2. contexto design puc-rio - certificação digital nº ... lance strate e judith yaross lee, ......
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2.ContextoExplorando o labirinto da comunicao no design
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2.1.Conceitos: nos corredores do RPG como meio de comunicao
Este um captulo de Contexto, representando, segundo o Dicionrio Novo
Aurlio, o "[...] 4. Conjunto, todo, totalidade [...]" (Ferreira, 1986) em que se insere
a pesquisa, por meio das definies dos conceitos que delimitam seu objeto.
Definir: (lat. definire: limitar, delimitar) 1. Do ponto de vista lgico, definirsignifica determinar a "compreenso" de um conceito. [...] 2. Na prticacientfica, as definies so operatrias: os conceitos que elas descrevem sodefinidos por experimentaes repetveis; no so absolutas, pois estoligadas ao conjunto do pano de fundo torico da experimentao. [...](Japiass e Marcondes, 2001:64).
Conceito: (lat. conceptum: pensamento, idia) [...] 4. Termo chave em filosofia,o conceito designa uma idia abstrata e geral sob a qual podemos unir vrioselementos. [...] Enquanto idia abstrata construda pelo esprito, o conceitocomporta, como elementos de sua construo: a) a compreenso ou oconjunto dos caracteres que constituem a definio do conceito [...]; b) aextenso ou o conjunto de elementos particulares dos seres aos quais seestende esse conceito. [...] (Japiass e Marcondes, 2001:48-49).
Nesta seo, portanto, definido o conceito de RPG dentro da noo
fornecida pela Media Ecology; e, a partir da, os conceitos de Interatividade e
Hipertexto como condies de fruio, Narrativa, como linguagem e Suporte
impresso como tecnologia.
Estes conceitos contextualizam, na seo seguinte, o problema, as
hipteses e os objetivos desta pesquisa, na encruzilhada entre suporte impresso
e interatividade.
O primeiro passo no complexo labirinto de abordagem de um objeto de
pesquisa situ-lo no mbito de um ou mais corpos de conhecimento. A grande
rea que se disps a acolher este objeto de pesquisa foi a da Comunicao no
Design, ou seja, o estudo do objeto configurado e manufaturado pela inteno
humana como veculo de transmisso de mensagens. E dentro desta grande rea,
a teoria que acolheu o Role-playing Game (RPG) foi a Media ecology a partir de
autores como Neil Postman, que considera que:
"1. qualquer OBJETO pode vir a constituir ou representar um meio decomunicao;2. o AMBIENTE onde se do as relaes humanas deve ser observadocomo o espao de um CONCERTO DE MDIAS;3. a mdia ser estudada, desta maneira, pelo IMPACTO que alguns deseus elementos constituintes gera." (Coelho, 2004)1
1 Segundo Lance Strate e Judith Yaross Lee, no editorial do primeiro nmero do primeiro volumeda revista EME - Explorations in Media ecology, The Journal of Media ecology Association(New York: Hampton Press Inc., 2002, pp.1-3), o termo media ecology no aparece at o finalda dcada de 1960 no peridico Explorations, fundado por Marshall McLuhan e EdmundCarpenter; no entanto, as cartas publicadas neste peridico eventualmente formaram a base daMedia ecology Association, em cuja produo comeou-se a identificar um novo campo,
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Neste contexto terico, um meio de comunicao dispe de tecnologia
(veculo, canal e suporte material), linguagem ou sistema simblico (cdigos e
repertrios) e condies de fruio (modos de recepo). Qualquer mudana em
um destes trs elementos suficiente para diferenciar um meio de comunicao
de outro, em razo das diferenas identificadas no impacto no meio social.
No RPG, observam-se modos de construir e utilizar este meio, que o
distinguem de outros meios e lhe conferem singularidade enquanto tal (Bettocchi,
2002). Nesta pesquisa, o foco estar voltado para o impacto que o suporte
material do RPG - o livro - gera e, mais ainda, que impacto que tal suporte pode
gerar quando proposto um novo mtodo de concepo e fruio deste.
Vamos, portanto, caracterizar o RPG segundo estes modos de constru-lo e
utiliz-lo, estabelecendo sua singularidade enquanto meio. No se pode comear
qualquer caracterizao ou classificao sem antes conhecer os significados
das palavras. O termo ingls composto Role-playing Game de difcil traduo
literal para o portugus por se tratar de uma expresso idiomtica. Deste modo,
vamos primeiro identificar de forma breve e simples cada palavra para depois
junt-las num todo que traduza pelo menos o conceito deste termo. Os negritos
so meus.
Role: segundo o dicionrio Michaelis (1961), "rle [...] s. (fr.) 1. (Cin., Teat.) papel
m., parte f. 2. funo ou posio f. na vida real. to play the ~ of fazer o
papel de."
Play: segundo o dicionrio Michaelis (1961),
[...] s. 1. jogo m., partida, disputa f. 2. divertimento m., brincadeira f. 3.folguedo, passatempo m. 4. pea teatral ou cinematogrfica f. 5. (Ms.)execuo, interpretao f. [...] || v. 1. jogar, disputar. 2. brincar, folgar,divertir-se. 3. tocar (instrumentos musicais), executar. 4. agir, proceder.[...] 6. representar, desempenhar [...] 9. bancar, fingir. 10. apostar. 11.imitar. [...].
Game: segundo o dicionrio Michaelis (1961),
[...] s. 1. jogo, modo de jogar m., partida f. a) divertimento m. b) brincadeira,pea, zombaria f. [...] 3. partida, peleja f. 4. rodada f., tempo m. de jogo. 5.nmero de pontos necessrios para ganhar, contagem f. 6. atividade f.,empreendimento m. que se exerce como um jogo. 7. plano, esquema, ardilm., manobra f. 8. objetivo almejado. [...] || adj. valente, resoluto. 3. disposto,decidido. || ~ly adv. corajosamente. [...] to die ~ morrer lutando, comobravo.
Representao: segundo Japiass e Marcondes (2001:235), do latim
repraesentatio.
Operao pela qual a mente tem presente em si mesma uma imagemmental, uma idia ou um conceito correspondendo a um objeto externo. Afuno de representao exatamente a de tornar presente
atualmente denominado media ecology, o estudo dos ambientes miditicos. Deste contextofazem parte Neil Postman e Harold Innis.
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conscincia a realidade externa, tornando-a um objeto da conscincia eestabelecendo assim a relao entre a conscincia e o real. [...].
E ainda, para o Novo Aurlio (Ferreira, 1986),
representar: (Do lat. representare). [...] 3. Participar de espetculoteatral, de filme, tc., desempenhando papel (4); interpretar [...]. 4. Levar cena; exibir, encenar (em teatro) [...]. 10. Desempenhar o papel, asatribuies, a funo de; figurar como [...]. 13. Desempenhar funes deator. [...] 16. Desempenhar um papel [...]. 18. Figurar como smbolo [...].
Papel: Segundo o dicionrio Novo Aurlio (Ferreira, 1986),
[...] 3. Parte que cada ator desempenha no teatro, no cinema, na televiso,etc. 4. A personagem representada por um ator [...]. 5. Atribuio denatureza moral, jurdica, tcnica, etc; desempenho, funo [...].
Jogo: segundo Japiass e Marcondes (2001:150-151), do latim jocus:
brincadeira.
1. Atividade fsica ou mental cujo objetivo o prazer que proporciona; "[...]
jogos com regras ou socializados, nos quais o prazer se vincula ao
respeito s regras, s dificuldades de vencer uma competio."
2. "Entre os adultos, o jogo considerado, em certo sentido, como o
oposto do trabalho e como uma oportunidade de expresso de sua
liberdade."
3. Jogos de linguagem, de WittgensteIn: "[...] concepo de linguagem
como comunicao e interao [...]".
4. Teoria dos Jogos (Game Theory, John von Neumann e Oskar
Morgenstern).
Teoria matemtica que busca formular modelos explicativos de situaesem que os participantes devem tomar decises de carter estratgico emrelao uns aos outros, visando realizao de seus objetivos einteresses. Os jogos podem ser cooperativos, quando os objetivos dosparticipantes so comuns; de conflito [ou competio?], quando osobjetivos so opostos; ou mistos, quando h objetivos de ambos os tipos.
Grosso modo, podemos ento dizer que role-playing game seria um jogo
de representar papis: brincar, imitar, agir, disputar (jogo, regras) +
desempenhar, encenar, encarnar (teatro, narrativa). Ou seja, contar uma histria
coletivamente atravs de encenao (narrativa) e superao de desafios (jogo).
Com base nesta definio e a partir de diferentes explicaes, em diversas
publicaes de RPG, pode-se extrair alguns componentes comuns, traando-
se um paralelo com o teatro e a literatura: a ambientao seria composta de um
cenrio onde se desenrolam enredos criados (na maioria das vezes) e
conduzidos por um "mestre-de-jogo", ou seja, seqncias de eventos vividas
pelas personagens protagonistas, as quais so criadas (na maioria das vezes)
e interpretadas pelos jogadores, coerentemente com tal ambientao e com um
sistema de regras, (diferentemente do teatro tradicional, onde no se
pressupe, de modo geral, a imprevisibilidade); finalmente, estas personagens
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reagiro s situaes propostas pelo narrador, ou mestre do jogo, que alm de
"dirigir" o enredo, tambm interpreta as personagens coadjuvantes e figurantes.
Esta imprevisibilidade faz com que o enredo do mestre do jogo seja aberto,
e dependente das aes dos jogadores para se completar, da a necessidade do
componente aleatrio do sistema de regras. Um tpico enredo de RPG consiste de
um ou vrios problemas a serem solucionados pelos jogadores atravs da
interpretao de suas respectivas personagens e do sorteio dos componentes
aleatrios do sistema de regras. Ao final da histria, os jogadores recebem
pontos de experincia, que faro com que suas personagens evoluam e fiquem
cada vez menos dependentes da sorte.
Por mais que assuntos, regras e estilos variem bastante, no se pode
deixar de notar que tais componentes esto presentes em todos os ttulos de RPG
que j tive a oportunidade de encontrar, sejam produes brasileiras, sejam
estrangeiras. E parece evidente, tambm, que tais componentes so comuns a
outras formas narrativas.
