1vicissitudes e soluções para um ministério público ancorado ao poder executivo

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Vicissitudes e soluções para um Ministério Público ancorado ao Poder Executivo Reflexões para debate Por Baltazar Fael* Questão prévia A abertura do ano judicial de 2012 constituiu uma viragem em termos da percepção e visão (ao menos públicas) dos actores que fazem e operam a máquina do judiciário em Moçambique. Na essência, duas questões centrais vieram a conhecimento da sociedade, concretamente sobre as perspectivas futuras destas instituições - chave do sector da justiça, concretamente por parte do Tribunal Supremo (TS) como mais alto órgão da hierarquia dos tribunais judiciais (n. ° 1 do artigo 125 da Constituição da República - CRM) e da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), como um dos pilares importantes do sector da justiça e cuja actividade é constitucionalmente reconhecida (artigo 63 da CRM). Por um lado, o Presidente do TS Ozias Pondja se referiu à necessidade de se começar a pensar na independência orçamental dos tribunais e, por outro, o Bastonário da OAM Gilberto Correia fez alusão à necessidade da Polícia de Investigação Criminal (PIC) dever ser integrada no Ministério Público (MP). Ambos pronunciamentos tiveram como âmago a busca de uma maior autonomia funcional e orgânica destas instituições com relação às “teias” de influência que o poder executivo exerce ou pode exercer sobre a máquina do judiciário. Pensamos que este sentido de independência orçamental dos tribunais e de autonomia orgânica da PIC deve ser extensivo à necessidade de uma maior autonomia orgânica, funcional e orçamental do MP, pelo que trazemos a reflexão os aspectos que respeitam a esta instância, assim como factores que reforçam a dependência deste órgão com relação ao executivo - mormente ligados ao modo de nomeação do Procurador-Geral da República (PGR), garantias para o exercício do cargo e a necessidade deste prestar contas das suas actividades ao Presidente da República (PR), factores estes que, para além de colocarem o órgão na dependência do executivo, fragilizam-no no seu modo de actuação.

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Vicissitudes e soluções para um Ministério Público ancorado ao Poder Executivo – Reflexões para debate

Por Baltazar Fael* Questão prévia A abertura do ano judicial de 2012 constituiu uma viragem em termos da percepção e visão (ao menos públicas) dos actores que fazem e operam a máquina do judiciário em Moçambique. Na essência, duas questões centrais vieram a conhecimento da sociedade, concretamente sobre as perspectivas futuras destas instituições - chave do sector da justiça, concretamente por parte do Tribunal Supremo (TS) como mais alto órgão da hierarquia dos tribunais judiciais (n. ° 1 do artigo 125 da Constituição da República - CRM) e da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), como um dos pilares importantes do sector da justiça e cuja actividade é constitucionalmente reconhecida (artigo 63 da CRM). Por um lado, o Presidente do TS Ozias Pondja se referiu à necessidade de se começar a pensar na independência orçamental dos tribunais e, por outro, o Bastonário da OAM Gilberto Correia fez alusão à necessidade da Polícia de Investigação Criminal (PIC) dever ser integrada no Ministério Público (MP). Ambos pronunciamentos tiveram como âmago a busca de uma maior autonomia funcional e orgânica destas instituições com relação às “teias” de influência que o poder executivo exerce ou pode exercer sobre a máquina do judiciário. Pensamos que este sentido de independência orçamental dos tribunais e de autonomia orgânica da PIC deve ser extensivo à necessidade de uma maior autonomia orgânica, funcional e orçamental do MP, pelo que trazemos a reflexão os aspectos que respeitam a esta instância, assim como factores que reforçam a dependência deste órgão com relação ao executivo - mormente ligados ao modo de nomeação do Procurador-Geral da República (PGR), garantias para o exercício do cargo e a necessidade deste prestar contas das suas actividades ao Presidente da República (PR), factores estes que, para além de colocarem o órgão na dependência do executivo, fragilizam-no no seu modo de actuação.

