacute a hipoacutetese CORNELLI (2009 146)

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 12: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

50 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

foi caracterizado de maneira irreconheciacutevel intencionalmente Todaviaprecisamos fazer algumas observaccedilotildees acreacutescimos e correccedilotildees agraves propo-siccedilotildees de Mourelatos

Em primeiro lugar devemos observar que o lugar eacute irreconheciacutevel se asproposiccedilotildees de Mourelatos estiverem corretas e se natildeo existirem outroscandidatos ao cenaacuterio para aleacutem dos apresentados por Homero e HesiacuteodoO caso eacute que haacute equiacutevocos nas proposiccedilotildees de Mourelatos e haacute outroscandidatos para aleacutem dos apresentados

Mourelatos se equivoca na localizaccedilatildeo do abismo a3rmando que ele seencontra no Taacutertaros quando na verdade ele se encontra proacuteximo agraves fontes(ldquopegaigraverdquo Teogonia 738) entre a Gaia e o Taacutertaro

E tambeacutem aiacute contiguamente estatildeo as fontes e os limites boloren-tos terriacuteveis de todos da Terra sombria do Taacutertaro escuro doMar esteacuteril e do Urano estrelado Certamente os deuses odeiam oimenso abismo Nem em todo um ano completo se atingiria o chatildeose se chegar do lado de dentro aos primeiros dos portotildees mas oviolento vendaval poderia arrastar para caacute e para laacute pelo vendavaleste monstro temiacutevel tambeacutem aos deuses imortais23 Tambeacutem seergueram as moradas temiacuteveis da Noite obscurecedora ocultadaspelas nuvens sombrias (Teogonia 736-745)[736] eacutentha degrave gecircs dnopherecircs kaigrave tartaacuterou eeroacuteentosE tambeacutem aiacute da Terra sombria e do Taacutertaro escuro[737] poacutentou trsquo atrygeacutetoio kaigrave ouranoucirc asteroacuteentosDo Mar esteacuteril e do Urano estrelado[738] hexeiacutees paacutenton pegaigrave kaigrave peiacuteratrsquo eacuteasinContiguamente de todos as fontes e limites estatildeo[739] argaleacutersquo euroacuteenta taacute te stygeacuteousi theoiacute perTerriacuteveis bolorentas odeiam os deusas certamente[740] chaacutesma meacutegrsquo oudeacute ke paacutenta telesphoacuteron eis eniautogravenO abismo imenso Nem em todo completo um ano[741] oucircdas hiacutekoitrsquo ei procircta pyleacuteon eacutentosthe geacutenoitoO chatildeo se atingiria se aos primeiros dos portais do lado de dentrose chegar[742] allaacute ken eacutentha kaigrave eacutentha pheacuteroi prograve thyacuteella thyacuteellesMas poderia para caacute e para laacute arrastar o vendaval para o vendaval

23 Sugerimos que a interpretaccedilatildeo deste passo seja a seguinte os objetos podem ser projetados (ar-

rastados) pela forccedila terriacutevel (imensa) dos ventos de um lado para o outro no interior do vendaval

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 13: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

51Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[743] argaleacuten deinograven degrave kaigrave athanaacutetoisi theoicircsiViolento temiacutevel tambeacutem aos imortais deuses[744] toucircto teacuteras kaigrave Nyktograves eremnecircs oikiacutea deinagraveEste monstro Tambeacutem da Noite obscurecedora as moradas temiacuteveis[745] heacutesteken nepheacuteleis kekalymmeacutena kyaneacuteeisiSe erguem pelas nuvens ocultadas sombrias

Tambeacutem natildeo eacute satisfatoacuterio argumentar que a descriccedilatildeo de Parmecircnides eacuteirreconheciacutevel e isso por duas razotildees por um lado o juiacutezo se fundamentana di3culdade de se fazer equivaler o cenaacuterio descrito por Parmecircnides comos cenaacuterios descritos por Hesiacuteodo e Homero mas estas natildeo satildeo as uacutenicasreferecircncias para a comparaccedilatildeo no contexto histoacuterico de Parmecircnides (haacuteos cenaacuterios cosmoloacutegicos oacuter3cos pitagoacutericos bem como o recente cenaacute-rio cosmoloacutegico apresentado pela astronomia) por outro lado tambeacutem adescriccedilatildeo de Hesiacuteodo eacute obscura para um leitor moderno

Hesiacuteodo a3rma que Atlas o 3lho de Jaacutepeto ldquosustenta o Urano amplordquo(746) mas como isso eacute possiacutevel se Atlas estaacute diante das moradas da Noiteno Taacutertaro a 20 dias de queda livre de distacircncia do Ceacuteu (722-728) Paraaleacutem da enorme distacircncia haacute em acreacutescimo um ldquovendavalrdquo (ou tornadoldquothyacuteellardquo) terriacutevel no abismo entre Gaia e Taacutertaro Ademais a descriccedilatildeo doproacuteprio ldquoCeacuteurdquo eacute ambiacutegua pois sua posiccedilatildeo ora parece ser 3xa ora natildeoparece secirc-lo Com efeito onde estaacute o Ceacuteu durante o Dia uma vez que oCeacuteu estrelado quando a Noite chega se estende sobre Gaia para cobri-la(173-181) Existiriam dois Uranos um ldquoCeacuteu amplordquo (ldquoouranograven eurugravenrdquo 746)permanente e um ldquoCeacuteu estreladordquo (ldquoouranoucirc asteroacuteentosrdquo 737) que sobe edesce com a Noite Devemos considerar ainda que a passagem dos versos760-761 (ldquonunca o luminoso Heacutelios os [Hipnos e Tacircnatos] ilumina com osseus raios nem subindo ao Ceacuteu nem do Ceacuteu descendordquo) parece sugerir quehaacute um Ceacuteu permanente todavia ele eacute o mesmo ldquoCeacuteu estreladordquo que sobecom a Noite para cobrir Gaia ou eacute outro

Se natildeo formos capazes de reestabelecer as coordenadas cosmoloacutegicashomeacuterico-hesioacutedicas das divindades primordiais natildeo poderemos decidirsobre quatildeo proacuteximo ou distante destas estatildeo as coordenadas do cenaacuteriodescrito por Parmecircnides Natildeo podemos comparar algo que queremosconhecer com algo que tambeacutem natildeo conhecemos Para podermos decidirse Parmecircnides situa a ldquosuardquo jornada em um cenaacuterio com as mesmas co-ordenadas do cenaacuterio de Hesiacuteodo ou de Homero precisamos saber quaissatildeo essas coordenadas com as quais faremos a comparaccedilatildeo

Hesiacuteodo situa as fontes (pegaigrave) das quatro maiores divindades no abismolaacute ldquoas raiacutezes nasceramrdquo (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728) Observemos que os verbosque apresentam as fontes (ldquopegaigraverdquo) ou raiacutezes (ldquohriacutezairdquo) estatildeo no passadoperfeito Sugerimos que laacute no abismo natildeo estatildeo agora as fontes ou raiacutezes

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 14: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

52 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

das quatro divindades mas que laacute surgiram tiveram origem as quatrodivindades A expressatildeo ldquopegaigrave kaigrave peiacuteratrsquordquo (738) pode ser compreendida daseguinte maneira laacute no imenso abismo (ldquochaacutesma meacutegrsquordquo 740) se encontramas origens e os ns da Terra do Taacutertaro do Mar e do Ceacuteu Mas natildeo nosentido de que laacute haja algo como uma fonte de um rio mas no sentidode o lugar a partir do qual as divindades nasceram Para subsidiar essainterpretaccedilatildeo argumentamos que Chaacuteos o princiacutepio do Taacutertaro e de Gaia(que por sua vez eacute o princiacutepio de Pontos e de Urano) aiacute habita (811-814)Esse eacute o lugar no qual nasceram (ldquopephyacuteasirdquo 728) as raiacutezes mas natildeo que laacuteelas se encontrem pois laacute haacute o imenso abismo que eacute a morada de Chaacuteos seeacute que de algum modo esse ldquoChaacutesmardquo natildeo coincide com o proacuteprio Chaacuteos

Se essa hipoacutetese interpretativa estiver correta o cenaacuterio pode ser descritoda seguinte maneira Haacute uma regiatildeo abissal tomada por vendavais terriacuteveis(talvez o proacuteprio Chaacuteos) na qual nasceram as raiacutezes (ldquohriacutezai pephyacuteasirdquo 728)de Gaia e de Taacutertaro Tambeacutem aiacute Gaia engendrou mais tarde o Uranoestrelado e o Pontos infecundo de modo que tambeacutem aiacute estatildeo as suasorigens (raiacutezes fontes) E qual eacute a localizaccedilatildeo exata desse lugar desseldquoberccedilaacuteriordquo dos deuses O espaccedilo intermediaacuterio entre Gaia e Taacutertaro asduas divindades nascidas do Chaacuteos uma foi acima e a outra foi abaixoApesar de aparentemente fazer sentido essa hipoacutetese noacutes natildeo temos maisque umas poucas evidecircncias textuais em sua defesa Uma delas eacute a daorigem de Nuacutex da Noite Sabemos que segundo Hesiacuteodo (Teogonia 123)a Noite surgiu (ldquoegeacutenontordquo) do Chaacuteos (ldquoek Chaacuteosrdquo) e sabemos ainda que asmoradas da Noite punham-se de peacute (se erguiam ldquoheacutestekenrdquo 745) no Taacutertaroproacuteximo ao abismo Dado que Hemeacutera foi nascida de (ldquohemeacutere exegeacutenontordquo124) Nuacutex as quais dividem as moradas entatildeo eacute razoaacutevel pensar que aproximidade espacial das divindades em Hesiacuteodo (ao menos em algunscasos) reYita a sua proximidade genealoacutegica Nesse caso os portais pelos quaisa deusa Noite e a deusa Dia passam poderiam ser os proacuteprios portais dassuas moradas pelos quais uma adentra enquanto a outra sai fora

E eacute onde Nix e Hecircmera se aproximam mais saudando-se ao cruzar ogrande umbral de bronze Enquanto uma vai se abaixando para entrara outra sai agrave porta E nunca a morada abriga as duas pois sempreque uma delas estaacute fora percorrendo a terra a outra permanecedentro esperando que chegue o momento de comeccedilar a sua jornada(Teogonia 748-754)24

Se estiverem corretas estas proposiccedilotildees (i) natildeo haacute moradas separadas dasdeusas Noite e Dia como se os seus domiacutenios fossem divisados pelosportais (ii) di3cilmente essas moradas divididas pela Noite e Dia seriama morada da Deusa que recebe o jovem de Parmecircnides e isso porque osportais aos quais o poema de Parmecircnides se refere divisam dois domiacutenios

24 A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010)

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 15: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

53Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

e satildeo luminosos ldquoaitheacuteriairdquo e natildeo haacute em Hesiacuteodo qualquer indiacutecio de luzno Taacutertaro ao contraacuterio haacute uma passagem da Teogonia (514-515) que iden-ti3ca o Taacutertaros com Eacuterebos o deus Escuridatildeo no qual Zeus precipitou oorgulhoso Menoiacutetios (ldquoeis Eacuterebos kateacutepempserdquo 515) A proacutepria deusa Dianatildeo lanccedila luz no Taacutertaro escuro ldquoeeroacuteentosrdquo nem mesmo Heacutelios o fazBasta ver que na ocasiatildeo em que os companheiros de Odisseu comeramas vacas de Heacutelios este solicitou vinganccedila a Zeus pelo que 3zeram ame-accedilando descer ao Hades e ldquobrilhar entre os mortosrdquo (ldquoen nekyacuteessi phaeiacutenordquoOdisseia 12382-383) Ou seja o cenaacuterio descrito por Hesiacuteodo e tambeacutemo descrito por Homero do Taacutertaro natildeo admite a presenccedila de luz o queo impede de ser a sede dos ldquoportais luminososrdquo descritos no poema deParmecircnides (DK 28B111-13) Para que este nosso argumento seja falseadobasta que se apresentem evidencias que mostrem que o Taacutertaro admitesim a presenccedila de luz mais precisamente que nele haacute objetos luminosos

Se por um lado natildeo nos parece ser possiacutevel o envio da luz ao Taacutertaro oua sua presenccedila nele por outro o caminho inverso pode ser encontradoieacute os mortos podem ser devolvidos agrave luz ainda que em contextos ex-cepcionais e a Noite lanccediladora de escuridatildeo (eremnecircs)25 faz o caminho doTaacutertaro em direccedilatildeo agrave superfiacutecie Haacute uma passagem do fragmento 912 deEuriacutepedes que ilustra o primeiro desses movimentos invertidos26

[9] peacutempson drsquo es phocircs psychas eneacutepon[9] havendo de devolver para a luz as almas dos mortais

