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PROFISSIONALIZAÇÃO E GERENCIALISMO NA EDUCAÇÃO 1 Eneida Oto Shiroma Eleito o conceito chave da reforma educacional na América Latina nos anos de 1990, a profissionalização tornou-se um termo muito veiculado nos debates da área. Estudos apontam que a opção pelo uso deste conceito está ligada à construção das bases de um novo ethos, identidades e nova cultura profissional (CONTRERAS, 2002; SHIROMA, 2002; OLIVEIRA, 2000). Nesse contexto, vem ganhando destaque um determinado tipo de trabalhador da educação, o gestor. Documentos nacionais e internacionais referem-se ao papel estratégico que esta figura deve assumir, o de liderar, ser capaz de inovar a cultura da escola, fazer uso eficiente de recursos, sensibilizar a comunidade, eliminar os “gargalos” no fluxo escolar e, principalmente, melhorar a performance da instituição para que apresente melhores resultados (PROMEDLAC, 1993; MELLO, 1994). A formação dos trabalhadores da educação está sendo alvo das reformas em muito países anunciando, em contextos bastantes diferenciados, uma mesma prioridade: profissionalização. Observa-se, contudo, que os processos de profissionalização adotaram sentidos opostos para professores e para gestores. Aos professores, oferece-se uma formação abreviada, mais barata e distante das universidades, sob a alegação de que precisam de uma formação profissional mais prática. No outro extremo, convoca-se os gestores a fazerem uma formação específica. 2 A análise do conteúdo programado para o curso dos diretores e gestores permite inferir que a justificativa para a reprofissionalização está nos novos papéis a eles atribuídos. No curso organizado pela Organização dos Estados Iberoamericanos, por exemplo, vemos que dentre os focos privilegiados na formação dos novos administradores educacionais está a construção de imaginários, estudo da retórica e fontes de legitimação do exercício profissional. 3 Ou seja, vai ficando claro que a implantação da reforma começa pela reforma do profissional encarregado de liderá-la. 1 Texto para o jornal do SINPEEM – SP. 2003. 2 Dentre as metas estabelecidas para o pessoal, o relatório EFA 2000 anuncia: “garantir que, em cinco anos, pelo menos 50% dos diretores de estabelecimentos escolares possuam formação em nível superior, com habilitação em administração escolar (INEP, 1999). 3 Cf. Programa Iberoamericano de Cooperación para la Modernización de Administradores de la Educación IBERMADE no site da OEI http://www.oei.es

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gerencialismo

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PROFISSIONALIZAÇÃO E GERENCIALISMO NA EDUCAÇÃO1

Eneida Oto Shiroma

Eleito o conceito chave da reforma educacional na América Latina nos anos de 1990, a

profissionalização tornou-se um termo muito veiculado nos debates da área. Estudos apontam

que a opção pelo uso deste conceito está ligada à construção das bases de um novo ethos,

identidades e nova cultura profissional (CONTRERAS, 2002; SHIROMA, 2002; OLIVEIRA,

2000). Nesse contexto, vem ganhando destaque um determinado tipo de trabalhador da educação,

o gestor. Documentos nacionais e internacionais referem-se ao papel estratégico que esta figura

deve assumir, o de liderar, ser capaz de inovar a cultura da escola, fazer uso eficiente de recursos,

sensibilizar a comunidade, eliminar os “gargalos” no fluxo escolar e, principalmente, melhorar a

performance da instituição para que apresente melhores resultados (PROMEDLAC, 1993;

MELLO, 1994).

A formação dos trabalhadores da educação está sendo alvo das reformas em muito países

anunciando, em contextos bastantes diferenciados, uma mesma prioridade: profissionalização.