Introdução A concepção clássica de Ministério Público (MP) tem vindo ser posta em causa em vários ordenamentos jurídicos, mormente na sua visão como uma espécie de braço ou extensão do poder executivo, atendendo a forma como é feita a designação do representante máximo do órgão; os mecanismos recorridos para a sua remoção do cargo; a duração do seu mandato e a forma da sua renovação; a independência da sua magistratura, quanto aos interesses que visa defender em primeira linha e a sua independência orçamental. Nalguns países, como Moçambique, o MP continua arraigado ao poder executivo (embora se esboce em termos formais - legais uma tentativa ténue, mas de facto e de direito enganosa de transmitir a aparência de independência). As sucessivas alterações constitucionais que tiveram lugar desde 1978 não foram capazes de alterar o “status quo” do órgão, mantendo-o a mercê das ingerências do executivo, até ao presente momento. Tem sido lugar - comum nos ordenamentos jurídicos mais progressistas e para a garantia da autonomia e independência do MP (ao menos mínima), submetê-lo às directrizes do poder judicial conferindo a qualidade de um órgão deste poder e assim assumindo algumas características do mesmo, como sejam a independência da sua magistratura, mesmo que não seja na sua plenitude, tendo em atenção que este não é um órgão de soberania e nem se pretende que seja. Os interesses que o MP tem como finalidade salvaguardar vêem transitando em vários países da esfera do simples e principal “advogado do Estado”, para em primeira função salvaguardar os interesses da colectividade, esta como guardiã dos direitos e deveres fundamentais inscritos no ordenamento jurídico e como uma das formas de manutenção do Estado de Direito, onde a hegemonia do Estado (a qualquer preço) vem sendo substituída pelo primado da lei e pela defesa primordial dos interesses colectivos ou da colectividade. Assim, e porque importa oferecer garantias aos cidadãos contrapostas ao poder quase ilimitado do Estado que agindo revestido do seu “jus imperi” ou posição de autoridade, vezes sem conta viola os direitos dos cidadãos e escuda-se nas instituições que cria para manter e sustentar as suas acções, escudando-se vezes sem conta numa pseudo defesa do interesse público. Com um MP que age em defesa dos interesses da colectividade, composta de vários actores onde o Estado é um deles e parte integrante, procura-se buscar uma posição de equilíbrio entre estes actores, onde o MP surge como o pêndulo da balança, abandonando a sua concepção clássica de parcialidade na defesa intransigente dos interesses do Estado – Governo, e desta forma compondo os litígios em que este se acha envolvido, sem olhar para a sua posição de entidade suprema. Torna-se imperioso tomar em atenção que a evolução do conceito de Estado de Direito, suas manifestações e das instituições que o comportam hoje apresentam uma visão progressista em que o respeito pelo primado da lei paulatinamente vai se sobrepondo à posição de autoridade que o Estado detém na sua génese como entidade política suprema. A evolução contemporânea do conceito de Estado de Direito e a sua ligação com um MP de doutrina clássica mostra um sentido que caminha para o inverso, isto é: o MP defende em primeira tese os interesses da colectividade considerada no seu todo e seguidamente os

interesses dos órgãos e demais instituições públicas, postergando para outro plano a defesa dos interesses do Estado e colocando-o numa situação de paridade com as demais instituições, órgãos e indivíduos de per si considerados. Antecedentes constitucionais da visão do Ministério Público em Moçambique Na constituição de 1975, ao MP foi reservada importância secundária, incluindo este órgão dentro da organização judiciária e reservando ao mesmo dois artigos, mormente os artigos 74 e 75, ressalvando-se na altura o facto de se tratar de uma magistratura hierarquicamente organizada e subordinada ao Procurador-Geral da República e tendo como função principal a representação e defesa dos interesses do Estado, a fiscalização da legalidade e do cumprimento das leis e demais normas legais. Com a revisão constitucional de 1990, notam-se alterações que em nada vêem modificar na essência os pressupostos da actuação deste