Finalmente haacute uma razatildeo para que as mansotildees sejam ditas ldquoda Noiterdquo(ldquoNyktograves eremnecircs oikiacuteardquo)27 e natildeo ldquoda Noite e do Diardquo que eacute a seguinte asmansotildees estatildeo no Taacutertaro que eacute de domiacutenio da Noite e da Escuridatildeo Tantoeacute assim que o retorno das almas dos mortais que se encontram no mundodos mortos no Taacutertaro para a superfiacutecie eacute dito ldquopara a luzrdquo como napassagem de Euriacutepedes que acabamos de citar Apesar de habitar nas mes-mas mansotildees que a sua matildee noacutes natildeo encontramos na literatura primaacuterianas fontes qualquer indicaccedilatildeo de que Hemeacutera lance a sua ldquoluz de muitosolharesrdquo (ldquophaacuteos polyderkegravesrdquo) sobre quaquer que seja a parte no Taacutertaro28

25 HESIacuteODO Teogonia 744 e 758 tambeacutem Stesichorus Lyr in Fragmenta S174-5 traz ldquonuktograveseremnacircsrdquo26 EURIPIDES Trag Fragmenta 9129 O segundo movimento jaacute bem conhecido na literatura

aparece na Teogonia (956-957) de Hesiacuteodo27 HESIacuteODO Teogonia 74428 HESIacuteODO Teogonia 755 Observemos ainda que nessa passagem haacute uma conexatildeo entre a luz ea visatildeo os ldquomuitos olharesrdquo A mesma conexatildeo apareceu na Teogonia em 451 mas ldquoa luz de muitos

olhosrdquo era nessa ocasiatildeo a de Eoacutes a irmatilde de Heacutelios Eacute muito interessante notar que Heacutecate foifeita por Zeus a protetora dos ldquojovensrdquo (ldquokourotroacutephonrdquo 450) que ldquoviram a luzrdquo (ldquoiacutedonto phaacuteosrdquo451) de muitos olhos de Eoacutes pois tambeacutem o ldquojovemrdquo de Parmecircnides eacute um dos que ldquoestaacute vendo asluzesrdquo (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) Em ambos os contextos eacute empregado o mesmo verbo ldquoeicircdonoicircdardquoe o mesmo nome ldquophaacuteosrdquo salvo pela possibilidade de interpretar o nome ldquophocirctardquo em Parmecircnides

como um masculino acusativo singular de ldquophoacutesrdquo (homem)

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 16: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

54 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

A Natureza dos Deuses

O uacuteltimo toacutepico que gostariacuteamos de destacar na comparaccedilatildeo do poema deParmecircnides com a poesia eacutepica diz respeito agrave ldquonaturezardquo das divindadespresentes no poema de Parmecircnides Deixaremos a anaacutelise sobre as deusasTheacutemis Diacuteke Moicircra e Nuacutex para a comparaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo oacuter3ca Noacutes nosdeteremos aqui nas divindades ldquoluminaresrdquo cosmologicamente proacuteximas dasHeliaacutedes e Hemeacutera nomeadas no proecircmio e de Heacutelios Seleacutene e Aitheacuter nome-adas nos fragmentos 10 11 14 e 15 Natildeo faremos uma exposiccedilatildeo exaustivao que seria certamente muito proveitoso sobre as divindades porque issofugiria ao nosso objetivo central que eacute dar uma interpretaccedilatildeo do poema queseja capaz de explicar conjuntamente as relaccedilotildees das suas partes

As jovens Filhas do Sol Heliaacutedes koucircrai aparecem explicitamente nopoema em (B19-10) ldquotendo deixado para traacutes as moradas da Noite emdireccedilatildeo agrave luzrdquo (ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nuktoacutes eis phaacuteosrdquo B19-10) Mas podem ter aparecido tambeacutem o que natildeo eacute certo em B15 B115B121 e B124

Sobre elas sabemos muito pouco Haacute duas variantes distintas acerca dasua origem a primeira variante registrada por Homero na Odisseia(12131-133) as faz 3lhas de Neacuteaira uma 3lha do Oceano29 Nessa linha-gem as duas Heliaacutedes a Radiante (Phaeacutethousa) e a Brilhante (Lampetiacutee)satildeo pastoras (ldquoepipoimeacutenesrdquo) Lampetiacutee aparece em Homero tambeacutem comouma ldquoraacutepidardquo (ldquookeacuteardquo) ldquomensageirardquo (ldquoaacuteggelosrdquo)30 De todo modo a suafunccedilatildeo principal das Heliaacutedes estaacute associada aos cuidados pastoris talvezdaiacute a sua proximidade com as eacuteguas e cavos dos deuses Na versatildeo dePiacutendaro Heliaacutedes satildeo os astrocircnomos Filhos do Sol com a ninfa Rodes essamuito provavelmente natildeo eacute a linhagem das Heliaacutedes de Parmecircnides quesatildeo retratadas como meninas (koucircrai)31 Oviacutedio nas Metamorfoses (livro II)narra a traacutegica histoacuteria do Radiante (Faetonte) irmatildeo das Heliaacutedes Nessaversatildeo que se aproxima mais da versatildeo homeacuterica que da versatildeo de Piacuten-daro Faetonte eacute responsaacutevel por um colossal desastre Mitologicamenteesse desastre aparece como o desgoverno do caro do Sol (entatildeo ldquoguiadordquopor Faetonte) que cai sobre a Terra provocando um incecircndio gigantesco Eacutepossiacutevel que um evento astronocircmico tenha motivado o mito Oviacutedio narraque Faetonte caiu do Ceacuteu e que uma vasta aacuterea se incendiou o que levouateacute ao derretimento do ouro (2251) Poderia ser o caso no qual a aacutereaatingida contivesse choupos nos quais o mito narra se transformaram asirmatildes Heliaacutedes de Faetonte e que o evento tenha consistido na queda dealgum corpo celeste O episoacutedio da transformaccedilatildeo das Heliaacutedes nos taacutelamosnegros eacute tambeacutem narrado por Apolocircnio de Rodes

29 Cf HESYCHIUS Lexicogr Lexicon (AO) nu1711 ldquoNeacuteaira Okeanoucirc thygaacuteterrdquo (micro133)30 HOMERO Odisseia 1237531 Esc ad loc PIacuteNDARO Olympian VII131

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 17: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

55Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Mas de todos os [seus] lados as jovens Heliaacutedes tendo-se encolhi-do em compridos taacutelamos negros derretem-se em laacutegrimas prantolamentaacutevel desafortunadas Brilhantes gotas de acircmbar das paacutelpebrasvertem para a Terra [Apollonius Rhodius Argonautica 4603-606]

[603] () Amphigrave degrave koucircrai[604] Heliaacutedes tanaecircisin eelmeacutenai aigeiacuteroisin[605] myacuterontai kinyroacuten meacuteleai goacuteon ek degrave phaeinaacutes[606] eleacutektrou libadas bleacutepharon procheacuteousin eacuteraze

Ademais sabemos que por sua origem solar as Heliaacutedes satildeo divindadesluminares o que eacute tambeacutem indicado pelos seus nomes O quadro verticale horizontal do seu parentesco eacute

Vertical Urano + Gaia =gt Hiperiacuteon + Teicirca =gt Heacutelios32 + X =gt HeliaacutedesOnde X representa a sua matildee que varia conforme a fonte do mito Naversatildeo de Homero que citamos ela eacute Neacuteaira Horizontal satildeo irmatildes deFaetonte primas de Meacutemnon e subrinhas de Seleacutene e de Eoacutes Sendo quetodas as divindades citadas a partir de Teicirca satildeo divindades associadasdiretamente com a luz e algumas delas com a visatildeo Esse eacute o caso porexcelecircncia de Heacutelios

Heacutelios o iluminador dos imortais (ldquoo que pode iluminar os imortaisrdquo ldquohiacutenathanaacutetoisi phaeiacutenoirdquo)33 e dos mortais (ldquoHeacutelios dos mortais o iluminadorrdquoldquophaesimbroacutetou Heliacuteoiordquo )34 sobre a Terra35 Heacutelios eacute tambeacutem o doador dateacuterpsis da fartura da satisfaccedilatildeo e do prazer aos mortais (ldquoterpsimbroacutetou He-liacuteoiordquo)36 Mas eacute principalmente ldquoaquele que tudo vecircrdquo (ldquohograves paacutentrsquo ephoracircirdquo)37Em uma muito comentada passagem da Odisseia Heacutelios eacute retratado comoo mensageiro delator da traiccedilatildeo de Hefesto cometida por Afrodite comAres ldquoImediatamente contudo veio-lhe o mensageiro Heacutelios o qual osviu [Afrodite e Ares] se unindo sexualmenterdquo (8270-271) Eacute importantedestacar nessa passagem que Heacutelios eacute (i) um mensageiro (ldquoaacutengelosrdquo) e (ii)aquele que ldquoviurdquo (ldquoenoacuteeserdquo) o ocorrido Enoacuteese estaacute na 3ordf pessoa do singulardo indicativo aoristo ativo do verbo ldquovoeacuteordquo cujo sentido vai da apreensatildeopela visatildeo passa pelo conhecimento e pela compreensatildeo indo em direccedilatildeoao pensamento agrave meditaccedilatildeo agrave projeccedilatildeo e agrave ideaccedilatildeo Eacute exatamente o mesmoverbo empregado pela Deusa na apresentaccedilatildeo das vias de investigaccedilatildeo

32 HESIacuteODO Teogonia 371-37433 HOMERO Odisseia 3234 HOMERO Odisseia 1013835 HOMERO Odisseia 31-336 HOMERO Odisseia 1226937 HOMERO Odisseia 12323 Esse eacute a passagem que de2ne Heacutelios como ldquoo [deus] que tudo vecirc e

que tudo ouverdquo (ldquoEeliacuteou hograves paacutentrsquo ephoracirci kaigrave paacutentrsquo epakouacuteeirdquo) O verbo ldquoephoraacuteordquo signi2ca ver

olhar vigiar observar inspecionar e estudar

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 18: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

56 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ldquoas uacutenicas vias de investigaccedilatildeo ao pensar38 satildeo ()rdquo (ldquohodoigrave moucircnai dizeacutesioacuteseisi noecircsairdquo DK 28B22) Esse o noeacuteo eacute um dos verbos mais importantesdo poema de Parmecircnides ele estaacute lidado aos verbos cujo sentido se en-contra no campo semacircntico da visatildeo como os verbos oicircda e theaacuteomai sejano sentido fiacutesico da visatildeo (como no caso do verbo horaacuteo) seja no sentidomental da visatildeo (como no caso do verbo phroneacuteo) Essa nos parece ser umaimportante conexatildeo entre o discurso miacutetico homeacuterico e o discurso miacuteticoe 3losoacute3co de Parmecircnides O Poema de Parmecircnides estaacute impregnado deverbos e nomes oriundos do campo semacircntico da visatildeo (geralmente as-sociados agrave luz) Ora como Sexto Empiacuterico nos lembra a visatildeo dependeda luz39 Haacute uma tese em Dioacutegenes Laeacutercio (DLVIII2911) esclarecedorasobre a relaccedilatildeo de Heacutelios com os olhos essa tese segundo Dioacutegenes estarianas obras de Pitaacutegoras qual seja

[Pitaacutegoras] nelas chamou os olhos de portais de Heacutelios[11] em hoicircs Heliacuteou pyacutelas kaleicirc tougraves ophthalmouacutes

Se Pitaacutegoras de fato defendia essa tese noacutes natildeo o sabemos Mas que elase encaixa precisamente no contexto do poema de Parmecircnides isso simnoacutes podemos veri3car Com efeito as Filhas do Sol estatildeo relacionadas aosportais a Heacutelios e agrave luz para a qual se dirigem40 Independentemente datese ldquode Pitaacutegorasrdquo a assimilaccedilatildeo das Heliaacutedes com as ldquovistasrdquo (ldquohoraacuteseisrdquo)eacute pertinente cosmologicamente pois a capacidade de ldquoverrdquo eacute uma heranccedilapaterna E eacute tambeacutem uma evidecircncia favoraacutevel a esse respeito o fato deserem chamadas de ldquojovensrdquo (ldquokoucircrairdquo) pois ldquokoucircrairdquo satildeo as meninas oupupilas dos olhos segundo Empeacutedocles Platatildeo e Estobeu41 Empeacutedoclesestaacute su3cientemente proacuteximo (cronologicamente falando) de Parmecircnidespara que possamos supor ser a acepccedilatildeo jaacute conhecida na eacutepoca de Parmecirc-nides Mas com base nas evidecircncias jaacute apresentadas podemos supor quea assimilaccedilatildeo seja ainda anterior42 As Heliaacutedes como jaacute indicamos erampastoras dos rebanhos de Heacutelios isto eacute sua funccedilatildeo era dentre outrasa de vigiar as vacas de Heacutelios tanto eacute assim que eacute uma delas Lampetiacuteequem leva a mensagem ao pai de que os camaradas de Odisseu haviamcomido as suas vacas43 Uma uacuteltima evidecircncia pode fazer essa assimilaccedilatildeoregredir no tempo drasticamente Como dissemos anteriormente as Heliaacutedessatildeo 3lhas de Heacutelios que por sua vez eacute o 3lho de Theicirca a deusa arcaicada Visatildeo o ldquoGrande Olhordquo44