No entanto, o processo do RPG se caracteriza pelas colagens,
apropriaes e reinterpretaes (Bettocchi, 2002). Parece muito pertinente o
termo pilhagem narrativa, cunhado por Snia Mota (Apud: Pavo, 1999:24) para
descrever o processo de construo e utilizao desta linguagem, cujas histrias
e imagens so tecidas a partir de elementos de outras histrias e de outras
imagens, apropriadas de autores que no so citados, aproximando essa
narrativa da narrativa oral sem dono. Esta condio especial faz com que o RPG
combine, de modo muito prprio, tais componentes, e esta forma de combinao
que o distingue de outras formas narrativas, o que justifica o termo jogo.
Assim, a partir da observao da combinao destes componentes,
considerou-se quatro caractersticas do RPG que o distinguem, em termos de
linguagem, tecnologia e fruio, de outros tipos de jogos e de outras maneiras de
se contar uma histria: socializao, interatividade, narrativa e hipertexto. Em
artigo previamente publicado (Bettocchi & Klimick, ago. 2003), buscou-se
caracterizar o RPG como meio de comunicao com bases nestes conceitos: a
fruio (cdigos de recepo) socializante e interativa que o usurio faz de seus
componentes (repertrio) assim como a apresentao (cdigos de tecnologia)
narrativa e hipertextual dos componentes nos suportes.
2.1.1. Condies de fruio no RPG: Interatividade e Hipertexto
Interajo, logo, existo. O termo jogo, na prtica do RPG, no se refere
disputa, mas interao, ao prprio ato de representar. Em portugus, as
diferentes nuanas do termo play se espalharam por diferentes verbos: jogar,
brincar, apostar, tocar instrumento, representar um papel. Isso talvez explique a
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dificuldade de se traduzir role-playing game. Ficamos, assim, com o conceito de
jogo de Roland Barthes, que consiste de uma atividade ao mesmo tempo sem
finalidade seno o prprio jogo e de uma ttica de crtica s cristalizaes da
linguagem, caracterstica que aproxima este jogo, ento, do teatro, do faz-de-
conta (Perrone-Moiss In: Barthes, 1977: 82-85).
A capacidade de interao do RPG comea na sua prpria estrutura: trata-
se de uma construo coletiva de pelo menos duas pessoas em que todos atuam,
demandando no a competio, mas sim a cooperao entre seus participantes,
apesar de no excluir o conflito entre as personagens. Alm disso, calcado no
discurso oral, no dilogo e troca de idias. Neste aspecto, o RPG desenvolve
habilidades de comunicao, pois o ato de jogar leva, naturalmente, a uma maior
facilidade de se comunicar, expressar um pensamento. O RPG permite ao jogador
exercitar sua fantasia e torn-la aceitvel em seu meio. Isso, por si s, d ao jogo
um grande papel como elemento socializante, pois, ao sentir-se aceito, o jogador
comea a se despir de suas inibies e se expor mais quele grupo social
(Andrade, 1997).
Isto facilmente observvel em eventos de RPG e jogos correlatos (figura
2.1.1). costume, nestes eventos, os jogadores se inscreverem para jogar
histrias narradas por mestres tambm inscritos, o que muitas vezes leva
formao de grupos cujos integrantes so totalmente desconhecidos entre si; ou
seja, pessoas que nunca se viram antes se sentam mesa para viver fantasias
de modo socialmente permissvel, saudvel e criativo. Tais eventos costumam ser,
alm de espaos de divulgao de produtos comerciais, espaos de troca de
idias, na medida em que permitem o intercmbio de material produzido por
jogadores das mais diversas origens e com os mais diversos interesses.
Figura 2.1.1.1: evento de RPG em Niteri (RJ) em 1998.
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Ser uma prtica coletiva e socializante faz do RPG um jogo interativo,
definindo-se interatividade atravs de termos como autonomia, criatividade e
imprevisibilidade (Machado, 1997). Na linguagem interativa, espera-se uma ou
mais respostas autnomas, difceis de se prever. muito mais um "O que voc
faz?" do que um "Voc faz isto ou aquilo?".
Marco Silva (2002:9-12) tece, com os fios do pensamento complexo, um
conceito dialgico de interatividade, incorporando as crticas e as defesas. Este
conceito ser principal conceito de interatividade adotado nesta pesquisa, ainda
que no caiba aqui um aprofundamento sobre a teoria de Edgar Morin.2
Silva inicia suas consideraes convidando ao dilogo os trs principais
argumentos contra a interatividade: 1) modismo semntico para designar dilogo e
comunicao; 2) estratgia de marketing para legitimar o "novo poderio tecno-
industrial baseado na informtica"; 3) tecnologia que se vale de uma interface
amigvel para iludir e dominar o humano, regredindo-o condio de mquina
(Silva, 2002:9).
O autor alerta que, de fato, interatividade pode, e muitas vezes, tem sido
reduzida a isso, mas que esta reduo pode ser uma miopia resultante de se
pensar interatividade como tecnologia em vez de como modo de recepo
(usando-se os conceitos j explanados de McLuhan). Isto bastante fcil de
ocorrer visto que tal modo de recepo pareceu ficar mais evidente com o
desenvolvimento e popularizao dos meios tecnolgicos nomeados interativos
(computadores e hipermdias em geral) em oposio ao meios ditos massivos
(rdio, cinema, imprensa, televiso).
Sugere-se que a hipermdia ou mdia hipertextual seria uma evoluo do
hipertexto (Crenzel, 2002:31), onde "Hiper" (Hyper), quer dizer, segundo
Theodor Nelson (In: Wandelli, 2003:39), "alm de", "que se expande".
Ted Nelson (1992), considerado o inventor do termo "hipertexto", conceitua omesmo como conjunto de escritas associadas, no-seqenciais com conexespossveis de seguir e oportunidades de leitura em diferentes direes. Ahipermdia , pois, uma forma combinatria e interativa de multimdia [...](Plaza, 2003:25).
Isto quer dizer que, num hipertexto, as informaes no so absorvidas de
forma linear, umas aps as outras, mas de forma simultnea e fragmentada, de
modo similar ao funcionamento do crebro humano e oralidade, como j sugeriu
Vannevar Bush (In: Wandelli, 2003:39).
2 Socilogo e filsofo francs nascido em 1921, um dos principais pensadores sobrecomplexidade, cuja proposta a abordagem transdisciplinar dos fenmenos, e a mudana deparadigma, abandonando o reducionismo que tem pautado a investigao cientfica em todosos campos, e dando lugar criatividade e ao caos. O site do Instituto de Estudos daComplexidade (IEC) uma boa fonte de referncias sobre Morin e a complexidade:http://www.iecomplex.com.br.
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O signo de pontuao mais caracterstico do hipertexto o link (elo, em
portugus), o ponto de interseco entre os "ns" textuais, a janela de acesso
entre as diferentes camadas textuais e visuais. O link transforma a imagem fixa
em seqencial e cria um espao informativo tridimensional (Crenzel, 2002:37-38).
So focos provisrios e momentneos que se hierarquizam pontualmente e
multilinearmente.
Entretanto, interessante notarmos que, apesar desta nomenclatura
remeter diretamente informtica, colocando os meios eletrnicos em posio
privilegiada na lgica comunicacional interativa, se olharmos para trs, na Histria,
vamos verificar que este tipo de hiper-estrutura interativa existe desde que existe
linguagem (figura 2.1.1.2). Portanto, parece lcito propor que o que as novas
tecnologias nos permitiram foi, de fato, tomar conscincia deste processo e
utiliz-lo de forma mais direta e simplificada.
Figura 2.1.1.2: em dois exemplos de textoexpandido, esquerda, pgina de livromedieval com glosas, anotaes e iluminuras eacima, pgina de site com links e fotografias.
Assim, os meios de comunicao ditos hipertextuais seriam aqueles que
veiculam um modo de recepo que se aproxima da prpria maneira de
funcionamento do pensamento e da imaginao humanas, "(...) como um
processo vivo que se modifica sem cessar, que se adapta em relao ao
contexto, que, enfim, joga com os dados disponveis" (Machado, 1997:253).
Raquel Wandelli (2003:36) sugere, deste modo, que hipertexto um modo
de recepo, no um tipo de suporte, evitando-se um determinismo tecnolgico.
Assim, pode-se fruir qualquer suporte de modo hipertextual, como mostra o
exemplo acima, onde uma pgina de livro medieval comparvel a uma pgina de
website por sua multilinearidade e multi-linguagem (verbais e no-verbais).
O hipertexto, ou texto interativo, dentro deste contexto, pode ser um
exemplo atual do que Umberto Eco (2001) caracterizava como obra aberta. O
autor propunha que toda obra de arte carrega um grau mnimo de abertura na
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medida em que pressupe um espectador que ir receb-la e interpret-la
subjetivamente. Tal posio, assim como a noo de texto ilimitado de Roland
Barthes (Wandelli, 2003:35) foi criticada por permitir a pressuposio que todas
as interpretaes seriam vlidas, perdendo-se, portanto os limites definidores (ou
legitimadores) de "obra de arte".
Raquel Wandelli (2003:35) prope que "o formato hipertextual possibilita a
concretizao do que parecia ficar mais no plano da metfora ou da sugesto",
no que concerne tal conceito de abertura. Podemos observar esta concretizao
em algumas obras contemporneas, que vo alm deste grau primeiro ao se
construrem sobre a inteno de participao transformadora do espectador. A
obra, neste caso, todo o processo, no apenas o resultado ou produto -
produto, alis, mutante, flexvel.
Julio Plaza (2003) atualiza e amplia este conceito sugerindo trs graus de
abertura na produo contempornea. Citando vrios exemplos de obras
artsticas e de comunicao, o autor d a entender que a abertura de primeiro
grau consiste na participao do receptor na obra como interpretao/recriao
mental. Tal abertura foi destacada, entre outros movimentos, pelo concretismo e,
nas artes visuais, seria associada aos intervalos, aos espaos vazios,
semantizados na representao figurativa, privilegiados na representao
abstrata (figura 2.1.1.3): " o intervalo que possibilita a leitura do heterogneo (do
outro) e no do homogneo (do mesmo)." (Plaza, 2003:7).
Figura 2.1.1.3:P do cosmosAugusto de Camposhttp://www2.uol.com.br/augustodecampos/07_02.htmCapturado em 19/01/08
J a abertura de segundo grau pressupe uma participao manipulativa do
receptor. Esta abertura foi objetivada sobretudo na arte de participao, onde o
espectador se via convidado a explorar a obra e/ou penetrar no espao. Como
diria Ligia Clark (figura 2.1.1.4): "No meu trabalho, se o espectador no se prope
a fazer a experincia, a obra no existe" (Apud: Plaza, 2003:9).
