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19São Paulo · 2016 · 1ª EdiçãoConselho Regional de Psicologia SP - CRP 06

cadernos temáticos CRP SP

Psicologia e Educação:desafios da inclusão

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Caderno Temático n° 19 – Psicologia e Educação: desafios da inclusão

XIV Plenário (2013-2016)

Diretoria Presidente | Elisa Zaneratto RosaVice-presidente | Adriana Eiko MatsumotoSecretário | José Agnaldo Gomes Tesoureiro | Guilherme Luz Fenerich

ConselheirosAlacir Villa Valle Cruces; Aristeu Bertelli da Silva; Bruno Simões Gonçalves; Camila de Freitas Teodoro; Dario Henrique Teófilo Schezzi; Gabriela Gramkow; Graça Maria de Carvalho Camara; Gustavo de Lima Bernardes Sales; Ilana Mountian; Janaína Leslão Garcia; Joari Aparecido Soares de Carvalho; Livia Gonsalves Toledo; Luís Fernando de Oliveira Saraiva; Luiz Eduardo Valiengo Berni; Maria das Graças Mazarin de Araujo; Maria Ermínia Ciliberti; Marília Capponi; Mirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso; Moacyr Miniussi Bertolino Neto; Regiane Aparecida Piva; Sandra Elena Spósito; Sergio Augusto Garcia Junior; Silvio Yasui

Organização do cadernoPaulo Paranhos

Revisão ortográficaPaulo Paranhos | Vírgula & Crase

Projeto gráfico e editoraçãoPaulo Mota | Comunicação do CRP SP

___________________________________________________________________________ C755c Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Psicologia do Esporte: Contribuições para a atuação profissional. Conselho Regional dePsicologia de São Paulo. - São Paulo: CRP SP, 2016. 180p.; 21x28cm.(Cadernos Temáticos CRP SP)

ISBN: xxxxxxxxxx

1.Psicologia –Esporte. 2. Psicologia do Esporte. 3. Sistema Esportivo Brasileiro. I. Título

CDD 158.2__________________________________________________________________________Ficha catalográfica elaborada por Marcos Antonio de Toledo – CRB-8/8396.

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Cadernos Temáticos do CRP SP

Desde 2007, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo inclui, en-tre as ações permanentes da gestão, a publicação da série Cadernos Temáti-cos do CRP SP, visando registrar e divulgar os debates realizados no Conselho em diversos campos de atuação da Psicologia.

Essa iniciativa atende a vários objetivos. O primeiro deles é concretizar um dos princípios que orienta as ações do CRP SP, o de produzir referências para o exercício profissional de psicólogas(os); o segundo é o de identificar áreas que mereçam atenção prioritária, em função de seu reconhecimento social ou da necessidade de sua consolidação; o terceiro é o de, efetivamente, garantir voz à categoria, para que apresente suas posições e questionamen-tos acerca da atuação profissional, garantindo, assim, a construção coletiva de um projeto para a Psicologia que expresse a sua importância como ciência e como profissão.

Esses três objetivos articulam-se nos Cadernos Temáticos de maneira a apresentar resultados de diferentes iniciativas realizadas pelo CRP SP, que contaram com a experiência de pesquisadores(as) e especialistas da Psico-logia, para debater sobre temáticas ou assuntos variados na área. Reafirma-mos o debate permanente como princípio fundamental do processo de demo-cratização, seja para consolidar diretrizes, seja para delinear ainda mais os caminhos a serem trilhados no enfrentamento dos inúmeros desafios presen-tes em nossa realidade, sempre compreendendo a constituição da singulari-dade humana como fenômeno complexo, multideterminado e historicamente produzido. A publicação dos Cadernos Temáticos é, nesse sentido, um convite à continuidade dos debates. Sua distribuição é dirigida a psicólogas(os), bem como aos diretamente envolvidos com cada temática, criando uma oportuni-dade para a profícua discussão, em diferentes lugares e de diversas maneiras, sobre a prática profissional da Psicologia.

Este é o 19º Caderno da série. O seu tema é “Psicologia e Educação: desafios da inclusão”.

Outras temáticas e debates ainda se unirão a este conjunto, trazendo para o espaço coletivo, informações, críticas e proposições sobre temas rele-vantes para a Psicologia e para a sociedade.

A divulgação deste material nas versões impressa e digital possibilita a ampla discussão, mantendo permanentemente a reflexão sobre o compro-misso social de nossa profissão, reflexão para a qual convidamos a todos.

XIV Plenário do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo

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Os Cadernos já publicados podem ser consultados em www.crpsp.org.br:

1 – Psicologia e preconceito racial

2 – Profissionais frente a situações de tortura

3 – A Psicologia promovendo o ECA

4 – A inserção da Psicologia na saúde suplementar

5 – Cidadania ativa na prática

5 – Ciudadanía activa en la práctica

6 – Psicologia e Educação: contribuições para a atuação profissional

7 – Nasf – Núcleo de Apoio à Saúde da Família

8 – Dislexia: Subsídios para Políticas Públicas

9 – Ensino da Psicologia no Nível Médio: impasses e alternativas

10 – Psicólogo Judiciário nas Questões de Família

11 – Psicologia e Diversidade Sexual

12 – Políticas de Saúde Mental e juventude nas fronteiras psi-jurídicas

13 – Psicologia e o Direito à Memória e à Verdade

14 – Contra o genocídio da população negra: subsídios técnicos e teóricos para Psicologia

15 – Centros de Convivência e Cooperativa

16 – Psicologia e Segurança Pública

17 – Psicologia na Assistência Social e o enfrentamento da desigualdade social

18 – Psicologia do Esporte: contribuições para a atuação profissional

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Introdução Núcleo de Educação do CRP-SP

I - racIsmo, HomofobIa e Inclusão educacIonal

apresentação Mirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso

Problematizando Gêneros e sexualidades na escolaLeonardo Lemos de Souza

relações raciais e racismo na escolaLauro Cornélio da Rocha

debates

II – dIreIto à educação de adolescentes em cumPrImento de medIdas socIoeducatIvas

apresentaçãoLuciana Stoppa dos Santos

o trabalho do psicólogo junto aos adolescentes em conflito com a lei: processos de escuta e a garantia de direitosJorge Broide

adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas: trajetórias escolaresDebora Cristina Fonseca

a política pública da assistência social e a garantia do direito à educaçãoJean Fernando de Sousa

debates

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Sumário

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O presente Caderno Temático originou-se da necessidade do Núcleo de Educação do CRP-SP registrar os debates que vem produzindo sobre os processos de inclusão no âmbito es-colar. A ausência de referências técnicas para a atuação das(os) psicólogas(os) neste campo específico, a relevância de debater o tema da inclusão educacional articulado com os outros núcleos do CRP-SP, dada a sua complexidade e as distintas dimensões da temática, resultou na realização de dois ciclos de debates. O pri-meiro com o tema “Racismo, Homofobia e inclu-são Educacional”, realizado em 30 de agosto de 2014 e que contou com as parcerias do Núcleo Sexualidade e Gênero e do Sub Núcleo Psico-logia e Relações Raciais, ambos do CRP-SP. O segundo com o tema “Direito à Educação de Jo-vens em Cumprimento de Medidas Socioeduca-tivas”, realizou-se em 13 de julho de 2015 e teve a parceria do Núcleo da Assistência Social e do Núcleo da Criança e do Adolescente do CRP-SP. Os eventos foram transmitidos on-line e após as palestras dos convidados, foram promovidos debates com a participação da plateia.

Para a compreensão do que aqui estamos chamando de “Educação inclusiva” devemos enten-de-la como um paradigma, uma proposta de edu-cação pautada em direitos humanos, que não se destina somente ao trabalho junto aos estudantes público alvo da educação especial, mas que busca pensar práticas que rompam com processos histó-ricos de exclusão, democratizem o espaço e esco-lar, garantam direitos e respeitem as diferenças nos processos de aprendizagem e no desenvolvimen-to das crianças e adolescentes. A nós, psicólogos, cabe a defesa de uma educação inclusiva como meio de possibilitar reflexão sobre o que aparecer naturalizado na escola e que pode ser diferente.

Agradecemos as contribuições dos convida-dos as quais foram bastante enriquecedoras para o aprofundamento do tema e esperamos que as reflexões aqui contidas sejam disparadoras para à necessária transformação da escola: que seja mais inventiva e considere o seu cotidiano com suas singularidades, que rompa com a reprodução dos estigmas e preconceitos e desenvolva novos modos de operar as relações e o conhecimento.

IntroduçãoNúcleo de Educação do CRP-SP (2013-2016)

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8 Racismo, Homofobia e Inclusão EducacionalMirnamar Pinto da Fonseca Pagliuso

Conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo – CRP 06. Coordenadora do Núcleo e Educação do CRP SP e Coordenadora da Comissão Gestora do CRP SP – Subsede Baixada Santista e Vale do Ribeira.

Apresentação

Tratar de tema tão importante quanto este não é uma tarefa fácil. Sabemos que a escola tem papel de fomentar o conhecimento e, mais que isso, visa à promoção da cidadania e ao prepa-ro para fazer leituras críticas e autônomas da realidade. Contudo, sabemos que a escola aca-ba reproduzindo valores morais e culturais que reforçam a exclusão de certos segmentos da sociedade, sobretudo, os negros, os homosse-xuais, os deficientes, os idosos e as mulheres. As pessoas são categorizadas a partir de suas diferenças, sejam elas sociais, econômicas, físi-cas, psíquicas, religiosas, culturais, raciais e de gênero, o que pode gerar conflitos e desenca-dear violências físicas e simbólicas. As diferen-ças precisam ser compreendidas não como pro-blemas a serem resolvidos e, sim, como valores, possibilidades de aprendizagem que expressam a riqueza da diversidade humana e ajudam na ressignificação de uma escola plural baseada em princípios éticos e democráticos. Da mesma forma, as relações humanas, os conteúdos e os métodos desenvolvidos na escola, eles devem estar a serviço da aprendizagem dos estudan-tes e direcionados à construção da sua autono-mia e emancipação; para que a inclusão educa-cional se instale efetivamente, a escola precisa mudar, um novo paradigma educacional precisa ser construído baseado no princípio da igualda-de e da democracia.

Muitos foram os avanços nessa dire-ção, sobretudo a partir da mobilização, dos movimentos sociais e políticos, podemos, por exemplo, destacar aqui os diversos marcos

normativos e legais que foram construídos co-letivamente para que crianças e jovens com deficiência pudessem ter uma educação que atendesse as suas singularidades. A política nacional, na perspectiva da educação inclusiva é o resultado de todo um processo de mobiliza-ção da sociedade, ainda que ajustes precisem ser feitos. Nesse mesmo sentido, o Plano Na-cional de Educação, que acaba de ser aprova-do com dois anos de atraso, avança em suas metas, mas não contempla, integralmente, as reivindicações de alguns segmentos excluídos. É preciso mais do que isso, é preciso garantir às crianças e jovens a igualdade de acesso e permanência na escola.