38 ldquoAo verrdquo poderiacuteamos traduzir39 SEXTO EMPIacuteRICO Adv Math 71131-340 Cf DK 28 B 19-1141 Cf EMPEacuteDOCLES DK 31B848 Platatildeo Alcebiacuteades 1133a e Joannes Stobaeus Anthologium

14944142 Haacute uma conexatildeo indireta entre as Heliaacutedes e as paacutelpebras (ldquobleacutepharonrdquo) nos Argonautas de Apo-

locircnio de Rodes (4603-606) jaacute citado43 HOMERO Odisseia 12375 (jaacute citada)44 ldquoboocircpisrdquo in Hymni Homeric In Solem (Eis Heacutelion) 2

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 19: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

57Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

O adjetivo Theacuteia (tambeacutem Theicirca) que signi3ca ldquodivinardquo um feminino detheicircos segundo Junito de Souza Brandatildeo45 deriva de theoacutes deus46 O Ety-mologicon Magnum (44915-18) con3rma e acrescenta alguns elementosbastante sugestivos

[15] Theicirca indica a matildee de Seleacutene e[16] de Heacutelios Em consequecircncia de theacutean surgiu theacuteeia Por[17] agregaccedilatildeo theicirca A qual eacute com efeito a causa da[18] visatildeo e do nosso contemplarrdquo[15] ltTheicircagt Semaiacutenei tegraven meteacutera tecircs Seleacutenes kaigrave[16] toucirc Heliacuteou Paragrave tegraven theacutean geacutegone theacuteeia kaigrave katagrave[17] synaiacuteresin theicirca Kaigrave gagraver haacuteute estigraven aitiacutea tecircs[18] theacuteas kaigrave toucirc theoreicircn hemacircs

O quadro de derivaccedilatildeo apresentado pelo Etymologicon Magnum eacute

11 Deus (theoacutes) 11 Divino (theicircos)

12 Deusa (theaacute) 12 Divina (theicirca)

De 11 para 12 e de 11 para 21 e ainda de 21 para 22 e de 12 para 22

O quadro geral que temos ateacute aqui eacute

Theoacutes Heliacuteos Hograves paacutentrsquo ephoracirci O que tudo vecirc

Theaacute Theicirca Theacutea A Visatildeo

Em Hesiacuteodo Theicirca aparece ldquoapenasrdquo como a matildee de Heacutelios de Seleacutenee de Eoacutes

E tambeacutem Theiacutea tendo sido submetida sexualmente por Hiperiacuteongerou o grande Heacutelios a luminosa Seleacutene e a Eoacutes47 a qual pressagiaa chegada da luz a todos acima da Terra aos imortais e aos mor-tais esses [Heacutelios Seleacutene Eoacutes] habitam o amplo Urano [HesiacuteodoTeogonia 371-374]

45 BRANDAtildeO (1991 407)46 O Etymologicon Magnum tambeacutem apresenta essa dupla derivaccedilatildeo (i) de theaacute a partir de theoacutes

(4447-9) e (ii) de theicirca a partir de theaacute (44916)47 Eacute nesse ponto que se evidencia que o sentido da divindade se daacute pelo seu nome

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 20: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

58 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[371] Theiacutea drsquo Heacutelioacuten te meacutegan lampraacuten te Seleacutenen[372] Hocirc thrsquo hegrave paacutentessin epichthoniacuteoisi phaeiacutenei[373] athanaacutetois te theoicircsi toigrave Ouranograven euryacuten eacutechousi[374] geiacutenathrsquo hypodmetheicircsrsquo Hyperiacuteonos en philoacuteteti

Gostariacuteamos de fazer trecircs observaccedilotildees sobre essa passagem Primeiramentesobre os nomes dos deuses Comparem as seguintes frases

1 A Eoacutes pressagia a chegada da luz a todos2 A Aurora pressagia a chegada da luz a todos

Podemos observar que a traduccedilatildeo do nome de Eoacutes pode aclarar o sentidoda frase Todos noacutes sabemos que a aurora eacute um pressagio de que o Solestaacute chegando e com ele o dia e a luz Se mantivermos os nomes semos traduzir haacute uma informaccedilatildeo importante a respeito da natureza da di-vindade que se perde Quem eacute Eoacutes A Aurora Os nomes dos deuses nosinstruem sobre a sua natureza sobre quem eles satildeo

Em segundo lugar gostariacuteamos de destacar a importacircncia dos artigos edos pronomes relativos e demonstrativos no dialeto homeacuterico ou jocircnicoantigo Observem que ldquohegraverdquo (em 372) e ldquotoigraverdquo (em 373) satildeo os sujeitos dosverbos ldquophaeiacuteneirdquo e ldquoeacutechousirdquo respectivamente O primeiro eacute um prono-me relativo bem conhecido o segundo eacute um artigo masculino singularnominativo que neste caso estaacute assumindo a funccedilatildeo de um pronomedemonstrativo O primeiro deles ldquohegraverdquo se refere a Eoacutes e o segundo ldquotoigraverdquose refere a Heacutelios Seleacutene e Eoacutes em conjunto

Finalmente eacute preciso perceber de maneira criacutetica que as relaccedilotildees ldquoamo-rosasrdquo na maior parte dos casos na cosmologia homeacuterica e hesioacutedica satildeomarcadas pela violecircncia sexual agrave qual as mulheres deusas e mortais satildeosubmetidas Caracteriacutesticas reprovaacuteveis semelhantes foram apontadas ecriticadas por Xenoacutefanes para quem ldquoHomero e Hesiacuteodo atribuiacuteram aosdeuses tudo o que para os humanos eacute oproacutebrio e vergonhardquo (DK 21B11)48

Mas a demonstraccedilatildeo das conexotildees haacute pouco levantadas e apresentadaspelo Etymologicon Magnum entre Theicirca Heacutelios e a Visatildeo nos eacute dadapelo Hino Homeacuterico a Heacutelios

Musa Kallioacutepe 3lha de Zeus ponhas-te a frente a louvar o brilhanteHeacutelios o qual Grandes Olhos de Vasta Luz gerou 3lha de Gaiae de Urano estrelado Pois Hyperiacuteon uniu-se agrave Vasta Luz MuitoRenomada sua proacutepria irmatilde a qual deu agrave luz os belos 3lhos Eoacutesde braccedilos roacuteseos Seleacutene de belos cabelos cacheados e Heacutelios infati-

48 A traduccedilatildeo eacute de Bornheim (2003 32)

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 21: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

59Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

gaacutevel comparaacutevel aos imortais o qual leva a luz aos mortais e aosdeuses imortais tendo embarcado com os cavalos O qual tambeacuteme certamente vecirc penetrantemente com os olhos a partir do elmodourado () [Hymni Homeric In Solem 1-10]

[1] Heacutelion hymneicircn aucircte Diograves teacutekos aacutercheo Moucircsa[2] Kallioacutepe phaeacutethonta tograven Euryphaacuteessa boocircpis[3] geiacutenato Gaiacutees paidigrave kaigrave Ouranoucirc asteroacuteentos[4] geme gagraver Euryphaacuteessan agakleitegraves Hyperiacuteon[5] autokasigneacuteten heacute hoi teacuteke kaacutellima teacutekna[6] Eocirc te hrodoacutepechyn euploacutekamoacuten te Seleacutenen[7] Eeacutelioacuten trsquo akaacutemantrsquo epieiacutekelon athanaacutetoisin[8] hograves phaiacutenei thnetoicircsi kaigrave athanaacutetoisi theoigravesin[9] hiacuteppois embebaoacutes smerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketai oacutessois[10] chysecircs ek koacuterythos (hellip)

Heacutelios eacute ldquoaquele que certamente tem a terriacutevel faculdade da visatildeo pe-netranterdquo (ldquosmerdnograven drsquo hoacute ge deacuterketairdquo Hymni Homeric In Solem 9) ETheacuteia eacute a ldquomuito renomadardquo (ldquoagakleitegravesrdquo Hymni Homeric In Solem 4)49

ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo Hymni Homeric In Solem 2) de ldquoVasta Luzrdquo(ldquoEuryphaacuteessardquo Hymni Homeric In Solem 2 e 4) Avaliando em conjuntoas fontes citadas pode-se ver com nitidez que as divindades luminares(Theicirca Heacutelios e as Heliaacutedes) satildeo divindades de visatildeo A Visatildeo GrandeOlho eacute a matildee drsquoAquele Que Vecirc Com Penetraccedilatildeo que por sua vez eacute opai das Vistas das Meninas dos Olhos Tudo isso nos mostra que SextoEmpiacuterico foi capaz de conectar o sentido cosmoloacutegico das Heliaacutedes como sentido 3losoacute3co do poema de Parmecircnides Ao que tudo indica Parmecirc-nides estaacute ldquojogandordquo com o sentido cosmoloacutegico das divindades que eleevoca em um contexto 3losoacute3co investigativo Ora que divindade seriaa mais apropriada para dizer o que existe de fato que a proacutepria VisatildeoUma vez que essa poderia fazer isso tanto pelo seu poder de ver mental(enquanto voeacuteo) quanto pelo seu poder de ver fiacutesico (enqunto horaacuteo) Sejacom a mente seja com os olhos essa eacute a divindade por excelecircncia maisadequada para a dupla tarefa 3losoacute3ca de Parmecircnides apresentar o queeacute apreendendo-o pelo pensamento (o coraccedilatildeo da verdade) e apresentar oque eacute apreendendo-o pelos olhos (as doacutexai dos mortais) Se estiver correta

49 Piacutendaro nos daacute a con2rmaccedilatildeo de que estamos falando exatamente da mesma deusa Com efeito Theiacutea

eacute na Isthmia (51) (i) a ldquomatildee de Heacuteliosrdquo (ldquomacircter Aeliacuteourdquo) e (ii) ldquomuito renomadardquo ldquopolyoacutenymerdquo (=polyacutes + oacutenoma = muito + renome) que eacute tambeacutem o seu adjetivo no Hymni Homerici (In Solem 4)ldquomuito renomadardquo ldquoagakleitegravesrdquo( = aacutegan + kleacuteos = muito + renome) Observem que esse eacute tambeacutem

o adjetivo dado agrave via do daiacutemon de Parmecircnides (DK 28B12) pela qual o jovem eacute levado ldquomuito

famosardquo ldquopolyacutephemonrdquo (= polyacutes + pheacuteme = muito + fama) O que consiste em mais uma evidecircnciafavoraacutevel agrave identidade Theaacute = Theicirca

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 22: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

60 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a etimologia proposta pelo Etymologicon Magnum a qual eacute subsidiadapelas demais fontes que apresentamos temos boas razotildees para sustentarque a theaacute de Parmecircnides seja a Theacuteia matildee do Sol

Finalmente gostariacuteamos de deixar claro que esta natildeo eacute uma leitura ale-goacuterica ou da hypoacutenoia do poema Natildeo estamos sugerindo que as Heliaacutedesqueiram dizer ldquooutra coisardquo ou que possuam um sentido ldquoocultordquo o qualnoacutes (ou Parmecircnides) estariacuteamos revelando Natildeo O que a3rmamos eacute queTheicirca eacute a Visatildeo que Heacutelios eacute Aquele que Vecirc e que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos as Vistas e que estes sentidos satildeo largamenteconhecidos pelo menos no periacuteodo de Homero a Platatildeo Natildeo se trata dosentido oculto (outro) mas do sentido cosmoloacutegico primeiro dos seus mitose nomes A Divina de Vasta Luz matildee do Sol o iluminador dos mortaise dos imortais eacute a Visatildeo E eacute porque ela eacute a Visatildeo que Heacutelios pode serAquele que Vecirc e por serem dessa decendecircncia eacute que as koucircrai Heliaacutedessatildeo as meninas dos Olhos ldquoOlhosrdquo aqui remetem tanto a Heacutelios ldquoque vecirccom olhosrdquo (ldquodeacuterketai oacutessoisrdquo) quanto a Thecircia ldquoGrande Olhordquo (ldquoboocircpisrdquo)Se haacute algum sentido oculto identi3caacutevel pelos os ouvintes de Parmecircnidesesse certamente natildeo eacute o que noacutes estamos apresentando Isso claro se noacutesdamos creacutedito agraves fontes apresentadas