órgão, continuando o MP a manter os seus ditames advindos da Constituição anterior (artigo 178 da CRM). Entre as modificações ocorridas nesta área, destaca-se a forma de actuação dos magistrados e agentes do MP que ficam sujeitos aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição às directivas e ordens previstas na lei. Portanto, não se refere aqui de forma clara a questão da independência na actuação dos magistrados e agentes do MP. No entanto, a sujeição da actuação dos magistrados e agentes do MP as directivas e ordens advindas da lei na nossa visão parecem referir-se a matérias desligadas da sua actuação no âmbito processual em concreto, abarcando outras de natureza administrativa e de organização do órgão. A representação dos interesses do Estado continuou na alçada do MP, entre outras funções. No entanto, constitucionalmente, o modo de designação do PGR só na CRM de 2004 é que começa a merecer referência, sendo que tal desígnio é acometido ao Presidente da República (PR) a quem compete também demiti-lo sem necessidade de consultar qualquer outro órgão. Aliás, esta prática já vinha sendo apanágio por desígnio da revogada Lei n. ° 6/89, de 19 de Setembro. Como é apresentado o MP no actual ordenamento jurídico moçambicano Sendo a CRM a trave mestra do ordenamento jurídico moçambicano, esta traça as principais características do MP, remetendo a regulamentação dos seus detalhes para a lei ordinária, concretamente a Lei n. ° 22/2007, de 1 de Agosto – Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público - LOMP. Constitucionalmente o MP é apresentado como sendo uma magistratura que se organiza hierarquicamente e que se subordina ao Procurador – Geral da República (PGR), estando no exercício das suas funções sujeita a critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição às directivas e ordens previstas na lei (n. ° 1 e 2 do artigo 234 da CRM conjugado com o artigo 1 n. 1 da LOMP). O mesmo artigo retro no n.°3, conjugado com o previsto no artigo 2 n.°2 da LOMP, estabelece que este órgão é regido por estatuto próprio e possui autonomia nos termos

fixados na lei. Portanto, estamos a nos referir a um órgão que não sendo independente é autónomo, com todas as vicissitudes que podem advir de uma não clareza na definição dessa autonomia. Pelo que cabe à lei ordinária esmiuçar sobre os limites que compreende essa autonomia e sua forma de manifestação diante dos demais órgãos e poderes do Estado. Pelo que estabelece o artigo 3 da LOMP, a autonomia a que se refere é a administrativa e com relação aos demais órgãos do Estado. No que respeita às suas funções, ao MP cabem dentre outras: representar o Estado junto dos tribunais e defender os interesses que a lei determina, controlar a legalidade, os prazos das detenções, dirigir a instrução preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal (artigo 236 da Constituição da República de Moçambique). Formas de designação e remoção do Procurador-Geral da República Em Moçambique, o Procurador-Geral da República (PGR) é designado por acto do Presidente da República (PR) conforme prescreve o n.°1 do artigo 239 da CRM conjugado com o artigo 16 da Lei n.°22/2007, de 1 de Agosto. Trata-se de um acto singular atendendo que não intervém nenhum outro órgão na sua indicação, mormente a Assembleia da República (AR) na ratificação deste acto, como sucede com a ratificação da nomeação dos Presidentes do TS, do Administrativo, do Conselho Constitucional (CC) e do Vice-Presidente do Tribunal Supremo (TS) – artigo 179 n.°2 h) da CRM (embora se trate de uma mera audição sem consequências práticas - para verificar aspectos de legalidade da personalidade indicada para ocupar o cargo). Esta forma de designação do representante máximo do MP, por acto discricionário do PR, em nada se difere de como este nomeia os membros do executivo que vai dirigir e como os pode demitir sem necessidade da intervenção de outro(s) órgão(s), pois trata-se de matéria da sua exclusiva competência. Temos assim que esta é uma característica que cabe na designação de figuras para desempenharem funções no executivo ou nos órgãos da administração pública e que estão sob a alçada de quem os nomeou e vai dirigir, com poderes amplos para os demitir ou exonerar no cumprimento