2. conceito de paz_araújo

4
7/25/2019 2. Conceito de Paz_Araújo http://slidepdf.com/reader/full/2-conceito-de-pazaraujo 1/4 Conceito de Paz  – Araújo Castro  – Discurso do Chefe da Delegação do Brasil, Embaixador J.A. de Araújo Castro, perante a Comissão Política (da Assembléia Geral), na XXV Assembléia Geral da ONU, sobre o Tema “Fortalecimento da Segurança Internacional”, em 28 de setembro de 1970: (...) Em seu pronunciamento de 17 de setembro perante a Assembléia Geral, o Ministro das Relações Exteriores do Brasil teve a ocasião de aludir aos fracassos e frustrações desta Organização, no que concerne à paz e segurança internacional. Sua Excelência assinalou que, quanto a inúmeros problemas, em inúmeras áreas e em inúmeras situações, a Organização se viu relegada ao papel de testemunha silenciosa e impotente de inúmeras violações à Carta. Assinalou ainda a tendência, bastante clara, de evitar-se o debate e de abster-se da consideração de questões que se nos apresentam como excessivamente difíceis e controversas. Desenvolve-se uma curiosa filosofia, segundo a qual o debate, nas Nações Unidas, só terá como consequência o envenenamento da atmosfera política e, por fim, acabará por tornar as soluções ainda mais remotas e inacessíveis. Nos últimos anos, essa concepção vem exercendo uma significativa influência na agenda da Comissão Política e de Segurança (...). As Nações Unidas foram criadas para enfrentar crises e controvérsias, e qualquer tentativa de despolitização é um atentado à sua própria existência. Não aceitamos a teoria segundo a qual esta Organização, incapaz de lidar com os problemas políticos mundiais e, consequentemente, de preservar a paz e a segurança internacional, deveria contentar-se em preservar sua paz interna. (...) Nós certamente estamos a favor de uma temporânea revisão da Carta, com vistas a tornar o mecanismo de nossa Organização mais sensível à necessidade de efetivamente implementarem-se os Propósitos e Princípios da Carta. (...) Achamos que os Propósitos e Princípios da Carta gozam da característica de serem parte da Carta no mesmo grau que as regras sobre unanimidade dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Por que certas seções da Carta são mais respeitadas que outras? Além disso, não devemos esquecer que os Propósitos e Princípios da Carta sempre se impõem como obrigações reais assumidas por todos os Estados-membros, perante esta Organização, mesmo quando o Conselho de Segurança se acha paralisado pelo veto, mesmo quando se acha imobilizado pelo consenso ou mesmo quando uma forma de veto oculta e sutil impede a ação da Assembléia Geral. Um ato de agressão ou de violação de integridade territorial constitui sempre uma grosseira violação da Carta, esteja ou não o Conselho de Segurança em condições de reagir, possa ou não agir a Assembléia Geral, segundo as circunstâncias. A implementação dos Propósitos e Princípios da Carta, as obrigações e compromissos que representam não dependem da conclusão de acordos considerados e contemplados no Artigo 43. Nenhum país tem o direito de usar a força ou de violar a Carta apenas porque o Artigo 43 ainda não foi implementado, ou porque o Conselho de Segurança foi bloqueado em sua tentativa de agir, ou porque a Assembléia Geral foi reduzida ao silêncio e à inação. O respeito pelos Propósitos e Princípios – os quais constituem uma obrigação positiva, e não apenas um compromisso moral  – não pode depender da implementação do Artigo 43 ou de qualquer mecanismo de aplicação. (...) Vem-se gradualmente desenvolvendo, nas Nações Unidas, uma teoria segundo a qual as resoluções, mesmo as de caráter não obrigatório, deveriam ser adotadas por um consenso; não por uma maioria de

Upload: joseraylton

Post on 25-Feb-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 2. Conceito de Paz_Araújo

7/25/2019 2. Conceito de Paz_Araújo

http://slidepdf.com/reader/full/2-conceito-de-pazaraujo 1/4

Conceito de Paz – Araújo Castro

 – Discurso do Chefe da Delegação do Brasil, Embaixador J.A. de Araújo Castro, perante a Comissão

Política (da Assembléia Geral), na XXV Assembléia Geral da ONU, sobre o Tema “Fortalecimento da

Segurança Internacional”, em 28 de setembro de 1970:

(...) Em seu pronunciamento de 17 de setembro perante a Assembléia Geral, o Ministro das Relações

Exteriores do Brasil teve a ocasião de aludir aos fracassos e frustrações desta Organização, no que

concerne à paz e segurança internacional. Sua Excelência assinalou que, quanto a inúmeros problemas,

em inúmeras áreas e em inúmeras situações, a Organização se viu relegada ao papel de testemunha

silenciosa e impotente de inúmeras violações à Carta. Assinalou ainda a tendência, bastante clara, de

evitar-se o debate e de abster-se da consideração de questões que se nos apresentam como

excessivamente difíceis e controversas. Desenvolve-se uma curiosa filosofia, segundo a qual o debate,

nas Nações Unidas, só terá como consequência o envenenamento da atmosfera política e, por fim,

acabará por tornar as soluções ainda mais remotas e inacessíveis. Nos últimos anos, essa concepção

vem exercendo uma significativa influência na agenda da Comissão Política e de Segurança (...).

As Nações Unidas foram criadas para enfrentar crises e controvérsias, e qualquer tentativa de

despolitização é um atentado à sua própria existência. Não aceitamos a teoria segundo a qual esta

Organização, incapaz de lidar com os problemas políticos mundiais e, consequentemente, de preservar a

paz e a segurança internacional, deveria contentar-se em preservar sua paz interna. (...) Nós certamente

estamos a favor de uma temporânea revisão da Carta, com vistas a tornar o mecanismo de nossa

Organização mais sensível à necessidade de efetivamente implementarem-se os Propósitos e Princípios

da Carta. (...) Achamos que os Propósitos e Princípios da Carta gozam da característica de serem parte

da Carta no mesmo grau que as regras sobre unanimidade dos cinco membros permanentes do

Conselho de Segurança. Por que certas seções da Carta são mais respeitadas que outras? Além disso,não devemos esquecer que os Propósitos e Princípios da Carta sempre se impõem como obrigações

reais assumidas por todos os Estados-membros, perante esta Organização, mesmo quando o Conselho

de Segurança se acha paralisado pelo veto, mesmo quando se acha imobilizado pelo consenso ou

mesmo quando uma forma de veto oculta e sutil impede a ação da Assembléia Geral. Um ato de

agressão ou de violação de integridade territorial constitui sempre uma grosseira violação da Carta,

esteja ou não o Conselho de Segurança em condições de reagir, possa ou não agir a Assembléia Geral,

segundo as circunstâncias. A implementação dos Propósitos e Princípios da Carta, as obrigações e

compromissos que representam não dependem da conclusão de acordos considerados e contemplados

no Artigo 43. Nenhum país tem o direito de usar a força ou de violar a Carta apenas porque o Artigo 43

ainda não foi implementado, ou porque o Conselho de Segurança foi bloqueado em sua tentativa deagir, ou porque a Assembléia Geral foi reduzida ao silêncio e à inação. O respeito pelos Propósitos e

Princípios – os quais constituem uma obrigação positiva, e não apenas um compromisso moral – não

pode depender da implementação do Artigo 43 ou de qualquer mecanismo de aplicação.

(...) Vem-se gradualmente desenvolvendo, nas Nações Unidas, uma teoria segundo a qual as resoluções,

mesmo as de caráter não obrigatório, deveriam ser adotadas por um consenso; não por uma maioria de

Page 2: 2. Conceito de Paz_Araújo

7/25/2019 2. Conceito de Paz_Araújo

http://slidepdf.com/reader/full/2-conceito-de-pazaraujo 2/4

dois terços, mas sim por unanimidade. Essa linha de pensamento foi adotada na resolução sobre a

moratória ou “congelamento” da exploração do fundo do mar e da plataforma oceânica. Isso vai muito

além do previsto no Artigo 18, parágrafo 2º, da Carta. Não podemos aceitar essa teoria que, se adotada,

equivaleria a uma extensão do veto, do Conselho de Segurança para a Assembléia Geral. (...)