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Figura 2.1.1.4:BichoLygia Clark, 1960.http://www.chron.com/content/news/photos/04/06/20/mfa/photo9.htmlCapturado em 17/06/04
Mas foram os situacionistas que radicalizaram a questo, com a criao de
obras annimas e comunitrias, baseados no homo ludens: uma produo
coletiva, annima e sem mercadorias artsticas. A arte situacionista (assim como a
atual arte coletiva que acontece na internet) parece aproximar-se do que Plaza
apresenta como a abertura de terceiro grau, onde existiria efetivamente uma
recriao da obra por parte do espectador. O autor d como exemplos diferentes
manifestaes artsticas e tecnolgicas, onde a interatividade surge em sua
plenitude de autonomia e imprevisibilidade: d-se o modelo (o sistema, o
programa) para que o espectador produza a obra a partir dele (figura 2.1.1.5).
Este tipo de veiculao do hipertexto seria uma obra aberta em terceiro grau.
Imagem:http://www.nbp.pro.br/pop.php?imagem=./experiencias/img/hi/janela_tentativa_1170519270.jpgCapturado em 19/01/08
Figura 2.1.1.5:Voce gostaria de participar de uma experincia artstica?Projeto de Ricardo Basbaum, iniciado em 1994, cujaproposta fazer circular o objeto NBP (foto ao lado)entre vrias pessoas e grupos que podem registrar suasapropriaes no site http://www.nbp.pro.br/Na foto ao lado, um registro da participao de CristinaRibas:
[...]Porto Alegre, Brasil - July 1st, 2002 -> July31st, 2002NBP - STIO ESPECFICO >>> APARTAMENTO308February 2nd, 2007Recebi o NBP do Jorge Menna Barreto.A primeira vez que vi o objeto foi quando oJorge e o caseiro do Stio Especficodesenterravam ele do solo onde tinha ficado poruma lunao, bem perto da horta.No outro dia, seguimos os gestos corporais daFabiana Rossarola. Ela fez com que todos osLaranjas entrassem no NBP, onde coubemosdois a dois de corpo inteiro, corpo moldado peloobjeto. A Patrcia Francisco tambm estava.Levei o NBP pr casa logo em seguida. Eradomingo. Comeou uma nova semana, etnhamos que voltar pra casa.Eu e o NBP vivemos juntos por cerca de 4meses.Antes de mudar de Porto Alegre para BeloHorizonte, entreguei o NBP para o CristianoLenhardt. (o quinto Laranja)
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Horizonte, entreguei o NBP para o CristianoLenhardt. (o quinto Laranja)
Em: http://www.nbp.pro.br/blog.php?experiencia=33
Aplicando o conceito de Plaza aos jogos, podemos dizer que o jogo j em
si uma obra aberta em segundo grau, pois pressupe, no mnimo, manipulao de
objetos pelos usurios. Para que a diferena fique mais explcita e por questes
de escopo da pesquisa, comparamos, na figura 2.1.1.6.a-d, apenas os jogos
narrativos:
http://www.ea.com/harrypotterandtheorderofthephoenix/features.jsp?platform=ps2Capturado em 19/01/08.
2.1.1.6.a) No livro-jogo Espectro (Akrit Editora,Rio de Janeiro, 1996), os jogadores escolhemuma dentre um conjunto de personagens paraseguir um dentre algumas possibilidades deroteiro at o final do livro.
2.1.1.6.b) No videogame Harry Potter andthe Order of the Phoenix, (Eletronic Arts,EUA, 2007), os jogadores escolhem umadentre um conjunto de personagens paraexplorar o ambiente e seguir os diferentespassos que a histria oferece atcompletarem o jogo.
2.1.1.6.c) No RPG Era do Caos,(Akrit Editora, Rio de Janeiro,1997), os jogadores podem tantoutilizar uma personagem do livroquanto construirem as suasprprias e jogar histriasconcebidas por um mestre dejogo ou narrador.
2.1.1.6.d) No MMP Dark Age of Camelot, os jogadorestambm constrem suas personagens de acordo com asrestries dos cenrios e das regras para jogar onlinehistrias concebidas por outros jogadores ou monitores, oupara simplesmente explorarem os cenrios.http://www.darkageofcamelot.com/screenshots/nss04.htmlCapturado em 19/01/08.
No RPG, assim como no MMP (Massive Multiplayer, plataformas para web
do tipo Second Life) - ou seja, independentemente do suporte -, a tenso
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interativa gera situaes inusitadas que acabam levando a novas experincias e
a novas resolues de problemas. Pode-se comparar o RPG ao hipertexto, onde
existem "'janelas' que podem ou no ser abertas, trilhas que podem ou no ser
trilhadas, em oposio torrente de informaes, que tantas vezes, conduzem-
nos seduo da passividade das 'aventuras prontas' nos trilhos da alienao"
(Pavo, 1999:28). J o hipertexto compara-se ao labirinto, que simula a vida e o
funcionamento das sociedades, razo por que ele pode ser modelo para
estruturas narrativas mltiplas e descentradas [] (Machado, 1997:255). No
deve ser por acaso que cita-se a obra literria de Jorge Luis Borges como
exemplo de interatividade no-eletrnica.
Este conceito de abertura ser um importante instrumento terico
apresentado no prximo captulo. Por enquanto, vamos apenas reforar que, em
virtude da natureza interativa do RPG, o que mais nos interessa a abertura de
terceiro grau, onde fica evidente, e, por que no dizer, concreto, que "recursos
paratextuais e links [...] encorajam o leitor a se mover de um interttulo a outro de
forma no seqencial, a fazer suas prprias conexes, incorporar seus prprios
links e a produzir seus prprios recursos." (Wandelli, 2003:35).
2.1.2. Linguagem no RPG: narrativa hipertextual multi-linguagem
Para a atual Teoria da Comunicao, a linguagem ou o sistema simblico
constitui-se de um sistema que combina elementos (repertrio) e regras para
utiliz-los (cdigo). Michael Twyman (1982, 1985) prope uma classificao mais
abrangente das linguagens sob o ponto de vista do design grfico e da tipografia,
onde a linguagem dividida no pela produo, mas pela recepo, ou canal
(linguagem auricular ou visual) e por modos (na linguagem visual: verbal, pictrico
e esquemtico).3
Como j foi dito, jogar RPG basicamente uma forma de construir e relatar
uma histria coletivamente. Para tanto, necessrio pelo menos um modo da
linguagem visual: o verbal. Entretanto, outras linguagens so indispensveis no
RPG: a linguagem oral, para narrao e interao dos jogadores; a corporal,
responsvel pela encenao das personagens, e a linguagem visual nos modos
pictrico e esquemtico, ainda que minimamente sob a forma de rascunhos de
mapas, locaes e situaes.
Tal complexidade pode levar concluso que o RPG de fato um meio de
comunicao composto de vrios outros meios, cada qual com seus modos de
3 Para a Lingustica tradicional, linguagem verbal uma tautologia, pois neste caso a imagemno considerada linguagem. Para aqueles que trabalham com imagens de qualquer natureza,entretanto, a imagem linguagem, da a necessidade de se dividir a linguagem em verbal epictrica (Twyman, 1982).
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fruio, tecnologia e linguagem. Entretanto, os elementos e seus usos se
aglutinam de tal forma a aparentar uma unidade de repertrio e cdigo, permitindo-
nos intuir uma "linguagem do meio de comunicao RPG": componentes narrativos
sistematizados de forma hipertextual e frudos de forma socializante e interativa.
O RPG pode ento ser visto como uma hipermdia narrativa (texto escrito,
imagens e a narrao do Mestre e representao das personagens pelos
jogadores), se tomarmos como base a definio de Jlio Plaza: "uma forma
combinatria e interativa de multimdia, onde o processo de leitura designado
pela metfora de navegao dentro de um mar de textos polifnicos que se
justapem, tangenciam e dialogam entre eles. (Plaza, 2003:25).
Vamos, ento, detalhar estes componentes narrativos, tendo em mente que
este detalhamento parte de conceitos da narratologia clssica, conceitos j
superados pela literatura contempornea, mas ainda teis para classificar jogos
narrativos.4
Por narrativa, tradicionalmente, entenda-se "formas textuais, utilizando ou
no imagens, como o caso da literatura, cinema, televiso, RPG ou videogame,
embora os elementos constitutivos de ambos, como no poderia deixar de ser,
sejam recorrentes. Estes se caracterizam como narrativos por possurem os
elementos levantados por Cardoso [(2001)] (tema, personagens, ao, tempo,
espao, ponto de vista, conflito), possuindo unidade de ao, tempo e lugar, e
desenvolvendo-se atravs da relao de causa e efeito, etc." (Coelho, 2002).
Por ser uma forma de narrativa, o RPG partilha com esta dos mesmos
componentes, exceo das regras - ou at delas, se considerarmos tal
narrativa como um jogo de linguagem, no sentido de Wittgenstein (In: Japiass e
Marcondes, 2001:150-151). Entretanto, devido s suas caractersticas interativas,
o RPG difere do conceito tradicional de narrativa por se tratar de uma plataforma
operacional no s para contar uma mesma histria de diferentes maneiras, mas
para contar diferentes histrias a partir de elementos comuns: regras e
ambientao.
Em se tratando de jogo, no se pode deixar de falar de regras. No RPG, as
regras compem um sistema de simulao de realidade: segundo o dicionrio
Novo Aurlio (Ferreira, 1995), reproduo anloga de algo; simulao analgica:
experincia ou ensaio em que os modelos se comportam de maneira anloga
realidade. Ainda sobre termos relativos, simulacro: [...] 2. Ao simulada para
exerccio ou experincia; e simular: [...] 2. Representar com semelhanas,
4 Refiro-me s teorias narrativas estruturalistas, como, por exemplo, a de Tzvetan Todorov edos formalistas russos, base terica do Interactive Plot Generator (IPG; Furtado e Ciarlini 1999,2000, 2002), um programa de computador gerador de enredos desenvolvido no Departamentode Informtica da PUC-Rio, que ser apresentado no Captulo 3.
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aparentar. Deve-se ressaltar, ainda, que as regras no RPG favorecem e
pressupem a cooperao entre os participantes, no a competio,
diferentemente da maioria dos jogos. A proposta no competir com o/a Mestre
nem com os outros jogadores, mas resolver, em equipe, as situaes
apresentadas, lanando mo da representao das personagens e do sistema de
regras. A cooperao entre os jogadores no exclui, entretanto, a competio e o
conflito entre personagens e destas com o enredo; pelo contrrio, a noo de
desafio fundamental para caracterizar "jogo".