Parmecircnides e o Or-smo

As descobertas relativamente recentes do Papiro de Derveni das Lacircminasde Osso de Olbia dos Epoidaiacute e de algumas Lacircminas de Ouro (em Hiponionem Pelina e em Entella)50 nos permitem uma reavaliaccedilatildeo da relaccedilatildeo da3loso3a de modo geral (e em particular da 3loso3a de Parmecircnides) coma tradiccedilatildeo de misteacuterios e com o or3smo que dessa faz parte Natildeo nospropomos aqui realizar essa reavaliaccedilatildeo mas a partir principalmenteda reavaliaccedilatildeo feita por Alberto Bernabeacute considerar essa tradiccedilatildeo ao ladoda tradiccedilatildeo eacutepica e das primeiras 3loso3as itaacutelicas na nossa proposta deinterpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides

Bernabeacute nos diz estar

convencido de que seria absurdo pensar que Parmecircnides emboratenha vivido no sul da Itaacutelia em um momento histoacuterico e em umacircmbito geograacute3co no qual os oacuter3cos difundiam suas crenccedilas ig-norou ou natildeo tomou conhecimento em absoluto do amplo marcode referecircncias religiosas e literaacuterias tecidas pelos seguidores destemovimento religioso ou em geral do acircmbito dos misteacuterios queformavam parte da sua tradiccedilatildeo [Bernabeacute (2012) 4]

50 BERNABEacute (2012 4)

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 23: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

61Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Noacutes consideramos que essas duas justi3caccedilotildees tomadas em conjunto (ieacute adescoberta de novas fontes para o or3smo e a posiccedilatildeo histoacuterico-geograacute3cade Parmecircnides) satildeo su3cientes para que a tradiccedilatildeo oacuter3ca deva ser consi-derada ao lado da tradiccedilatildeo eacutepica no estudo histoacuterico e hermenecircutico dopoema de Parmecircnides

O artigo de Alberto Bernabeacute (2012) se assemelha ao primeiro capiacutetulo dolivro de Mourelatos (2008) no meacutetodo empregado Grosso modo Bernabeacuteapresenta uma seacuterie de passagens da literatura oacuter3ca que apresentam se-melhanccedilas de forma de motivo ou de tema com o poema de ParmecircnidesNoacutes vamos tomaacute-las no interior dos quatro toacutepicos jaacute apresentados nacomparaccedilatildeo que 3zemos do poema com a tradiccedilatildeo eacutepica

A Jornada Misteacuterica

Segundo Bernabeacute (2012 35) a poesia liacuterica associou o motivo da jornadae o motivo do carro das Musas com a experiecircncia da aquisiccedilatildeo de co-nhecimento natildeo pela indicaccedilatildeo de uma experiecircncia miacutestica de abduccedilatildeomas sim recorrendo ao recurso literaacuterio das imagens das associaccedilotildees dasevocaccedilotildees e das metaacuteforas Em uma passagem de Olympia (621-27) dePiacutendaro aparecem quatro elementos que se assemelham aos do poemade Parmecircnides Satildeo eles

(i) as mulas (ldquohemioacutenonrdquo ldquohacircirdquo 622 e 623 respectivamente) queequivalem agraves eacuteguas (ldquohiacuteppoi taiacuterdquo B11)51

(ii) o caminho ldquokeacuteleuthoirdquo ou ldquohodogravenrdquo (623 e 625 respectivamente)satildeo dois dos termos empregados no poema de Parmecircnides (ldquokeleuacute-thonrdquo e ldquohodogravenrdquo B111 e B15 respectivamente)

(iii) o conhecimento (ldquoepiacutestantairdquo 626) do caminho (ldquohodogravenrdquo 625)por parte das mulas (ldquokeicircnairdquo 625) que por ele levam Fintis (ldquoha-gemoneucircsairdquo 625) o que se assemelha ao conhecimento das eacuteguas(ldquopolyacutephrastoi hiacuteppoirdquo B14) que conduzem52 o koucircros pelo caminho(ldquopheacuteron hodogravenrdquo B14-5) e

(iv) a presenccedila nos dois textos dos portais (ldquopyacutelasrdquo 627 e ldquopyacutelairdquoB111)

Com efeito no texto pindaacuterico como no proecircmio parmeniacutedeo sefala de portas que o carro deve atravessar se atribui conhecimento

51 O nome ldquohemiacuteonosrdquo como o ldquohiacutepposrdquo eacute comum de dois gecircneros daiacute faz-se necessaacuterio o artigo para

se identi2car o sexo da mula que na passagem citada eacute ldquohacircirdquo de ldquohoacutesrdquo no feminino dativo singular52 Eacute possiacutevel que como jaacute mencionamos as eacuteguas estejam conduzindo o caminho se o sujeito de

ldquoaacutegousairdquo (B12) for ldquohiacuteppoirdquo (B11) ou se ldquokoucircrairdquo (B15) se referir a ldquohiacuteppoirdquo (B11) dado que

ldquokoucircrairdquo (B15) eacute o sujeito de ldquohegemoacuteneuonrdquo (B15)

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 24: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

62 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

aos animais de tiro se lecirc hodograven hagemoveucircsai correlato de Parmecircni-des B15 hodograven hegemoacuteneuon o que pode indicar que Piacutendaro (queescreveu a ode em 478 aEC) conheceu o poema parmeniacutedeo ouque agrave luz de outros paralelos ambos procediam de uma tradiccedilatildeocomum Em minha opiniatildeo Piacutendaro eacute a melhor mostra dos riscos deatribuir ao poema parmeniacutedeo o caraacuteter de uma experiecircncia miacutesticaPela mesma razatildeo poderia a3rmar-se que Piacutendaro em um lugarproacuteximo passou pela experiecircncia miacutestica de ser abduzido por umacavalaria que o levaram agrave linhagem dos vencedores Evidentementenatildeo eacute assim o grande poeta beoacutecio utiliza uma pura imagem literaacuteriatradicional [Bernabeacute (2012 10)]

Piacutendaro estaacute apenas indiretamente conectado ao or3smo uma vez que aOlympica VI eacute dedicada a Hagesias um siracusano e portanto geogra-3camente aproximado de um importante ponto de difusatildeo do or3smo osul da Itaacutelia de sua eacutepoca Bernabeacute a3rma que eacute possiacutevel que Piacutendaro eParmecircnides tenham recolhido elementos literaacuterios de um poema religiosoda Magna Greacutecia sobre o qual elaboraram os seus proacuteprios poemas e essaseria uma segunda explicaccedilatildeo possiacutevel para o considerado por Bernabeacutegrande nuacutemero de semelhanccedilas entre os seus poemas

Uma conexatildeo mais direta com a tradiccedilatildeo oacuter3ca apareceria nas RapsoacutediasIn Platonis Phaedrum scholia de Hermias Phil (14213 = OF 172) ondese diz que a atribuiccedilatildeo de cavalos (ldquopareacutechei tougraves hiacuteppousrdquo 14214) pelaldquotheologiacuteardquo primeiro se fez a Phaacutenes (ldquotouacutetoirdquo = ldquoPhaacutenetirdquo 14214 e 14217respectivamente) Em outra passagem da mesma obra (12219 = OF 172)Hermias a3rma que os primeiros a empregarem o carro e os cavalos(ldquoheniacuteochon kaigrave hiacuteppousrdquo 12220) foram os poetas inspirados pelos deusesHomero Orfeu e Parmecircnides (ldquoallagrave prograve autoucirc [Platatildeo] hoi eacutentheoi tocircn poie-tocircn Hoacutemeros Orpheugraves Parmeniacutedesrdquo 12220-21) Esse testemunho (i) colocaParmecircnides na companhia dos poetas Orfeu e Homero (ldquotocircn poietocircnHoacutemeros Orpheugravesrdquo) (ii) faz com que Parmecircnides esteja empregando umrecurso antes empregado por Orfeu o que primeiro se serviu dos cavalossegundo a ldquotheologiacuteardquo e (iii) faz de Parmecircnides um dos poetas inspiradosque se serviram do recurso antes de Platatildeo

Bernabeacute argumenta (2012 14) que o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo (B12) de ldquoho-dogravenrdquo (B12) pode admitir dois sentidos o ativo (ex um aedo de ldquomuitaspalavrasrdquo = ldquoque fala muitordquo = ldquoque conta muitas lendasrdquo)53 e o passivo(ex a aacutegora de ldquomuitas palavrasrdquo = ldquona qual se dizem muitas coisasrdquo)No primeiro caso o adjetivo eacute quali3cado como ldquoativordquo porque o objeto

53 HOMERO Odisseia 22376 Todavia em contraacuterio pode-se traduzir ldquopoluacutephemos aoidoacutesrdquo porldquoaedo muito famosordquo o que corresponde ao sentido ldquopassivordquo do termo Trajano Vieira (2011 673)

por exemplo traduz por ldquoaedo plurifamosordquo

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 25: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

63Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

quali3cado eacute responsaacutevel pelas muitas palavras no nosso exemplo o aedoeacute quem ldquofala muitordquo No segundo caso o adjetivo eacute quali3cado comoldquopassivordquo porque o objeto natildeo eacute responsaacutevel diretamente pelas muitaspalavras no nosso exemplo natildeo eacute a aacutegora quem fala ldquomuitas palavrasrdquomas os humanos que nela se encontram ela ldquoreceberdquo as muitas palavras eeacute por isso que o adjetivo eacute chamado ldquopassivordquo Haacute uma segunda acepccedilatildeopara o sentido ldquopassivordquo do adjetivo que consiste em as ldquomuitas palavrasrdquoserem ditas a respeito do objeto quali3cado pelo adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoEx uma jornada ldquofamosardquo = ldquosobre a qual se dizem muitas palavrasrdquo = ldquoaodisseiardquo de Ulisses Com efeito o termo ldquopheacutemerdquo (= ldquopalavrardquo) pode sertraduzido por ldquooraacuteculo divinordquo ou ldquorevelaccedilatildeordquo no caso em que se trateda palavra de uma divindade Contudo devemos considerar que por umlado todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivo ldquopolyacutephemonrdquoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquopassivordquopor outro lado nem todas as passagens apresentadas nas quais o adjetivoaparece podem ser traduzidas empregando-se o seu sentido ldquoativordquo Natildeopodemos dizer que a aacutegora ldquofala muitordquo ou que ela ldquoconta muitas lendasrdquosenatildeo mediante o emprego de uma 3gura de linguagem a personi3caccedilatildeoou prosopopeacuteia Quando Bernabeacute a3rma ldquoque o caminho que conduz agravedeusa estaacute povoada de phecircmairdquo (2012 14) ele estaacute recorrendo ao sentidoldquopassivordquo do adjetivo Mas decorre desta primeira acepccedilatildeo de passividadea existecircncia da(s) fonte(s) das ldquomuitas palavrasrdquo no caminho Ou seja nocaso da aacutegora que estava povoada por muitas palavras as fontes delaseram os mortais que nela falavam muito Se se decide empregar o sentidopassivo de polyacutephemon (na sua primeira acepccedilatildeo) surge imediatamenteo problema da origem dessas muitas palavras uma vez que o caminhoapenas as abriga mas natildeo as produz A interpretaccedilatildeo mais faacutecil consisteem supor que sobre o caminho satildeo ditas muitas palavras ieacute que ele eacutefamoso ou famigerado (a segunda acepccedilatildeo do sentido passivo do adjetivo)

Bernabeacute apresenta os dois sentidos do adjetivo ldquopolyacutephemonrdquo com o objetivode aproximar o poema da tradiccedilatildeo de misteacuterios e isso por meio do camposemacircntico da palavra ldquopheacutemerdquo Os muitos ldquophecircmairdquo no caminho desempe-nhariam uma funccedilatildeo iniciaacutetica preparando o jovem para a recepccedilatildeo doconhecimento Natildeo concordamos com Bernabeacute nessa aproximaccedilatildeo pelaseguinte razatildeo diferentemente dos contextos literaacuterios oacuter3cos nos quaisse requer das almas dos iniciados (as personagens) apoacutes a morte quese lembrem da ldquosenhardquo que os identi3ca como iniciados54 o que permitea eles que obtenham certas prerrogativas na sua ldquovidardquo no submundoaqui no poema de Parmecircnides as ldquomuitas palavrasrdquo no caminho natildeosatildeo empregadas pelo koucircros como uma ldquosenhardquo para que ele obtenhao direito de acesso agrave verdade (ele permanece mudo do iniacutecio ao 3m dopoema) uma vez que esse direito foi adquirido antes dele ter sido levado

54 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 26: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

