2 - entrevista

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Entrevista Interview IPSEITAS Para começar, você poderia nos contar um pouco sobre seu período de formação e seu percurso na filosofia? SAFATLE Na verdade, eu cheguei à filosofia vindo da música. Tinha a ideia de fazer formação em composição musical, até porque já ti- nha atividades de composição antes de entrar na faculdade. Mas a composição era, para mim, uma forma meio peculiar de se perguntar sobre como pessoas eram afetadas e se deixavam modificar, como eram constituídas, como se desconstituíam. Havia um interesse espe- culativo que me levava constantemente para fora de questões estrita- mente musicais. Tanto que, ao invés de se preparar para provas téc- nicas de instrumento, eu passei os dois anos anteriores ao vestibular descobrindo filosofia (Sartre, Nietzsche) e psicanálise (Lacan, Freud). Quando o vestibular chegou, o mais natural era optar por uma das duas áreas, e acabou por ser a filosofia. Mas como minha família é uma família de imigrantes e eu era um sujeito meio perdulário, quan- do falei que faria filosofia a reação foi desesperadora. Achavam que passaria a vida gastando dinheiro de terceiros, que nunca conseguiria me sustentar. Por isto, acabei por inventar um curso para esconder que havia passado em filosofia e poder morar sozinho em São Paulo. Ao mesmo tempo, eu fazia propaganda e marketing na ESPM. Meu Vladimir Pinheiro Safatle Possui graduação em filosofia pela USP (1994), graduação em comuni- cação social pela ESPM (1994), mestrado em filosofia pela USP (1997) e doutorado em Lieux et trans- formations de la philosophie - Université de Paris VIII (2002). Atualmente é professor livre docente do departamento de filosofia da USP. Foi professor visitante das Universidades de Paris VII, Paris VIII, Tou- louse, Louvain e Stellenboch (África do Sul), além de responsável de seminário no Collège International de Philosophie (Paris). Desenvolve pesquisas nas áreas de: epistemologia da psicanálise e da psicologia, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na filosofia do século XX e filosofia da música. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) e presidente da Comissão de Cooperação Internacional (CCint) da FFLCH-USP desde 2012. Principais publicações Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012; A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012 (trad. espanhola La izquierda que no teme decir su nombre. Santiago: LOM Ediciones, 2014); Fe- tichismo: colonizar o Outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010; Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008; A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Unesp, 2006 (trad. francesa La passion du négatif : Lacan et la dialectique. Hildesheim: Georg Olms Verlag, 2010). Organi- zou Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2003. Também organizou com Edson Telles O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010; com Ronaldo Manzi e Antonio Teixeira A filosofia após Freud. São Paulo: Humanitas, 2008; com Rodrigo Duarte Ensaios sobre música e filosofia. São Paulo: Editora Humanitas, 2007; com Tania Rivera Sobre arte e psicanálise. São Paulo: Editora Escuta, 2006; e com Antonio Teixeira e Gilson Iannini O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de filosofia e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. Ipseitas, São Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 2015

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Entrevista InterviewIPSEITAS Para comear, voc poderia nos contar um pouco sobre seu perodo de formao e seu percurso na losoa?SAFATLE Na verdade, eu cheguei losoa vindo da msica. Tinha a ideia de fazer formao em composio musical, at porque j ti-nhaatividadesdecomposioantesdeentrarnafaculdade.Masa composio era, para mim, uma forma meio peculiar de se perguntar sobrecomopessoaseramafetadasesedeixavammodicar,como eram constitudas, como se desconstituam. Havia um interesse espe-culativo que me levava constantemente para fora de questes estrita-mente musicais. Tanto que, ao invs de se preparar para provas tc-nicas de instrumento, eu passei os dois anos anteriores