A ambientao de um RPG de um modo geral, apresenta um mundo, um
perodo histrico, uma situao social, um grupo social: um espao e um tempo.
Se o espao apenas o local fsico onde acontece a ao, o ambiente o
espao-tempo onde-quando se desenrola a narrativa e prescreve explicitamente
cenrios, personagens e eventos coerentes entre si e com o/s enredo/s a ser/em
construdo/s.
Segundo Cndida Gancho (2002:23-24), o ambiente " o espao carregado
de caractersticas scio-econmicas, morais, psicolgicas, em que vivem os
personagens." Ou seja, o espao-tempo, segundo a autora, "[...] acrescido de
um clima [...]", que so justamente estas caractersticas contextuais de uma
situao social. As funes do ambiente so: situar as personagens no tempo, no
espao, no grupo social, enfim nas condies em que vivem; ser a projeo dos
conflitos vividos pelas personagens; estar em conflito com elas; fornecer ndices
para o andamento do enredo.
Algumas vezes, um cenrio pode ser bastante familiar aos jogadores, mas
visto sob um enfoque inusitado (por exemplo, o Mundo das Trevas, da editora
norte-americana White Wolf, apresenta o mundo ocidental contemporneo sob o
enfoque de vampiros, lobisomens, magos etc). interessante que um cenrio
contenha descries tanto mais detalhadas quanto mais bizarro for o objeto
descrito. Um conjunto de referncias visuais, sonoras, textuais etc tambm amplia
as possibilidades de criao dos jogadores. Os cenrios mais comuns so os de
fantasia inspirada na obra de J.R.R.Tolkien, de terror contemporneo, de fico
cientfica e de super-heris.
Assim como na prosa tradicional, em que "A personagem um ser fictcio
que responsvel pelo desempenho do enredo; em outras palavras, quem faz
a ao. (Gancho, 2002:14), no RPG a personagem a interface entre o
leitor/jogador e o enredo. Podem ser classificadas quanto ao papel que
desempenham no enredo em:
Protagonista: personagem principal, heri ou anti-heri
Antagonista: ope-se ao protagonista
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Secundrias: personagens menos importantes na histria, ajudantes do
protagonista ou antagonista, confidentes, enfim, de figurantes.
Personagens tambm podem ser planas ou redondas, de acordo com sua
caracterizao. Planas so construdas em funo do enredo e apresentam
pouca ou nehuma profundidade e diversidade de aspectos psicolgicos.
Redondas so preponderantes sobre o enredo, que passa a ser apenas um
veculo para sua expresso e desenvolvimento (Forster,1998).
Entretanto, mais do que acompanhar a histria atravs dela, no RPG o
jogador vivencia a narrativa atravs da sua personagem. E, se narrativa permite
uma aproximao com papel e personagem, pode-se sugerir que narrativa oral
permite uma aproximao com tradio oral, folclore, conto de fada, mito.
Segundo o Dicionrio Bsico de Filosofia (Japiass & Marcondes, 2001:183),
mito, do grego mythos: narrativa, lenda. "1. Narrativa lendria, pertencente
tradio cultural de um povo, que explica atravs do apelo ao sobrenatural, ao
divino e ao misterioso, a origem do universo, o funcionamento da natureza e a
origem e os valores bsicos do prprio povo. [...]". Assim, espera-se que estas
personagens sejam essencialmente figuras hericas, no sentido daquelas
personagens que proporo alguma mudana estrutural ou de paradigma para
alguma situao da ambientao (Klimick, 2002).
Temos a uma representao teatral do papel de uma personagem de uma
narrativa oral que se aproxima do folclore e do mito, portanto de cunho
predominantemente aventuresco: uma personagem herica. Heri combina com
aventura, aventura com desafio, desafio com jogo (Mota, 1997). Esta
aproximao, tradicional, mas no necessariamente obrigatria, fruto da
escolha dos recursos narrativos (tom, tempo, ritmo e foco) quando, durante o
jogo, o/a mestre prope eventos que se organizam num enredo.
Por enredo, tradicionalmente, entenda-se uma sucesso de fatos das
quais participam as personagens, tambm chamada ao ou trama (Cardoso,
2001:35-41), organizado segundo os seguintes critrios (Gancho, 2002):
Verossimilhana: lgica externa (com o ambiente) e interna (com o
tema) do enredo que o torna verdadeiro, crvel para o leitor - cada fato da
histria tem uma causa e gera uma conseqncia.
Conflito: elemento estruturador, qualquer componente da histria
(personagens, fatos, ambiente, idias, emoes) que se ope a outro,
criando uma tenso que organiza os fatos da histria e prende a ateno
do leitor. (Gancho, 2002:11). Via de regra determina as partes do enredo:
exposio ou introduo; complicao ou desenvolvimento; clmax;
desfecho.
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No RPG, uma aventura ou campanha , em geral, concebida pelo/a Mestre
de Jogo como seqncia de eventos, ou fbula, onde so pontuadas as
situaes-chave a partir das quais a histria se movimenta. Este o nico
momento de relativa autonomia (ou autoria) do/a mestre de jogo, pois, a partir da,
o desenrolar destas seqncias depende das aes dos jogadores.
Tanto este desenrolar quanto o desfecho da histria so imprevisveis. No
romance, o leitor atrado pelas perguntas "por qu? O que causou tal fato? Qual
foi a motivao da personagem?" (Forster, 1998:83-84). No RPG, este aspecto
est presente nas aes das personagens controladas pelo mestre. Contudo,
tambm est presente nas conseqncias das aes das personagens dos
jogadores, as quais, muitas vezes imprevistas, fazem com que o mestre tenha
que alterar constantemente o enredo. A causalidade ento de mo dupla, do
mestre para os jogadores e vice-versa. A fbula, ento, a seqncia de
eventos amarrada pela causalidade de mestres e jogadores.
Tambm no RPG espera-se das personagens protagonistas e coadjuvantes
verossimilhana e coerncia externa (com o cenrio) e interna (comportamental),
coerncia muitas vezes definidas em termos de regras. Espera-se, ainda, das
personagens protagonistas, mudanas de comportamento que indiquem uma
evoluo no sentido da experincia e do aumento progressivo de poder e
sabedoria, resultantes do sucesso ou fracasso em resolver os desafios
propostos pelo enredo (os chamados pontos de experincia, valores quantitativos
que permitem a evoluo qualitativa da personagem). Do mesmo modo, os locais
com suas texturas, cheiros e imagens deve dar espao para as personagens
agirem.
Deste modo, pode-se afirmar que o relato, ou seja, a configurao do
enredo com suas escolhas de personagens coadjuvantes (lembremos que as
protagonistas foram construdas pelos jogadores), e de recursos narrativos,
acontecem coletivamente e de acordo com as interaes entre personagens.
O tom da narrativa so as vrias maneiras de configurar um enredo
enfatizando determinadas sensaes: aventura, terror, comdia, tragdia,
suspense, ertico etc. O senso comum costuma utilizar o tom da narrativa para
classificar gneros, misturando-o com o ambiente e confundindo-o com o clima.
No RPG, o tom seria uma maneira de jogar - configurar enredos - a ambientao.
Pode-se, por exemplo, jogar uma histria de fantasia com tom trgico-sentimental
(Ladyhawk: O Feitio de quila) ou pico (O Senhor dos Anis); um cenrio de
terror com tom de ao-aventura (Blade) ou de comdia (A Hora do Vampiro); um
cenrio de fico-cientfica com tom de suspense noir (Blade Runner, Gattaca)
ou de horror (Aliens) etc.
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O tempo no relato pode ser manipulado de diversos modos, no sendo
necessrio o mesmo desenrolar linear e progressivo da fbula. As personagens
podem ser lanadas para o passado ou futuro e no raro ocorrem aes
simultneas em espaos diferentes. O tempo fictcio, cronolgico e psicolgico,
interno ao texto, determina a poca em que se passa a histria e sua durao.
O ritmo do relato, que no RPG pode ser manipulado tanto pelo mestre
quanto pelos jogadores, compe-se de recursos como pausas (em geral para
descries e interaes entre as protagonistas entre si ou com coadjuvantes),
aumentos progressivos de tenso e clmax (em geral envolvendo conflitos).
Os recursos de foco narrativo propostos por Gerrd Genette (1983) so
dois: o ponto de vista (point of view), onde se distinguiriam o humor (mood)
quem a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva da narrativa (a
personagem apresentada, um narrador externo, outra personagem) versus a
voz (voice) quem efetivamente narra (primeira ou terceira pessoa); e a
focalizao (focalization), que pode ser interna quando a narrativa focada
atravs da conscincia da personagem apresentada (em primeira pessoa ou em
segunda, como se um narrador estivesse falando para a personagem e para o
leitor ao mesmo tempo) ou externa, quando a narrativa focada na
personagem, mas no atravs dela.
Os recursos de focalizao neste tipo de narrativa diferem da narrativa
tradicional, que pressupem leitores/espectadores no interativos. No RPG, as
vozes presentes so trs: a do/a mestre, como narrador externo (em terceira
pessoa) ou como focalizador, no momento em que encena uma personagem
coadjuvante que est vivenciando o evento (em primeira pessoa); e a dos
jogadores encenando suas personagens protagonistas, estas sempre como
focalizadoras (mais comumente em primeira pessoa, mas tambm em terceira
pessoa). Entretanto, devemos ressaltar que alguns recursos de focalizao,
como aquilo que se sabe sobre os eventos, no cabem no RPG: no existe um
leitor externo que sabe o que a personagem no sabe (o suspense, neste caso,
fica por conta de antecipaes sugeridas pelo/a mestre que geram ansiedade nas
personagens e nos jogadores).
Finalmente, os modos da narrativa so dois: narrao ou
representao. A narrao privilegia o discurso indireto, enquanto a
representao privilegia o discurso direto, com dilogos entre as personagens.
Sendo teatral, ou dramtico, o RPG se vale simultaneamente dos dois modos.
Deste modo, por meio das escolhas destes recursos narrativos que se
pode fazer emergir do relato, consciente ou inconscientemente, objetivos
temticos, relativos a um tema ou premissa conceitual e objetivos diegticos,
relativos ao tom do enredo. Sendo um relato coletivo, objetivos temticos e
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diegticos muitas vezes fogem totalmente ao controle do/a mestre (no raro uma
aventura projetada como trgica desenrola-se em tom de comdia e vice-versa).