64 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

ao caminho e uma vez que foi justamente por ter adquirido antes essedireito que ele foi levado pelas eacuteguas que o colocaram (ldquopeacutemponrdquo B12)55

no caminho As ldquomuitas palavrasrdquo no caminho no maacuteximo teriam umafunccedilatildeo propedecircutica estritamente 3losoacute3ca o preparando para que fossecapaz de compreender a liccedilatildeo 3losoacute3ca que seria proferida pela deusa(de B2 a B8) Essa razatildeo somada ao fato de que a liccedilatildeo mais faacutecil eacute a dosentido passivo na segunda acepccedilatildeo nos faz crer que a traduccedilatildeo maisadequada para ldquohodograven polyacutephemonrdquo eacute ldquocaminho famosordquo sem qualquerconotaccedilatildeo iniciaacutetica Natildeo eacute necessaacuterio sobrecarregar o adjetivo com umaacepccedilatildeo misteacuterica ou oracular e aleacutem disso natildeo haacute quaisquer evidecircnciasno poema de que as muitas palavras no caminho (no caso em que se adoteessa traduccedilatildeo) desempenhem alguma funccedilatildeo iniciaacutetica

Iniciaccedilatildeo e Revelaccedilatildeo Misteacutericas

Um dos recursos mais utilizados por Bernabeacute para aproximar o poemade Parmecircnides da tradiccedilatildeo oacuter3ca eacute o da identi3caccedilatildeo dos elementos ini-ciaacuteticos do poema particularmente no proecircmio A iniciaccedilatildeo eacute condiccedilatildeonecessaacuteria para o acesso agrave verdade no contexto dos misteacuterios E a verdaderevelada aos iniciados confere a eles prerrogativas especiais no aleacutem comoo conhecimento das ldquosenhasrdquo que os identi3cam ou o conhecimento docaminho a ser percorrido no submundo56

Haacute certo nuacutemero de indiacutecios apontados nesse sentido por Bernabeacute (i) aurgecircncia das Heliaacutedes no caminho eacute comparada a urgecircncia dos iniciados57

(ii) a reiteraccedilatildeo dos verbos com o sentido de ldquolevarrdquo satildeo comparadas asreiteradas prescriccedilotildees do caminho adequado aos iniciados58 (iii) a conjunccedilatildeodos termos ldquoluzrdquo e ldquoconhecimentordquo satildeo comparadas as suas apariccedilotildees efunccedilotildees na literatura oacuter3ca na qual desempenham um papel claramenteiniciaacutetico59 (iv) a a3rmaccedilatildeo da deusa de que o jovem deveraacute se informarsobre a verdade eacute comparada a reiteraccedilatildeo da ecircnfase sobre a verdade deuma nova doutrina60 e 3nalmente (v) a inspiraccedilatildeo poeacutetica eacute ldquotraduzidardquona revelaccedilatildeo dada ao iniciado61

Com efeito o poema abarca toda essa sorte de sentidos possiacuteveis Mas adupla argumentaccedilatildeo em defesa da interpretaccedilatildeo eacute mais importante que

55 Uma accedilatildeo que estaacute entre o despacho para o caminho e a escolta no caminho56 BERNABEacute (2012 15 21 e 32)57 Caracterizada principalmente pela imagem do eixo nos meotildees incandescendo (B16-7) BERNABEacute

(2012 17)58 BERNABEacute (2012 13)59 BERNABEacute (2012 21)60 BERNABEacute (2012 32)61 BERNABEacute (2012 34)

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 27: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

65Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

a proacutepria apresentaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo possiacutevel Por que dupla Porqueainda mais importante que a apresentaccedilatildeo das evidecircncias favoraacuteveis auma dada proposiccedilatildeo eacute a apresentaccedilatildeo e a confrontaccedilatildeo com as evidecircn-cias desfavoraacuteveis

1 (Sobre a urgecircncia) se compararmos a urgecircncia das eacuteguas e das Heliaacutedesdo poema com outros textos nos quais haacute qualquer sorte de urgecircnciano percurso de um caminho noacutes vamos encontrar evidentementeelementos comuns Por quecirc Porque selecionamos para a compara-ccedilatildeo um texto que jaacute apresentava os elementos que noacutes apenas vamoster de destacar A tese eacute mais forte que as evidecircncias Se tomarmos umanarrativa de uma corrida de carros vamos encontrar cavalos velozesmeotildees incandecentes e um caminho sendo percorrido (e quem sabeuma premiaccedilatildeo ao 3nal para que pudeacutessemos sugerir que o discursoda deusa eacute qualquer sorte de precircmio merecido com justiccedila) sem quequaisquer desses elementos tenham relaccedilatildeo alguma com o poema deParmecircnides A mera semelhanccedila leacutexica ou de motivo ou temaacutetica natildeoeacute condiccedilatildeo su3ciente para se estabelecer uma proximidade do tipo queeacute pretendida e sugerida qual seja a de que o poema de Parmecircnides(dadas as semelhanccedilas) descreve um contexto iniciaacutetico Haacute um pro-blema de meacutetodo grave aqui As passagens satildeo escolhidas de modo ainduzirem pelas semelhanccedilas a proximidade que se pretende quandoessas semelhanccedilas satildeo no maacuteximo o iniacutecio da investigaccedilatildeo que deveriaprovar a existecircncia (natildeo pelas semelhanccedilas) da relaccedilatildeo pretendida

2 Se eacute aceitaacutevel interpretar em termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada deverbos cujo sentido eacute ldquolevarrdquo entatildeo deveriacuteamos concluir que o temaobsessivo da Odisseia eacute a iniciaccedilatildeo Evidentemente natildeo A questatildeopermanece sem ter sido respondida por que deveriacuteamos interpretarem termos iniciaacuteticos a presenccedila reiterada de verbos cujo sentido eacuteldquolevarrdquo Essa resposta e somente ela eacute que autorizaria a aproximaccedilatildeonatildeo a mera semelhanccedila E isso porque eacute sempre necessaacuterio mostrar quea semelhanccedila natildeo eacute uma simples coincidecircncia (cujas razotildees podem serdas mais diversas ordens) mas que se deve a uma ldquocausa comumrdquosubjacente aos dois casos Isto eacute se noacutes pudermos mostrar que assemelhanccedilas estatildeo conectadas por alguma necessidade subjacente co-mum entatildeo ao evidenciarmos essa conexatildeo estaremos justi3cando aaproximaccedilatildeo pretendida

3 Uma das Heliaacutedes a Luminosa Lampetiacutee aparece na Odisseia (12375)desempenhando uma funccedilatildeo pastoril Ela eacute uma divindade luminar quecomo buscamos mostrar anteriormente possui a visatildeo como uma heranccedilada sua linhagem divina Graccedilas a sua visatildeo ela pode ver o delito doscamaradas de Odisseu e os delatar ao seu pai Haacute nessa passagem oelemento da luz o elemento da visatildeo o elemento do conhecimento visuale a funccedilatildeo pastoril por ela desempenhada No poema de Parmecircnideshaacute tambeacutem a presenccedila das Heliaacutedes haacute a conjunccedilatildeo do verconhecer e

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 28: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

66 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

da luz (ldquoeidoacuteta phocirctardquo B13) mas nem por isso devemos concluir que haacuteuma funccedilatildeo ldquopastorilrdquo no poema de Parmecircnides porquanto isso possaser sugestivo e rico para o nosso pensar Aqui tambeacutem a tese eacute maisforte que a evidecircncia

4 Que o dever de se informar sobre a verdade possa ser comparado agravereiterada ecircnfase oacuter3ca sobre a verdade de uma nova doutrina eacute jaacute algodiscutiacutevel mas a princiacutepio possiacutevel Contudo dessa comparaccedilatildeo natildeo sesegue nada Toda a 3loso3a postula aos seus ldquoadeptosrdquo que busquemse informar da verdade (esse eacute o proacuteprio propoacutesito da 3loso3a) masisso natildeo signi3ca que a 3loso3a toda ela seja semelhante ao esquemainiciaacutetico dos oacuter3cos A demanda pela verdade aparece nos mais diversoscontextos histoacutericos e culturais dos quais o or3smo eacute apenas um dentreeles O poema de Parmecircnides natildeo tem que apresentar um esquema oacuter3code demanda pela verdade pela simples razatildeo de que essa demanda natildeopertence soacute ao or3smo ela aparece tambeacutem no or3smo Mais uma vez aquestatildeo fundamental natildeo eacute respondida por que deveriacuteamos supor quea demanda pela verdade no poema de Parmecircnides eacute de proveniecircnciaoacuter3ca em se tratando de uma demanda que pode ser encontrata emtoda a tradiccedilatildeo anterior a Parmecircnides Por que deveriacuteamos supor queParmecircnides toma essa demanda dessa literatura e tradiccedilatildeo em especiale natildeo de qualquer outra

5 Haacute duas questotildees que precisamos distinguir (i) o narrador postulaque a sua narrativa seja veriacutedica (ii) a narrativa eacute veriacutedica de fatoHaacute muitas narrativas sobre por exemplo fantasmas relatadas como seos eventos fossem com efeito veriacutedicos Neste caso seus narradoresestatildeo postulando a veracidade das suas narrativas acreditemos ounatildeo nelas sejam ou natildeo de fato verdadeiras Quando Bernabeacute a3rma(2012 33) que ldquoningueacutem pode crer hoje que o 3loacutesofo viajara paraoutro mundordquo ele natildeo acrescenta nenhuma informaccedilatildeo relevante paraa interpretaccedilatildeo do poema pela simples razatildeo de que natildeo importa noque noacutes os leitores de Parmecircnides cremos ou natildeo O que eacute relevante eacuteo sentido postulado por Parmecircnides para o seu poema O hermeneutadeve primeiramente estar interessado em descobrir se o narrador querque tomemos como veriacutedica a sua histoacuteria de abduccedilatildeo ou natildeo Natildeo eacute aquestatildeo do hermeneuta se Hesiacuteodo de fato esteve com as Musas e secom elas aprendeu o seu canto desde que Hesiacuteodo tenha postulandocomo veriacutedica essa histoacuteria Eu natildeo acredito na veracidade das histoacuteriasbiacuteblicas da ldquoabertura do mar vermelhordquo da ldquogravidez da virgem Mariardquoou dos ldquomensageiros celestiaisrdquo etc Mas sei que os narradores dessesmitos pretendem que eles sejam tomados como histoacuterias veriacutedicas Aquitambeacutem natildeo importa para a histoacuteria da 3loso3a a nossa crenccedila ounatildeo no rapto do jovem natildeo enquanto nos encontramos na tarefa dedeterminar a natureza da narrativa que pode ter pretensatildeo factual ounatildeo Ao contraacuterio importa e muito se Parmecircnides narra a histoacuteria como

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 29: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

67Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se fosse veriacutedica ou se ele a narra para que natildeo seja tomada na contade um relato que se pretende veriacutedico O equiacutevoco de Bernabeacute estaacute embuscar fazer com que o poema seja coerente com o seu conhecimentoe crenccedilas sobre o mundo Pode ter sido o caso natildeo sabemos no qualessa histoacuteria de rapto do jovem tenha sido cunhada para ser acredi-tada como uma histoacuteria veriacutedica Haacute contra as evidecircncias um enormenuacutemero de histoacuterias de abduccedilotildees extraterrestres contemporacircneas e natildeoobstante natildeo existirem quaisquer provas dos raptos os seus narradoresem geral os abduzidos as narram na conta dos relatos veriacutedicos Aquitambeacutem devemos questionar as bases sobre as quais Bernabeacute sustentaa sua a3rmaccedilatildeo Ademais com que evidecircncias noacutes negariacuteamos essapossibilidade de registro narrativo a Parmecircnides

Dia e Noite

A iniciaccedilatildeo no or3smo ocorre em um espaccedilo ambiacuteguo no qual se simularitualmente a kataacutebasis de Orfeu ao mundo dos mortos

Eacute caracteriacutestico da iniciaccedilatildeo que o iniciando deva chegar ao lugarno qual esta se realiza a um espaccedilo iniciaacutetico que eu estudei emoutra parte como uma espeacutecie de terreno ambiacuteguo entre o nossomundo e o Aleacutem no qual amiuacutede se ensena uma espeacutecie de ensaioda morte62