ao vestibular descobrindo losoa (Sartre, Nietzsche) e psicanlise (Lacan, Freud). Quando o vestibular chegou, o mais natural era optar por uma das duas reas, e acabou por ser a losoa. Mas como minha famlia uma famlia de imigrantes e eu era um sujeito meio perdulrio, quan-do falei que faria losoa a reao foi desesperadora. Achavam que passaria a vida gastando dinheiro de terceiros, que nunca conseguiria mesustentar.Poristo,acabeiporinventarumcursoparaesconder que havia passado em losoa e poder morar sozinho em So Paulo. Ao mesmo tempo, eu fazia propaganda e marketing na ESPM. Meu VladimirPinheiroSafatlePossuigraduaoemlosoapelaUSP(1994),graduaoemcomuni-cao social pela ESPM (1994), mestrado em losoa pela USP (1997) e doutorado em Lieux et trans-formations de la philosophie - Universit de Paris VIII (2002). Atualmente professor livre docente do departamento de losoa da USP. Foi professor visitante das Universidades de Paris VII, Paris VIII, Tou-louse, Louvain e Stellenboch (frica do Sul), alm de responsvel de seminrio no Collge International de Philosophie (Paris). Desenvolve pesquisas nas reas de: epistemologia da psicanlise e da psicologia, desdobramentos da tradio dialtica hegeliana na losoa do sculo XX e losoa da msica. um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, do Laboratrio de Pesquisa em Teoria Social, Filosoa e Psicanlise (Latesp) e presidente da Comisso de Cooperao Internacional (CCint) da FFLCH-USP desde 2012.PrincipaispublicaesGrandeHotelAbismo:porumareconstruodateoriadoreconhecimento. So Paulo: Martins Fontes, 2012; A esquerda que no teme dizer seu nome. So Paulo: Trs Estrelas, 2012 (trad. espanhola La izquierda que no teme decir su nombre. Santiago: LOM Ediciones, 2014); Fe-tichismo: colonizar o Outro. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010; Cinismo e falncia da crtica. So Paulo: Boitempo, 2008; A paixo do negativo: Lacan e a dialtica. So Paulo: Unesp, 2006 (trad. francesa La passion du ngatif : Lacan et la dialectique. Hildesheim: Georg Olms Verlag, 2010). Organi-zou Um limite tenso: Lacan entre a losoa e a psicanlise. So Paulo: Editora Unesp, 2003. Tambm organizou com Edson Telles O que resta da ditadura: a exceo brasileira. So Paulo: Boitempo, 2010; com Ronaldo Manzi e Antonio Teixeira A losoa aps Freud. So Paulo: Humanitas, 2008; com Rodrigo Duarte Ensaios sobre msica e losoa. So Paulo: Editora Humanitas, 2007; com Tania Rivera Sobre arte e psicanlise. So Paulo: Editora Escuta, 2006; e com Antonio Teixeira e Gilson Iannini O tempo, o objeto e o avesso: ensaios de losoa e psicanlise. Belo Horizonte: Autntica, 2004.Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 20159pai s foi saber que estava fazendo o curso de losoa quatro anos depois, praticamente no ltimo ms do curso. Foi assim que acabei tendo tambm um diploma em propaganda e marketing.Duranteocursodelosoa,minhasmaioresdescobertasfo-ramHegeleWittgenstein,almdoscursossobreNietzscheePas-cal.ComeceiafazerumainiciaocientcasobreHegeleLacan que acabou dando no meu mestrado. Mas a verdade que durante todo este tempo eu tentava acertar as contas com meu interesse por psicanlisefazendocursosnodepartamentodepsicologia,almde cursos de formao em instituies psicanalticas. Continuei tambm minha formao musical fazendo cursos na USP e fora dela. Era um trip que me deu trabalho para sustentar, alm de bastante angstia, mas que acabou se estabilizando quando fui fazer um mestrado sobre Lacan ao mesmo tempo que eu voltava a dar concertos com composi-es que z (Funarte, Mube) com um grupo que se chamava IFC e que ainda tinha uma soprano, um tenor e uma violoncelista.Quando fui fazer um doutorado em Paris, continuei com o mes-mo malabarismo. Enquanto fazia um doutorado sobre Lacan e ia en-m lendo de maneira mais sistemtica Adorno e a losoa francesa contempornea (Foucault, Deleuze, Derrida), dei continuidade for- for- for-mao em psicanlise a ponto de passar um ano fazendo estgio em um hospital psiquitrico na periferia parisiense, alm de gastar boa parte do meu dinheiro com aulas particulares com um pianista que ainda hoje admiro bastante e agradeo por ter me apresentado o re-pertrio pianstico do sculo XX, Jay Gottlieb. Acho