É preciso a mobilização de toda a socie-dade para que políticas públicas sejam efeti-vadas na direção de uma educação com quali-dade para todas as pessoas, com igualdade de oportunidades e respeito às diferenças. A partir desse panorama amplo da diversidade, esta-mos trazendo como recorte os fenômenos so-ciais do racismo e da homofobia como fatores

“As diferenças precisam ser compreendidas não como problemas a serem resolvidos e, sim, como valores, possibilidades de aprendizagem que expressam a riqueza da diversidade humana e ajudam na ressignificação de uma escola plural baseada em princípios éticos e democráticos”.

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que contribuem sobremaneira para que a into-lerância e a exclusão se instalem nos espaços educativos. Ainda que tais fenômenos tenham lutas próprias, ambos são fruto de uma história que marcou os séculos 19 e 20, período em que a naturalização das diferenças raciais e sociais desencadearam diversas consequências, den-tre elas, o sofrimento psíquico que cada uma dessas pessoas carrega, vivendo a diferença como defeito, que o desqualifica e promove de-sigualdade na relação com o outro. O alto índice de evasão escolar dessas pessoas demonstra o quanto ainda estamos distantes desse ideá-rio, de uma escola preparada e qualificada para a inclusão educacional. E sobre isso, nós, psi-cólogos e psicólogas, temos muito o que dizer e contribuir. A discriminação, seja ela qual for, traz inegáveis prejuízos à formação das subje-tividades, às relações sociais e ao exercício dos direitos. Temos, portanto, o compromisso social de sermos agentes dessa transformação, base-ando nosso trabalho na ética, no respeito e nos valores preconizados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

“Ainda que tais fenômenos tenham lutas próprias, ambos são fruto de uma história que marcou os séculos 19 e 20, período em que a naturalização das diferenças raciais e sociais desencadearam diversas consequências”.

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10 Problematizando Gêneros e Sexualidades na EscolaLeonardo Lemos de Souza

Doutor em Educação pela UNICAMP. Psicólogo e Mestre em Psicologia pela UNESP. Professor Assistente Doutor da UNESP atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, sendo vice-coordenador do Programa e chefe do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sexualidades.

Bom dia a todos e todas. Eu queria agradecer muitíssimo ao CRP pelo convite, em especial, na pessoa da Lívia, que tinha conversado comigo ini-cialmente, Lívia Toledo, que é do Núcleo de Sexu-alidades e para falar desse tema que é homofobia e inclusão escolar, que é um tema que eu venho trabalhando já há algum tempo com as questões relacionadas à homofobia e à sexualidade, a ques-tão de gênero e sexualidade nas escolas. E eu vou organizar a minha fala, temos um tempo de meia hora, não é isso, mais ou menos? No sentido de, na verdade, realizar um conjunto de reflexões. A par-tir de dados de algumas pesquisas sobre gêneros e diversidades nas escolas e também de alguns operadores conceituais, que nos auxiliam um pou-quinho para problematizar a questão de saberes e práticas da Psicologia no contexto escolar. Então, na verdade, a minha proposta… na verdade, pos-sibilidades de pensar um pouco a diversidade de gênero nas escolas, como as escolas têm tratado essa população, do extermínio em relação a esse grupo, de fato, posso colocar nesse sentido de po-der pensar um pouco desses… e alguns conceitos podem nos ajudar a pensar isso, e a partir tam-bém de dados de pesquisas que eu tenho, de pes-quisas que eu fiz, que eu orientei de alunos que mapeiam um pouco algumas dessas realidades. Bom, começo, antes de tudo, falando rapidamen-te sobre o que é, de fato, homofobia, e também a questão da inclusão educacional. Então, por homofobia, estou entendendo aqui como Borrillo descreve, é a repulsa e ódio pela homossexuali-dade ou por tudo aquilo que ela representa nas estéticas e experiências de todas as sexualidades e gêneros dissidentes da heteronormatividade, homens, mulheres, travestis, transexuais, gays, lésbicas, enfim. Cunhado na década de 70, tendo na década de 90 ganhado mais destaque, pode-mos acrescentar que ainda pode se referir a uma

atitude de desprezo pela homossexualidade de si mesmo e do outro, porque a homofobia também existe em relação aos próprios homossexuais.

De qualquer maneira, ela é uma ação que busca inferiorizar e normalizar a homossexualida-de e quaisquer de suas manifestações. De alguma maneira, então, a homofobia também se articula com o sexísmo, dado que se volta para a repulsa diante da performatividade de papéis de gênero deslocados de corpos biológicos formatizados: homem, mulher, macho, fêmea, enfim… as estra-tégias decorrentes da homofobia buscam saber sobre sua origem para definir seu tratamento e re-torno à sexualidade dita normal. Assim, há uma sé-rie de projetos, técnicas que são produzidas com a finalidade de controlar, manipular e exterminar as dissidências sexuais e de gênero. Essas atra-vessam todo o corpo social, constituindo como lugar de expurgo, a escola como espaço tradicio-nalmente estratégico nos processos de subjeti-vação e cujo projeto, de fato, de alguma manei-ra, que vemos no espaço da escola é classificar, normalizar, reproduzir desigualdades, reafirmando hierarquias. Essa escola classificatória excluden-te permanece ao longo dos tempos, hoje, princi-palmente, pela supervalorização do desempenho, pela vinculação indiscriminada com o mercado de trabalho, pela negação do cotidiano e da ética das

“Assim, há uma série de projetos, técnicas que são produzidas com a finalidade de controlar, manipular e exterminar as dissidências sexuais e de gênero”.

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11diferenças. Aí, um dado do 9º Seminário Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis e Tran-sexuais de 2012 mostra um pouco dessa realidade para nós em relação à homossexualidade no Brasil e à homofobia. Mais de 40% dos homens homos-sexuais brasileiros já foram agredidos fisicamen-te durante a vida escolar. Mais de 1/3 dos 15 mil alunos entrevistados para uma Pesquisa do ins-tituto de Pesquisas Econômicas, a FiPE, procuram não chegar perto de homossexuais; 21% acham que estudantes homossexuais não são normais; 26% dizem não aceitar a homossexualidade. Qual escola que inclui diante desse quadro? Para fa-lar de inclusão, temos que falar de exclusão, ób-vio. Entendemos que, na verdade, o excluído está nas franjas do corpo social, ele não é um excluído completamente, ele faz parte de uma lógica de funcionamento que o mantém sem direitos como menorizado, inferiorizado, destituído do estatu-to de direito. Desse modo, os discursos, saberes e práticas habilitam um, desabilitam outros como sujeitos como humanos, como pessoas. Quem está fora da escola? Luiz falou algo também que eu achei muito interessante, quando pensamos na inclusão como algo só ligado às pessoas com de-ficiência, temos que pensar… o deficiente durante muito tempo não esteve presente na escola regu-lar normal, ele sempre esteve num lugar especial.

Pensando no espaço da escola como insti-tuição histórica, os homossexuais sempre estive-ram nas escolas, mas estou problematizando isso assim, pensar numa inclusão de algo que já está ali, na verdade, inclusão no ponto de vista dos di-reitos, óbvio, mas na verdade, essas pessoas es-tão ali, elas circulam, elas não estão fora, elas es-tão dentro. O que está fora é o discurso da escola sobre essas pessoas, sobre o cotidiano que elas vivem, não me refiro ao discurso oficial, porque nas políticas, vemos isso presente: “Tem que se discu-tir isso, tem que se trabalhar aquilo, os sistemas são importantes”, mas no cotidiano, ele não está presente. Nós que trabalhamos com formação de educadores para gêneros e diversidade, percebe-mos isso no discurso dos educadores todo tempo. A existência deles como sujeitos de direitos, que seja possível a expressão dos seus afetos, da sua

sexualidade, de seus gêneros, da sua diversidade que é negada, portanto, o que essas pessoas fa-zem, os gays, lésbicas que estão na escola, tran-sexuais, travestis, são produtos de estratégia de invisibilidade, muitas vezes, eles mesmos, para continuar permanecendo de algum modo: ficam no armário, se introduzem como outros possíveis na escola como figuração da dominância hetero-normativa, o amigo das meninas, a amiga que joga futebol junto, a travesti que se empodera do mas-culino por vezes, para circular com dignidade, sen-do mais violenta, usando desses recursos e ainda, os que se afirmam como possíveis, de fato, se re-velando, organizando do ponto de vista identitário nos discursos que mantém a repulsa e a negação das suas existências e estéticas.

Diante disso, vou falar um pouquinho agora de algumas pesquisas, de algumas experiências, na verdade, não, eu quero pensar em algumas questões que são importantes para pensarmos no espaço da escola. Eu acho que pensar gêne-ro e diversidade na escola, pensar a questão da homofobia, portanto diante dessa diversidade no contexto escola, é necessário que pensemos algu-mas questões para problematizar a escola. Então, como psicólogos, temos que pensar a educação no sentido dessa produção de uma ética mesmo, e trazer o cotidiano para dentro da escola de fato, acho que esse e o papel do psicólogo realmente importante que, muitas vezes, os educadores por mais que o discurso oficial traga isso, há uma di-ficuldade muito grande de estabelecermos essas conexões com o concreto, com a vida real das pes-soas. Então, o primeiro grupo de perguntas ao qual eu me refiro se refere à ética e aos conhecimentos e uma delas é: “A escola é um espaço de cons-trução de conhecimentos e sociabilidades? Quais conhecimentos são esses? Qual o papel dos co-nhecimentos construídos na escola? Quais conhe-cimentos? Quais políticas cognitivas que a escola gesta? Qual a dimensão ética que a escola pode e deve se ocupar?”, o outro grupo de questões se refere especificamente à questão do gênero e das sexualidades: “Qual a potência de inventabilida-

“O que está fora é o discurso da escola sobre essas pessoas, sobre o cotidiano que elas vivem”.

“Então, como psicólogos, temos que pensar a educação no sentido dessa produção de uma ética mesmo, e trazer o cotidiano para dentro da escola de fato”.

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12 de da escola em se redefinir e mudar de foco e se atrelar ao cotidiano? Onde os gêneros e as sexu-alidades se inserem nas políticas cognitivas ges-tadas tradicionalmente pela escola?”, por política cognitiva, estou pensando aqui do conhecimento que é produzido ali naquele espaço.

E por último e que cabe a nós sempre refle-tirmos: “Qual escola? Qual escola que temos e qual escola que queremos?”, não vamos dar conta de responder todas essas perguntas, lógico, neste momento, mas elas servem para iniciar a nossa discussão e para disparar o desdobramento de outras investigações e reflexões sobre o tema. Como eu disse antes, a minha proposta é proble-matizar o que denominamos gêneros e sexualida-des, o plural é necessário, e como produções que circulam no espaço escolar. Para isso, cabe es-clarecer que o que chamamos de circulação deve se dar no campo da produção discursiva de sen-tidos sobre as diversidades sexuais e de gêneros pelas pessoas que fazem o espaço escolar. Seja na perspectiva da normatização ou da transgres-são dessas subjetividades possíveis. Com isso, a dimensão do jogo de palavras impossível, trazen-do ele aqui, transita, ou melhor, atravessa entre o campo das potencialidades ou das inviabilidades impostas por modelos normatizadores.

