19.07 maria angula - buhistoriasdemedoecoragem.com.br · maria ia se deitar quando bateram na...

2
Maria ia se deitar quando bateram na porta. Ela pensou que não gostava de ninguém naquela cidade e que não ia abrir a porta para visita mal-educada que viesse àquela hora da noite. Bateram mais forte e ouviu-se: “Maria Angula, devolve minhas tripas!”. Maria apagou as luzes para fingir que a casa estava vazia. Maria Angula teve medo! Tentou acordar o marido. Nada. Dormia como um bebê. “Maria, devolve minhas tripas!”, era a voz de novo. Maria chutou o marido, mordeu, beliscou e nada dele acordar. A voz era cada vez mais forte! Maria ouviu o morto arrombar a porta. Ela subiu as escadas e se trancou no quarto. Mas a voz não cessava, “Maria Angula, devolve minhas tripas!”. Desesperada de medo, com frio na espinha, ouvindo o morto subir as escadas e a voz ficar cada vez mais forte, Maria se jogou da janela. No dia seguinte, o marido acordou e estranhou que tivesse adormecido no sofá. Era uma linda manhã de maio. A casa estava tranquila. Nenhum sinal, nenhum vestígio da destruição e do medo da noite anterior. Só não se via Maria Angula. O marido procurou na casa toda. Não estava no quarto nem no quintal da casa. O marido procurou na vizinhança. Nada. Perguntou a Carolina e nem notícia. Até hoje dizem que o marido procura Maria Angula e nunca ninguém descobriu seu paradeiro. Ministério da Cultura e Endesa Brasil apresentam Patrocínio Realização Maria Angula

Upload: dangdien

Post on 26-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Maria ia se deitar quando bateram na porta. Ela pensou que não gostava de ninguém naquela cidade e que não ia abrir a porta para visita mal-educada que viesse àquela hora da noite. Bateram mais forte e ouviu-se: “Maria Angula, devolve minhas tripas!”. Maria apagou as luzes para fi ngir que a casa estava vazia. Maria Angula teve medo! Tentou acordar o marido. Nada. Dormia como um bebê. “Maria, devolve minhas tripas!”, era a voz de novo. Maria chutou o marido, mordeu, beliscou e nada dele acordar. A voz era cada vez mais forte! Maria ouviu o morto arrombar a porta. Ela subiu as escadas e se trancou no quarto. Mas a voz não cessava, “Maria Angula, devolve minhas tripas!”. Desesperada de medo, com frio na espinha, ouvindo o morto subir as escadas e a voz fi car cada vez mais forte, Maria se jogou da janela.

No dia seguinte, o marido acordou e estranhou que tivesse adormecido no sofá. Era uma linda manhã de maio. A casa estava tranquila. Nenhum sinal, nenhum vestígio da destruição e do medo da noite anterior. Só não se via Maria Angula. O marido procurou na casa toda. Não estava no quarto nem no quintal da casa. O marido procurou na vizinhança. Nada. Perguntou a Carolina e nem notícia. Até hoje dizem que o marido procura Maria Angula e nunca ninguém descobriu seu paradeiro.

Ministério da Cultura e Endesa Brasil apresentam

Patrocínio Realização

Maria Angula

Muita gente já ouviu falar dela. Uma história mais medonha que a outra. A que eu conheço foi contada por uma amiga da minha avó que era vizinha da famigerada. Maria Angula era seu nome. A Malvada já nasceu sem coração. Era uma menina tão linda quanto terrível. Gostava de desviar o caminho das formigas. Pirraçava os amiguinhos e só ficava feliz fazendo desfeita, ajudando a porca a torcer o rabo e a vaca a ir pro brejo.