(...) A palavra “paz” não apresenta o mesmo significado para as Superpotências, como para as grandesPotências ou para o resto das nações do mundo. Para as Superpotências, paz significa simplesmente a

ausência de uma mortífera confrontação global (...). Para as Superpotências, a paz passou gradualmente

a significar a sobrevivência da humanidade. Para as grandes Potências, distintas das primeiras, paz

significa um estágio de relativa normalidade, sujeita às vicissitudes de uma política de poder, mas sem

operações militares que possam demandar um esforço de escala nacional. Mas para as pequenas e

médias potências, a paz se identifica com a segurança, e passa a significar, muito simplesmente, o não

serem agredidas e o preservar-se de suas respectivas soberanias e integridades territoriais. (...) Por sua

própria natureza, e devido ao seu desamparo, as nações menores não podem esposar conceitos

sofisticados sobre a paz e o poder. O instinto de sobrevivência e a simples necessidade de sobrevivência

como nações soberanas fazem com que as pequenas e médias potências definam paz e segurançadentro dos parâmetros estabelecidos pelos propósitos e princípios contidos no Artigo 2º da Carta das

Nações Unidas, e consoantemente com os princípios – geralmente reconhecidos, mas não

uniformemente observados – do Direito Internacional.

Para essas nações, que, em sua grande maioria, são nações em vias de desenvolvimento, paz e

segurança estão vitalmente ligadas ao seu direito fundamental e ao desenvolvimento econômico. (...)

Reiteradamente vimos insistindo na tese de que quaisquer esforços no campo da paz e da segurança

internacionais deveriam ligar-se a esforços no campo do desarmamento. (...) Em grande medida, o

fortalecimento da segurança internacional coincide com o fortalecimento das Nações Unidas. (...) (...) Do

mesmo modo que a defesa dos direitos e liberdades cívicas é mais da alçada dos indivíduos que dosEstados, também a defesa dos princípios e propósitos da Carta é mais do interesse dos pequenos países

que das Grandes Potências. É do interesse dos pequenos países fortalecer a Organização e procurar uma

reafirmação daqueles Propósitos e Princípios, tão válidos hoje como em 1945, mesmo que os

mecanismos elaborados pela Carta tenham sofrido uma certa obsolescência. Esses princípios devem

permanecer em qualquer revisão que se proceda à Carta; eles demandam observância e

implementação, e não revisão. Como já dissemos, constituem uma verdadeira “Declaração de Direitos”

para os Estados e os povos do mundo. O Governo do Brasil vem estudando com grande interesse e

atenção as respostas dadas pelos Estados ao Secretário-Geral, em conformidade com o parágrafo

operativo 3 da Resolução 2.606 (XXIV). Essas respostas, conjuntamente às declarações prestadas na

Primeira Comissão, no ano passado, durante a discussão deste item, constituem uma significativacoletânea de definições políticas e contêm várias sugestões de interesse para o futuro desta

Organização e de toda a comunidade das nações. Do estudo às respostas dos Estados, uma série de

pontos básicos emerge claramente, entre os quais os seguintes merecem, devido à sua importância e ao

apoio que receberam, uma especial atenção. Em primeiro lugar, fica claro que os membros das Nações

Unidas atribuem grande importância à questão do fortalecimento da segurança internacional. Além

disso, concordam em que a observância dos princípios e a implementação dos propósitos são os pré-

Page 3: 2. Conceito de Paz_Araújo

7/25/2019 2. Conceito de Paz_Araújo

http://slidepdf.com/reader/full/2-conceito-de-pazaraujo 3/4

requisitos essenciais para a manutenção de uma paz mundial e para a garantia da segurança

internacional a todas as nações, sem consideração de suas extensões territoriais ou poderios militares.

Ainda mais, os membros das Nações Unidas reconhecem, em geral, a necessidade de reforçar-se a

Organização e de provê-la dos meios adequados para lidar com os problemas que se lhe apresentam e

desincumbir-se das tarefas que se lhe confiam. Nesse sentido, foi muito significativo o fato de que a

vasta maioria dos Estados que responderam à consulta do Secretário-Geral tivessem demonstrado umgrande grau de flexibilidade política, bem como uma inequívoca disposição em procurar novos enfoques

para o melhoramento e desenvolvimento do mecanismo de segurança coletiva das Nações Unidas.