Para Bruner, as narrativas representam o modo específico de construção e constituição de realidades experienciadas. Ela organiza e dá sen-tido ao conjunto de experiências do sujeito em re-lação ao mundo e a si mesmo. Nas narrativas, en-contramos produções discursivas sobre eventos e experiências do sujeito e sua cultura. Bakhtin, num texto chamado “Discurso na Vida e discurso na Arte”, para ele, discursos, palavras e enunciados são produzidos na experiência de vida do sujeito

sendo um processo de interação dialógico entre vozes constituintes das ações compartilhadas na cultura. Uma das funções da narrativa é também subjetivar o mundo e abrir espaço para o hipoté-tico, perspectivas possíveis capazes de constituir a vida da mente interpretativa; nesse sentido, seu uso dentro da Psicologia se mostra relevante na medida em que sua particular abertura e plastici-dade permitam maior qualidade na criação de ou-tras formas de constituir realidades e significados e discursos. Portanto, trata-se de assumir a inse-parabilidade da linguagem com produções sociais humanas atravessadas pela história e pelo imagi-nário cultural, bem como da dimensão da autori-dade e da identidade na produção de realidades. Aquilo que não se diz e aquilo que se diz compre-endem espaços de possibilidades de existência em diferentes campos relacionais. No nosso caso, é entender como gêneros e sexualidades circulam, produzem sentidos e são produzidos no espaço escolar. Falando um pouquinho dessas pesquisas, eu tinha várias coisas, mas eu acho que não dá tempo para trabalharmos com tudo, mas nós fize-mos um trabalho com 400 jovens, na verdade, foi uma parte da minha tese de Doutorado, foram 400 jovens que nós trabalhamos com um questionário que se referia a uma situação de homofobia na escola, uma situação hipotética de homofobia na escola, que perguntávamos para eles em relação aos personagens dessas histórias, como eles se posicionavam. Eram três personagens: o agressor, aquele que cometia homofobia, na verdade, era um grupo de alunos, um que presenciava a situa-ção que era amigo dos dois, o agressor e a vítima e um que era o agredido, que sofria a homofobia. Fizemos isso em escolas de São Paulo, em esco-las também no Estado de Mato Grosso, tentamos fazer uma comparação, enfim. Uma outra pesqui-sa em que trabalhamos com essa mesma história, mas com professores, como é que eles se posicio-navam diante dessa situação de homofobia. As

“A escola é um espaço de construção de conhecimentos e sociabilidades? Quais conhecimentos são esses? Qual o papel dos conhecimentos construídos na escola? Quais políticas cognitivas que a escola gesta? Qual a dimensão ética que a escola pode e deve se ocupar?”

“Trata-se de assumir a inseparabilidade da linguagem com produções sociais humanas atravessadas pela história e pelo imaginário cultural, bem como da dimensão da autoridade e da identidade na produção de realidades”

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13perguntas dessa história, tanto para professores como para os alunos, jovens de ensino médio se referiam a que pensamentos, sentimentos e ações diante da situação que vivenciavam que essas pes-soas podiam ter, tentando também trabalhar uma perspectiva ética, o que deve ser feito numa situa-ção como essa, a vítima, quem presencia e agride, como é que se sentem nessa situação, como é que eles imaginam essas pessoas. E temos um pouco dessa realidade também em relação aos profes-sores. Se todo professor nessa situação também, o que o professor faz numa situação como essa.

É um trabalho que foi simulado, portanto, não trabalha necessariamente com dados reais, é uma simulação, é uma história hipotética, mas que nos permite pensar algumas coisas. Uma delas é especificamente em relação à vítima que é o que eu queria trazer, a pessoa que sofre homofobia na escola, 68,7% das pessoas que responderam, dos jovens estudantes, têm atitudes negativas diante da situação de homofobia. O que eu estou chamando de atitudes negativas? isolamento so-cial, negação da própria sexualidade, ou agressão ou a própria inércia, ou seja, não faço nada diante do problema, então, sofro homofobia, ou eu nego isso ou eu não ligo para isso, isso vai passar, é um problema que não adianta fazer nada, se isola, se distancia dos outros e percebemos também, no caso desses jovens que relatam isso, que dizem o que é geralmente feito, ou como se age diante disso, não existe uma pessoa para quem eles pos-sam recorrer: “Para quem que eu falo isso?”, isso aparece muito nessas narrativas, nesses textos que eles produzem sobre isso. Não existe uma pessoa com a qual eles podem contar, muito difícil eles, de fato, irem atrás de alguém. E as atitudes dispositivas que eles se referiam são 31,9%, que é a autoafirmação da sua sexualidade e alguns di-zem: “Eu faço alguma coisa”, mas a grande maioria não faz isso, não busca isso. Uma outra pesquisa que orientei, uma dissertação de mestrado de uma aluna no mestrado em Educação onde trabalho na Universidade Federal de Mato Grosso, Adriana Salles, Adriana trabalhou com meninas travestis na escola. Então, ela trabalhou com as narrativas

que essas meninas tinham sobre a experiência delas com a escola. Então, são alunas que estão no ensino regular, que se travestem ou estão em processo de construção de sua identidade de gê-nero feminino e elas falam um pouco como é a vida delas na escola, como essa atitude delas também que é discursiva circula ali naquele lugar. E uma das questões é o nome social, por exemplo, elas vão mostrando para nós as estratégias com que elas vão lidando para circular naquele espaço. Então, o nome social que é negado, embora haja uma série de normativas que garantem isso, nesse contex-to da pesquisa, ainda estava em discussão, mas já existia uma normativa sobre isso, do direito de usar o nome social e elas afirmavam, discutiam isso, algumas se empoderavam disso e outras não. E outras estratégias, como eu falei há pouco, de circular no universo masculino para também ser aceita, embora o universo delas, o que elas gos-tariam de assumir seria outro, que é a questão do jogo de futebol, que elas relatam, que é muito inte-ressante: “Jogo futebol também”, então… é o jogo todo também com a questão do gênero, assim, o que é masculino e o que é feminino? E por que ela não pode estar nos dois lugares? Enfim, e elas vão trazendo isso, enfim, que é um discurso um pou-co mais propositivo, mais afirmativo que elas ten-tam fazer. Com os professores, o que temos com os professores na pesquisa como nós aplicamos com os jovens. Esses professores falam que exis-tem duas possibilidades de lidar com a homofobia na escola, duas práticas que eles acham que são possíveis, que eles relatam, o que faz o professor diante de uma situação que ele presencia a homo-fobia. E aí, vemos o que chamamos de práticas de esclarecimento e práticas reflexivas. O que cha-mamos de práticas de esclarecimento é uma ação que verbalizamos o que é certo e o que é errado, ponto e acabou: “É errado fazer isso, menina, é er-rado fazer aquilo, menina”. Ainda nessa perspecti-va das práticas de esclarecimento, se busca justi-ficar o comportamento de quem foi discriminado, muitas vezes, se tenta de alguma forma promover relações mais igualitárias, mas, na verdade, exis-te uma série de discursos por traz falando assim: “Mas ele provoca”, “Mas ele faz isso, faz aquilo”, embora tente no discurso dele, ele acha que ele está esclarecendo que é errado ser homofóbico, é errado discriminar o colega pela sua diferença. E outras que chamamos de práticas reflexivas, que é, de fato, trabalhar com os alunos a questão da discriminação em relação à sexualidade, em rela-ção à diferença, mas propondo reflexões, mesmo, coletivas. As práticas que estamos chamando de

“Isolamento social, negação da própria sexualidade, ou agressão ou a própria inércia, ou seja, não faço nada diante do problema”.

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14 esclarecimento nem sempre são coletivas, são dirigidas só aos dois que tiveram o problema, não se trabalha isso coletivamente numa sala de aula, não é um tema dentro do cotidiano da sala de aula.

Ela é uma ação que busca… é uma ação no armário, que busca esconder que isso existe ou que minimiza isso como algo que faz parte, eles fa-zem isso todos os dias, eles brincam, né, chamam o outro de veado ou bichinha, travecona e tudo bem. Não que isso… pejorativamente, minimizan-do a condição dessas pessoas. Essas narrativas sobre sexualidades e gêneros nos levam a buscar ferramentas teóricas para compreender a escola em seu avesso, como espaço que deve transver-salizar e virtualizar o quê? Conteúdos, práticas, lin-guagens, afetos, etc. As práticas dos professores e as respostas dos alunos e alunas sobre os modos de enfrentamento à homotransfobia nos oferecem pistas de como a escola pode negar e despoten-cializar a diversidade de gênero e sexual. Como eu disse, práticas de esclarecimento, inércia, negação impossibilitam que elas circulem ética e politica-mente no espaço escolar, essas diversidades. A escola tem minadas potencialidades de existência, desde a negação de identidades, pelo nome social, das sociabilidades, tais como das alunas traves-tis e dos meninos e meninas de sexualidade dis-sidentes. Nega-se a aproximação com a vida con-creta das pessoas, tornando a escola operadora de abstrações descolando-a do cotidiano, tirando esse cotidiano de dentro da escola. que Najmano-vich é uma epistemóloga argentina, que faz uma discussão sobre o cotidiano na pesquisa contem-porânea, principalmente na Educação, ela destaca essa dimensão como parte de um lugar que é ne-gado pela escola na modernidade, escola que, na verdade, classifica, normaliza e continua fazendo isso, embora com uma outra proposta documental e, no discurso do documento oficial, Najmanovich

diz em sua análise, ela destaca: “O que já sabemos na carne sobre a fluidez, a instabilidade dos víncu-los nas relações e nas instituições”, novos fluxos que são possíveis aí nesse contemporâneo.

Ao mesmo tempo, a escola insiste nessas estratégias da modernidade em manter valores, conhecimentos e meios elegendo o que é viável e o que não é viável, e diz ela em um trechinho: “Pas-sado o ano 2000, não só os apocalíticos sentem a vibração da mudança, todos, em maior ou menor medida, concordamos que estamos atravessan-do uma época de transformações aceleradas. As instituições da modernidade prosseguem, mas se sustentam em um delicado equilíbrio que pode ser destruído por uma suave brisa ou uma mudança de orientação dos ventos políticos, tecnológicos, econômicos, afetivos e cognitivos. Nada tem a so-lidez de antes e tanto as dúvidas como as interro-gações surgem dia a dia, transformando à nossa maneira de aprender, de nos relacionar, comunicar, comprar, vender, amar, sofrer, de criar e produzir. Entretanto, a escola parece um museu de cera em si mesma, os uniformes, os bancos em fila indiana, o professor na frente, o sinal do recreio, embora os professores já tenham que pedir aos alunos que desliguem o celular na hora da aula”. Permite-nos ainda acrescentar as palavras dela como: “A exclusão do cotidiano como espaço cognitivo, um espaço de possibilidades de trocas e diversidades culturais, religiosas, étnicas e das diversidades se-xuais e de gêneros”. Jorge Larrosa, um filósofo es-panhol também nos apresenta uma análise dessa educação contemporânea, pelo o que ele chama de experiência sentido, pelo o qual podemos dizer que hoje, há um predomínio de uma política cogni-tiva na educação e a informação e a captação são os carros-chefes das práticas e valores destaca-dos pela escola. Para ele, essa exclusividade, que não é possível também perder o foco desses as-pectos da Educação, não estou dizendo que isso é desnecessário, tem que se capacitar, tem que se informar, a informação é importante, mas isso

“As práticas dos professores e as respostas dos alunos e alunas sobre os modos de enfrentamento à homotransfobia nos oferecem pistas de como a escola pode negar e despotencializar a diversidade de gênero e sexual”.