Observa-se, contudo, que os processos de profissionalização adotaram sentidos opostos para

professores e para gestores. Aos professores, oferece-se uma formação abreviada, mais barata e

distante das universidades, sob a alegação de que precisam de uma formação profissional mais

prática. No outro extremo, convoca-se os gestores a fazerem uma formação específica.2 A

análise do conteúdo programado para o curso dos diretores e gestores permite inferir que a

justificativa para a reprofissionalização está nos novos papéis a eles atribuídos. No curso

organizado pela Organização dos Estados Iberoamericanos, por exemplo, vemos que dentre os

focos privilegiados na formação dos novos administradores educacionais está a construção de

imaginários, estudo da retórica e fontes de legitimação do exercício profissional.3 Ou seja, vai

ficando claro que a implantação da reforma começa pela reforma do profissional encarregado de

liderá-la.

1 Texto para o jornal do SINPEEM – SP. 2003. 2 Dentre as metas estabelecidas para o pessoal, o relatório EFA 2000 anuncia: “garantir que, em cinco anos, pelo menos 50% dos diretores de estabelecimentos escolares possuam formação em nível superior, com habilitação em administração escolar (INEP, 1999). 3 Cf. Programa Iberoamericano de Cooperación para la Modernización de Administradores de la Educación – IBERMADE no site da OEI http://www.oei.es

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Este artigo pretende discutir a centralidade do conceito de profissionalização na política

educacional, ressaltando sua articulação com dois eixos da reforma: a formação de professores e

a gestão. Trabalhamos com a hipótese de que a proposta oficial de instituir um novo

profissionalismo docente complementa e reforça a nova ideologia que se dissemina no campo

educacional, o gerencialismo.

O gerencialismo na educação

Para se referir à nova onda gerencialista, os autores ingleses utilizam a expressão

managerialism. Trata-se de uma ideologia que se difunde no campo educacional disseminando

princípios orientados pela eficiência financeira. Segundo Hoyle e John (1995, p.42), o

gerencialismo dá prioridade aos resultados financeiros, mesmo numa escola. Aqui os diretores

tornaram-se agentes hierárquicos tanto do controle quanto da implementação de mudanças e são

elementos cruciais a serem responsabilizados pela prestação de contas (accountability) da

instituição.

Alguns autores (BOTERRY, 2000; CONTRERAS, 2002) apontam a influência do

discurso gerencialista na centralização e mercantilização da educação e ressaltam como estas

abordagens tentam capturar o discurso da educação sugerindo que só há um jeito de ver o

problema (one best way).

O discurso gerencialista oferece representações particulares da relação entre problemas sociais e soluções. É linear e orientado para um ‘pensamento único’. Preocupa-se com metas e planos mais que com intenções e julgamentos. Refere-se à ação mais que reflexão. Concentra-se em análises mais que em sínteses. Estabelece fronteiras entre políticas e fornecimento, ‘estratégia’ e ‘implementação’, pensamento e ação. Oferece um discurso tecnicista que priva o debate sobre suas bases políticas, de modo que a discussão sobre os meios suplanta a dos fins. (CLARKE e NEWMAN, 1996, p.148)

Esta explicação ajuda a esclarecer, em parte, razões pelas quais a política da formação de

professores busca reduzir a base de conhecimento da docência e abolir as análises sócio-

históricas dos cursos de formação, recomendando prioridade à formação prática cada vez mais

distante do ambiente universitário.

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O gerencialismo tende também a modificar a seleção dos vocábulos que os profissionais

empregam para discutir a mudança. Eficiência, competência, qualidade total, inovação, cultura

organizacional, empreendedorismo, gerência, liderança, entre outros, são termos transplantados

do vocabulário da administração de empresas para a educação. Essa absorção de conceitos

influência não só a linguagem mas, fundamentalmente, a prática.

Talvez, o elemento crucial no uso do gerencialismo nas escolas esteja na criação de um

tipo particular de liderança planejada para desempenhar um papel de pivô no redesenho do setor

público, deixando a direção política para o centro mas a responsabilidade por sua implementação

para a periferia. Ao fazê-lo, extrai a essência da liderança local e a reduz a uma função

meramente técnico-racional (HOYLE, 1995).