Uma prosa tradicional, em geral, gira em torno de um tema ou premissa,
que um motivo no-explcito pelo qual um enredo foi configurado de tal forma a
ter um ou mais significados; mais visvel em narrativas pr-modernas onde se
buscava, por simbolismos, construir alegorias de cunho mitolgico, religioso ou
moral.
Segundo Cardoso, "Dependendo de como se d o modo da narrativa, os
textos literrios so classificveis em gneros distintos, tais como a epopia, o
romance e o drama. Esses tipos textuais apresentam uma estrutura particular, isto
, os fatos de que se constitui uma narrativa so apresentados numa certa
organizao (seqncia), localizam-se num espao e numa poca identificveis
no texto e deles participam os personagens." (Cardoso, 2001:35).
Segundo Massaud Moiss (1967), so dois os grandes gneros da
literatura: a poesia e a prosa. Estes incluem, grosso modo, os tipos de histrias
que so narrados na nossa cultura. Estes dois gneros seriam duas maneiras de
se expressar uma relao com o mundo: a poesia, uma relao interna; a prosa,
uma relao externa.
Para a histria interativa, o gnero literrio de maior interesse a prosa, que
se sub-divide em dois tipos bsicos: o conto e a novela/romance. Na referncia
citada, o autor prope uma separao entre novela, de cunho maniquesta e
moralista (bem versus mal), e romance, onde as ambigidades so permitidas.
Entretanto, hoje em dia as narrativas j no se prendem tanto a estas
classificaes e costuma-se misturar os gneros e seus sub-tipos:
Conto: narrativa nica que gira ao redor de uma s clula de ao, externa (com
deslocamento espao-temporal) ou interna (espao-tempo mental ou
psicolgico); ou seja, todos os elementos do enredo convergem para um
mesmo e nico ponto. O conto pode enfatizar o desenrolar da ao; pode
enfatizar o desenvolvimento das personagens; pode enfatizar o cenrio
ou clima onde se desenrola a ao; ou pode enfatizar uma emoo, um
conceito ou idia. Em termos de RPG, so aventuras curtas, em geral
jogadas em sesso nica e sem continuidade.
Novela/Romance: narrativa plural e seqencial que consiste de vrias aes cada
uma com seu incio, meio e fim, encadeadas por relaes de causa e
efeito; em geral, o fim de uma ao encadeia-se ou enseja o incio de
outra. Tambm costuma implicar deslocamento espao-temporal e
multiplicidade de cenrios e personagens. A novela/romance pode
enfatizar a aventura, a superao de perigos e obstculos para alcanar
um desejo ou objetivo, muitas vezes inatingvel por natureza; pode
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enfatizar os relacionamentos entre as personagens; pode enfatizar os
conflitos internos das personagens e suas conseqncias no enredo e no
cenrio; pode enfatizar a reconstituio de um ou vrios eventos
histricos, com ou sem alterao de fatos e resultados; ou pode enfatizar
situaes-chave do enredo, em geral mistrios e enigmas a serem
desvendados pelas personagens. Em termos de RPG, so aventuras
longas e continuadas, jogadas em vrias sesses, que podem se
constituir em campanhas com diferentes nfases, cenrios e climas.
Finalizo com uma introduo questo do texto, produto final do relato, que
efetivamente o que nos interessa neste momento. Um relato de RPG na verdade
no produz um texto, mas uma variedade deles. De fato, cada participante pode
produzir um ou mais textos diferentes a partir do mesmo relato, entendendo texto
aqui como produo em qualquer linguagem e tecnologia.
2.1.3. Tecnologia no RPG: suporte hipertextual multi-linguagem
Toda esta "linguagem" necessita de uma tecnologia que a materialize: um suporte
material, um veculo de emisso e um canal sensvel de recepo. E aqui, do mesmo modo que
a linguagem, a tecnologia no RPG tambm composta, pois cada uma das linguagens
envolvidas requer sua prpria tecnologia.
Entretanto, aqui o foco fecha-se sobre a tecnologia que, no RPG, materializa a linguagem visual
nos seus trs modos, cujo suporte o papel impresso mecanicamente, o veculo o fenmeno fsico
de emisso luminosa e o canal sensvel o olho do receptor: o suporte impresso.
Entende-se suporte atravs de sua relao com a recepo ou fruio, no com sua
execuo (isto seria a tcnica). Por exemplo, um suporte impresso (livro, revista, jornal, etc)
pode ser executado eletronicamente, atravs de um computador, mas o contato do receptor
com a obra se dar bidimensionalmente sobre material impresso. Da mesma maneira, um
suporte eletrnico (site, CD, e-book, DVD vdeo, etc) pode ter uma instncia plstica prvia,
digitalizada para ser tratada por programas de computador e finalmente visualizada (ou seja,
fruda) atravs de um monitor. E o suporte plstico (objeto tridimensional, instalao, etc) pode
conter colagem de material grfico ou de material tratado eletronicamente, mas sua fruio se
dar sobre material do qual no se pode excluir o aspecto ttil e tridimensional.
Os meios de reproduo e/ou divulgao da obra esto diretamente
relacionados ao suporte, ou seja, ao modo como o receptor entrar em contato
com ela. Um suporte impresso costuma ser produzido/reproduzido via processos
grficos industriais, reprografia ou grfica digital; um suporte eletrnico pode ser
projetado, revelado, disponibilizado na internet, veiculado em telas, etc. E um
suporte plstico, em geral, necessita de e/ou ocupa um espao tridimensional.
claro que suportes impressos podem ser veiculados eletronicamente, assim como
fotogramas de um filme podem ser impressos em papel e esculturas podem ser fotografadas e
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digitalizadas. Entretanto, na hora de escolher, preciso ter em mente que certos suportes
privilegiam determinadas tcnicas de execuo.
As tcnicas so os meios de execuo da obra. Podem ser mecnicas ou eletrnicas
(fotografia, vdeo, computao grfica, programao HTML, animaes, etc), ou seja, mediadas
por instrumento mecnico, eletrnico ou digital; ou podem ser digamos, "f isicas", como as
diversas tcnicas de pintura, desenho, gravura, escultura, colagem, etc, em que se produz um
objeto "matriz", a partir do qual sero feitas as reprodues. Obviamente todas as tcnicas
podem se misturar entre si.
No caso do RPG, as informaes sobre regras e ambientao - os componentes
narrativos apresentados anteriormente - podem ser veiculadas, tecnicamente, sobre qualquer
suporte (livro, revista, website, CD-Rom etc.). No entanto, a vasta maioria dos RPGs continua
sendo publicada em suportes impressos, sobretudo livros.
Normalmente um livro de RPG contm a descrio da ambientao e um sistema de
regras. Em geral, este o mdulo bsico, que pode vir a ser ampliado em publicaes
complementares, chamadas complementos ou suplementos. As ambientaes podem ter as
mais variadas inspiraes: fantasia, mitologia, histria, fico-cientfica, cinema, histrias em
quadrinhos, seriados de TV, literatura, realidade cotidiana. possvel qualquer tipo de
combinao, e muitas vezes um sistema de regras para uma dada ambientao pode ser
usado para outra ambientao, e vice-versa.
Alm do texto, praticamente todas as publicaes de RPG possuem ilustraes
referentes ambientao. Inicialmente simples, estas ilustraes cresceram junto com as
inovaes tecnolgicas das artes grficas, que permitiram, entre outros fatores, a evoluo
dos primeiros manuais comercializados em caixas para publicaes impressas de elaborado
acabamento grfico, produzidas por editoras e comercializadas em livrarias ou bancas de
jornal (Bettocchi, 2002).
Atualmente, a forma visual nos suportes impressos de RPG se caracteriza pela mistura
e apropriao de diferentes mdias como teatro, cinema, televiso, literatura, quadrinhos
ocidentais e orientais e computador sem, no entanto, perder a conscincia de sua prpria
forma. 5 A representao visual expressa-se como uma colcha de retalhos atravs da mistura
de estilos dentro de uma mesma publicao, fato marcante, sobretudo, nos jogos ditos de
terceira fase - fase de maior diversidade estilstica e temtica, inaugurada pelo RPG Vampire:
The Masquerade, em 1991, publicado pela editora norte-americana White Wolf (Bettocchi,
2002).
5 Na dissertao de mestrado, constru um breve histrico do RPG a partir das suascaractersticas visuais, estabelecendo uma relao entre as trs geraes de jogadorescaracterizadas por Andra Pavo (1999) e a produo dos jogos levantada por Fbio Amncio(AMANCIO, Fabio. O RPG no Mercado Editorial Brasileiro. Monografia de Bacharelado emComunicao Social, Universidade de So Paulo, 1997) entre 1974 e 1997. Ese histrico foipublicado como artigo em BETTOCCHI, Eliane. A sintaxe visual do RPG. Revista Estudos emDesign, Rio de Janeiro, v. 8, pp. 53-68, 2000.
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2.2.Delimitaes: na encruzilhada entre suporte impresso e interatividade
Apesar de disponibilizado sobre um suporte, no se pode esquecer,
entretanto, que o RPG acontece muito mais como processo de socializao
interativa do que como produto e que, diferentemente de uma narrativa tradicional,
um RPG oferece uma ambientao, uma plataforma operacional a partir da qual os
jogadores constrem, coletivamente, suas prprias histrias e personagens. Isto
quer dizer que um suporte de RPG, seja ele impresso, eletrnico ou oral, no tem
por objetivo oferecer histrias completas e fechadas - ainda que possam existir
exemplos de histrias e personagens -, mas sim possibilidades, autnomas e
imprevisveis, que se realizam em cada momento de jogo.
Se pensarmos com base na teoria de Pierre Lvy (1997) sobre virtualidade,
podemos dizer que o RPG um campo virtual que se atualiza a cada momento de
construo de uma personagem e de uma histria (Bettocchi & Klimick, ago.
2003). As narrativas no RPG so, neste contexto, escolhas feitas pelos
jogadores, o que reservaria aos autores do jogo o papel de facilitadores destas
escolhas, muito mais do que de autoria (o ato de facilitar as escolhas j implica
escolhas tambm: o prprio ato de conceber um RPG pode ser considerado um
ato de jogo).
Sendo o RPG uma plataforma, seus componentes narrativos costumam ser
disponibilizados no suporte impresso como referncias ambientao, em
diversos modos da linguagem visual (verbal, esquemtica e pictrica). Assim,
comum o uso de ilustraes que vo alm dos textos verbais, mantendo uma
certa autonomia descritiva, acrescentando dados ao invs de simplesmente
repetirem o que est escrito.