“Nega-se a aproximação com a vida concreta das pessoas, tornando a escola operadora de abstrações descolando-a do cotidiano, tirando esse cotidiano de dentro da escola”

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15desvia a possibilidade de articulação da Educação como espaço de experiências. Experiência que se atrela ao conceito de risco ou perigo e, portanto, de lançar-se a coisas novas.

Em suma, considerar o conhecimento como experiência que tenha sentido, que seja aconte-cimento, tratando das afecções que essa expe-riência e conhecimento implicam e não somente com a racionalidade que lhe é atribuída e valorada como genuína. Retomando a força das palavras da nomeação, Larrosa afirma que a linguagem é um potente mecanismo de subjetivação e ele diz: “As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras e por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado, pelo controle das palavras, pela im-posição de certas palavras, pelo silenciamento e desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras, sob o domínio das palavras como razão, ensino, universalidade, capacitação, informação, competências, habilida-des, heterossexualidade, homem, mulher, cristia-nismo, a escola se orienta por uma política cog-nitiva que exclui outras. Urgente é a necessidade de repensarmos as políticas cognitivas da escola que abolem a experiência no sentido do conhecer e que também exclui outros possíveis nessa es-cola. Geralmente, ela, a escola afirma valores que se elegem a partir da normatividade, definir identi-dades e modelos necessários. Só para dar alguns exemplos, para ser homem e para ser mulher, ser uma família, ser pai, ser mãe, ter fé, todas adequa-das ao projeto da viabilidade da modernidade, uma fé viável, uma família viável, um sujeito viável, uma sexualidade e um gênero viáveis e não podemos esquecer, um corpo também viável. Buscamos al-guns intercessores para buscar a partir de alguns desses questionamentos iniciais, nas investiga-ções, como vimos, percebemos o desvelamento de discursos sobre os gêneros e sexualidades da e

na escola que pontuam zonas de rupturas e repe-tição do normativo. O conhecimento reproduzido deve rever a ideia de representação ao qual ele se assenta, a escola como um lugar de conhecimento deve manter com a ideia de representação recor-rente como repetição, cópia de modelos normati-vos”, como essas palavras que eu falei agora que se referem a essas representações, o que é ser homem, o que é ser mulher, o que é ter fé, o que é uma religião, o que se repete, o que se torna cópia. Então, precisamos, para isso, situar esses concei-tos: representação, linguagem e cognição.

Maturana e Varela entendem representa-ção como uma invenção, como uma produção de si mesmo e do mundo. O seu avesso é o concei-to de representação clássico nas teorias do co-nhecimento como cópia e reprodução do real. A escola tem operado com esse último e que tor-na o lugar de normatização e da cópia, por isso, se normatiza. Então, a cópia: qual é o modelo de homem? Qual é o modelo de sujeito? Qual é o modelo de homem, de mulher, de sexualidade, de religião… enfim. A linguagem como estratégia simbólica de representação deve fluir e circu-lar de modo a disparar novos fluxos de senti-dos e possibilidades. Desse modo, a linguagem, as palavras podem ser entendidas como uma disparadora de possíveis e não encerrar limi-tações, ela pode ser inventiva. Na verdade, ela tem o potencial de produção de subjetividades. As narrativas conhecidas e produzidas no coti-diano sobre as identidades de gênero e sexua-lidades de gêneros na escola tomam fluxos que ora potencializam, ora despotencializam a pro-dução de subjetividades. Aí, eu penso que o pa-pel do psicólogo e o papel do educador, não só do psicólogo, mas do psicólogo junto com es-ses educadores é potencializar essa produção, é fazer circular outras experiências e sentidos dentro da escola, que ela possa escapar desse mecanismo da repetição da normatização. Não se trata de destruir a escola também no que se refere à transmissão de conhecimentos cultu-

“Urgente é a necessidade de repensarmos as políticas cognitivas da escola que abolem a experiência no sentido do conhecer e que também exclui outros possíveis nessa escola”.

“A linguagem como estratégia simbólica de representação deve fluir e circular de modo a disparar novos fluxos de sentidos e possibilidades”.

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16 ralmente acumulados, de pensar uma escola totalmente avessa a essa questão cultural de valores, princípios, enfim, éticas que são neces-sárias também para se trabalhar e pensar.

Conhecimentos como as disciplinas clás-sicas que são trabalhadas, não é abolir isso, Matemática, Português, Física, Química, muito pelo contrário, é trazer isso junto com o outro. Acho que é pensar a escola de um outro jeito, acho que é o nosso grande desafio, é pensar nessa escola de um outro jeito, pensar numa escola inclusiva é pensar uma escola que este-ja conectada com essa produção. É pensar uma escola que rompa com essa repetição, é pensar numa escola onde se possa reproduzir novos códigos que são éticos e estéticos e denunciar os velhos códigos. Outros e novos códigos, lin-guagens e sentidos podem ser produzidos nos espaços das relações escolares, o que se diz e o que não se diz sobre a diversidade pode po-tencializar conhecimentos nos moldes de uma representação cópia ou de uma representação relacionada à inventividade. Essa contribuição da cognição inventiva, que estamos dizendo no plano das práticas educativas de aprendiza-gem, implica na produção de uma ética discur-siva inventiva também, que promova práticas democráticas na escola. No entanto, é no plano desses códigos que se pode, ao mesmo tempo, perceber a redução e a normatização bem como a problematização e o desvio para outros fluxos de vida. Valendo-se da interseção da linguagem como narrativa e, portanto, como produção e invenção de realidades é que retomamos a pro-dução dos alunos e professores e professoras sobre gêneros e sexualidades nas escolas. Ora, as narrativas impossíveis na escola, quais têm sido? Cerceamento e exclusões dos travestis, dos gays e lésbicas nas relações sociais nas escolas, nas práticas dos professores.

As narrativas possíveis, as estratégias de afirmação de travestis, de gays, de lésbicas na escola, principalmente, não só alguns professo-res, mas também muito por parte dos alunos, pelo que podemos conhecer um pouco da ex-periência que temos. Pensarmos que a escola pode ser um espaço oientado por novas políti-cas cognitivas implicados numa nova ética da e para a vida é pensar uma educação inventiva, portanto, uma educação que rompa com essa trajetória da repetição. As transformações das práticas educativas devem ser um problema po-lítico como espaço de gestão de possibilidades e não, técnico. Para Najmanovich novamente, as contribuições de Deleuze e Pierre Lévy para isso, é para pensar o campo da educação; é muito interessante quando ela traz, na verdade, a ideia de virtualizar a educação, dando um sen-tido de Deleuze como possibilidade de aconte-cimentos e também de Lévy. É propor virtualizar a ação que muda de foco, que provoca outros campos de interrogação, citando o próprio Pier-re Lévy: “A virtualização passa de uma solução dada a um outro problema. A virtualização é um dos principais vetores da criação de reali-dades, torna fluida as diferenças instituídas, aumentando os graus de liberdade. Assim, po-demos dizer que virtualizar é problematizar as narrativas cristalizadas que construímos sobre si mesmos e os outros e disparar outras pro-blematizações”. Então, virtualizar a educação é pôr em movimento e é problematizar. Então, a ideia é essa da minha apresentação, pensar essa educação dessa outra perspectiva, sob o ponto de vista das diversidades, pensar em in-clusão, pensando em novas políticas cognitivas gestadas e pensar dentro da escola, que outros conhecimentos são possíveis e de que maneira vamos circular esse conhecimento. Eu acho que o papel do psicólogo aí é fundamental nisso. Obrigado.

“Acho que é pensar a escola de um outro jeito, acho que é o nosso grande desafio, é pensar nessa escola de um outro jeito, pensar numa escola inclusiva é pensar uma escola que esteja conectada com essa produção”.

“As transformações das práticas educativas devem ser um problema político como espaço de gestão de possibilidades e não, técnico”.

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Lauro Cornélio da Rocha Educador, graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo.

Bom dia a todos e a todas, eu vou falar de pé, eu acho que para mim é mais próprio pelo tama-nho, crescemos quando estamos com o micro-fone na mão. A ideia inicial é começar com um vídeo, vou começar com um pequeno vídeo, ele tem um minuto, ele foi feito pelo Kennedy Clark, tem algumas divergências quanto a primeira vez que foi apresentado, 1939 ou 1947. Ele trata de crianças e são crianças que recebem alguns ad-jetivos e eles têm de dizer se esses adjetivos são colocados para crianças negras ou para crianças brancas. É interessante do ponto de vista de uma provocação, provocação para vocês hoje, eu di-ria, que algumas vezes, alguém já deve ter visto esse vídeo, mas do ponto de vista de pensar Psi-cologia todo dia em todo lugar, talvez essa fosse uma experiência interessante de se fazer. Então, aprofundar um pouco no conhecimento do vídeo que veremos e avançar no ponto de vista de fazer as próprias experiências, porque algumas dessas experiências já foram feitas por alguns professo-res nas redes, mas algumas delas aparecem com um rigor muito pequeno, então, acho importante pensarmos isso, assim, qualifica o seu trabalho quanto mais você põe um rigor teórico, um rigor metodológico naquilo que você está fazendo. Então, é importante podermos ver e já começa… essa é uma primeira provocação para a nossa conversa aqui nesses trinta minutos. Por favor.

Que boneca é negra?Aquela.Que boneca é bonita?Aquela.Que boneca é bonita?Essa aqui.Que boneca é legal?(menino aponta)Que boneca é má?

(menina aponta)Que boneca é legal?(menino aponta)Que boneca é má?(menino aponta)Por que essa boneca é agradável?Porque ela é branca e tem olhos azuis.Qual boneca é feia?(menino aponta)Por que essa boneca é feia?Porque ela é negra.Que boneca parece com você?Aquela ali.