Bernabeacute defende que o cenaacuterio descrito no poema de Parmecircnides tal comoo espaccedilo da iniciaccedilatildeo no or3smo eacute ambiacuteguo e natildeo possui um correspon-dente na geogra3a63 Essa tese tambeacutem foi defendida por Mourelatos combase no mesmo argumento e em evidecircncias semelhantes O argumentoeacute o seguinte o cenaacuterio descrito possui tanto elementos celestiais quantoelementos inframundanos de modo que natildeo eacute compatiacutevel nem com oprimeiro nem com o segundo Como se trata do mesmo argumento eacutecabiacutevel tambeacutem uma objeccedilatildeo semelhante as comparaccedilotildees de Bernabeacutenatildeo consideram a possibilidade de um cenaacuterio distinto do da tradiccedilatildeomiacutetica como o cenaacuterio que a astronomia da eacutepoca de Parmecircnides estaacutedesenhamdo nem consideram a possibilidade da construccedilatildeo de um novocenaacuterio cosmoloacutegico resultante da conjunccedilatildeo das teogonias tradicionaiscom as cosmologias contemporacircneas a Parmecircnides

Por outro lado a ambiguidade agora da direccedilatildeo da jornada do koucircrosestaacute condicionada ao plano de coordenadas de fundo no qual inseriacutemos

62 BERNABEacute (2012 9)63 BERNABEacute (2012 21)

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 30: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

68 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

os personagens Em todas as interpretaccedilotildees as eacuteguas estatildeo se aproximandodos portotildees eteacutereos O que natildeo eacute certo eacute (i) os portotildees separam os do-miacutenios da Noite e do Dia (ii) em caso a3rmativo as eacuteguas estatildeo de quelado dos portotildees em qual dos dois domiacutenios O deacutecimo primeiro versodo poema (B111) diz

Aiacute estatildeo os portotildees dos caminhos tanto da Noite quanto do DiaEacutentha pyacutelai nyktoacutes te kaigrave eacutematoacutes eisi keleuacutethon

Se estatildeo aiacute (eacutentha) os portotildees dos caminhos (ldquopyacutelai eisi keleuacutethonrdquo) deve-mos perguntar satildeo os portotildees dos caminhos de quem A uacutenica respostapossiacutevel eacute dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia O ldquotanto quantordquotraduz ldquote kaigraverdquo Natildeo haacute outro sujeito possiacutevel para o verbo ldquoeisirdquo aleacutem doldquopyacutelairdquo A construccedilatildeo aqui eacute forccedilosamente a que estamos apresentandoAs eacuteguas estatildeo levando o jovem para os portotildees dos caminhos tanto daNoite quanto do Dia A referecircncia aos domiacutenios ou agraves moradas apareceno nono e deacutecimo versos

[9] As meninas Filhas do Sol tendo deixado para traacutes as moradasda Noite[10] em direccedilatildeo agrave luz repelindo de si para longe das cabeccedilas comas matildeos os veacuteus[9] Heliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemata Nyktoacutes[10] eis phaacuteos osaacutemenai kraacuteton aacutepo chersigrave kalyacuteptras

O texto eacute muito claro 1 As eacuteguas que levam o jovem estatildeo indo na direccedilatildeodos portais dos caminhos tanto da Noite quanto do Dia 2 As meninasFilhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite 3 As Filhas do Solrepeliram para longe de si mesmas os veacuteus de suas cabeccedilas 4 As Filhasdo Sol estatildeo indo na direccedilatildeo da luz Ora coloquemos por hipoacutetese que asFilhas do Sol natildeo estatildeo no carro com o jovem indicando o caminho massim que elas estejam indo de encontro agraves eacuteguas para que ao encontraacute-lasretornem para as moradas da Noite Neste caso por que elas repeliriampara longe de si mesmas os veacuteus que vatildeo logo em seguida precisar no-vamente para readentrar nos domiacutenios da Noite ldquoosaacutemenai kraacuteton aacutepordquo eacuteldquorepelindo de si das cabeccedilas para longerdquo Por que elas lanccedilariam longe osseus veacuteus64 Noacutes vimos anteriormente que as Heliaacutedes satildeo chamadas na

64 GOacuteMEZ LOBO (1999 31) e CORDERO (2005 45) (apud BERNABEacute 2012 23) interpretam que

o gesto das Heliaacutedes de repelirem de suas cabeccedilas os veacuteus pode ser interpretado como o ocultamento

da sua luminosidade nas moradas da Noite mas em nota Bernabeacute acrescenta que (2012 23 n95)

eacute mais verossiacutemil interpretar o gesto das Heliaacutedes como uma metaacutefora da neblina matinal atraveacutes

da qual sai o Sol A primeira interpretaccedilatildeo estaacute mais rente ao texto na medida em que com efeito

as Heliaacutedes (que satildeo numes de luz) estatildeo deixando as moradas da Noite que eacute sombria A segunda

interpretaccedilatildeo estaacute condicionada agrave determinaccedilatildeo do lugar descrito na narrativa que aqui consistiria no

lugar (temporal) no qual se daacute a transiccedilatildeo da Noite para o Dia Observe que (i) na regiatildeo abrangida

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 31: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

69Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

literatura eacutepica de ldquomeninasrdquo (ldquokoucircrairdquo)65 A liccedilatildeo mais faacutecil eacute inferir queo adjetivo ldquokoucircrairdquo do verso quinto se refere agraves Heliaacutedes (que tambeacutem nopoema satildeo chamadas ldquomeninasrdquo no verso nono) e natildeo haacute razatildeo algumapara natildeo fazecirc-lo salvo a mera possibilidade de dar uma interpretaccedilatildeodistinta para a passagem Mas a interpretaccedilatildeo do poema natildeo pode serconstruiacuteda com base na mera possibilidade aliaacutes nenhum conhecimentocientiacute3co admite que se sustente uma modelizaccedilatildeo (interpretaccedilatildeo) com basena mera possibilidade da sua verdade Eacute necessaacuterio que as proposiccedilotildeessejam apoiadas por evidecircncias as quais natildeo podem ser mais fracas que aproposiccedilatildeo que pretendem apoiar do contraacuterio mantem-se em suspensatildeoo juiacutezo acerca do valor de verdade da proposiccedilatildeo

Aqui no poema de Parmecircnides as evidecircncias fortes satildeo (a) as Heliaacutedessatildeo chamadas no proacuteprio poema de ldquokoucircrairdquo e (b) quando aparecem naliteratura elas satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo Ora com base em que evidecircn-cias (i) fariacuteamos das eacuteguas as ldquokoucircrairdquo de B1566 E (ii) com base em queevidecircncias sustentariacuteamos que as ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo outras ldquokoucircrairdquo quesoacute apareceriam nessa passagem O obvio eacute que tanto em (i) quanto em(ii) temos hipoacuteteses ad hoc cujo propoacutesito eacute salvarpreservarpermitir asinterpretaccedilotildees que estabelecem o sentido da jornada das eacuteguas como sendoem direccedilatildeo agraves moradas da Noite contrariamente as evidecircncias

De maneira sinteacutetica o nosso argumento eacute

1 As ldquokoucircrairdquo de B15 ldquohegemoacuteneuonrdquo [meninas lt= koucircrai =gt jovens]a As meninas eram guiasb As meninas guiavamc As meninas conduziamd As meninas comandavame As meninas governavamf As meninas dirigiam

pela escuridatildeo da Noite eacute noite e na abrangida pela luz do Dia eacute dia e que (ii) o lugar temporal da

transiccedilatildeo eacute moacutevel uma vez que a escuridatildeo da Noite e a luz do Dia se movimentam simultaneamentePor outro lado o lugar geograacute2co miacutetico da transiccedilatildeo eacute 2xo e estaacute situado no Taacutertaro Aqui aparece

a primeira intuiccedilatildeo acerca do lugar descrito na narrativa que pode ser compatibilizada com as desco-

bertas astronocircmicas conhecidas por Parmecircnides Lembremo-nos que jaacute Heraacuteclito criticava Hesiacuteodo por

natildeo saber distinguir o Dia da Noite (DK 22B57) que com efeito consiste em um fenocircmeno uacutenico

dado que a Noite eacute determinada pela ausecircncia da luz solar que eacute a causa do dia (DK 22B99) Os

resultados astronocircmicos apontados por Heraacuteclito (frs 57 e 99) satildeo conhecidos por Parmecircnides o qual

segundo um nuacutemero razoaacutevel de testemunhos fez descobertas astronocircmicas de impacto ainda maior65 Eacute o caso por exemplo de Apollonius Rhodius na Argonautica (4604) da Scholia In Euripidem

(scholia vetera) na Vita-argumentum-scholion sch Hipp que traz em 73315 ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo e quetraz em 73610 ldquokoacuterai Heliaacutedesrdquo66 Por que razatildeo Parmecircnides nos informaria que as eacuteguas satildeo ldquojovensrdquo Haacute adjetivos muito mais

apropriados para as eacuteguas que ldquojovensrdquo como velozes fortes aacutegeis astutas etc Natildeo eacute razoaacutevel

defender essa interpretaccedilatildeo quando sabemos que as Heliaacutedes satildeo caracterizadas tanto no poema de

Parmecircnides quanto na literatura eacutepica como ldquokoucircrairdquo

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 32: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

70 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

2 As ldquokoucircrairdquo de B15 satildeo as ldquoHeliaacutedesrdquo de B19a Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquokoucircrairdquo em B19b Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo chamadas de ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo

em B124

i ldquoImortais que seguram as reacutedeasrdquoii ldquoImortais condutoras de carrordquoiii ldquoImortais cocheirasrdquoiv ldquoImortais que dirigemrdquov ldquoImortais que detecircm as reacutedeasrdquo

c Porque as eacuteguas natildeo podem segurar as reacutedeas do carro que estatildeopuxando

d Porque as ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo caracterizadas como ldquomeninasrdquo naliteratura primaacuteria67

i ldquokoucircrai Heliaacutedesrdquo em Apollonius Rhodius (Argonautica 4604)ii ldquoHeliaacutedes paicircdesrdquo em Dionysius Perieg (Orbis descriptio

291-293)iii ldquoHeliaacutedes koacuterairdquo em Scholia In Euripidem (Scholia in Euripidem

Vita-argumentum-scholion sch Hipp 73315 e 7382)iv [Referecircncia incerta] ldquopaiacutedasrdquo em Stesichorus Lyr (Fragmenta

frS177)v [Referecircncia incerta] ldquonymphaacuteonrdquo em Homero (Odisseia 17211)68

3 As ldquoHeliaacutedesrdquo satildeo as ldquoathanaacutetoisi henioacutechoisinrdquo de B124a Porque as eacuteguas natildeo podem deter as reacutedeas do carro que estatildeo

puxando (= 2c)

4 As Filhas do Sol deixaram para traacutes as moradas da Noite indo nadireccedilatildeo da luz

a Porque eacute o que se lecirc em B19-10 ldquoHeliaacutedes koucircrai prolipoucircsai doacutemataNyktoacutes eis phaacuteosrdquo

67 A caracterizaccedilatildeo das Filhas do Sol as Heliaacutedes como crianccedilas ninfas meninas eacute inequiacutevoca Noacutesnatildeo encontramos nenhuma fonte inconsistente com essa caracterizaccedilatildeo dentro dessa variante da lenda

contudo haacute como jaacute informamos uma versatildeo narrada por Piacutendaro na qual Heliaacutedes satildeo os 2lhos de

Heacutelios com a ninfa Rodos O relato de Parmecircnides se insere textualmente na primeira versatildeo do

mito na qual elas satildeo ldquomeninasrdquo mas eacute possiacutevel que informado dessa outra versatildeo ele tenha agregado

algum elemento dela agrave sua histoacuteria A rigor natildeo sabemos se satildeo versotildees distintas e conXitantes acerca

da gesta de Heacutelios ou se Heacutelios como Zeus teve muitos 2lhos e 2lhas com deusas distintas Pierre

Grimal apresenta as duas versotildees como ldquolendas distintasrdquo (1997 201) mas o ponto parece merecer

um exame mais pormenorizado68 Trata-se de um ldquoaltar das Ninfasrdquo no alto de uma cidadela circundada por um bosque de aacutelamos

nas quais segundo a literatura as Heliaacutedes se transformaram Essa passagem eacute indicada por Pierre

Grimal (1997 201)

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 33: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

71Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

b Em acreacutescimo deve-se observar que natildeo haacute qualquer evidenciatextual de que elas tenham percorrido de volta o caminho que3zeram Ieacute natildeo haacute sinal algum no texto de que elas tenham fei-to o percurso em direccedilatildeo agraves moradas da Noite Este permanecesendo tatildeo somente uma conjectura

5 O ldquokoucircrrsquordquo estaacute no carro que estaacute sendo puchado pelas eacuteguasa Porque eacute o que se lecirc em B14-5 ldquoas eacuteguas puchando o carrordquo

(ldquohiacuteppoi haacuterma titaiacutenousairdquo)b ldquoEacuteguas estas que me [ldquokoucircrrsquordquo] levamrdquo (ldquohiacuteppoi taiacute me pheacuterousinrdquo