que isto explica um pouco minhas opes loscas posteriores, assim como os tra-balhos em losoa da psicanlise e losoa da msica.IPSEITAS Voc foi orientado por Bento Prado Jr., a quem dedicou um de seus livros. No por acaso, sua atividade como pesquisador sugere algumas proximidades temticas com a obra do Bento, como a losoa da psicanlise e o estatuto da teoria do sujeito na contemporaneidade. Voc poderia contar um pouco como foi seu convvio com ele, os di-logos e confrontaes tericas que marcaram sua trajetria intelectual?SAFATLE Bento foi meu orientador de mestrado e a pessoa responsvel por eu ter continuado na losoa. No meio do mestrado, ainda tinha vrias dvidas sobre que caminho seguir, se havia realmente feito a escolha certa decidindo pela losoa. Como vocs viram, meu trajeto nalosoasemprefoimuitoarticuladoporreasexterioresaela, ento a escolha em privilegi-la no poderia ser sem questionamen-tos posteriores. Mas acho que consigo me lembrar como me conciliei com minhas escolhas. Estava em uma aula de mestrado onde o Bento explicava o advento do discurso da primeira pessoa em losoa. Ele tinha um esquema que comeava com as Consses, de Agostinho, Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201510passava pelos Ensaios, de Montaigne, pelas Meditaes, de Descartes, pelos Pensamentos, de Pascal, e pelas Consses, de Rousseau. Quando ele chegou em Rousseau e suas descries de uma personalidade cindida que toma a si mesmo como juiz de si mesmo (Rousseau, juiz de Jean--Jacques),elechorou,pediuparasuspenderaaulaporalgunsminutos e depois retornou. Para quem tinha ouvido durante toda a sua formao que a flosofa era associada principalmente ao rigor, ver um professor capaz de chorar por causa de ideias flosfcas era como andar de cabea para baixo. Aquilo de certa forma decidiu minha vida. Com aquelas lgri-mas, Bento havia mostrado como haviam ideias que nos faziam chorar, que eram capazes de nos tocar de forma tal que nos era, depois, impos-svelviversemestarprximodeseumovimento.Defato,foiistoque ocorreu. Aos poucos, de maneira silenciosa, uma mutao foi ocorrendo dentro de mim. Ela era a expresso do desejo em no mais viver longe do movimento de certas ideias. Foi Bento, com sua honestidade intelectual, que me mostrou a possibilidade deste desejo. Ao que eu lhe serei grato o resto da vida. IPSEITAS Sabemos como o mtodo de leitura estrutural, que caracterizou a prtica da histria da flosofa francesa na primeira metade do sc. XX, marcou de maneira decisiva a formao dos departamentos de flosofa no Brasil. Embora ainda hoje parea indiscutvel a necessidade de desenvolver habilidades de leitura respeitando a sistematicidade interna dos textos, po-demos facilmente incorrer na armadilha de fazer do ensino e da pesquisa de flosofa, como dizia Foucault, um comentrio innito de seus pr-prios textos, uma prtica institucional sem relao com exterioridade alguma. Quais cuidados devemos tomar para evitar essa armadilha?SAFATLE O melhor cuidado consiste em lembrar-se de uma afrmao de Deleuze, segundo a qual todo flsofo tem, no fundo, um conjunto limi-tado de questes com o qual ele trabalhar durante toda a vida. No se tratam de questes que sero, de alguma forma, respondidas. Na verdade, soproblemasmontadosquedizemrespeitoaalgodeprofundamente decisivoemnossasvidas,problemasquenosfazemsofrerealegrar-se, que nos constituem em nossa posio singular. Por isto, problemas com os quais estamos ligados, como dizia Maiakovski, como o soldado mu-tilado que cuida da sua nica perna e que, por ter esta fora de ligao orgnica, nos impulsionam continuamente a pensar e a criar. Somos for-mados por problemas, uma vida apenas um conjunto de problemas que pensa a si mesmo, ela produz um modo de problematizao que o que temosdemaisdecisivo,eaflosofaumpoucoaartedetransformar tais modos de problematizao em questes que se desdobraro em v- de problematizao em questes que se desdobraro em v-rioscampos,quenospermitiroinquirirotrabalhodeoutrosflsofos apartirdeperspectivassingulares,lerdiscussestradicionaisdeforma nova produzindo caminhos capazes de reabrir as possibilidades de pen-Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201511sar e agir. Neste sentido, todos