Esta diversidade de linguagens com autonomia informacional refora a
caracterstica hipertextual da narrativa e destaca suas possibilidades interativas,
onde a disponibilidade instantnea de possibilidades articulatrias permite a
concepo no de uma obra acabada, mas de estruturas que podem ser
recombinadas diferentemente por cada usurio.
Chegamos, assim, ao objeto desta pesquisa: estes elementos pictricos e
esquemticos atuando, potencialmente, como "janelas" ou "links" de informao
para o jogador sobre os componentes narrativos onde sero construdas suas
prprias histrias, e, conseqentemente, suas prprias imagens, textos etc.
(Bettocchi & Klimick, 2003), conforme exemplificado na figura 2.2.1.a-b:
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2.2.1.a) No exemplo de pgina de livro de narrativatradicional, a imagem ilustra o que est escrito notexto - Orfeu atravessa o rio a bordo do barco deCaronte -, sem trazer informaes extras. Fonte: EntreDeuses e Monstros, de Lia Neiva, Editora NovaFronteira (Rio de Janeiro, 2007, pp. 86- 87). Ilustraode Igor Machado.
2.2.1.b) No exemplo de pgina de livrode RPG, a imagem no reproduz oque est escrito, mas amplia o texto,complementando-o com informaessobre a ambientao, neste caso, umsuplemento sobre magiacontempornea, que inclui refernciassobre o movimento Wicca (estudos debruxaria com base no resgate doelemento feminino e de cultos pr-cristos). Fonte: Feiticeiros,suplemento para o RPG Era do Caos,Akrit Editora (Rio de Janeiro, 2000,p. 5). Ilustrao de Thais Quintella deLinhares.
Alguns suportes impressos, como os livros bsicos do RPG Dungeons and
Dragons 3rd. edition (Wizards of the Coast/Hasbro, 2000) tm anexos outros
tipos de suporte, neste caso, um CD-Rom com imagens, aventuras, regras
complementares e at trilhas sonoras, ampliando ainda mais sua caracterstica
hipertextual.
2.2.1. Tradies no design do suporte impresso de RPG
A questo da linguagem no suporte de RPG volta a ser importante se
quisermos visualizar diferenas no design em termos de tradies, pensando
tradio como o jogo entre sedimentao, que consolida um sistema simblico
enquanto tal, e inovao, que prope modificaes criativas ao sistema,
atualizando-o a adaptando-o a novas condies (Ricoeur, 1983).
No caso do livro ou revista que d suporte a um RPG, faz-se importante
uma breve descrio de como os modos da linguagem visual pictrico e
esquemtico, segundo a classificao de Twyman (1982, 1985), se relacionam
em um suporte impresso mecanicamente cuja recepo majoritariamente visual
e bidimensional. Considero linguagem visual pictrica as ilustraes e ornamentos
grficos, e linguagem esquemtica a prpria diagramao (a disposio das
imagens e do texto verbal) da pgina.
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Esta breve descrio, na figura 2.2.1.1.a-j, ser um ponto de partida para
critrios comparativos utilizados no captulo de anlise da produo dos
participantes do experimento (Captulo IV):6
2.2.1.1.a-b) Sedimentao pictrica: o manual explicativo com ilustraes feitaspor diferentes profissionais em estilos pessoais similares e utilizando-se a mesmatcnica: trao linear monocromtico. Sedimentao esquemtica: diagramaosimples e retilnea. Este padro ainda amplamente utilizado, principalmente poreditoras de pequeno porte, da ser considerado uma sedimentao de linguagem.
a) Primeira edio do RPG Dungeons andDragons, TSR Editora (EUA, 1979).:diagramao e ilustrao.
b) Primeira edio do RPG Tagmar, da editoraGSA (Rio de Janeiro, 1991): diagramao eilustrao.
2.2.1.1.c-d) Inovao pictrico-esquemtica: o manual explicativo com contedomais informal e projeto grfico com diagramao mais ousada, incluindoilustraes em policromia, ainda que em estilos pessoais e tcnicas similares. Estepadro acabou sendo pouco reproduzido, pois as inovaes seguintes tiverammais impacto.
c) A primeria edio do RPG Star Wars, daWest End Games (EUA, 1987), j incluiilustraes e fotografias coloridas em umcaderno policromtico.
d) O RPG Defensores de Tquio, da editora Trama (SoPaulo, 1995), com ilustraes coloridas em estilo mang(quadrinhos japoneses), publicado como revista ecomercializado em bancas de jornal.
6 Devo ressaltar que a escolha dos exemplos desta descrio foi feita com base na pesquisade mestrado (Bettocchi, 2002), onde foi realizada um levantamento mais extenso e detalhadoda sintaxe visual no RPG, conforme mencionado na nota 3.
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ilustraes e fotografias coloridas em umcaderno policromtico.
(quadrinhos japoneses), publicado como revista ecomercializado em bancas de jornal.
2.2.1.1.e-f) Sedimentao X Inovao pictrica: comparamos as ilustraes emestilos pessoais e tcnicas similares dos exemplos c e d com a explorao dediferentes estilos pessoais e mtiplas tcnicas dentro da mesma publicao nosexemplos e e f. Sedimentao X Inovao esquemtica: comparamos os projetosgrficos dos exemplos c e d com a multiplicidade de diagramaes dentro damesma publicao, tambm nos exemplos e e f:
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e) Segunda edio do RPG Vampire, theMasquerade, da editora White-Wolf (EUA,1992): ilustraes e diagramaes.
f) Segunda edio do RPG Era do Caos, daAkrit Editora (Rio de Janeiro, 1997): ilustraese diagramaes.
Com a inaugurao da terceira fase do RPG (Bettocchi, 2002 e nota 3), as
inovaes de linguagem iniciadas pelos produtos da editora White-Wolf
sedimentaram-se, passando a ser reproduzidas por vrias editoras, sobretudo as
de grande porte. No entanto, estas inovaes abriram caminho para diversas
experimentaes. Para no nos estendermos muito, cito apenas duas, na figura
2.2.1.2.a-b:7
7 No Brasil, a nica grande novidade foi a utilizao de revistas como suporte e distribuio embancas de jornal, pela Trama Editora, de So Paulo, a partir de 1995.
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2.2.1.2.a) Castelo Falkenstein,TalsorianGames (EUA, 1994), tem design remetendo aofinal do sculo XIX, poca da ambientao,dirios de personagem no lugar de planilhas esistema de regras baseado em cartas debaralho em vez de dados.
2.2.1.2.b) Alm das planilhas com designsofisticado, remetendo aos quatro elementos daAlquimia, Everway, da Wizards of the Coast(EUA, 1995) dispe de um tar prprio, livros emformato quadrado, tudo acondicionado dentro deuma caixa.
Atualmente, os padres de linguagem sedimentaram-se entre a simplicidade
de diagramao, acompanhada tanto de unicidade quanto de diversidade
estilstica nas ilustraes, e diversidade e complexidade de diagramao,
acompanhada de diversidade estilstica nas ilustraes.
Alm disso, vrias so as editoras que passaram a complementar seus
suportes impressos com CD-Roms, como o j citado Dungeons and Dragons 3a
edio (Wizards of the Coast/Hasbro, EUA, 2000), website enhancements, video-
games, romances e quadrinhos e at seriados de televiso, como Kindred, the
Embraced, produzido pelo autor de Vampire: the Masquerade (White-Wolf).
Tambm tornaram-se comuns participaes mais diretas dos usurios na
concepo dos jogos. Por exemplo, os RPGs Shadowrun (Fasa Corporation) e
Legend of the Five Rings (Alderac Entertainement Group) incorporam alteraes
do cenrio de acordo com inputs dos usurios advindos dos resultados dos
torneios dos cardgames relativos a estes jogos; e, novamente, o RPG Dungeons
and Dragons 3a edio licensiou seu sistema de regras D20 para quem quiser
produzir ambientaes e implementou um concurso de cenrio elaborado por
jogadores para ser publicado pela empresa.
No entanto, apesar de toda a experimentao com projeto grfico e
ilustrao, por parte das editoras, e absoro dos inputs dos jogadores na
concepo dos jogos, podemos observar, a partir desta breve anlise, que, nem
as inovaes, nem a participao dos usurios alcanam a estrutura do suporte
impresso. Resumindo, os suportes impressos de RPG continuam seguindo o
aspecto mais sedimentado do design de um livro na forma de cdice: a
linearidade.
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2.2.2. Suporte impresso versus interatividade: o problema
Vimos que a narrativa interativa no RPG seu carter mais fortemente
ldico e que os elementos pictricos e esquemticos do suporte podem atuar
como links, favorecendo um modo de recepo hipertextual. Vejamos, ento, um
exemplo de como isto pode se dar na prtica.
Phil Vecchione apresentou a palestra Metagaming, na GenCon 2004,8 uma
proposta de conceituar metajogo como jogo fora do jogo, ou seja, o jogo que
continua depois que acaba uma sesso de jogo, alegando que todos os jogos
apresentam esta caracterstica, mas apenas alguns a pressupem no seu design,
sobretudo os jogos com peas colecionveis. O metajogo abre espao para a
criatividade dos jogadores que podem contribuir com textos de vrios tipos
(imagens, dirios de personagens etc), e realizar sesses individuais com os
mestres de jogo.9 No RPG, isto existe, porm poucos jogadores dedicam-lhe
tempo; e poucas pginas nos livros so dedicadas a isso. Ele prope ento
diferentes formas de estruturar prticas de metajogo nas sesses de RPG:
registro escrito de dirios, desenhos, manuteno de blogs, troca de e-mails e
fruns entre jogadores, sites sobre as histrias que esto sendo jogadas, tudo
isto ocorrendo alm das sesses em que o grupo se rene.
Percebemos ainda que, mesmo demandando uma recepo interativa e
hipertextual, o RPG no massiamente veiculado em suporte eletrnico, como
CD-Rom ou website, mas sim em suporte impresso, sob a forma de livros e
revistas, suporte em geral visto como no-interativo, sobretudo quando
comparado ao suporte eletrnico, que, como j foi dito, para muitas reas de
conhecimento e para o senso comum surge como a mdia interativa per se.
O problema se destaca ainda mais diante da possibilidade de se aproveitar
uma produo dos jogadores, conforme mencionado no exemplo do metajogo, que
parece representar materialmente a noo de interatividade como resposta
autnoma e criativa. Um problema que parece extrapolar o universo restrito do
RPG para um universo muito mais abrangente: o do prprio livro como objeto.