Liderança não é sinônimo de administração, termo importado dos Estados Unidos, mas

uma sub-área usada para descrever as atividades do diretor (HOYLE,1995). É uma versão

particular da abordagem gerencialista que vem dando o tom das políticas sociais contemporâneas.

Pesquisadores argumentam que a reforma educativa em curso visa transformar os diretores

escolares em gerentes executivos vistos como arrebanhadores de recursos e os professores em

técnicos (GRAHAM,1999; THODY, 1997).

Profissionalismo e gerencialismo: articulando eficiência econômica e política

O gerencialismo está intimamente associado ao novo conceito de profissionalismo no que

tange à noção de fornecimento eficiente e competente. Hanlon esclarece que após 1980 foi

ganhando aceitação a noção de “profissionalismo comercializado”, onde se destacam três fatores:

1) habilidade técnica; 2) habilidade de gestão – que refere-se às habilidades de gerenciar outros

empregados, balancear orçamento e satisfazer os clientes e 3) habilidade de agir de forma

empreendedora. Nessa perspectiva é a conjugação desses três itens que determina quanto sucesso

um sujeito terá na profissão. Fica claro que a medida de sucesso é a lucratividade e não a

qualidade do serviço que o “cliente” necessita, ou seja, esta não é apenas uma lógica técnica mas

uma lógica comercial (HANLON, 1998, p.54).

Tal tipo de profissionalismo tende a aprofundar a divisão dentro da categoria de

professores, entre eles e os demais profissionais da escola e deles com os pais e comunidade

(BURBULES e DENSMORE, 1992). Este parece constituir-se num objetivo velado dessa

política: o de semear o espírito de competição entre os trabalhadores da educação, o que seria

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reforçado por meio da remuneração diferenciada por desempenho, buscando minar a

solidariedade dessa categoria. Ou seja, trata-se de uma política de profissionalização menos

voltada à qualificação docente e mais à instituição de novas e mais sutis formas de regulação,

forjando um “novo” perfil de profissional responsável, competente e competitivo. Os que

apresentarem melhores resultados e adequação ao modelo, serão estimulados a fazer formação

em liderança educacional.4

O líder assumirá funções não só de captação e administração de recursos, mas também a

responsabilidade pelo gerenciamento de professores.

Líderes são programados para serem práticos e não contemplativos. A atual política gerencialista visa desenhar um líder que saiba como fazer as coisas mais do que pensar de forma mais ampla nas razões pelas quais aquela execução esta sendo requisitada.(BOTTERY, 2000, p.76)

Os processos de crescente burocratização articulados tanto à gestão quanto ao

profissionalismo contribuem para constituir uma nova cultura da obediência. Interpretada por

alguns como lealdade corporativa, essa obediência coletiva terá impactos sobre a performance

organizacional. (MORLEY,1999 p.73). O novo gerencialismo ancora-se em processos

burocráticos de avaliação de desempenho para promover a atomização do controle.

Discursos gerencialistas tais como os da Gerência de Recursos Humanos ou da Qualidade Total têm fortes paralelos com o profissionalismo como forma de disciplinar a força de trabalho, promovendo a introjeção do controle e procurando assegurar obediência. Enfatiza-se a cultura ocupacional, a eficiência e qualidade. As tensões entre individualismo e trabalho em grupo tornam-se rarefeita por uma forte cultura organizacional, que cria uma força de trabalho coesa porém não solidária (OZGA, 1995, p.34).

Estudos sobre gestão apontam tais aspectos como tendência da reforma educacional em

curso levando-nos a concluir que a conjugação do discurso da profissionalização com a ideologia

gerencialista constitui-se numa estratégia para atingir dois alvos a um só tempo: eficiência

financeira e política, na visão dos interessados na educação como big business.