Bom, essa é uma provocação, então na ver-dade, o trabalho feito por Kennedy Clark foi repe-tido aqui, vocês viram por que… em 2005 e das 21 crianças negras, 15 acharam que a boneca negra era a má, ou seja, 2005. Esse trabalho foi repetido e vocês podem ver que no YouTube tem algumas outras versões, no México, tem versão no Chile, tem versão no Brasil dessa mesma ação, guarda-das as devidas proporções, não há muita diferen-ciação. Então, quando eu estou na sala de aula, eu pergunto para os professores, ou quando eu estou nos espaços de formação, eu pergunto como e com quem as crianças aprendem, que essa é uma referência fundamental para entender um pouco desse universo. Então, partindo desse universo inicial para discutir sobre a questão de racismo dentro do espaço escolar, não podemos deixar de fazer um recuo histórico para fazer essa discus-são. Confesso que lendo os aparelhos aqui, eu lembro do Ariano Suassuna, ele diz o seguinte: “Eu não me adapto com eles e eles retribuem”, então vamos dialogar com isso aqui. Então, no primeiro momento, a ideia quando falamos de racismo, ho-mofobia e inclusão educacional, essa é uma refe-rência fundamental para pensarmos a escola hoje,

Relações Raciais e Racismo na Escola

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18 pensar o espaço em que estamos na escola hoje, porque estamos pensando em relações raciais e quando se fala em relações raciais, eu não estou falando apenas do universo da população negra, eu estou falando do universo da população negra, na relação com o branco, na relação com o indíge-na, porque eu estou falando de relações, ou seja, todos nós, independentemente de sermos negros, brancos ou os ditos pardos ou ser indígenas, es-sas relações se estabelecem e eu quero discutir um pouco com vocês como essas relações se es-tabelecem, como fazemos avançar isso.

E do ponto de vista hoje, da educação, nós temos duas legislações que são legislações bá-sicas para discutir isso, temos a Lei 2.639, que até aparece aqui no quadro de vocês e tem a Lei 11.645. Uma primeira, mais especificamente falan-do de história e cultura africana e afro-brasileira e a Lei 11.645 que coloca o aporte na questão in-dígena também dentro do espaço do trabalho na escola e isso dentro da nossa perspectiva de for-mação educacional, partindo do pressuposto que as nossas universidades hoje, salvo raras exce-ções, não tratam, não têm uma matéria específica ou têm apenas algumas disciplinas optativas que discutem relações raciais a partir desse referen-cial de cultura afro-brasileira. Um primeiro dado e um recuo histórico também fundamental para nós trabalharmos o tema é pensarmos no tráfico e escravidão, porque tráfico e escravidão molda-ram a forma de ser e de estar da população negra no Brasil. Então, um primeiro dado fundamental é processo de animalização de um povo e esse pro-cesso de animalização do tráfico ou da escravidão, ele não é um processo que ficou parado no tempo, isso perpetua. Um outro dado fundamental tam-bém para pensarmos a questão de relações raciais hoje na escola é pensar pessoas transformadas em mercadorias. Outro dado é pensar a opressão

e a resistência, então, quando falamos de opres-são, falamos da opressão sofrida pelos negros du-rante o regime escravista. Então, não houve uma escravidão branda, ou não houve, dentro dessa perspectiva, uma democracia racial. A violência era brutal e ao mesmo tempo que se vivia uma violên-cia brutal, se viviam espaços de resistência funda-mentais, como a formação dos quilombos, como a questão das religiões de matriz africana que se perpetuaram como espaço de resistência. Então, esse confronto, ele se estabeleceu diante de todo esse processo e, mais do que nunca, nós tivemos durante todo esse tempo 57 anos um processo de abolição gradual da escravatura no Brasil, 57 anos não é pouco tempo para pensarmos um proces-so abolicionista. E quando falamos do processo abolicionista, fala também que a perspectiva que nós vivemos, falamos da Lei 10.639, da Lei 11.645, mas a perspectiva vivida pelos negros no Brasil foi uma perspectiva legal e podemos tratar dessa perspectiva legal e os instrumentos de regulação para que as leis se efetivem ou não, então, para pensarmos isso. E nós tivemos, então, ao longo do processo, leis gerais, pelo menos cinco.

Duas leis antitráfico, uma aprovada em 1831, que a inglaterra determinou que essa lei fosse aprovada para reconhecimento da independên-cia do Brasil; uma outra em 1850, conhecida como Lei Eusébio de Queiroz, depois passamos pela Lei do Ventre Livre, aí é importante falarmos que as crianças ficavam livres, mas a mãe não, então, como é que é esse processo? Como vivenciar esse processo? Depois a Lei dos Sexagenários, que os negros tinham de ficar mais um tempo na es-cravidão para formar um pecúlio para depois sair desse processo escravista e, por fim, a Lei áurea, que se estabelece e, à época, segundo dados dos historiadores, apenas 6,7% dos negros eram ainda escravizados. E dada essa proporção, pensamos então: como é que foram esses fatores para o fim

“As nossas universidades hoje, salvo raras exceções, não tratam, não têm uma matéria específica ou têm apenas algumas disciplinas optativas que discutem relações raciais a partir desse referencial de cultura afro-brasileira.

“A manutenção do poder na mão daqueles que tinham o poder dentro do período colonial; e as ações coletivas dos escravizados que deram esse panteão de quilombos e de quilombolas que nós temos no Brasil todo”.

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19da escravidão, quer dizer, que forças estavam em jogo para pensar o final da escravidão no Brasil? Então, pressão externa falávamos na inglaterra; um abolicionismo militante preocupado com uma formação moderna, não preocupado com os es-cravizados; a sobrevivência do estado brasileiro, então, a manutenção do poder na mão daqueles que tinham o poder dentro do período colonial; e as ações coletivas dos escravizados que deram esse panteão de quilombos e de quilombolas que nós temos no Brasil todo. Então, na verdade, a campa-nha abolicionista no fim do século 19 teve um peso fundamental para a população negra do ponto de vista de legislação, mas depois da legislação não houve nenhum ganho adicional, nada que pudesse, na perspectiva de Florestan Fernandes, dizermos, de fato, integrar o negro na sociedade. Então, es-ses ganhos adicionais legais não se transforma-ram em ganhos sociais ou ganhos políticos ou ga-nhos econômicos para a população negra. Então, Florestan Fernandes, no livro “integração do Negro na Sociedade e Classe”, a desagregação do esta-do escravocrata senhorial se operou no Brasil sem garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos de responsabilidade, o Estado e a igre-ja ou qualquer outra instituição não assumiram os encargos especiais que tivessem por objetivo pre-parar essas pessoas para um novo regime. Então, do ponto de vista geral, a abolição da escravidão também trouxe para a população negra um fator de extrema crueldade e é nesse contexto, então, que fazemos uma ponte para a atualidade e faz uma pergunta provocação que sempre fazemos nesse momento de conversa: por que nós temos a necessidade hoje de positivar a negritude? Essa trajetória histórica já nos dá a resposta para isso e nos dá a resposta dentro de uma perspectiva muito interessante, eu não saio pela rua e nenhum outro negro sai pela rua dizendo assim: “Eu sou ne-gro, eu sou negro, eu sou negro”. Mas, de repente, alguém se encarrega de dizer que eu sou negro e sempre da pior forma possível. Então, isso nos traz hoje uma reflexão e alguns exemplos já foram cita-dos hoje que é a leitura que fazemos da sociedade hoje, alguns exemplos que temos. Então, do ponto de vista geral, sempre temos dialogado sobre essa questão de racismo individualmente. Aí, eu trago alguns exemplos: “Negro apanha suspeito de rou-bar o próprio carro”, isso aconteceu no Carrefour de Guarulhos há alguns anos, 2009. Ou seja, eu es-tou dentro de um mercado, eu vou abrir a porta do meu carro e eu apanho porque eu vou abrir a porta do meu carro. Que referencial que está atrás des-

sas pessoas que estão me batendo? Ou: “Dentista negro é morto pela polícia confundido com margi-nal”, estava no carro dele, foi morto, confundido com um marginal. Ou algo que está muito recorren-te hoje: “Jogador de futebol é xingado de macaco”. Ou da jovem que também há poucos dias postou uma foto dela com o namorado na rede social e foi perguntado para eles onde que ele arrumou aquela escrava ou se esse aí é o seu dono. Então, as re-ferências iniciais do processo escravista perpetu-am. E esses são apenas alguns poucos exemplos. E nós vivemos isso no cotidiano. Então, uma das questões que pontuamos com relação a isso é que durante algum tempo, parecia que racismo esta-va mais no nível daquela questão da invisibilidade. Então, eu ia numa empresa para fazer uma ficha de trabalho, ele me tratava bem, mas, no entan-to, quando eu saía, ele rasgava a minha ficha. Ou poderia pensar dentro dessa mesma perspectiva, quantos negros cabem dentro de uma telenovela brasileira, independentemente do canal, quantos cabem? Quantos vocês já viram? E pensa a quanti-dade de população negra na sociedade brasileira. isso eu chamo e talvez seja um pouco radical esse exemplo, mas isso eu chamo de um tiro na nuca, eu tomo um tiro e eu não sei quem está atirando em mim dentro dessa perspectiva da invisibilidade. Agora, esses outros exemplos que estamos mos-trando aqui é um tiro na cara, ou seja, eles estão diante e afirmam o racismo presente.

Não prefiro o tiro na nuca e nem o tiro na cara, mas que isso é importante para pensarmos como a sociedade brasileira hoje está se organizando do ponto de vista da discussão das questões raciais. E essa coisa do tiro na nuca ou na cara não é mi-nha não, é do Sérgio Loroza, ele que fez essa refle-xão interessante sobre isso. Então, na Educação, partindo desse pressuposto de uma visão geral

“Então, na Educação, partindo desse pressuposto de uma visão geral de sociedade brasileira, na Educação, nós temos essas duas leis que nos possibilitam hoje ampliar o universo de discussão das relações raciais para além de pura e simplesmente pensar conteúdos”.

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20 de sociedade brasileira, na Educação, nós temos essas duas leis que nos possibilitam hoje ampliar o universo de discussão das relações raciais para além de pura e simplesmente pensar conteúdos, porque nós precisamos pensar conteúdos escola-res, mas esses conteúdos escolares, eles devem se encarnarem em pessoas, em sujeitos e esses sujeitos são alunos, professores, coordenadores pedagógicos, são as pessoas que atendem na se-cretaria da escola, são as pessoas que entregam a merenda para as crianças porque, dependendo da sua visão de mundo, você trata essa ou aquela pessoa de uma forma ou de outra forma.