Desde 2003, o Ncelo de Estudos do Design na Leitura (NEL), do
departamento de Artes e Design da PUC-Rio, coordenado pelo Prof. Dr. Luiz
Antnio Coelho, vem se debruando, entre outras questes, sobre o livro como
objeto de design e seus aspectos tecnolgico, afetivo e social:
O objetivo geral estudar e compreender como se d, e atravs de queprocessos, a produo de sentidos do discurso, no mbito da linguagem
8 A maior conveno de hobby games dos EUA (www.gencon.com). Apesar de incluirvideogames, cardgames e outros tipos de jogos, seu pblico de aproximadamente 30.000pessoas composto principalmente por jogadores de RPGs.9 Considerando texto como produto final de um relato, conforme definido na seo anterior(2.1.3).
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visual, no que tange ao objeto livro e aos seus diversos interlocutores,produtores e instituies.
O objetivo especfico aprofundar os conhecimentos cientficos em Design, deforma a possibilitar o desenvolvimento e a produo de livros de maiorqualidade visual que alcancem mais apropriadamente seus objetivos natransmisso de conhecimentos.10
Um dos principais autores que norteia as questes do Ncleo,
principalmente o problema levantado nos pargrafos anteriores, Roger Chartier.
O autor diz que "O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua
decifrao, a ordem no interior da qual ele deve ser compreendido, ou, ainda, a
ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu sua publicao."
(Chartier, 1999:8). No entanto, ele continua, a ordem do livro constantemente
desafiada pela liberdade da leitura. Assim, verifica-se uma dialtica entre a
imposio da produo e da forma e a apropriao e reinveno da recepo.
Desde o tempo em que o manuscrito deu lugar impresso e, portanto, sinais,
marcas, ttulos de captulos e cabeas de pgina passaram a ser
responsabilidade do impressor em vez de do corretor ou do possuidor do livro,
restaram ao leitor os espaos em branco das pginas. Assim,
O objeto impresso lhe impe a sua forma, a sua estrutura e suas disposies,no pressupondo nenhuma participao dele [leitor]. Se o leitor pretende,todavia, inscrever sua presena no objeto, ele s pode faz-lo ocupando sub-repticiamente, clandestinamente, os espaos de livro deixados de lado peloescrito: a contracapa do encadernamento, folhas deixadas em branco,margens do texto etc. (Chartier, 1999:103).
Percebemos que no RPG este problema de recepo transgressora versus
tecnologia ordenadora aparece ainda com mais evidncia por se tratar de um
processo aberto e interativo, veiculado sobre um suporte comparativamente
fechado. Ou seja, uma tecnologia com abertura de primeiro grau para um
modo de recepo que pressupe uma abertura de terceiro grau.
O problema poderia ser resolvido mudando-se o tipo de suporte?
Provavelmente o suporte eletrnico ofereceria maior liberdade de interveno dos
leitores e maiores chances de divulgao destas intervenes. No entanto, como
j foi dito, existe uma preferncia pelo suporte impresso para veiculao do RPG.
Apesar de nos alertar para uma muito provvel substituio do suporte
impresso pelo eletrnico, como outrora ocorreu com o rolo substitudo pelo cdice,
Chartier (1999) evoca a noo de histria para justificar a necessidade da
permanncia do suporte impresso, na figura da especificidade de um texto
produzido para um determinado suporte. Muito do que produzido atualmente,
feito para o suporte impresso, com suas questes especficas formais,
10 O NEL uma das atividades desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Sistemas Simblicos naMdia Visual, criado em 1992 e certificado pelo CNPq. Atualmente tem desenvolvido projetosjunto com a Ctedra UNESCO de Leitura da PUC-Rio.
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econmicas e jurdicas. Simplesmente adaptar tais textos para um outro suporte
pode implicar perda de informao, principalmente para um leitor do futuro que
esteja interessado na produo do passado. Ou seja, "Nenhuma ordem dos
discursos , de fato, apartvel da ordem dos livros que lhe contempornea."
(Chartier, 1999:106).
Da minha parte, posso acrescentar alguns motivos pelos quais tambm
persisto em repensar o suporte impresso em vez de propor sua substituio
imediata. Primeiro, porque vivemos em uma sociedade mltipla, onde se pode criar
nichos de fruio em vez de simplesmente substitu-los; quero dizer com isso que
no h necessidade de se eliminar o livro, mas que necessrio question-lo
para que ele reencontre seu espao de fruio em paralelo com outros suportes.
Segundo, porque por mais que os livros possam ser mal distribudos e
tenham alto custo de produo, o que faz com que cheguem caros s mos de
um pblico restrito, no se pode ainda comparar o custo e as necessidades de
infra-estrutura para se adquirir um livro com o custo e as necessidades de infra-
estrutura para se adquirir um computador. Gosto de citar o comentrio informal de
um ex-funcionrio da Editora Devir, de So Paulo, que costumava promover
sesses de RPG para iniciantes e dizia que com um nico livro de RPG e alguns
dados, ao custo mdio de sessenta reais (considerando uma edio de luxo
importada), poderia sentar-se no cho de terra de um barraco e mestrar para
cinco ou seis pessoas, luz de velas. Isto possvel de se fazer com um
computador, desde que este seja um notebook com bateria, a um custo mdio de,
digamos, dois mil reais.11
2.2.3. Suporte impresso mais interatividade: hiptese e objetivos
Assim sendo, o desafio a que me proponho o de transformar um suporte
impresso, linear, rgido na sua estrutura, em suporte aberto e interativo,
considerando os conceitos que j foram definidos neste contexto. E foi nos
experimentos do poeta francs Mallarm, no sculo XIX, que encontrei o ponto de
partida para a hiptese e para o objetivo especfico que se seguem.
Para Mallarm, o livro um instrumento espiritual: um instrumento, portanto,
um objeto fsico, com um propsito metafsico. Em sendo objeto, o poeta no
deixou de se debruar sobre sua materialidade, sendo o seu projeto do Livre o
pice deste interesse. Segundo o estudo de Znia de Faria (1995), Mallarm,
neste projeto:
11 Apesar de que, cada vez mais popularizam-se as lan houses em comunidades carentesurbanas, oferecendo acesso a computadores e treinamento a baixo custo.
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a) promove a leitura ao ponto nodal de suas reflexes, de vez que situa a"operao de leitura" no centro do mecanismo do Livre; b) subverte anoo de leitor, de leitura e de livro. (Faria, 1995:173).
Registrado sob a forma de folhetos manuscritos que apresentam diversas
ordens de leitura, o Livre consiste de uma srie de sesses de leituras pblicas
que aparentam a dinmica de um jogo entre pblico, o operador e o prprio livro. A
dinmica se baseia na permutao da ordem dos folhetos e da disposio do
pblico, mediada pela interveo do operador, que congrega os papis de
narrador, permutador e leitor, em uma espcie de atuao performtica que
remete quela do contador de histrias da tradio oral.
Assim, Faria observa que duas atitudes aparentemente opostas se
encontram no projeto: "uma atitude passadista - a leitura em voz alta - e uma
atitude de vanguarda - a concepo da pgina como unidade visual e a
explorao dos espaos em branco e dos caracteres tipogrficos." (Faria,
1995:180). Um jogo que pode ser bastante similar relao ldica que acontece
entre o processo de um RPG e seu suporte.
De fato, no pretendo discorrer sobre o trabalho de Mallarm, mas destacar
aspectos do projeto do Livre que interessam para esta pesquisa: a idia do jogo
com o suporte impresso, o questionamento da forma linear, simtrica e tipogrfica
do livro e a relao ldica e performtica com o livro nas sesses de leitura.
No projeto de Mallarm, o operador ainda detm um "saber superior" (ele
narra o texto e permuta as pginas) em relao ao pblico. J no RPG, o mestre
do jogo encontra-se em situao quase de igualdade com seus jogadores, pois a
histria, ainda que seguindo um plano inicial, s se completa com a atuao dos
jogadores e suas personagens. E, no exemplo que proponho a seguir, as
permutaes tambm acontecem de forma autnoma e imprevisvel no livro de
cada jogador.
Ainda que discorde da noo de produo cara e elitista de um livro e do
conceito platnico de arte do poeta, reconheo em seu interesse pela capacidade
de abrangncia das artes ditas populares, sobretudo o jornal, uma proveitosa
fonte de inspirao para o que tenho a propor. Vejo tambm, na sua aparente
contradio, conforme apontada por Faria (1995), entre a insistncia em produzir
obras caras para um pblico restrito e em desafiar a prpria noo de autoria ao
levar o Livre para sesses pblicas de grande abrangncia popular, um desejo de
popularizar a obra sem necessariamente incorrer no que classifica como perda
de qualidade literria.
Se, para Mallarm, o desafio reside em manter o delicado equilbrio entre
banalizao da cultura de massa e sacralidade da cultura erudita, para mim o
desafio se desloca para o questionamento desta dualidade, refletindo-se no
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questionamento sobre a separao entre arte e design, sobre a qual vou
discorrer no final do Captulo 3.
Walter Benjamin (1935; 1936; 1994) pensou esta questo a partir da
insero da obra de arte no momento tecnolgico moderno, buscando novas
categorias de avaliao para as manifestaes artsticas contemporneas (a
reprodutibilidade), que no poderiam ser as mesmas da arte pr-moderna (a
aura). Venho, ento, trazer para esta discusso, um momento da arte
contempornea que inaugura o "mltiplo", j presente e comercializado nas
galerias do Rio de Janeiro. Segundo reportagem do caderno Rio Show, do Jornal
O Globo de 25 de novembro de 2005, os mltiplos so trabalhos feitos em srie
que podem ser adquiridos por preos acessveis (que na reportagem variam entre
R$160,00 e R$1000,00).
Se, no passado, o projeto de Mallarm no pode ser realizado, entre outros
motivos, pela dificuldade tecnolgica, a tecnologia contempornea permite que se
imprima, em razoveis quantidades e a relativo baixo custo, folhas soltas que
podem ser organizadas, vontade do "fregus", dentro de um fichrio. Alm da
ambientao e das regras do jogo, podem ser acrescentadas, retiradas e
alteradas histrias e personagens indefinidamente, em qualquer ordem. Os
jogadores podem participar diretamente da estrutura do livro, intervindo nela,
acrescentando seus textos e valendo-se da sua prpria tecnologia domstica
para imprimir suas pginas.