4 Na Inglaterra, este intento deu origem ao National College for School Leadership , criando em 2000, na Universidade de Nottingham.

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Apesar dos cenários previstos, é mister lembrarmos que, se por um lado, uma liderança

“pré-moldada” está sendo patrocinada, por outro, lideranças autênticas, surgidas da base, também

continuarão a existir e certamente a disputar alternativas para as questões educativas; afinal são

os sujeitos em suas relações no interior das unidades escolares que implementam, adaptam ou, no

limite, até rechaçam as medidas previstas pela reforma, orientados por e para um outro projeto de

educação e de sociedade.

Referências BOTERRY, Mike. Education, policy and ethics. London: Continuum, 2000.

BURBULES, N.C. and DENSMORE, K. Los limites de la profesionalizacion de la docencia.

Educacion y Sociedad, Madrid, 11, p.67-83, 1992.

BUSHER, Hugh and Sarah, Rene. Managing teachers as professionals in schools. London: Kogan Page, 1995.

CLARKE, John e NEWMAN, Janet . The managerial state. London: Sage, 1996.

CONTRERAS, Jose. A autonomia do professor. São Paulo: Cortez, 2002.

GRAHAM, Jim (ed) Teacher professionalism and the challenge of change. Stoke on Trent: Trentham, 1999.

HANLON. Professionalism as enterprise: service class politics and the redefinition of professionalism. Sociology, 32(1), p. 43-63, 1998.

HOYLE, E. Changing conceptions of a profession. In: BUSHER, H. and SARAN, R. Managing teachers as professionals in schools. London: Kogan Page, 1995.

HOYLE, Eric and JOHN, Peter. Professional knowledge and professional practice. London: Cassell, 1995.

INEP. EFA 2000 Educação para Todos : avaliação do ano 2000, Informe nacional, Brasil / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1999.

MELLO, Guiomar N. Política de recursos humanos para la gestión de los sistemas educativos.BOLETIN Proyecto Principal de educacion en América Latina y el Caribe, Santiago, n° 33, p.19-27, abril, 1994.

MORLEY, Lousie . Freedom to manage. In: GRAHAM, Jim (ed) Teacher professionalism and

the challenge of change / edited by Stoke on Trent : Trentham, 1999

OLIVEIRA, Dalila A. Educação Básica: gestão do trabalho e da pobreza. Petrópolis: Vozes, 2000.

OZGA, Jennifer. Policy research in educational settings: contested terrain . Buckingham : Open University Press, 2000.

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OZGA, Jenny. Deskilling a profession: professionalism, deprofessionalisation and the new managerialism. In: BUSHER, H. and SARAN, R. Managing teachers as professionals in schools. London: Kogan Page, 1995.

PROMEDLAC. Reunião do Comitê Regional intergovernamental do Projeto Principal de Educação para a América Latina e o Caribe. Brasília: MEC, OREALC-UNESCO. 1993.

ROBERTSON, Susan L. Teacher’s work, restructuring and postfordism: constructing the new “professionalism”. In: GOODSON and HARGREAVES. Teacher’s professional lives. London: Falmer Press, 1996.

SHIROMA, E. O. O eufemismo da profissionalização. In: do IV Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul – ANPE Sul. Anais … Florianópolis: UFSC, 2002. CD-ROM

THODY, Angela. Leadership of schools - chief executives in education. London: Cassell, 1997.

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Título: PROFISSIONALIZAÇÃO E GERENCIALISMO NA EDUCAÇÃO

Nome da autora: ENEIDA OTO SHIROMA

Titulação acadêmica: Doutora em Educação pela UNICAMP (1993)

Cargo(s) ou função(ões) atual(is):

Professora Adjunto do Departamento de Estudos Especializados em Educação (EED) do Centro de Ciências da Educação (CED/UFSC) e Pesquisadora CNPq

Instituição onde os exerce: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

E-mail(s) : [email protected]