do postulado jurídico do “quem pode o mais, pode o menos”. Esta característica explica a forma como o PGR, por outro acto discricionário do PR, pode ser removido do cargo, dependendo da sua lealdade ou não ao Governo em funções. É que o PR não tem a obrigação legal de consultar qualquer órgão para decidir pôr termo ao exercício do cargo do PGR e nem é obrigado por lei a fundamentar o seu acto, como sucede com os membros do executivo e demais funcionários e agentes do Estado. Trata-se de um acto discricionário do PR e a justificação tem sido recorrente, isto é, por conveniência de serviço ou para imprimir maior dinâmica ao órgão. Este facto conduz a que o cargo de PGR em Moçambique obrigue ao seu titular a harmonizar a sua actuação aos ditames do poder político que o nomeou, quer queira quer não, sob pena de perder o cargo e as benesses que este oferece. É em suma um cargo com

um forte cunho de natureza política pela forma como é designado o PGR, a quem deve prestar contas e como pode ser removido do cargo. Ora, em termos constitucionais, cabe nas competências gerais do PR, concretamente através da h) do artigo 159, demitir o PGR sem que a CRM ou a lei ordinária fixem outros pressupostos para o efeito ou para que o acto produza efeitos jurídicos. O MP parece assim representar uma extensão do poder executivo, uma espécie de departamento do Ministério da Justiça com funções específicas como as de exercer a acção penal, dentre outras e com uma autonomia de cariz mais formal com relação aos demais órgãos do Estado e que não apresenta quaisquer garantias de independência perante o poder que o nomeou. Para uma actuação equidistante deste órgão com relação ao poder executivo é imperioso que se criem certas garantias, que em última instância visem afastá-lo de qualquer influência, seja deste poder, seja do legislativo. Como tal, é importante que se redefina a natureza do órgão no concernente aos interesses que visa salvaguardar com prioridade, aprimorar a forma como é feita a designação do seu chefe máximo e os poderes que este tem sobre a actuação processual dos magistrados, a independência na definição dos aspectos ligados à orçamentação do órgão e a intervenção da AR não como entidade de mera ratificação da nomeação, mas com um papel central na designação do PGR, na definição da duração do seu mandato e a forma de recondução e remoção do cargo. Se tal não for seguido, poder-se-á perguntar: Que MP com as características do actual, isto é, com uma “quase colagem” ao poder executivo pode defender os interesses da colectividade, em detrimento dos interesses do poder executivo? Que PGR em Moçambique pode velar pelo cumprimento do princípio da legalidade versus oportunidade e pela defesa do interesse público em obediência estrita à lei e ao direito, sem transportar consigo o receio de vir a ser removido do cargo se ousar iniciar uma investigação por actos ilícitos de figuras ligadas ao poder executivo? (incluindo o PR que o nomeia e pode demiti-lo – recordando que “quem pode o mais pode o menos”). Autonomia funcional versus independência da magistratura do MP Tem sido questionada, em diferentes e várias ocasiões, a actuação com independência da magistratura do MP. Tal facto surge principalmente quando estão em causa processos judiciais que envolvem figuras ao mais alto nível do poder político, da máquina administrativa do Estado, político-partidárias e político-empresariais. Não é de menos, se atentarmos que as bases desta magistratura estiveram desde a sua génese ligadas à defesa dos interesses do Estado como ouvidos e olhos deste e alicerçadas no princípio da subordinação hierárquica dos magistrados ao PGR, que detém uma amálgama de poderes, que incluem o de editar ordens e instruções com carácter obrigatório sobre a actuação dos magistrados, diferentemente do que sucede com a magistratura judicial, que sendo um poder em si, o princípio da independência dos magistrados aqui opera na sua plenitude. Esta característica não se pode dissociar do facto de ao longo dos tempos ter sido consagrado como doutrina dominante que o MP na sua actuação exerce actividades