Então, são questões fundamentais que não podemos perder de vista quando estamos discu-tindo então relações raciais. Então, as duas leis nos amparam do ponto de vista de fazer essa dis-cussão, do ponto de vista de criarem conteúdos de discussão sobre relações raciais. Então, qual é a base fundamental ou por que elas nos dão esse marco legal, amplo de sociedade brasileira? Porque elas colocam a questão como sendo uma questão nacional. Então, você está no Amazonas, você está no Rio Grande do Sul, você está em São Paulo, es-sas questões têm que ser colocadas porque é um universo de país e eu não posso dizer que o ra-cismo no Brasil está circunscrito nesse ou naquele local, então, coloco como uma questão nacional. Visam o quê? Superar uma visão negativa que foi construída ao longo da História do Brasil e cons-truída, visão negativa do africano, visão negativa do afro-brasileiro, visão negativa do indígena. En-tão, essa construção negativa marcou esses po-vos e visaram o que também na escola? Uma per-manência bem-sucedida, porque tanto quanto as questões relativas a gênero, se você não permite um trabalho, se você não reconhece as pessoas, se você não viabiliza as pessoas de forma positi-va, também você está negando uma permanência bem-sucedida nas escolas para quaisquer desses sujeitos. E um outro dado fundamental é que as

leis estão num hall de políticas de ação afirmati-va, então essas políticas de ação afirmativa são também hoje muito interessantes e importantes para nós no nosso trabalho. Dentro da perspectiva da trajetória histórica da lei ou das leis, dizemos que a questão racial no Brasil, e eu já disse antes, repetimos, ela tem como marco fundamental a lei, marcos legais. E na verdade, é sempre um confron-to com uma desigualdade, que foi historicamente construída e, costumamos dizer, se a desigualda-de foi construída, ela pode ser desconstruída. Esse que é o processo, grande desafio nosso, como é que nós desconstruímos essas desigualdades construídas? E aí, reporta-se às crianças, mas reporta-se a nós, sujeitos dentro dos espaços escolares, como conseguimos desconstruir essas desigualdades? Uma outra questão fundamental quando nós estamos falando dessas leis e esta-mos falando de escola e estamos falando de inclu-são educacional, desafios para a aplicação da lei, qual é a concepção de Educação que perpassa a cabeça dos gestores públicos? E essa é uma gran-de questão, porque se eu não tenho uma concep-ção de Educação e de que a aprendizagem se dá em idas e voltas, se eu não tenho uma concepção de Educação que vai poder dizer que os sujeitos aprendentes são também sujeitos ensinantes, se eu não tenho uma concepção de Educação que o processo educacional vai se construindo, nada está pronto, nada está feito, a partir só dos con-teúdos que eu tenho no livro didático, eu limito a possibilidade de fazer com que essas leis se efeti-vem, de fato. Um outro dado fundamental é a con-cepção de currículo e na lei, a própria Lei 10.619, ela reconhece currículo como grade, não currículo como totalidade das relações que estabelecem

na escola. Por que se estabelece currículo como grade? Porque coloca: “Olha, História, Literatura e Artes”, aí o professor de Geografia diz para mim: “A questão de discutir relações raciais não é comigo,

“Essas questões têm que ser colocadas porque é um universo de país e eu não posso dizer que o racismo no Brasil está circunscrito nesse ou naquele local, então, coloco como uma questão nacional”.

“Se nós paramos no senso comum e o conhecimento do senso comum é um tipo de conhecimento, mas ele é eivado de preconceitos, nós nos tornamos repetidores de preconceitos”.

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21não, porque a lei diz que é em História, Literatura e Artes”, ou o professor do Ensino Fundamental 1 e, aí é um espaço fundamental de poder fazer com que as crianças aprendam, e dizem: “Não é comi-go não, porque eu não trabalho com disciplinas, eu sou professor de todas as…”, ou seja, as pessoas então, vão deixando as coisas por fazer.

E deixam muito mais por fazer, sobretudo, por causa da sua formação, a formação que nós temos nas universidades, salvo raríssimas exceções, ela não dá conta de tratar com esses temas. Os cursos de Pedagogia, as faculdades de Psicologia não dão con-ta de tratar do tema. Então, se nós paramos no senso comum e o conhecimento do senso comum é um tipo de conhecimento, mas ele é eivado de preconceitos, nós nos tornamos repetidores de preconceitos. En-tão, temos que avançar para além do conhecimen-to do senso comum. Nós, educadores, educadoras hoje temos que trabalhar dentro dessa perspectiva. Então, a concepção de Educação nos traz um novo conceito, então Educação como uma construção sócio-política, econômica, cultural e histórica. E nes-se universo, não dá para ninguém ficar à margem. Eu costumo dizer que é dar visibilidade a autores e au-toras que estão dentro desse universo escolar, mas não são enxergados numa tela de pintura. Não são enxergados porque eles não estão nos livros, eles não aparecem nos livros e não aparecem, também, nas leituras que os professores fazem nas salas de aula e, hoje, nós estamos vivendo uma questão que é muito interessante e eu falo isso por vezes em pales-tras, não devemos criticar os materiais didáticos, eu digo… eu próprio fazendo reflexão comigo, digo: “Não, esses materiais não precisavam mais ser criticados, são materiais didáticos que são comprados por um governo que aprova uma lei nacional em que história e cultura africana, afro-brasileira e indígena devem estar nos currículos”. Ora, os livros já deveriam dar conta disso e não dar conta de um matiz cultural ape-nas eurocêntrico ou colocar, por exemplo, as popula-ções indígenas dentro da colônia. Não tem mais… não se fala mais sobre a questão de colônia, invisibiliza as populações indígenas dos livros. Então, é aquele que está lá preso. Ou áfrica, a ideia de que a áfrica é um continente parado no tempo, porque em algumas vezes, em algumas das reflexões em que mostramos fotos, nada de excepcional, mas uma foto de uma ci-dade africana com sete milhões e trezentos e poucos mil habitantes, as pessoas assustam, porque a ideia é de que a áfrica é o leão correndo atrás de uma ze-bra numa savana. isso é áfrica. Então, não é um con-tinente parado no tempo, faz parte de todo processo que todos os países, continentes vivem.

Então, essas dimensões são dimensões que a gente… passam, às vezes, despercebidas dentro dessas matérias que nós trabalhamos e, aí, temos que criar um material paradidático para trabalhar com livros comprados pelo governo que dedam aquilo que estamos propondo, ou apenas fazem em alguns deles, algumas denúncias; existem alguns li-vros também denuncistas, mas não avançam mais do que isso. Então, portanto, é fundamental proble-matizarmos esses materiais para problematizar-mos, também, o silêncio e o silenciamento das crian-ças dentro da escola, porque umas fazem silêncio e outras são silenciadas e os conteúdos ajudam a silenciar. Lembro-me que em algumas vezes, quando eu estudava no ensino fundamental, o meu profes-sor ia falar sobre o negro no Brasil, dava vontade de esconder debaixo da última carteira. Então, era uma percepção importante. E daí partimos, é necessário que pensemos em currículo, pensamos em currículo dentro da perspectiva desse diálogo com a diver-sidade que está presente na sociedade brasileira. E quando eu estou falando, eu estou dizendo que o que nós temos de mais novo, hoje, de um ponto de vista de currículo é, sim, discutir as questões de gênero, discutir questões de sexualidade, discutir questões étnico-raciais, negro, indígena, discutir a questão de acessibilidade, é o que pontua como algo novo do ponto de vista do reconhecimento de sujeitos e sujeitos que foram considerados invisíveis ao longo de toda uma trajetória educacional. Então, visibilizar esses sujeitos dentro da nossa sociedade.

“Portanto, é fundamental problematizarmos esses materiais para problematizarmos, também, o silêncio e o silenciamento das crianças dentro da escola, porque umas fazem silêncio e outras são silenciadas e os conteúdos ajudam a silenciar”

“Uma outra coisa que é fundamental com relação ao racismo: há um reconhecimento da existência do racismo, mas as pessoas acham que não devem fazer políticas específicas para discutir isso”

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22 E na Educação atual? Ademais de tudo isso que estamos falando, como é que essas coisas es-tão ocorrendo? Porque temos avanços, não há o que negar que temos avanços, mas, no entanto, temos muitos desafios ainda nessa perspectiva que nós estamos construindo. Então, uma questão funda-mental na Educação atual é pouca disponibilidade do agente público disponibilizar momentos de formação continuada para os educadores. Eu faço parte de uma experiência bastante interessante que estamos fazendo em Guarulhos, que nós trabalhamos com os professores em oficinas uma vez por mês em algu-mas escolas dando formação sobre relações especí-ficas raciais. Lá, se está disponibilizando. Em outros municípios, e corremos municípios falando sobre a questão étnico-racial e apesar de a Lei 10.639 já ter 11 anos, tem lugares que muitos nunca ouviram falar ou, então, o agente público tem que disponibilizar es-ses momentos de formação. Embora seja uma lei, às vezes, fica na mão de pessoas bem-intencionadas fazendo o trabalho, não tem um coordenador pe-dagógico: “Sou ligado na questão étnico-racial, vou levar esse material para a escola”, ou tem um profes-sor bem-intencionado: “Legal, vou levar e fazer essa discussão na escola”, então são essas pessoas que disponibilizam materiais de formação. Em algumas vezes, vivenciamos o que eu chamo de engaveta-mento do material, ou seja, chega o material: “Che-gou esse material aqui, é para discutirmos questões relativas à sexualidade na escola…”, aí alguém pega aquele material e ele desaparece. “Chegou todo esse material para discutirmos relações raciais aqui…”, esse material desaparece; aí você vai conversar so-bre: “Chegou o material?”, não, ninguém sabe”. En-tão, as pessoas não se apropriam dos materiais. E uma outra coisa que é fundamental com relação ao racismo: há um reconhecimento da existência do ra-cismo, mas as pessoas acham que não devem fazer políticas específicas para discutir isso. Então: “Existe racismo no Brasil?”. “Existe”. “Vamos fazer uma dis-

cussão para mudar isso?”. “Não, não vamos mexer com isso, teremos que mexer na ferida…”, então, essa vivência temos também dentro das escolas, reco-nhece, mas, no entanto, não trabalha…

Na Educação, também, processos de… isso é fundamental, processos em que os professores não se acham pesquisadores. Para mim, é inerente à fun-ção do educador, do professor e dele ser pesquisa-dor. No entanto, a espera de alguns materiais ou a espera de receitas é muito maior do que se lançar a… então, isso também vivenciamos hoje. E junto a isso, claro, se você não é pesquisador, você desconhece as produções teóricas sobre determinados temas ou determinados assuntos. Aí, eu digo que muitos avan-ços, hoje, muitas conquistas vêm a partir de ações individuais de algumas pessoas, eles vêm a partir dos movimentos sociais, eles vêm a partir de coordena-dorias e algumas secretarias que existem dentro dos governos e eles vêm a partir de entidades não gover-namentais. Então, no entanto, essas ações, esses avanços, como eu disse no início, eles estão aconte-cendo, mas ainda hoje e depois de muitos anos, e da vivência com esses 500 anos, acho que ainda temos muito que caminhar do ponto de vista das questões étnico-raciais. E dois slides finais, voltando ao início, positivar a questão da negritude no Brasil, para mim é romper com “Estatuto da normalidade”, em que os sujeitos passam muitos anos em variados campos da vida, mas, no entanto, não percebem a existência do racismo. Então, eu chamo o grupo a educar o nos-so olhar e a nossa escuta para as coisas que aconte-cem nesses cotidianos. Tirar essa ideia de Estatuto da normalidade que nos prende, que nos amordaça. Não é normal invisibilizar mais de 50% da população brasileira. E, por fim, acho que é importante quando discutimos trazer essa referência, que nós somos também, agentes no processo de mudança. Então, saber que a nossa produção com isso que eu estou falando aqui, esse diálogo vai travar daqui a pouco são sínteses provisórias, podemos a alguns anos estarmos no mesmo espaço de conversa e com as mesmas pessoas, e termos avançado muito mais do ponto de vista das nossas sínteses. Saber também que devemos olhar criticamente o nosso fazer, então, o meu fazer pedagógico, enquanto coordenador na escola, o fazer de vocês, enquanto psicólogos, o fazer de vocês enquanto estudantes, olhar criticamente o nosso fazer. E fundamentalmente, não perder de vis-ta aquele último item: crença no humano, saber que somos inacabados, então que há possibilidade de processos de mudança, porque se não acreditarmos que possibilidade do processo de mudança, estaría-mos fadados ao fracasso. Obrigado.