Considerou-se em geral que esse esforço em revitalizar as capacidades das Nações Unidas, no que

concerne à paz e à segurança internacional, pode assumir dois aspectos: a) o desenvolvimento do

mecanismo de que dispõem as Nações Unidas para a solução pacífica das controvérsias; e b) o

estabelecimento de mecanismos adequados para a utilização dos poderes de implementação do

Conselho de Segurança, previstos no Capítulo VII da Carta. Várias Delegações assinalaram que havia

duas vias complementares, abertas à realização desses objetivos: primeiramente, a completa utilização

dos poderes já adjudicados à Organização pela Carta de São Francisco; e, em segundo lugar, a revisão da

Carta, a fim de dotá-la de mecanismos novos e mais efetivos, destinados a manter a paz e a segurança

internacionais, segundo seus Princípios e Propósitos. (...) (...) O Governo do Brasil sugeriu, por

intermédio de um memorando datado de 3 de abril de 1970 que o Conselho de Segurança considerasse,

em cada caso específico, a conveniência de se estabelecerem “Comitês Ad Hoc para a Solução de

Controvérsias”. Essa sugestão, recentemente reiterada por nosso Ministro das Relações Exteriores,

tenho certeza, é bem conhecida por todos os Representantes aqui presentes (... documento A/7922,

pág. 11...). Folgo informar que o meu Governo teve a satisfação de ver sua proposta apoiada, explícita

ou implicitamente, por um grande número de delegações. Acreditamos que sua adoção, pelo Conselho

de Segurança, trará efeitos positivos imediatos quanto à capacidade de ação das Nações Unidas, no

campo da paz e da segurança internacionais. Seria instrumento hábil para promover a solução de alguns

dos problemas que afligem esta Organização, e para atrair para sua órbita algumas importantes

questões internacionais que lhe têm sido sonegadas. Desse modo achamos que seria conveniente que a

Assembléia Geral, de acordo com o artigo 10 da Carta, recomendasse ao Conselho de Segurança a

consideração do estabelecimento de tais “Comitês Ad Hoc” em cada caso específico no qual uma

desavença internacional lhe for apresentada. Claro está para nós que nada de permanente ou de

significativo se conseguiria apenas por intermédio da implementação de artifícios processualísticos.

Seria enganoso pensarmos que a atual crise institucional das Nações Unidas – porque estamos diante de

uma crise institucional – possa ser debelada apenas por mudanças processuais ou estruturais. Trata-se

de uma questão de meios e fins, e o estabelecimento de “Comitês Ad Hoc”, que agora propomos, só

teria sentido como passo em direção do objetivo de se reabilitarem as Nações Unidas como instituição

política. (...) Para nós, trazer os problemas maiores e menores para a apreciação das Nações Unidas

significa, simples e realisticamente, trazê-los de volta ao domínio do Direito Positivo Internacional, do

qual esta Organização participa. Temos falhado no que concerne à manutenção da paz, mas ao menos

temos tentado mantê-la. Mas o que temos feito no sentido da consecução da paz? Imperfeita que é, a

Carta é um todo orgânico, não isenta de conflitos internos, mas projetada para ser aplicada em sua

totalidade. Não a tomemos ainda mais imperfeita discriminando contra algumas cláusulas e disposições

do Capítulo VI, que deveria servir de base para as soluções de controvérsias. Para sua total

Page 4: 2. Conceito de Paz_Araújo

7/25/2019 2. Conceito de Paz_Araújo

http://slidepdf.com/reader/full/2-conceito-de-pazaraujo 4/4

implementação a proposta brasileira não necessitaria de nenhuma revisão ou modificação, por diminuta

que fosse, nas regras e procedimentos provisórios do Conselho de Segurança. Necessitaria apenas da

determinação política, por parte de todos os Estados-Membros, em praticar aquilo que, em teoria, já foi

aceito. Nossa proposta se baseia no pressuposto de que os compromissos assumidos sob a égide da

Carta serão respeitados. (...) Além disso, trata-se apenas de um apelo em prol da diplomacia, da

negociação, da solução pacífica das controvérsias. (...) Repetimos: o cerne da proposta brasileira é umapelo em prol da diplomacia (...). A diplomacia multilateral é a última esperança para a paz. É à luz

dessas considerações que minha delegação contemplará os dois projetos apresentados. Refiro-me aos

documentos A/C.l/L.513 e A/C.l/L. 514, e nos reservamos o direito de apresentar um projeto de

resolução incorporando as nossas idéias e conceitos. (...)

Fonte: REPERTÓRIO DA PRÁTICA BRASILEIRA DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO (Período 1961-

1981), MRE, pp. 211-220.