aqueles que realmente se interessam por flosofa e querem se dedicar a ela devem, em algum momento, ter clareza sobre qual conjunto de problemas e quais modos de problematizao os movem. Isto , a meu ver, muito mais produtivo do que afundar-se, como dizia Foucault, neste comentrio infnito que mais parece, s vezes, que-rer viver a vida de algum flsofo que nos antecedeu, seguir seus passos, preencher as lacunas de seus textos, repetir seus gestos, sentir suas sen-saes, abrir suas cartas, ler os livros que ele leu. De fato, eu no saberia nem como comear a fazer isto. IPSEITAS Em seus cursos, livros e artigos, vemos constantemente a pre-ocupao em articular reas externas flosofa como a psicanlise e a refexo esttica sobre msica com problemas tradicionais da histria da flosofa. Voc poderia comentar um pouco esse mtodo de trabalho que lembra a conhecida afrmao de Georges Canguilhem: a flosofa uma refexo para quem toda matria exterior boa, e ns diramos de bom grado para quem toda matria boa exterior? SAFATLE Para mim, a flosofa um discurso vazio. No no sentido de ela ser irrelevante, mas no sentido de ela no ter objeto que lhe seja prprio. Nopossvelfazerontologiasemlgica,teoriadoconhecimentosem conhecimento aprofundado de, ao menos, uma cincia (fsica, biologia, psicologiaetc.),flosofapolticasemrefexopolticacontempornea, moralsempsicologiaepsicanlise,estticasemoconhecimentoapro-fundadode,aomenos,umalinguagemartstica,semconhecermuito bemcrticadearte.OdesenvolvimentodaquiloqueFoucaultchamava de empiricidades exige atualmente a capacidade de compreender como acontecimentos so produzidos em tais campos. A flosofa no produz acontecimentoalgum,poristoametforahegelianadacorujadeMi-nerva to justa. Cabe flosofa reconhecer os acontecimentos que so produzidos em tais exterioridades e explicitar sua dimenso de aconte-cimentos. Mas explicitar no simplesmente revelar o que j est l; h algo de produtivo quando explicitamos o que ainda no se v de maneira clara,jqueparaseverdeve-se,muitasvezes,reconstruirocampodo visvel. Por isto, explicitar nunca simplesmente explicitar, mas defnir as coordenadas do visvel, reconstruir as condies de visibilidade. Esta certamente uma das aes mais duras e decisivas, pois sem ela nada de fatoacontece.Elaumaespcieparticulardeacontecimentoquesa flosofa pode produzir.Por outro lado, esta relao entre a flosofa e os campos das empi-ricidades talvez nos explique porque boa parte da flosofa mais relevante do fnal do sculo XIX e dos sculos posteriores foram experincias inte-lectuais produzidas em pontos de interseco. Marx e a interseco entre flosofaeeconomiapoltica,Nietzscheeaintersecoentreflosofae literatura, Wittgenstein com as sobreposies entre flosofa e anlise da Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201512linguagem, Adorno e as passagens entre flosofa e crtica cultural, Fou-cault a flosofa e a histria, s para fcar em alguns dos mais evidentes.

IPSEITASNosltimosanos,voctemsededicado,deformabastan-teoriginal,construodeumateoriadoreconhecimentobaseadana articulaodeaspectosrelevantesdaflosofadeTeodorAdornoeda psicanlisedeJacquesLacan.Emalgunsdeseustextos,vocnos levantaressalvascontrateoriastradicionaisdoreconhecimento,geral-mente centradas na transparncia da conscincia e na certeza circular da autoidentidade, como prope uma crtica sistemtica ao pensamento da identidade com a valorizao de experincias que propiciam a abertura deumnovohorizontedereconhecimentoedeumanovapotnciade cura para o sujeito. Gostaramos de perguntar o que poderia ou deveria ser esse novo horizonte de reconhecimento quando pensado a partir do primadodano-identidadeoudealgoquepoderamoschamar,talvez, de uma ipseidade? E qual a importncia dessa teoria do reconhecimento para os debates e os confitos polticos atuais?SAFATLE A meu ver, teorias hegemnicas do reconhecimento (como as queconhecemosatravsdeAxelHonneth,CharlesTaylor)pecampor dependerem de uma antropologia profundamente normativa que acaba por naturalizar os pressupostos identitrios da individualidade moderna. Este o tema que comecei a trabalhar em Grande Hotel Abismo e que me levouaaprofundaremmeuprximolivro:Ocircuitodosafetos.Ain-corporao da refexo psicanaltica de