aproximadas à função administrativa do Estado e dai aliar-se à hierarquia que o comporta a este facto característico da actuação ao nível da administração pública, com os poderes daí inerentes - como sejam os de direcção e de emitir e ditar comandos que interferem directamente na decisão a tomar pelos órgãos da Administração Pública através dos seus funcionários e agentes, numa clara situação de subordinação dos órgãos de escalão inferior aos hierarquicamente superiores. Aliás, a lei moçambicana faz eco deste princípio – n.°1 do artigo 1 da Lei n.°2/93, de 24 de Junho (institucionaliza os juízes de Instrução Criminal) - ao retirar do domínio da acção prática do MP o exercício de todas as actividades jurisdicionais no decurso da fase de instrução preparatória dos processos-crime (trata-se da fase privilegiada na actuação do MP e que ao mesmo cabe a sua direcção). Assim, as actividades que ficam sob a alçada do MP são de cariz “quase jurisdicional”. No entanto, deve ser questionado o alcance e o limite deste poder de direcção e de ditar comandos por parte do PGR. Isto é, se nas competências do PGR cabe o poder de ditar instruções aos magistrados no tratamento de casos em concreto, mesmo que ilegais, quais os mecanismos que existem para que estes se possam opor a esta forma de “ingerência”, a despeito do que acontece na Administração Pública com o direito da respeitosa representação? É que este tipo de actuação, a não ser balizado, pode conduzir a que se coarcte o princípio da autonomia funcional do MP que implica a independência da respectiva magistratura no exercício da sua actividade nos processos em concreto, devendo caber ao PGR apenas a direcção do órgão e o ditar instruções de natureza administrativa que se ligam a aspectos gerais da actuação dos magistrados e que não incluem o processado. A autonomia funcional desta magistratura implica que os seus integrantes por excelência sejam imunes a qualquer forma de pressão ou subordinação no que se refere a tramitação dos processos em concreto, limitando-se a sua actuação a obediência à lei e à sua consciência. A CRM apenas se refere ao facto do órgão possuir autonomia nos termos da lei (n. ° 3 do artigo 234). Não se debruça sobre o tipo de autonomia e como esta se manifesta. Parece-nos ser escusado dizer que se refere à autonomia administrativa e orgânica com relação aos demais órgãos da Administração Pública. No entanto, o artigo 3 da Lei n. ° 22/2007, de 1 de Agosto (Lei do MP), reforça o preceituado constitucionalmente no sentido de se tratar de autonomia de natureza administrativa e com relação aos demais órgãos do Estado. No entanto, esta forma de autonomia não é suficiente para garantir a independência do órgão, se tomarmos em atenção a forma de nomeação e demissão do PGR, a questão da independência orçamental e a interpretação do princípio da subordinação hierárquica, que no nosso ordenamento jurídico precisam de um melhor tratamento de modo a adequar-se a um MP verdadeiramente autónomo do executivo.

Compulsando a lei em análise, o n. ° 1 do artigo 11 estabelece que a Procuradoria-Geral da República como órgão do MP goza de autonomia funcional e administrativa. Pode-se perguntar se tal autonomia funcional abrange a magistratura que o compõe, nomeadamente: PGR, Vice-Procurador-Geral da República, Procuradores-Gerais adjuntos, Sub-Procurador Geral Adjunto, Procuradores Principais, Procuradores Provinciais e distritais. Parece-nos que não, pois seria incongruente com o preceituado no já referido artigo 3 que dita o âmbito da competência do MP e mais ainda com as competências que cabem ao PGR, como sejam as contidas no artigo 17 d) e que são “emitir directivas, ordens e instruções por que deve pautar-se a actuação dos magistrados, agentes e oficiais de justiça do Ministério Público, no exercício das suas funções”. O Poder discricionário do PGR advindo da não clarificação do citado acima com atenção ao n.°1 do artigo 2 que estabelece que “No exercício das suas funções, os magistrados e agentes do Ministério Público estão sujeitos aos critérios de legalidade, objectividade, isenção e exclusiva sujeição às directivas e ordens ...”