Quando Maria Angula ficou moça, sua mãe já tinha desistido de dar jeito na filha. Não havia ninguém que quisesse se casar com ela. O jeito foi sair da cidade e arrumar um trouxa que, como todos os outros, se encantasse com a beleza de Maria Angula. Mas o “noivo ideal” haveria de desconhecer a natureza fria-gelada da noiva. O veneno que a moça tinha na veia seria um dote secreto, presente de grego que só depois de casado o noivo provaria. Foi o dito e o feito. A mãe encontrou o trouxa, casou Maria Angula e sumiu no mundo. O marido ficou satisfeito, a mulher era bonita e jeitosa. Mas beleza não enche barriga de ninguém e ele logo descobriu que Maria Angula não sabia nem fritar um ovo e se recusava a limpar a casa. “Eu não! Olha pra minha cara, seu ridículo! Se quiser comer, cozinhe. Se quiser vestir, lave. Se quiser casa limpa, varra!” O marido trabalhava o dia inteiro e Maria passava o dia entediada, sem fazer nada que não fosse reclamar da vida, do tempo, do calor, da cidade.

Uma noite, o marido esbravejou, disse que ia trabalhar e que, se ao chegar, encontrasse a casa suja e a panela vazia, que Maria Angula fizesse as malas e fosse embora. Aí a danada se preocupou. Foi até a casa da vizinha Carolina. Disse que era moça recém-casada, afinou a voz, fez olhinho de coitada, dividiu o cabelo no meio da cabeça e chorou que queria agradar o maridinho querido, se a moça não podia ensinar a ela uma receitinha. Carolina era doce e bondosa, a melhor cozinheira da cidade. Ensinou suflê de chuchu. Maria Angula anotou tudo. Depois do ponto final lançou um olhar lancinante para Carolina e disse: “Ai, mas que receitinha chumbrega, hein, Carolina? Que coisinha besta você me ensinou, faça-me o favor!”. Carolina estranhou, mas deixou pra lá a má-criação.

Chegando em casa, Maria Angula fez a receita. Varreu a sujeira para debaixo da pia, passou cuspe para limpar os pratos. O marido chegou. Comeu. Não encontrou a sujeira da casa. Maria Angula ficou.

Todo dia era a mesma coisa. Suflê de chuchu. Depois de sete dias, o marido disse que se não mudasse o cardápio podia ir embora. Maria Angula voltou à casa de Carolina. Afinou a voz, fez olhinho de coitada, dividiu o cabelo no meio da cabeça e pediu outra receita. Carolina era doce e bondosa, a melhor cozinheira da cidade. Ensinou galinha à cabidela. Maria Angula anotou tudo. Depois do ponto final, lançou um olhar lancinante para Carolina e disse: “Ai, mas que receitinha chumbrega, hein, Carolina? Que coisinha besta você me ensinou, faça-me o favor!”. Carolina ouviu e pensou: “Deixa, deixa ela. Quando vier de novo vai ver que receita boa lhe dou!”.

Chegando em casa, Maria Angula fez a receita.Varreu a sujeira para debaixo da pia, passou cuspe para limpar os pratos. O marido chegou. Comeu. Não encontrou a sujeira da casa. Maria Angula ficou.

Na primeira semana galinha à cabidela, na segunda suflê de chuchu, depois galinha de novo. No fim do mês o marido azedou de vez. “Outra receita ou rua, Maria Angula!” O jeito foi apelar para a bondosa vizinha.

Carolina já esperava Maria Angula com a receita na cabeça. Pegue um defunto. Observação: tem que ser fresco, recém-mortinho. Tire as tripas. Refogue na manteiga, acrescente salsinha, coentro e azeite. Deixe em fogo brando até reduzir o volume. Gratine com queijo de rã e polvilhe pelo de rato crocante. Sirva quente flambado em emulsão de gosma de aranha, decore com casca de barata voadora. Maria Angula foi ao cemitério. Por sorte tinha velório. Maria Angula chorou sentida a morte do falecido. Abraçou a família. Precisava ver que tristeza.

Quanto todos partiram ela desenterrou o morto. Pegou as tripas e fez a receita. O marido comeu, elogiou, repetiu três vezes. Maria Angula ficou enjoada com o preparo e viu o marido comer tudinho. Até passou um pão na panela para comer o restinho. “Maria, esse é o melhor cozido que já comi na vida!” Depois, de barriga cheia, deitou no sofá e dormiu profundamente.

Maria Angula