Jacques Lacan, com sua noo de sujeito descentrado e sua compreenso da produtividade de experincias denegatividadeparece-mecapazdefornecerumquadroradicalmente diferente para a inscrio das demandas de reconhecimento e, a meu ver, muitomaisprximodosentidodasarticulaespresentesnaflosofa hegeliana sobre o tema. Politicamente, ela permite abrir o espao terico paraumapolticaps-identitria,capazdeoperaratravsdeumcon-ceitono-substancialdeuniversalidade,ameuver,fundamentalparaa orientao das lutas polticas. Tal poltica uma possibilidade maior do presente, seu parto difcil pois as foras contra ela so enormes, mas atravs dela que poderemos dar um sentido novo noo de liberdade. Por outro lado, diria que este debate flosfco permite darmos lu-gar quilo que, nos sujeitos, no se conforma fgura da identidade ou de uma reduo egolgica da subjetividade. Acho fundamental pensar as condies para uma teoria no-identitria do sujeito pois nunca estive de acordo em descartar o sujeito como o fundamento dos descaminhos do pensamento moderno no interior das sendas da representao e da iden-tidade.Estaumaleituraqueignoraairredutibilidadedacentralidade das funes implicativas prprias a um sujeito e que l mal autores como Hegel,Marx,almdeignorarumadascontribuiesmaisdecisivasde Adorno. L onde houver implicao a um acontecimento, haver sempre Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201513umsujeito,pormaislarvarqueelepossaparecer.Podemosreconstruir nossoconceitodesujeito,masnocreioquepodemossimplesmente abandon-lo. Criticar a antropologia presente no horizonte da humani-dade do homem no signifca criticar o sujeito como funo implicativa: esta me parece uma das contribuies mais decisivas do pensamento la-caniano flosofa. Ela merece uma meditao mais cuidadosa.IPSEITAS Em cinco lies sobre o caso Wagner, Alain Badiou mostrava comoaflosofadeTeodorAdornoantecipavaumasriedequestes que estariam no corao das refexes do dito ps-estruturalismo francs (Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard): O alvo de Adorno , portanto, o papel representado pelo princpio de identidade no racionalismo ociden-tal.Issoimplicaqueouniversalismosuspeito,namedidaemqueele consiste precisamente na imposio do Um, isto , na imposio da iden-tidade,ondeumacoisapodevalerporoutra,operaoque,emoutros termos, tudo reduz ao mesmo, o mesmo tornado a norma universal. (...) Se a identidade o adversrio, consequentemente o objetivo a diferena, a diferena o ltimo telos da dialtica negativa. O encontro tardio entre o pensamento francs e a primeira gerao da escola de Frankfurt gerou muitos desencontros no debate flosfco contemporneo. Basta lembrar-mos como o pensamento dialtico costuma ser tratado pelas flosofas da diferena, isto , como um discurso incapaz de pensar a diferena por ela mesma, tendo como fm sua subsuno identidade. Em contrapartida, pensadores ligados sobretudo ao marxismo no deixaram de questionar a primazia da diferena na flosofa francesa contempornea, acusando--adeumsupostoimediatismodsirant.Apesardousodeestratgias diferentes,vocnoachaqueumconfrontomaisrigorosoentreambas as tradies poderia revelar um solo comum de crtica e ultrapassagem da identidade como tarefa de um trabalho flosfco preocupado em evi-tar tanto a reduo do pensamento ao automatismo do desejo quanto retomada ingnua do projeto moderno, com sua crena em pressupostos normativos de unifcao e racionalizao da vida social?SAFATLE Sim, acho que uma das tarefas flosfcas de nossa poca mos-trar a produtividade que se abre a partir do momento que conseguimos criar um campo de relaes entre o pensamento francs contemporneo eopensamentoalemocontemporneodeinspiraodialtica.Nose trataaquiapenasdesedeleitardiantedaspossibilidadesdedescoberta de aproximaes inusitadas entre autores que praticamente se desconhe-ciam, mas de dizer que h algo de impensado quando somos incapazes de pensar a partir do sistema de passagens entre experincias flosfcas autnomas.Opensamentofrancscontemporneotemumacompre-ensocaricatadadialtica(que,diga-sedepassagemfoisimplesmente abandonada pela segunda e terceira gerao da Escola de Frankfurt), as-sim como o pensamento alemo contemporneo tem uma