. Analisando o preceituado acima, fica evidente que não se pode falar de autonomia funcional dos magistrados do MP, se por um lado estes devem pautar-se na sua actuação por critérios de legalidade, objectividade, isenção e por outro existe a obrigação de se sujeitarem a ordens e instruções no exercício das suas funções. Que tipo de ordens e instruções são essas? O que cabe em tais ordens e instruções? São actos de per si incongruentes e que não cabem no conceito de autonomia funcional, na sua essência. Estes são princípios por que deve pautar a actuação dos funcionários e agentes do Estado, onde a dependência hierárquica e consequentemente a sujeição a ordens e instruções superiores e de cumprimento obrigatório são características definidoras e essenciais da sua actuação. Vem justificar tal facto a LOMP que estabelece no n. °1 do artigo 53 que o “O magistrado do Ministério Público tem o direito de não acatar directivas, ordens e instruções manifestamente ilegais”. Trata-se com as necessárias adaptações do princípio da Respeitosa Representação emprestado à Administração Pública e que confere características desta ao MP. Mais do que isso, confere-se ao PGR ou outro magistrado exercendo também funções de direcção a possibilidade de - não estando determinado magistrado (sujeito a esse poder de direcção) a dirigir a instrução de um processo que segundo a suas conveniências não satisfaz os seus interesses particulares - os detentores desse poder usarem da prerrogativa legal para avocarem o processo e o repassar para que seja tramitado por outro magistrado da sua confiança e que anuindo com as suas pretensões passe a agir seguindo as instruções ou ordens recebidas, mesmo que ao arrepio da lei. Outro facto que contribui para a não existência de uma verdadeira autonomia funcional na acção da magistratura do MP está ligado ao facto dos magistrados serem responsáveis, podendo responder nos termos da lei pelo não acolhimento das directivas, ordens e instruções dos respectivos superiores hierárquicos, diferentemente do que a lei refere no tocante aos magistrados judiciais – vide n.°1 e 2 do LOMP.

Temos ainda que a lei é omissa ao não fixar os limites dos poderes que cabem ao PGR sobre a actuação dos magistrados (se pode avocar processos, ordenar a sua redistribuição a outros magistrados sem nenhuma base legal e interferir nos casos em concreto). O vazio legal nestes aspectos conduz a que o PGR em muitos casos aja com um poder discricionário ilimitado, podendo influenciar na decisão dos magistrados sobre certos processos. Este tipo de actuação, em muitos casos, levanta uma névoa de suspeição e pode conduzir a questionamentos sobre a actuação do PGR em casos concretos e sem a intromissão e pressões motivadas por lealdades políticas, e conduz à possibilidade deste e outros magistrados com poderes de direcção ao nível das procuradorias puderem avocar processos e redistribuí-los a magistrados da sua confiança, ditando ordens para serem seguidas em processos concretos. Este conjunto de poderes que recaem por lei nas competências do PGR, aliados ao seu modo de nomeação/designação para o exercício do cargo e a forma como pode ser removido do mesmo, pode conduzir a que interferências políticas sobre o órgão tenham um potencial enorme para ocorrer. Ademais, parece propositado que a lei ordinária e a CRM assim proclamem, pois é uma forma do executivo continuar a controlar a actuação do MP, mesmo que escudando-se em legislação que aparenta não limitar tal possibilidade, se não apreciada com a devida atenção. Independência orçamental como garantia de uma verdadeira autonomia do MP Outro aspecto a ter em conta para a independência do MP com relação ao poder executivo está ligado a questão orçamental. Para que de facto este órgão haja com equidistância do poder executivo é imperioso que este último não tenha capacidade para definir e até condicionar o seu orçamento. Esta situação deve ser tida em conta, pois a LOMP embora o preveja fá-lo de tal sorte que apenas dá a possibilidade ao órgão de apresentar uma proposta que depois fica sujeita ao escrutínio do executivo, que a pode alterar e assim submetê-la a aprovação do parlamento (artigo 11 n. ° 2 da LOMP). Quer dizer, o MP não tem o poder e nem a possibilidade de vetar que o executivo altere o seu orçamento como o faz para qualquer órgão que o compõem, devido a falta de autonomia material para o fazer. Na abertura do ano judicial corrente (2012) o Presidente do TS defendeu a necessidade de se incluir na CRM um