Poderamos ter, assim, um RPG experimental, desenvolvido em paralelo com
o mtodo da pesquisa, concebido de modo a incorporar, em termos de
ambientao, de regras, e do seu suporte impresso, as intervenes dos
jogadores. E este o objeto de estudo da pesquisa: a concepo e a
experimentao de um RPG e seu livro que incorporem a produo dos jogadores,
e que, por hiptese, ponham em evidncia o carter interativo do jogo e, por
conseguinte, ofeream uma possibilidade de abertura para o suporte impresso.
RPG-livro comercial:design do jogo/suporte >> processo do jogo
/\\/produo dos jogadores
XRPG-livro hipottico:
design do jogo/suporte >> processo do jogo
/\ \/produo dos jogadores
Antes de prosseguir, uma breve justificativa: por que no utilizar um RPG
pr-existente? Principalmente por dois motivos. Primeiro, ao longo da minha
experincia de 15 anos no ambiente de RPG e games em geral, pude observar,
informalmente, que os jogadores adquirem certas preferncias em relao aos
jogos disponveis no mercado; julguei que tais preferncias pudessem vir a
prejudicar a participao nas sesses experimentais, nas quais poderiam surgir
perguntas do tipo "por que este RPG e no aquele?". Segundo, preferi, por uma
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questo de praticidade, evitar as possveis dificuldades de obter autorizaes de
uso de texto e imagem de editoras.
Sendo assim, partindo da ao de "incorporar" a produo dos jogadores
participantes do experimento, e de conceitos tericos adquiridos ao longo da
minha experincia acadmica, cheguei ao termo Incorporais. Segundo Emile
Brehier, incorporal so todas as condies conceituais que nos alteram a nvel
relacional sem nos alterar fisicamente. As relaes incorporais se refletem nos
tipos sociais representados pelos indivduos, que mudam suas relaes com o
mundo sem alterar seus corpos fsicos. Essas relaes (incorporais) constituem
uma rede que est continuamente alterando e sendo alterada pelos indivduos
(corpos), e dessa ao cclica surgem conceitos a todo o momento, os quais
ignoram hierarquias e calcificaes. Alterar essas relaes incorporais de forma
no usual causa impacto e estranheza, gerando uma ruptura com o princpio de
identidade.
Chegamos, ento, ao objetivo especfico da pesquisa: projetar e
experimentar o RPG Incorporais e seu suporte impresso de modo a verificar, por
meio de um enfoque metodolgico semitico, a hiptese de se trazer para um
suporte impresso uma abertura de terceiro grau, facilitando um modo de recepo
hipertextual e interativo. Para instrumentalizar a pesquisa, o problema foi
desdobrado em duas questes, as quais so trabalhadas em duas instncias:
formal e processual.
A questo formal deste estudo concentra-se na concepo da "forma-
objeto", isto , a organizao compositiva e estrutural do suporte considerando
suas especificidades tcnicas e materiais e sua capacidade de significar, de se
relacionar com o "contedo-objeto" (a ambientao de jogo e seus
desdobramentos) de maneira narrativa e hipertextual, ou seja, capaz de abrir
vrios "links" de informao, permitindo a abertura deste processo de
significao. A condio de "objeto" para lembrar que tanto contedos como
formas so pretextos para se experimentar o deslizamento do signo visual dentro
do contexto de uma obra coletiva que significa medida que se constri, e que se
constri medida que os participantes interagem.
Com a instncia formal, objetiva-se chegar configurao de um suporte
impresso que, atravs da abertura de significados, possibilite e estimule a
participao direta dos usurios na sua prpria ampliao e reconstruo,
caracterizando tal suporte como obra aberta.
Etapas da Instncia Formal:
1. levantamento bibliogrfico e iconogrfico para a ambientao escolhida (o"contedo-objeto") e pesquisa de tcnicas e materiais;
2. concepo visual da "forma-objeto" (ilustraes e diagramao), a partir deconceitos referentes ambientao;
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conceitos referentes ambientao;
3. produo do suporte impresso;
4. gerao e anlise crtica do piloto de teste do suporte impresso;
5. gerao do prottipo (boneca de impresso); 12
6. reproduo grfica do suporte impresso, atravs de copiadora Docutech emontagem dos exemplares com colchetes;
7. disponibilizao da home-page do cenrio no site geral do projetoIncorporais.
A questo processual concentra-se na fruio interativa do suporte
impresso: o papel da abertura de significados no estmulo a uma fruio interativa,
onde o jogador efetive sua participao na construo e ampliao da obra,
produzindo material para ser incorporado ao suporte do jogo, ao mesmo tempo em
que a frui, jogando.
Sendo uma manifestao recente, podemos tomar o RPG como um
fenmeno de comunicao tpico da contemporaneidade onde o signo aparece
como processo interativo: o significado acontece quando significantes so
relacionados por um sujeito, num processo fluido e contnuo. Do mesmo modo que
determinadas partculas sub-atmicas s existem como resultado da interao
entre outras partculas (Capra, 1984), e do mesmo modo como certas condies
humanas s se configuram durante um momento relacional (incorporais), o signo
s existiria no momento em que um sujeito relaciona significantes, produzindo
significado.
Com a instncia processual objetiva-se, atravs da experimentao do
objeto gerado na instncia formal, evidenciar a capacidade interativa do RPG,
caracterizando-o como fenmeno representativo desta condio relacional do
signo e como obra aberta em terceiro grau de acordo com o que foi postulado nas
sees anteriores.
O processo se dar em espaos de jogo experimentais, onde se pretende
incentivar a participao direta dos jogadores na ampliao do suporte e da
ambientao apresentados, utilizando o conceito de metajogo apresentado
anteriormente.
Os livros abertos estaro disponveis, durante os experimentos, para
manipulao direta pelos participantes, de modo que cada um intervenha nestes
suportes impressos, reorganizando as pginas e acrescentando ou retirando
material como melhor lhe aprouver.
12 Boneca de Impresso uma verso artesanal de uma publicao, utilizada como guia para areproduo grfica. A Boneca indica precisamente o aspecto final e o nmero e posicionamentode pginas da publicao. Em geral, impressa, atualmente, em impressoras caseiras eencadernada em espiral, ou simplesmente grampeada. Algumas podem ser impressas comolayouts em bureaus grficos e encadernadas com costura ou grampo canoa (encadernao
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O material produzido ser, com devida autorizao dos participantes,
digitalizado e exposto no site, funcionando como ampliao e suplementao da
ambientao do RPG. Havendo concordncia dos participantes, o material
produzido poder ainda se constituir em material impresso, que se permitir ser
anexado ao livro "bsico" aberto. Deste modo, ser produzido um livro aberto
"recombinante", complementado por um site, ambos alimentados pelo processo.
Etapas da Instncia Processual:
1. elaborao de um mtodo de acompanhamento da participao dosjogadores, que permita observar o processo de abertura atravs dacomparao entre as possibilidades de organizao e interveno no livroaberto por cada participante (variveis);
2. viabilizao de um espao para experimentao do suporte impresso, atravsde sesses de jogo coordenadas por monitores devidamente treinados eobservadas pela pesquisadora;
3. registro e tratamento digital da produo dos participantes, seja ela realizadadurante os eventos, seja ela enviada por e-mail, para disponibilizao no sitee, se houver quantidade que se justifique, para diagramao e produogrfica de novos suportes impressos, que podero funcionar comosuplementos para o jogo;
4. relao dos resultados obtidos com os conceitos tericos, observando-se seo processo de jogo, aliado forma como foi apresentado, constituiu-seefetivamente em obra aberta.
Como j foi mencionado, o desenvolvimento do jogo experimental e do
mtodo de concepo e anlise do suporte impresso e da experincia do seu
processo acontecem de maneira paralela. O prximo captulo dedicado ao
enfoque e, por conseguinte, ao referencial terico que embasa a construo do
mtodo que foi nomeado design potico.
com grampos para publicaes de at 60 pginas), assumindo exatamente o aspecto final quea publicao dever ter aps a sada da grfica.
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2.3.Resumindo o contexto...
Definimos o RPG, no mbito da Media ecology, como meio de comunicao que dispe de
condies de fruio interativa e hipertextual e linguagem e tecnologia mltiplas e narrativas.
Definimos que as condies de fruio interativa e hipertextual so modos
de recepo que pressupem associaes fragmentadas e no-lineares,
autnomas e imprevisveis; e que as mltiplas linguagens e tecnologias fazem
deste jogo um meio multimiditico e hipertextual, portanto, hipermiditico, composto
de diferentes meios, a saber: impresso, oral e corporal.
A partir da, tomamos o RPG como obra aberta em terceiro grau, na qual se
fornece um programa ou sistema operacional que demanda a participao
produtiva do receptor para que a obra se realize.
Deste modo, pensamos nos componentes narrativos do RPG (ambientao
e regras) como janelas ou links que podem ser abertos para outras informaes
e como pontos de partida para a produo do receptor.
Chegamos, ento ao objeto da pesquisa: o suporte impresso de RPG, a
tecnologia que veicula este sistema operacional narrativo e hipertextual, em que
os componentes narrativos so representados por meio dos trs modos da
linguagem visual (verbal, pictrico e esquemtico), os quais, portanto, podem
tambm atuar como links em potencial.
Por este motivo, fizemos um apanhado das tradies de design deste
suporte impresso, e verificamos que, apesar de veicular um contedo interativo e
hipertextual, aberto em terceiro grau, a estrutura deste suporte permanece
sedimentada na linearidade do cdice.
Entramos no problema da pesquisa, a de um objeto que impe sua forma
ordenadora sobre um modo de recepo transgressor. Mesmo cientes da muito
provvel substiuio do suporte impresso pelo eletrnico, insistimos em repensar
o impresso para que este reencontre seu espao neste momento de transio.
Da hiptese de trazer a abertura de terceiro grau para a estrutura deste suporte, que,
partindo dos experimentos do Livre, de Mallarm, possa incorporar materialmente a produo
dos receptores, facilitando a hipertextualidade e a interatividade.
Assim, o objetivo da pesquisa projetar e testar um suporte impresso de
RPG aberto, em que a linguagem pictrico-esquemtica atue como link e cuja
estrutura possa ser alterada e recriada pelo receptor a medida que este o frui
atravs do processo de jogo. Este objetivo foi perseguido com auxlio de um
mtodo semitico, assunto do prximo captulo, pensando-se a abertura destes
links como processos de significao fluidos e deslizantes.
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