compreenso Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201514caricatadacrticadaracionalidademodernaoperadapelopensamento francs, querendo dar a impresso de que se trata de fertes esteticizantes com o irracionalismo (seja l o que este conceito possa signifcar). Eu diriaqueumadialticaaalturadenossotempospodeseconstituir atravsdaintegraodetemaseestratgiasdesenvolvidaspelopensa-mento francs. Da mesma forma, uma perspectiva crtica que queira dar continuidadegenealogia,desconstruoouontologiadeleuzeana com sua univocidade s pode se constituir atravs da integrao de uma leiturarenovadadadialtica.Seiquenenhumdosdoispartidoslevaria tal sugesto a srio, mas tudo o que posso dizer que sei que tenho razo, s preciso de mais tempo para mostrar isto.Um exemplo involuntrio deste sistema de desconhecimentos m-tuos a prpria citao de Badiou que vocs trazem. Ao afrmar que, para Adorno, o universalismo suspeito por ser a imposio do Um e que o objetivo seria a diferena, Badiou tenta colocar Adorno como uma verso alem de temas que ele prprio combate no campo da flosofa francesa. No entanto, ele erra primeiro por no levar em conta que a crtica falsa totalidadedoCapitalcomsuageneralizaodaestruturadeequivaln-ciasdaforma-mercadorianolevaAdornoadescartarapossibilidade deumatotalidadeverdadeira.EmAdorno,humatotalidadequeno deve ser compreendida como determinao normativa capaz de defnir, por si s, o sentido daquilo que ela subsume, mas como a fora de des-centramento da identidade autrquica dos particulares. Por isto, Adorno deve reconhecer, nos melhores momentos de seus textos, que a totalidade no pode ser vista como negao simples do particular, como subsuno completa das situaes particulares a uma determinao estrutural gen-rica. Ela ser a consequncia necessria da compreenso de o particular ser sempre mais do que si mesmo, de ele nunca estar completamente re-alizado. Na verdade, ela aparecer como a condio para que a fora que transcende a identidade esttica dos particulares no seja simplesmente perdida, mas possa produzir relaes. Talvez isto explique porque no exatamente o conceito de diferena que Adorno privilegia (como Deleu-ze, por exemplo), mas o conceito de no-identidade que, a sua maneira, uma explicitao da ideia hegeliana de contradio. A no-identidade resultado de uma identidade negada, identidade que, ao retornar a si, destrisuadeterminaoinicialportrazerparasiumaalteridadena qual se aloja a possibilidade de uma estrutura de relaes que permitir a constituio de snteses no-violentas, para usar um termo importante. Neste sentido, eu tenderia a dizer que a posio real de Adorno colocaria problemasmuitomaiscomplexosparaaprpriaflosofadeBadioudo que ele est disposto a aceitar.IPSEITAS O tema do riso mereceu a ateno de diversos flsofos desde a Antiguidade, como Scrates, Plato e Aristteles, passando pela ironia romntica, pela gargalhada flosfca de Nietzsche, pelo chiste em Freud, Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201515pelacomicidadeemBergsonepelaflosofacognitivacontempornea. Numa acepo particular, seu livroCinismo e falncia da crticaparece empenhadoemdenunciaraapropriaocnicadorisocomoumaca-racterstica central da sociedade moderna, capaz de produzir a crtica de simesma,integrandoorisoemseumecanismodeautorreproduoe reduzindo-o ao estatuto de pardia. Nesse sentido, em diagnstico con-sonante aos pensamentos de Peter Sloterdijk e de Slavoj iek, o cinismo teriaatribudoumanovacaractersticaperformativaaoriso,articulada transparnciadomecanismoideolgiconocapitalismocontempor-neo que, no temendo mais rir de si mesmo, inviabilizaria a tarefa crtica comopossibilidadedetransformaosocial.Haveriaaindaumpassoa dar em direo ao que voc chama o verdadeiro desespero conceitual, o qual enfm dissolveria as formas pardicas que parecem ter capturado a possibilidade de contestao pelo riso? Qual tarefa caberia ao pensamen-to diante dessa urgncia perante a realidade efetiva?SAFATLEEstatemticaarespeitodocinismoeraumaformadeindicar certa patologia social caracterizada pela capacidade de estabilizar uma si-tuao de crise de legitimidade, de constituir modelos de ao a partir da aceitaotcitadacontradioentrecritriosnormativosedisposies prticas de conduta. Uma situao que normalmente seria