tecto orçamental para o judicial. No entanto, esta seria uma solução rígida e que dado o carácter de durabilidade temporal das constituições sujeitar-se-ia à vontade das maiorias ou de acordos parlamentares para processos de revisão constitucional ligados ao ajuste dos valores necessários consoante a conjuntura do momento. Defendemos outra solução que remeta a regulação dos tectos orçamentais para que sejam alocados fundos para o funcionamento do MP. No caso, o parlamento deve ser a instituição que teria a competência de definir o orçamento do MP, cabendo ao executivo apenas receber a proposta deste órgão (respeitando os critérios de unidade orçamental) e encaminhá-lo ao parlamento sem qualquer possibilidade de alterá-lo, mas apenas apresentar o seu parecer sobre a proposta apresentada (que deve ir junto à proposta do

conjunto do orçamento a ser submetida a apreciação e aprovação da AR), como órgão que cabe criar os necessários equilíbrios orçamentais entre as diversos instituições do Estado. Nesta senda, a única instância que poderia fazer tal alteração seria a AR. Esta forma de agir conferiria independência orçamental ao MP com relação ao executivo, fixando os limites da actuação deste poder. É sabido que interessa mais ao executivo ter domínio sobre o judiciário, de modo a que este sirva de tampão a forma nalguns casos de má gestão ou gestão danosa dos recursos públicos, concorrendo para a impunidade de algumas figuras do poder executivo. Ao nível provincial esta realidade é ainda mais sentida, pois anualmente as Procuradorias provinciais devem negociar valores com os governos Provinciais através das direcções provinciais de finanças para alocação de fundos de funcionamento, aquisição de bens materiais para as procuradorias, apetrechamento das residências dos magistrados quando arrendadas e seu pagamento mensal, aquisição de viaturas para os magistrados se fazerem deslocar, dentre outras despesas. Esta dependência em nada pode servir para trazer autonomia e credibilidade na actuação do MP a este nível, e acaba transformando a instituição numa espécie de pedinte crónico do executivo, que desta forma pode condicionar a actuação do órgão. Atendo-nos à Lei do MP, esta concede a possibilidade à Procuradoria-Geral da República de elaborar a sua proposta de orçamento e submetê-la ao Governo que tem a prerrogativa de alterá-la e ajustá-la às suas conveniências, antes mesmo de chegar ao parlamento. Esta é uma condicionante bastante severa e que coloca o MP na dependência do executivo e condiciona a sua actuação, pois o executivo pode impôr certas condições ou agir em determinado sentido visando tornar o órgão maleável a pressões camufladas para que dessa forma o financie na exacta medida das suas necessidades. Portanto, mesmo se tomando em conta que o MP e o judicial (embora o judicial os produza - destinados a algumas despesas com residências dos magistrados, de funcionamento e pagamento de emolumentos) não são detentores de fundos próprios, é preciso conferir a estes órgãos a prerrogativa de poderem propor e delimitar os recursos financeiros necessários à realização das suas actividades, sem interferência do executivo. Cargo de PGR como extensão de um mandato governamental por nomeação política Pela forma com o PR se relaciona institucionalmente com o PGR, denota este último parecer um dirigente ou “quase” extensão dos dirigentes do Ministério da Justiça. No nosso sistema de governação, de matriz essencialmente presidencialista, em que o PR detém a maioria dos poderes constitucionalmente estabelecidos com relação aos demais órgãos e instituições da República e é o Chefe do Governo, dependendo os restantes ministros em bloco hierarquicamente deste, o PGR não se aparta deste caso em concreto. Compulsando a LOMP no n.°2 do artigo 16 este postula que “O Procurador-Geral da República responde perante o Chefe do Estado”. Não restam dúvidas por este postulado que o PR pode a qualquer altura chamar o PGR para pedir contas sobre a sua actuação e