“Eu digo que muitos avanços, hoje, muitas conquistas vêm a partir de ações individuais de algumas pessoas, eles vêm a partir dos movimentos sociais, eles vêm a partir de coordenadorias e algumas secretarias que existem dentro dos governos e eles vêm a partir de entidades não governamentais”.

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Plateia; Bom dia a todos e a todas, meu nome é Rubem, parabenizo a Mesa pelo tema, os conse-lheiros, também. E eu queria só fazer uma… enfim, trazer uma questão que para mim incomoda muito quando tratarmos desses temas, bastante polêmi-cos; eu sempre entendo que o problema que tam-bém deveríamos discutir, seria também interessan-te pontuarmos, é o problema que emerge também da redistribuição de renda no país, quando trata-mos também desse tema. Sabemos que as con-dições socioeconômicas do nosso povo influem bastante também na intensidade do preconceito, por exemplo, sabemos que ser uma pessoa com deficiência pobre não é o mesmo que uma pessoa com deficiência abastada, rica. Ser gay, homosse-xual, enfim pobre não é o mesmo que ser um gay e ser uma pessoa com orientação homossexual rica. Ser negro pobre não é o mesmo que ser um negro rico ou com uma condição socioeconômica mais abastada. Eu tenho na minha trajetória exemplos disso. Quantas vezes estava propositadamente, como a sociedade entende, malvestido e fui tra-tado de um jeito; quando estava bem vestido, fui tratado de outro jeito. Quantas vezes, em função do meu trabalho, estava na Avenida Paulista, fui estacionar o carro, que a sociedade entendia que era um carro bom, carro de luxo, o manobrista que não me conhecia perguntou para mim… (isso não ocorreu uma vez, aconteceram várias vezes em estacionamentos diferentes): “O senhor fala bem português, o senhor está há muito tempo no Bra-sil?”, porque eu estava bem vestido e com um carro bom, não é? Certa vez, num curso de psicanálise com uma colega minha, ali na região da Paulista também, Bela Vista, Jardins, no intervalo, ela foi na Oscar Freire e pediu que eu a acompanhasse, eu estava com ela no almoço e, obviamente, eu não ia comprar nada na Oscar Freire; ela foi comprar e eu não ia comprar nada naquelas boutiques fe-

mininas, fiquei na porta aguardando ela verificar o que ela queria comprar, apenas na porta. Só que o atendente percebeu que eu tinha chegado com ela e eu fiquei na porta. Depois que ele atendeu essa minha colega, ela já quase saindo, ele veio para ela e perguntou: “Desculpe, eu não dei atenção para o seu amigo, ele fala português?”. Então, gente, eu acho que isso é uma questão que a gente… quando falamos de racismo, enfim, preconceito, eu enten-do que seria interessante também fazermos essa demarcação, porque as condições socioeconômi-cas do nosso país, elas influem muito também na visão do outro que temos na sociedade. Obrigado.

Plateia: Eu ia falar que é interessante como o racismo no Brasil é tão sutil. Quando começou o tema, eu chorei muito, porque como mãe branca e um filho negro, entendo aquilo como normal, que tenho cinco filhos, quatro são mais clarinhos e nas-ceu o meu negro, que eu chamo de negro, negro mesmo, enfatizo: “Você é o meu negro lindo”. Na escola, em algumas oportunidades, eu tive que intervir porque estava sendo agredido por uma criança branca e a professora protegia a criança. Só que dentro da família, quando brincavam com a questão da cor dele, eu como mãe, às vezes, partia de irmãs: “Já nasceu agarrado no relógio do médi-co”, aquilo passou por mim como uma brincadeira até o dia em que o meu filho foi servir o Exército e na hora em que eu coloquei o que caracteriza uma boina, que significava que ele estava se forman-do, esse menino chorou demais, não conseguia tirar ele, desagarrar de mim. Eu falava: “Para com isso, para de chorar dessa forma”, somente quan-do ele chegou em casa, eu falei: “O que foi? O que aconteceu? Por que aquele choro desesperado fi-lho, num lugar público, o que houve?”, ele falou: “Eu cresci com um estigma de que eu ia ser um ladrão e, naquela hora, passou um filme na minha cabe-

Debates

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24 ça, eu estava provando para a sociedade que eu sou um homem de bem que você fez isso”, eu falei: “Não. Como mãe, igual aos seus irmãos, eu apenas demonstrei o caminho, a escolha foi sua”, mas eu tenho um filho com problema de saúde e o fato de eu ter um filho, o outro, quase à beira da morte, me dói tanto para mim, como mãe, o fato de não ter percebido, isso dói até hoje, eu falo: “Eu fui falha nisso”, de ter, talvez, protegido ele, eu não sei se eu conseguiria dar conta, porque a família toda clari-nha, eu tenho filho loiro que quando eu estou abra-çada com ele, esse que é negro, ele fala para mim: “Mas eu sou um loiro de olhos azuis”, ele se coloca assim, eu viro para ele e falo: “Loiro de olhos azuis na minha família é comum, ele é o meu diferente”. Então, essa linha de racismo é incrível, como é su-til, como não percebemos. Hoje, está sendo muito mais discutido dentro da minha casa, com os meus filhos a questão do racismo, até porque, agora, eu tenho um netinho, não dele, do loiro que nasceu mulatinho. Então, discutimos muito isso, com mais clareza para que não passe despercebido. Mas eu sofri muito, sofro até hoje, talvez eu tenha até que fazer uma terapia porque… não, realmente, é uma dor que me marcou muito.

Plateia: Gente, bom dia. Então, só puxando o as-sunto que a senhora falou, eu acho importante essa questão da diferença, às vezes, até na for-ma como colocamos, porque não podemos fa-lar: “Diferente porque ele é negro”. igual no seu caso, para você ter essa mistura na sua família, mas, não o tratar diferente por ele ser negro, ele é como todos os seus outros filhos e diferente vai doer mais… desculpe até eu estar falando direta-mente, mas como você já levantou esse assunto não por: “Mulato…”, não tratar como diferencial, porque, senão, você só vai estar reproduzindo o que a sociedade também faz, eu acho que está na hora de tratarmos como igual. Como quando discutimos esse assunto, não querermos nos co-locar… infelizmente, a história do negro, enfim, de todos os preconceitos já é um assunto muito sen-sibilizado, mas temos que tentar a partir de agora, fazer uma coisa mais no sentido natural assim, de tentar construir uma nova história e não continu-ar com essa diferenciação.

Plateia: Bom dia. Meu nome é Lucas e eu queria perguntar para o Leonardo que tocou um pouco mais nesse assunto, como você vê os psicólogos e quem está formando psicólogos hoje e lidando com a questão da homossexualidade? Pergunto, porque eu sou estudante, eu estou no segundo

ano e eu não tive um, mas eu tive vários profes-sores que sempre que vão falar do assunto, eles falam “homossexualismo”, me dói muito ouvir isso na universidade e saber que é um profissional que não está preparado para lidar com isso e está repassando esse tipo de conhecimento, ele está reproduzindo homossexualismo, ele está reprodu-zindo outros tipos de termos que, enfim, já houve “n” batalhas e questões para se mudar e para se-rem encarados de uma forma mais real. Então, eu não sei em outros meios ou no meio em que vo-cês estão vivendo hoje como é isso, assim, mas eu ainda vejo uma deficiência muito grande de quem está formando os próprios psicólogos.

Plateia: Bom dia, meu nome é Maitê e eu gostaria de fazer uma pergunta para a Mirnamar, já dire-tamente com relação ao CRP: quais são as ações que o CRP está fazendo com relação à Educação e à inclusão, pensando a inclusão como o Leonardo disse, a questão racial, a questão homofóbica, a questão de inclusão de deficientes. Então, o que o CRP está trazendo, quais são as atividades que o CRP está buscando para, mais do que nunca, tra-zer o psicólogo para essa atuação?

Lauro Cornélio da Rocha: Na verdade, a questão do tratamento, a questão do jeito. Eu vou pedir de novo ajuda ao Sérgio Loroza quando se fala do tratamento, tem mais poder, tem mais dinheiro, é tratada de um jeito; não tendo poder, não tendo dinheiro, é tratado de outro jeito. Assim, do ponto de vista da população negra na sociedade brasilei-ra, primeiro, eles precisam saber que eu tenho di-nheiro, porque se eles não souberem, o tratamento é o tratamento de um negro dentro da sociedade brasileira, do ponto de vista da questão então da inferiorização. Aí quando sabem que eu tenho di-nheiro, o tratamento vai na direção, eu diria, do tiro na nuca: eu tolero, eu trato um pouco mais re-finado, porque do ponto de vista socioeconômico, esse é alguém que galgou um espaço dentro da sociedade brasileira, então eu tenho que tolerar isso, mesmo que eu não goste. Agora do ponto de vista da população nas periferias, e aí, temos as campanhas do extermínio da juventude negra pobre periférica e aí, é brutal, aí não tem discus-são e nessas periferias, mesmo onde habitamos ou trabalhamos, são capazes de estar um menino branco e o menino negro, os dois meninos da mes-ma escola, eles são capazes de mandar o menino branco para casa e meter a mão na cara e chute na bunda do menino negro. Então, lá é tiro na cara direto. Então, desse ponto de vista, eu acho que é

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25assim, as formas de tratamento, a variação dessas formas de tratamento, elas têm também a sutileza do racismo. Um amigo conta - e eu já passei por uma experiência um pouco parecida de que é as-sim, antes de você chegar, tem que chegar o seu currículo. É isso, professores universitários, nós éramos todos professores universitários, etc. e tal, e para justificar que eu havia sido convidado para um churrasco na casa de um professor, quando eu estava chegando, ele já tinha falado: “O Lauro Cornélio, formado em Filosofia, Mestre em História Econômica, formado em Pedagogia e fala tantas línguas…”, ou seja, criou todo um referencial para dizer quem era o Lauro. Por isso, às vezes, eu vou nas palestras, nas discussões, eu costumo colocar só Educador. Depois, eu chego junto, mas eu chego como educador. Essa é uma referência de constru-ção da sociedade brasileira, que é uma construção dentro dessa perspectiva do racismo. E outra coi-sa, a questão da sutileza, que também está den-tro da mesma perspectiva. Então, sutil diferença, eu costumo falar com os professores nas conver-sas que fazemos com aluno, assim, o contrário de diferença é indiferença. O contrário de igualdade é desigualdade. Então, nós queremos que sejam respeitadas e incorporadas as diferenças, mas sermos tratados com igualdade. É isso que é uma construção diferenciada e também isso não é meu, não, é do Boaventura de Sousa Santos.