B11)c Em B124-25 se lecirc ldquoOacute jovem companheiro de imortais cocheiras

eacuteguas as que te levamrdquo (ldquoOcirc koucircrrsquo athanaacutetoisi synaacuteoros henioacutechoisinhiacuteppoi taiacute se pheacuterousinrdquo)

Logo

O jovem estaacute no carro69 que eacute puxado pelas eacuteguas70 e dirigido pelasFilhas do Sol71 que deixaram para traacutes as moradas da Noite e estatildeoindo para a luz72

A direccedilatildeo do caminho natildeo eacute ambiacutegua como a3rma Bernabeacute ao contraacuterioela eacute clara ldquoeis phaacuteosrdquo E toda a discussatildeo sobre o lugar descrito na nar-rativa precisa ser recolocada agrave luz das descobertas astronocircmicas da eacutepocade Parmecircnides das quais ele tomou conhecimento Seria um desperdiacuteciodo saber acumulado pela astronomia de sua eacutepoca (na qual importantesdescobertas foram feitas) se Parmecircnides podendo corrigir os erros da tra-diccedilatildeo sobre por exemplo as rotas do Sol e da Lua natildeo o 3zesse

Gostariacuteamos de fazer uma uacuteltima observaccedilatildeo sobre o lugar e a direccedilatildeoda jornada do ldquokourrsquordquo de Parmecircnides Bernabeacute cita uma passagem deEstesiacutecoro73 que acreditamos ser de bastante importacircncia

[S171] E quando o vigoroso Filho de Hipiacuterion [Heacutelios][S172] desceu na taccedila dourada para[S173] que atravessando pelo Oceano[S174] pudesse chegar agraves profundezas sagradas[S175] da Noite escura

69 Deriva da quinta proposiccedilatildeo Confrontar com B11 B14-5 e B124-2570 Deriva da proposiccedilatildeo 5 (a)71 Deriva da proposiccedilatildeo 2 (b) e (c) e da proposiccedilatildeo 3 Conferir B12472 Deriva da proposiccedilatildeo 4 Conferir B19-1073 STESICHORUS Lyr In Fragmenta (fr S171-7)

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 34: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

72 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

[S176] agrave matildee agrave jovem legiacutetima esposa e[S177] agraves amadas crianccedilas

[S171] acircmos drsquo Hyperioniacuteda igraves[S172] deacutepas eskateacutebaiven chyacuteseon oacute-[S173] phra dirsquo Okeanoicirco reraacutesais[S174] aphiacutekoithrsquo hiaracircs Poti beacutenthea ny-[S175] ktograves eremnacircs[S176] potigrave mateacutera kouridiacutean trsquo aacutelochon[S177] paiacutedas te phiacutelous

Heacutelios desceu na taccedila dourada ieacute entrou nela Mas com que 3nalidadee por quecirc Porque ele terminou o seu percurso diaacuterio pelo Ceacuteu e paraque pudesse se reencontrar com a sua famiacutelia Certo Mas quando o Soltermina o seu percurso a Noite comeccedila o dela sobre a Terra trazendo aescuridatildeo Todavia o texto informa que o Sol entra na taccedila para chegaragraves profundezas da Noite escura mas onde estatildeo as profundezas da Noiteescura nesse momento Uma primeira resposta eacute no coraccedilatildeo da Noiteque por sua vez estaacute sobre a Terra fazendo o seu percurso e uma segundaresposta eacute no Taacutertaro onde se encontram as moradas da Noite Surgementatildeo aqui algumas possibilidades

1 [hipoacutetese katabaacutetica] As profundezas satildeo de domiacutenio da Noite enesse caso o Sol natildeo estaacute indo se encontrar com a Noite (que estaacute re-alizando o seu percurso sobre a Terra) mas estaacute indo para o domiacuteniodela para o Taacutertaro2 [hipoacutetese eacutepica] O Sol entra na taccedila para se reencontrar com a suafamiacutelia no seu palaacutecio de ouro que estaacute situado no ldquopoenterdquo sobre aTerra No momento em que ele se recolhe a Noite que verte escuridatildeopode comeccedilar o seu trajeto e mergulhar nas suas profundezas toda aTerra74

A hipoacutetese que chamamos de ldquokatabaacuteticardquo faz com que a morada dafamiacutelia do Sol esteja situada no Taacutertaro uma vez que essa eacute a referecircnciamais obvia para ldquoas profundezas da Noiterdquo nesse caso o Sol estaacute se diri-gindo ao mundo dos mortos Essa interpretaccedilatildeo eacute mais plausiacutevel dentreoutras razotildees porque a partiacutecula ldquodiaacuterdquo + genitivo (ldquoOkeanoicircordquo) indica um

74 Esta interpretaccedilatildeo para aleacutem de possiacutevel eacute coerente por exemplo com a versatildeo de Oviacutedio (Me-

tamorfoses 21-328) na qual o palaacutecio dourado habitado por Heacutelios 2ca no alto de encostas no

extremo oriente isto eacute sobre a Terra Mas nos parece mais plausiacutevel a interpretaccedilatildeo katabaacutetica de

Bernabeacute do texto de Estesiacutecoro (a qual da nossa maneira noacutes seguimos na nossa traduccedilatildeo) E issonatildeo eacute de todo incompatiacutevel com a tradiccedilatildeo eacutepica pois eacute possiacutevel pensar que tanto o Sol quando o

Dia sobem e descem sobre e sob a Terra Por outro lado entra em conXito com a versatildeo eacutepica por

excelecircncia de Homero (Odisseia 12382-383) na medida em que o seu palaacutecio seria uma fonte de

luz no mundo dos mortos no qual natildeo deveria haver luz

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 35: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

73Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

movimento de atravessia pelo meio que sugere um ldquomergulhordquo no Oce-ano nesse caso A hipoacutetese que chamamos de ldquoeacutepicardquo manteacutem o quadrode referecircncias tradicional que situa as suas moradas no ldquopoenterdquo e noldquonascenterdquo sobre a Terra e conectadas pelo rio Oceano aqui ele se recolheno seu palaacutecio para que as profundezas da Noite possam chegar sobre aTerra Ele ldquochegardquo agraves profundezas da Noite mas natildeo por ter se deslocadoateacute elas mas porque elas vieram sobre ele

A Natureza das Divindades

Quem eacute Nyacutex A deusa aparece duas vezes no primeiro fragmento (v9 ev11) uma vez no oitavo (v59) duas no nono (v1 e v3) uma no deacutecimosegundo (v2) e uma no deacutecimo quarto (v1) O papel que Nyacutex que de-sempenha no eacutepos da Deusa eacute simeacutetrico ao desempenhado nas doacutexai dosmortais Observemos que de B19 podemos depreender o par ltPhaacuteosNyacutexgt de B111 depreendemos o par ltHemeacutera Nyacutexgt e de B856 e B859depreendemos o par ltPhloacutex Nyacutexgt de B91 e B93 depreendemos o parltPhaacuteos Nyacutexgt de B121-2 depreendemos os pares ltPucircr Nyacutexgt ltPhloacutex Nyacutexgte 3nalmente de B141 depreendemos os pares ltPhaacuteos Nyacutexgt e ltHemeacuteraNyacutexgt O que de imediato se destaca eacute a permanecircncia de Nyacutex nos parese a alternacircncia de Phaacuteos Hemeacutera Phloacutex e Pucircr

Uma interpretaccedilatildeo da funccedilatildeo de Nyacutex centrada apenas no proecircmio tende-ria a remetecirc-la agrave sua ocupaccedilatildeo eacutepica tradicional a de verter escuridatildeoMas uma interpretaccedilatildeo integral da sua funccedilatildeo no poema de Parmecircnidesclaramente a transforma em um princiacutepio material Nyacutex e Pucircr preenchem(B121-2) e preenchem tudo (B93) Ou seja ela deixa de ser a divindaderesponsaacutevel por verter a escuridatildeo e passa a ser ela mesma o conteuacutedode todas as coisas Aqui temos uma referecircncia expliacutecita ao par de prin-ciacutepios pitagoacutericos ltphocircs skoacutetosgt Observemos que a criacutetica da deusa emB853-54 dirigisse agrave nomeaccedilatildeo das duas formas dado que eacute desnecessaacuterionomeaacute-las ambas

ldquoPois colocaram-se duas formas da apreensatildeo das quais umanatildeo eacute necessaacuterio nomear ndash nisso estatildeo equivocando-se ndashrdquo[53] formas pois colocaram-se duas da apreensatildeo nomear[54] das quais uma natildeo necessaacuterio eacute ndash nisso equivocando-se estatildeo ndash[53] morphagraves gagraver kateacutethento dyacuteo gnoacutemas75 onomaacutezein[54] tocircn miacutean ou chroacuten estin ndash en hocirci peplanemeacutenoi eisiacuten ndash

75 ldquoGnoacutemerdquo pode ser ldquopensamentordquo ldquointeligecircnciardquo ldquopercepccedilatildeordquo ldquoapreensatildeordquo ldquorazatildeordquo e ldquojuiacutezordquo nesse

contexto Escolhemos ldquoapreensatildeordquo porque possui duplo sentido por um lado podemos apreender

formas sensiacuteveis com os oacutergatildeos dos sentidos e por outro podemos apreender formas inteligiacuteveiscom a mente E os princiacutepios postos pelas concepccedilotildees dos mortais satildeo apreensiacuteveis tanto pelos sen

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 36: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

74 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Todavia a deusa natildeo dispensa os princiacutepios Se observarmos as caracteriacutes-ticas de Nyacutex em B859 veremos que uma delas ldquodeacutemas embritheacutesrdquo (ldquocorposoacutelidordquo) eacute compatiacutevel com a descriccedilatildeo do eoacuten como uma esfera de massabem redonda indivisiacutevel e indestrutiacutevel

O que devemos reter por ora eacute que a Nyacutex de Parmecircnides natildeo eacute exata-mente a deusa Nyacutex da tradiccedilatildeo nem da eacutepica nem da oacuter3ca Se tivermosde aproximaacute-la de uma tradiccedilatildeo esta eacute certamente a pitagoacuterica Ela natildeodeixou de ser uma deusa mas adquiriu uma nova dimensatildeo cosmoloacutegica

Talvez Pitaacutegoras tenha sido o primeiro a chamar o todo de ldquocosmosrdquo emrazatildeo da sua ordem natildeo sabemos76 Mas isto sim sabemos que Parmecirc-nides deu ao todo uma Norma (ldquoTheacutemisrdquo) A deusa Theacutemis aparece duasvezes no poema de Parmecircnides em B128 e em B832 Na primeira vezela aparece ao lado de Diacuteke como corresponsaacutevel pelo envio do jovem agravedeusa E na segunda vez ela aparece como a responsaacutevel pelo acabamentodo eoacuten Jaacute que (ldquohouacutenekenrdquo)

[32] Lei ser o eoacuten acabado[32] ouk ateleuacuteteton tograve eograven Theacutemis eicircnai

Natildeo haacute na cosmologia arcaica uma distinccedilatildeo entre a deusa Theacutemis e a leiTal como natildeo haacute uma distinccedilatildeo entre a Eoacutes e a aurora Eoacutes eacute a aurora eTheacutemis eacute a lei que rege os eventos coacutesmicos Toda a discussatildeo sobre seTheacutemis estaria aqui personi3cada ou natildeo resulta de uma maacute compreensatildeoda cosmologia arcaica a qual natildeo separa a divindade do seu conceito Asdivindades se fazem presentes pela sua manifestaccedilatildeo nome-numinosa Natildeohaacute qualquer distinccedilatildeo no mito arcaico como Nyacutex de um lado e a noite dooutro Quando a justiccedila eacute ldquoagredidardquo eacute a proacutepria Diacuteke que se machucaonde quer que a justiccedila seja agredida Para demonstrar isso recorreremos auma importante passagem (248-262) de Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo

E voacutes reis atentai para essa justiccedila voacutes proacuteprios pois os imor-tais estatildeo entre os homens bem proacuteximos por conseguinte eobservam todos aqueles que prejudicam os outros com sentenccedilasinjustas sem se importar com o olhar dos deuses Sobre a terrafecunda trinta mil satildeo os imortais que Zeus pocircs como guardiatildeesdos homens mortais Satildeo eles que vigiam as sentenccedilas e as obrasmalignas Envoltos em neacutevoa vagam por toda a terraE sobretudo haacute uma virgem Diacuteke gerada por Zeus honradae reverenciada entre os deuses que habitam o Olimpo Quando

tidos (dado que resultam em parte das observaccedilotildees astronocircmicas) quanto pela mente (dado que satildeo

tomados como princiacutepios materiais) Por essas razotildees preferimos escolher um termo que satis2zesse

a ambas as dimensotildees76 Cf DK 14 A 21 e DLVIII4810-11

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 37: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

75Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

algueacutem a ofende insultando-a com injuacuterias ela se assenta ao ladode seu pai Zeus o 3lho de Crono e denuncia as intenccedilotildees doshomens injustos ateacute que o povo pague pelos loucos desatinadosdos reis que tramam maldades e pervertem os julgamentos ale-gando censuraacuteveis razotildees77

Uma injuacuteria ldquoadikiacuteardquo eacute uma ofensa direta agrave Diacuteke que eacute a proacutepria justiccedilaPortanto Theacutemis (em B832) eacute a Lei que determina que o eoacuten seja acabadoA novidade parmeniacutedea estaacute na inYexibilizaccedilatildeo dessa Lei por meio daequiparaccedilatildeo de Diacuteke Moicircra Theacutemis e Anaacutenke A construccedilatildeo dessa classe deconceitos equivalentes (jaacute cosmologicamente aparentadas) pode ser depre-endida da funccedilatildeo desempenhada por essas divindades na determinaccedilatildeodos paracircmetros a serem obedecidos pelo eoacuten78 Theacutemis DiacutekeMoicircra e Anaacutenkepermanecem sendo deusas mas como no caso de Nyacutex adquirem uma fun-ccedilatildeo cosmoloacutegica claramente distinta da tradicional79 Elas se transformamnos princiacutepios que determinam as formas do que existe impondo-lhe assuas peiacuterata80 Aqui ldquopeicircrarrdquo evidentemente natildeo eacute redutiacutevel ao limite naacepccedilatildeo espacial pois em B107 refere-se agraves rotas dos astros no Ceacuteu e emB814 e B830 refere-se ao nascimento e ao perecimento como exteriores aoldquointervalordquo no qual o eoacuten eacute Parece razoaacutevel a3rmar que as ldquopeiacuteratardquo emParmecircnides sejam as ldquodeterminaccedilotildeesrdquo estabelecidas pela Lei do que existe

Conclusatildeo

A tese nuclear de Alberto Bernabeacute eacute a de que o proecircmio consiste na ela-boraccedilatildeo literaacuteria do acesso a uma verdade (sobre tograve eoacuten) que Parmecircnidesinterpreta como uma revelaccedilatildeo Esta eacute situada no espaccedilo iniciaacutetico dosMisteacuterios no qual a verdade divina (a verdade das deusas MemoacuteriaPerseacutefone Noite) se transmite aos seres humanos (que tenham realizadoo caminho de acesso ao espaccedilo iniciaacutetico) Este espaccedilo se encontra ldquoentre onosso mundo e o Aleacutem entre o humano e o divino entre a vida e a mor-terdquo81 E nele se interpreta cenicamente ldquouma espeacutecie de ensaio da morterdquo82

Contudo a nossa avaliaccedilatildeo quanto agrave sugestatildeo de interpretaccedilatildeo propostapor Bernabeacute eacute negativa As evidecircncias apresentadas satildeo fracas para que

77 HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias (248-262) A traduccedilatildeo eacute de Sueli Maria de Regino (2010 75)78 Confrontar B114 B126 B128 B814 B816 B830 B832 B837 e B10779 O que eacute particularmente niacutetido na funccedilatildeo de Anaacutenke em B107 Confrontar com a funccedilatildeo de Diacuteke

em B814 e com a funccedilatildeo de Anaacutenke em B830 Nos trecircs casos temos o mesmo princiacutepio formal dos

laccedilos que determinam como o que eacute deve ser80 Essa funccedilatildeo de Theacutemis enquanto uma Lei que determina a forma do eoacuten escapou agrave anaacutelise de

Aristoacuteteles na Metafiacutesica81 BERNABEacute (2012 33-35)82 BERNABEacute (2012 9)

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 38: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

76 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

se possa estabelecer uma relaccedilatildeo do poema de Parmecircnides com o Or3smoque vaacute para aleacutem do uso comum de alguns poucos elementos textuaisos quais em todos os casos com exceccedilatildeo do adjetivo polyacutepoinos (B114)encontrado apenas na literatura oacuter3ca podem ser oriundos tambeacutem daliteratura eacutepica

Quanto agrave tradiccedilatildeo eacutepica o estudo de Mourelatos prova que Parmecircnidesemprega termos expressotildees imagens e motivos oriundos dessa literatu-ra Mas para aleacutem do niacutevel formal no que diz respeito ao conteuacutedo ocompromisso de Parmecircnides com as teses da tradiccedilatildeo satildeo nitidamentequestionaacuteveis As divindades natildeo desempenham as mesmas funccedilotildees ocenaacuterio cosmoloacutegico tambeacutem natildeo eacute o mesmo e talvez em Parmecircnides osnomes das deusas estejam jaacute no limiar da sua transformaccedilatildeo em conceitoscosmoloacutegicos abstratos como o da ldquojusticcedilardquo enquanto uma ldquonormardquo ouum ldquodestinordquo que impotildee aos elementos do cosmos (do eoacuten aos astros doCeacuteu estrelado) um comportamento ldquonecessaacuteriordquo ldquocompulsoacuteriordquo Nessesentido concordamos com a avaliaccedilatildeo de Mourelatos segundo a qualldquoParmecircnides usa velhas palavras velhos motivos velhos temas e velhasimagens precisamente para por meio delas pensar novas ideiasrdquo83

Os Nomes das Divindades

Daiacutemon kybernacirci (v 3 fr1 v 3 fr12)Heliaacutedes koucircrai (v 5 9 15 24 fr1)Nyacutex adaecirc (v 9 11 fr1 v 59 fr8 v 1 3 fr9 v 2 fr12 v 1 fr14)Phaacuteos (v 10 fr1 v 1 3 fr9 v 1 fr14)Hemeacutera (v 10 11 fr1)Aitheacuter (v 12 fr1 v 1 fr10 v 2 fr11)Diacuteke polyacutepoinos (v 14 28 fr1 v 14 fr8)Theaacute (v 22 fr1)Moicircra (v 26 fr1 v 37 fr8)Theacutemis (v 28 fr1 v 32 fr8)Piacutestis aletheacutes (v 30 fr1 v 12 28 fr8)Aleacutetheia (v 30 fr1 v4 fr2)Peithoacute (v 4 fr2)Anaacutenke (v 16 30 fr8 v 7 fr10)Sphaicircra eukyacuteklou (v 43 fr8)Pucircr aitheacuterion (v 56 fr8 v 1 fr12)

83 MOURELATOS (2008 39)

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 39: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

77Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

Heacutelios lampaacutedos (v 2-3 fr10 v 1 fr11 v 1 fr15)Seleacutele (v 4 fr10 v 1 fr11 v 1 fr14 v 1 fr15)Ouranoacutes (v 5 fr10 v 2 fr11)Aacutestroi (v 7 fr10 v 3 fr11)Gaicirca (v 1 fr11 v 1 fr14)Gaacutela (v 2 fr11)Oacutelympos (v 2 fr 11)Eacuteros (v 1 fr13)Aphrodiacutete (v 1 fr18)

Referecircncias bibliograacute+cas

Fontes primaacuterias

(APH) ANAXIMANDRO amp PARMEcircNIDES amp HERAacuteCLITO Os Pensadores Origi-naacuterios Traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo e Seacutergio Wrublewski PetroacutepolesVozes 2ordf ed 1993

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica Traduccedilatildeo do grego de Giovanni Reale Traduccedilatildeo parao portuguecircs de Marcelo Perine Loyola Satildeo Paulo 2002

BORNHEIM G A (2003) Os loacutesofos preacute-socraacuteticos Satildeo Paulo CULTRIX 12ordf ed

BRANDAtildeO J S Dicionaacuterio miacutetico-etimoloacutegico da mitologia grega Vozes Petroacutepolis1991

DANIEL W G (2010) The Texts of Early Greek Philosophy The complete Fragmentsand selected testimonies of the major presocratics Part I and II New York CambridgeUniversity Press

DIELS H A e KRANZ W Die Fragmente der Vorsokratiker 6ordf Ed BerlinWeidmann 1951 (Primeira ediccedilatildeo Diels H A Die Fragmente der VorsokratikerWeidmann Berlin 1906)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana 3a ed Bertrand Brasil Rio deJaneiro 1997 (Dictionnaire de la mythologie greque et romaine Paris Presses Univer-sitaires de France 1951)

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano SatildeoPaulo Iluminuras 3ordf ed 1995

HESIacuteODO Teogonia Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo de Sueli Maria de ReginoMartin Claret Satildeo Paulo 2010

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Haroldo de Campos Arx Satildeo Paulo v1 2003v2 2002

HOMERO Odisseia Traduccedilatildeo de Trajano Vieira Ed 34 Satildeo Paulo 2011

HINOS HOMEacuteRICOS Traduccedilatildeo de Edvanda Bonavina da Rosa [et al] UnespSatildeo Paulo 2010

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 40: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

78 Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

(DL) LAEcircRTIOS Diocircgenes (2008) Vidas e doutrinas dos loacutesofos ilustres Traduccedilatildeode Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2ordf ed

KIRK G S amp RAVEN J E amp SCHOFIELD M (1994) Os loacutesofos preacute-socraacuteticosTraduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian4ordf ed

PARMEcircNIDES (2002) Da Natureza Traduccedilatildeo de Joseacute Trindade Santos Satildeo PauloLoyola

PARMEcircNIDES (2009) Da Natureza Trad Fernando Santoro Rio de Janeiro Labo-ratoacuterio OUSIacuteA Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dicionaacuterios e gramaacuteticas

ANTOacuteNIO FREIRE S J Gramaacutetica Grega Braga Publicaccedilotildees da Faculdade deFiloso3a Braga 6ordf Ed 1982

LIDDELL H G amp SCOTT R A Greek-English Lexicon London Oxford UniversityPress 1958

(DGP) MALHADAS D amp DEZOTTI Ma C C amp NEVES Ma H M (Org) Di-cionaacuterio Grego-Portuguecircs Cotia Ateliecirc Editorial vol 1 2006 vol 2 2007 vol 32008 vol 4 2009

RAGON E Grammaire Grecque Eacuteditions De Gigord Paris 2008

ROCCI L Vocabolario Greco-ItalianoMilano mdash Roma mdash Napoli mdash Ci~agrave di CastelloSocietagrave Editrice Dante Alighieri p a amp Societagrave Editrice S Lapi p a 1961

SMYTH H W Greek Grammar Harvard University Press 1984

Autores modernos

BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura del Proemio de Parmeacutenidesgt In Umamirada actual a la losofiacutea griega Ponencias del II Congreso Internacional de FilosofiacuteaGriega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea Griega Ediciones de la SIFG Madrid--Mallorca 2012 3-40

CORDERO N L (2011) Sendo Se Eacute a tese de Pamecircnides Traduccedilatildeo de EduardoWolf Satildeo Paulo Odysseus

CORNELLI Gabriele (2009) A Descida de Parmecircnides anotaccedilotildees geolosoacutecas agravesmargens do proacutelogo In SANTORO F CAIRUS H RIBEIRO T Acerca do Poemade Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

GOacuteMEZ-LOBO A (1999) El poema de Parmeacutenides texto griego traduccioacuten y comen-tario Santiago de Chile Apud BERNABEacute A ltFilosofiacutea y Misterios Lectura delProemio de Parmeacutenidesgt In Uma mirada actual a la losofiacutea griega Ponencias delII Congreso Internacional de Filosofiacutea Griega de la Sociedad Ibeacuterica de Filosofiacutea GriegaEdiciones de la SIFG Madrid-Mallorca 2012 3-40

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom

Page 41: (2) Gabriele Cornelli e Thiago Rodrigo Oliveira Costa...Síntese,BeloHorizonte,v.43,n.135,2016 41 fonteantigaquearmavaqueParmênideshaviaescritoaomododeHe-síodoedeXenófanes.4SalvopelareferênciaaXenófanes,oshistoriadores

79Siacutentese Belo Horizonte v 43 n 135 2016

MOURELATOS A P D (2008) The route of Parmenides New Haven ad LondonYale University

MUNIZ F (2009) A odisseia de Parmecircnides In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

SANTORO F HENRIQUE C RIBEIRO T (Orgs) (2009) Acerca do Poema deParmecircrnides Rio de Janeiro Beco do Azougue Editorial

SANTORO F (2009) Os nomes dos deuses In SANTORO F CAIRUS H RIBEIROT Acerca do Poema de Parmecircnides Azougue Rio de Janeiro

Endereccedilo dos Autores

Gabriele Cornelli

Universidade de BrasiacuteliaCaixa Postal 449770904-970 Brasiacutelia mdash DF(61) 3107-7040

gabrielecornelligmailcom

Thiago Rodrigo Oliveira Costa

Rua do Moreira nordm 74Setor Central Goiaacutes mdash GOCEP 76600-000

meryvergmailcom