quiçá emitir instruções e ordens camufladas na aparência de troca de impressões sobre o funcionamento do MP. Aliada a este facto está a questão relacionada com a facilidade de remoção do cargo de PGR. Como tal, este em nenhum momento exerce a sua função com a necessária equidistância do poder que o nomeou quando cabe investigar ou hajam indícios para o fazer em situações em que se mostram envolvidas figuras do poder executivo e ou familiares e pessoas próximas do PR. Quer dizer, o PGR está sempre no limite de ser removido, o que condiciona o seu modo de actuação. Esta é uma característica do funcionamento de um Governo em que existe um chefe que nomeia os ministros partindo da sua confiança e lealdade partidária e que sem necessidade de justificação os exonera ou demite do cargo segundo a sua conveniência do momento, e sem o equilíbrio necessário de consulta a outros órgãos ou poderes soberanos. Por estes factos, pode-se concluir sem o risco de se cair num equívoco que em Moçambique o PGR não tem liberdade para agir, isto porque, principalmente, e por um lado encontra circunstâncias limitantes advindas do seu modo de designação para o cargo e da possibilidade sempre presente durante o exercício do seu mandato, da sua remoção facilitada. Por outro, porque é obrigado por lei a prestar contas a quem o nomeou e não está definido em termos legais os limites dessa prestação de contas. Quer dizer, até onde o PR como representante do executivo pode interferir na actuação de um órgão do judiciário e que goza de autonomia, quando lhe for conveniente e emitir ordens que até podem ser ilegais ou de modo a contornar os comandos legais? Em suma, em Moçambique o exercício do cargo de PGR está eivado da possibilidade de por interesses de natureza política este órgão poder ser manietado com a finalidade de favorecer determinado governo em funções e pela forma bastante aligeirada ou quase inexistente como a lei trata da sua autonomia, coloca-o a mercê de todo o tipo de possíveis interferências do poder executivo na definição daquilo que o órgão deve ser e como deve actuar. Recomendações Para que o MP exerça a sua função com a necessária autonomia dos demais órgãos e poderes do Estado, é importante que, de entre outras medidas: 1. Haja uma profunda reflexão sobre a natureza orgânica do MP e como este poderá com equidistância dos demais órgãos e poderes do Estado exercer a sua função de garante da legalidade e defesa dos interesses da colectividade sem que para tal se encontre condicionado pelo poder executivo; 2. Que se defina com clareza a natureza institucional - legal do MP e como este se deve posicionar no âmbito dos três poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judicial. Não se defende que o MP seja transformado num “quarto poder”, mas que de facto e de direito seja autónomo com relação aos três poderes tradicionais do Estado e assim possa exercer as suas funções tendo apenas como limite e barómetro de actuação a lei.

3. Que o PGR tenha maiores garantias durante o exercício do cargo, e que para a sua remoção deva intervir a AR (bem como na sua confirmação no cargo), fixando-se a necessidade de uma maioria absoluta para o efeito; 4. Que os magistrados do MP tenham como barómetro da sua actuação apenas a obediência a lei e que seja limitado o poder discricionário do PGR na condução do órgão e da actividade dos magistrados na tramitação em concreto dos processos, equivalendo a sua actuação no processado a dos magistrados judiciais; 5. Que seja dada a possibilidade legal do MP e dos tribunais poderem definir o seu orçamento sem a intervenção determinante do executivo. Se o MP continuar ancorado ao poder executivo, a realização da justiça (principalmente a criminal) continuará a meio caminho de ser plena para o Estado, os cidadãos e o poder executivo de formas ténues e imperceptíveis continuará a ditar as regras de funcionamento do órgão, escudando-se numa lei que ora dá com uma mão, ora retira com a outra. Isto é: Por um lado se augura legalmente a autonomia orgânica, funcional e administrativa do MP e por outro é condicionada a sua actuação sujeitando o PGR a prestar contas do desempenho do órgão ao PR e a exercer o cargo sem quaisquer garantias de inamovibilidade (pelo menos durante o tempo que dura uma legislatura) e ainda a sujeitar-se a ser removido do cargo se não agir em concordância do executivo. *Pesquisador do Centro de Integridade Pública na área de Boa Governação & Anti-Corrupção

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