descrita como anmica acaba se transformando em condio de funcionamento do capi-talismo em seu estgio fnal. Se a ironia foi a estetizao deste sistema de descompassos entre ideia e efetividade, diria que o cinismo sua estabili-zao funcional e compreend-lo parece-me a maneira mais adaptada de entendercomoaideologiafuncionaatualmenteparaalmdastemticas clssicas da alienao da falsa conscincia na dimenso da aparncia.Neste sentido, eu diria que a tarefa urgente do pensamento , ini-cialmente, abandonar a noo de que a crtica deve funcionar como al-guma forma de desvelamento da contradio entre critrios normativos e efetividade, entre o objeto e seu prprio conceito. Tal crtica perdeu sua fora porque a ideologia no teme mais a contradio. Melhor seria pas-sar a um modelo de crtica baseado na desativao de mecanismos libi-dinais. O cinismo no apenas uma forma de racionalidade, ele tambm umaformadegozo.Compreendercomotalgozoseconstrieonde ele se quebra, qual sofrimento ele procura calar em vo uma estratgia crtica fundamental. Toda sociedade uma forma de gerir sofrimento. sua maneira, o cinismo uma forma de gesto social. Seria o caso de se atentar para os sintomas deste modo de gesto e transform-los em mo-tor para uma crtica renovada. IPSEITASSelembrarmosalgunsfatoreshistricosquemarcaramaex-perinciasocialnoBrasil,comoaescravido,aeconomiaprimriade exportao e o jogo de favores que funciona na base do sistema poltico, em que medida podemos afrmar que o cinismo, enquanto forma de vida Ipseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 201516hegemnica no capitalismo contemporneo, se sobrepe s fguras cls-sicas do malandro e do homem cordial? SAFATLE Talvez ele seja mesmo algo como uma dialtica da malandra-gemaplicadaemescalaglobal,oquenoserianadaestranhoparaum estgio do capitalismo atual marcado exatamente pela brazialinizao, como disse uma vez o fnado Ulrich Beck.IPSEITASEmumpasbastanteorgulhosodesuariquezamusical, comooBrasil,surpreendeofatodemuitasvezesnosdepararmoscom umprofundodesconhecimentodaproduomusicalcontemporneae comumarefexoaindaincipienteemreashistoricamenteprodutivas nainterfacecomamsica,comoocasodaflosofa.Emsuaopinio, quais os motivos para a pouca incidncia da msica no debate flosfco brasileiro?Noestaramosemfrenteaumestranhosintomadenossa vida cultural que exige uma nova postura da refexo? SAFATLE Faz parte da ideologia cultural nacional acreditar que nossa mu-sicalidade brota naturalmente, como dizia Villa-Lobos, que ela est mais prxima da sensibilidade natural, da interioridade do Eu, anterior a toda mediao do conceito. Talvez isto explique em parte o infacionamento do interesse acadmico pela msica popular e o embotamento de tal interesse emrelaomsicaerudita.Nosetrataaquidedesqualifcaramsica popular, com suas qualidades inegveis. Mas um pas para o qual a refexo musical resume-se msica popular como um pas cujo sistema literrio seria composto exclusivamente de crnicas. H uma refexo sobre a forma e a natureza de suas categorias que no cabe nos limites da forma-cano, por mais que ela tambm tenha sua riqueza interna.Creio ainda haver uma questo mais geral ligada ao lugar da m-sica na sociedade contempornea. De todas as artes, a msica foi a mais refratria submisso a certa esttica quase-transcendental do tempo e do espao, socialmente produzida pela acelerao do tempo e espetacula-rizao do espao e que tende a colonizar outras artes. Como sua matria prima o som em movimento, ou seja, a experincia sensvel da tempo-ralidade, a msica tem uma resistncia orgnica a submeter-se a um tem-po que no seja instaurado por ela mesma. Da porque toda verdadeira experincia musical baseia-se em uma reconstruo do tempo. O tempo tensionado de Beethoven, o tempo liberado de sua vetorialidade em De-bussy, o tempo multiplicado em Ligeti, o tempo estacionrio de Feldman so apenas alguns exemplos neste sentido. Creio que, por isto, a msica contempornea hoje a arte que mais tem problemas de circulao com o grande pblico, diferentemente da arte contempornea com suas grandes mostras, s para fcar no caso mais evidente.Perguntas elaboradas por Caio Souto, Fernando Sepe e Rubens Jos da RochaIpseitas, So Carlos, vol. 1, n. 2, p. 8-16, jul-dez, 2015