Leonardo Lemos de Souza: Eu acho que pensando especificamente no tema da questão da homos-sexualidade, quando você fala de… eu estou pen-sando aqui dessa questão de redistribuição de… não é questão da classe social na forma como… na verdade, quando você pensa na questão da clas-se social, assim, as pessoas têm mais condições financeiras, pertencem a uma classe social mais abastada, enfim, isso é um passaporte para mui-tas coisas e quando se trata da questão da se-xualidade especificamente, vemos muito isso em várias falas de gays, de lésbicas, de travestis, de transexuais, existem alguns passaportes, o fato de ter mais dinheiro, mais conhecimento, mais cur-rículo são estratégias de… para alguns, estratégias de sobrevivência, eu estou falando do lado das pessoas que são e que estão nesses lugares, né, que conquistaram esses lugares do ponto de vista da classe econômica, do ponto de vista da titula-ção: “É veado, mas é doutor. É veado, mas é médi-co. É travesti, mas ela é educada, tem conhecimen-tos, fala várias línguas…”, então é um passaporte, infelizmente, não é? São essas marcas, eu acho que o Lauro falou uma coisa importante: “Você vai

me apresentar, me apresenta como tal”, e não in-teressa o resto. Perdemos a percepção do huma-no, começamos a trabalhar com essas referências, não é? E passa… como já é algo… até a aceitação por famílias, na verdade, não aceitação, o meu filho é homossexual, é gay, é lésbica, mas ele é o cara que sustenta a casa, então, eu aceito entre aspas. Está tudo bem, tem o amigo dele ou amiga dela que não é o companheiro, a companheira, mas, en-fim, está ali circulando, circula de outro jeito, não do modo como deveria circular.

Eu acho que tem uma coisa importante quando isso vai para a escola, principalmente na Educação, isso na sociedade de maneira geral, mas quando isso vai para a Educação, que são estigmas, alguns estigmas que aparecem que nem ela estava falan-do do filho dela e eu lembrei de outra… falando de filhos que eu também tenho e, pensando na ques-tão da adoção, porque na verdade, a escola opera com vários estigmas, com esses estigmas todos, então, a criança que é negra e está condenada… a escola prevê… ela projeta trajetórias de vidas para essas crianças, então, o negro vai dar naquilo, o homossexual vai dar naquilo, uma criança adotiva vai dar naquilo, ela constrói trajetórias para essa criança e é essa coisa que temos que quebrar, por-que isso é extremamente excludente, é enfim… ela opera com essas produções sobre o diferente, ela projeta trajetória de vida para essas crianças e a Psicologia ajuda muito a construir essas trajetó-rias, porque ela se apropria de discursos na ciên-cia – entre aspas – e na moralização também, que classicamente, se produz sobre essas populações, o velho, a criança, o adolescente, o idoso, a crian-ça que tem o estigma de ser adotada, o negro, o homossexual, enfim, todas essas categorias que a Psicologia produz conhecimento, quando você pega a Psicologia do desenvolvimento, por exem-plo, você está falando da formação, Psicologia do desenvolvimento descreve uma série de teorias que promovem uma trajetória dessa criança do ponto de vista da aprendizagem, do ponto de vista da sociabilidade, do ponto de vista dos afetos e que ela define uma única existência, às vezes, pos-

“A Psicologia ajuda muito a construir essas trajetórias, porque ela se apropria de discursos na ciência – entre aspas – e na moralização também”.

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26 sível e que a sexualidade não pode ser outra, ou por conta da cor da pele dela em função de teorias e de mitos, na verdade, que já estão enraizados e que se incorporam em discursos sobre a diferen-ça, que vai ser ladrão… estigmatizado, totalmen-te. E no caso das crianças, principalmente, que tem… que estão nesses lugares, o pobre também tem essas trajetórias. Você pega uma criança, por exemplo adotiva, você imagina ela então, filha de um casal gay, ela está duplamente condenada, e pobre, triplamente condenada e negra, muito mais. Então, a escola trabalha muito com isso. Então, uma criança adotiva está fadada a ter dificuldade de aprendizagem, a não poder conhecer, a ter di-ficuldades na escola, a ter dificuldades de socia-bilidade, a ter dificuldades emocionais, e ponto, ela não pode construir outra história, por isso que quando você fala de narrativas, eu estou falando dessa intenção de outras coisas, porque essas ou-tras narrativas sobre ela já estão ali no discurso. Enfim, e temos que quebrar isso, temos que falar do humano, quando a gente… não que essas dife-renças não tenham que ser incorporadas, incorpo-radas ao humano, acho que é uma característica que falamos muito pouco que é o humano, falamos de outras coisas, mas do humano como algo que nos une, que compartilhamos da humanidade, não falamos, não dizemos. Por aí, mais ou menos. Eu já posso aproveitar a pergunta do Lucas, quando você fala da questão de como lidar com essas questões na formação sendo que você escuta isso… é isso, mais ou menos, dos seus professores que são psicólogos a respeito da questão da ho-mossexualidade e, às vezes, por um viés que é da patologia ou que é do desvio, que é… vindo para cá, eu fiquei pensando numa coisa quando pensamos na questão da homofobia ou da homossexualida-de, quando você pensa em formação, então, sabe-mos do ponto de vista oficial, tem lá no documen-to, existe a normativa, o dado documental de que temos que patologizar a homossexualidade, por exemplo; não é patologia, ponto, está decretado, tem um documento, não só decretado, mas antes havia discussões outras.

Mas tem um documento que diz… o documento é extremamente importante, porque ele afirma políticas e afirma formas de se lidar com aquilo e regula as relações com as pessoas, ótimo, só que não basta, não basta estar escrito, se fosse isso, era muito simples, não basta estar escrito, então, quando falamos de homofobia no campo da Psi-cologia, dentro do contexto da escola e que os professores, quando trabalhamos com formação, eles sabem essas informações? Eles têm acesso a essa informação? Homossexualidade não é do-ença, a criança que tem um comportamento de gênero que não é o mesmo do seu sexo biológico, culturalmente, dito como referência… a construção da identidade de gênero é uma coisa… enfim, quan-do você começa a falar essas coisas, para eles é a mesma coisa, porque a sexualidade, principalmen-te, ela entra no campo da questão moral, não en-tra na questão só científica, você pode falar para eles milhões de coisas sobre dados de pesquisas e fala… você pega crianças que foram criadas por pais gays e a questão delas serem ou não gays, tem estudos já feitos, longitudinais, enfim, acom-panhando essas crianças por muito tempo… não adianta você falar isso, porque é uma questão moral, está enraizado nele essa ideia de que a ho-mossexualidade é um desvio, ou moralmente não aceito, condenável, que não é possível viver assim, ou seja, se vive, mas é uma vida menor e não preci-samos incentivar isso, porque acho que se incenti-va, ou que se divulga ou se que publiciza.

Então, quando pensamos isso no campo da Edu-cação tanto na formação de psicólogos, quanto na formação de educadores, temos uma lacuna muito grande ainda, embora existam iniciativas que tra-

“Homossexualidade não é doença, a criança que tem um comportamento de gênero que não é o mesmo do seu sexo biológico, culturalmente, dito como referência…”

“Quando você trabalha com formação de educadores, e o psicólogo, às vezes, trabalha muito com isso, seja na prática ou seja na formação universitária desses educadores, porque a disciplina da Psicologia da Educação, a Psicologia do Desenvolvimento é extremamente importante nesse trabalho, na formação deles”.

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27balhem com isso, que problematizem essas ques-tões, porque no caso da Psicologia, especialmen-te, ainda temos muitas disciplinas com teorias que afirmam esse lugar da patologia. Então, entramos nesse campo e que destoa com a formação idea-lizada de alguma forma e, também, com as norma-tivas do Código de Ética do psicólogo. E no campo da Educação, quando você trabalha com formação de educadores, e o psicólogo, às vezes, trabalha muito com isso, seja na prática ou seja na forma-ção universitária desses educadores, porque a disciplina da Psicologia da Educação, a Psicologia do Desenvolvimento é extremamente importante nesse trabalho, na formação deles, temos muito pouca coisa sobre isso. Existem algumas discipli-nas e, pontualmente, algumas disciplinas que dis-cutem isso, mas não há uma disciplina só. Quando pensamos… quando eu falo em trazer o cotidiano para a escola, eu acho que tem até uma pergunta sobre isso, o pessoal deve ter feito on-line, eu es-tava lendo aqui com você, isso é trazer o cotidiano para a escola quando falamos da vida das pesso-as, do concreto, da vivência, das experiências hu-manas que não são desvio, que não são patologia, que é diversidade e que deve ser discutida, deve ser compartilhada na escola. Acho que a melhor palavra é essa, compartilhada nas escolas. As ex-periências religiosas, as experiências culturais, es-sas experiências deveriam ser compartilhadas na escola e a escola não se abre para esse lugar e a universidade também não. E nas escolas também muito difícil, quando trabalhamos com a formação de professores; eu tenho um projeto que o MEC fi-nancia com as escolas na minha região, onde eu trabalho e quando oferecemos para os órgãos de dirigentes, eles dizem que isso não é o mais im-portante, que o mais importante é o empenho, é a prova do ENAD, é a prova do ENEM, é a “provi-nha” Brasil, é o SARESP, por causa do ranking na escola. Então, quando você escuta isso, você está entendendo assim: a escola não está preocupada em formar pessoas, ela está preocupada em for-mar executores de uma avaliação, ou pessoas que saibam fazer uma avaliação e ponto. Ela não está preocupada em formar cidadão, não está preocu-pada em inserir-se em contexto político, problema-tizar com eles a vida, não está. E eles dizem: “Nos-sa preocupação com os alunos é a aprendizagem”, e você continua ali: que aprendizagem? Conteúdos que estão lá para as “provinhas”, ponto. Ainda exis-te esse discurso e, na verdade, é culpa do profes-sor? Não é culpa do professor, é culpa da escola? Na verdade, a culpa é nossa, a culpa é nossa que sustentamos ainda e admitimos uma escola as-

sim, todos nós, todos nós, fazemos, na verdade, a escola, somos cidadãos, estamos numa sociedade em que deveríamos, na verdade, pensar a escola de uma outra maneira. Uma escola, outra que não seja amarrada a essas questões econômicas, com esse projeto econômico e político de massificação desses sujeitos, dessas pessoas e de exclusão, completamente. Então, não adianta você formar um técnico e deixar a ética e a formação cidadã de lado, quem vai ser essa pessoa no contexto da so-ciedade. O que estamos produzindo com isso, com essa prática, tanto o educador, quanto o psicólogo que está na escola e está trabalhando, que tam-bém é educador, o que fazemos com isso?

Mirnamar Pagliuso: Respondendo à pergunta da colega, sobre a participação do CRP, o quanto o CRP tem feito, na área da Educação. Bom, pode-mos começar essa conversa dizendo que inicial-mente, enfrentamos uma luta grande de inserção do psicólogo dentro do contexto da Educação. Nós não somos ainda reconhecidos como profissionais da área, então, o CRP nesse sentido, politicamente falando, ele tem uma atuação de provocar situa-ções e fazer dentro de suas ações, estabelecer essa prioridade para que possamos, efetivamente, trabalhar melhor as questões da Educação, do pa-pel do psicólogo na Educação, mas temos alguns instrumentos que temos utilizado, que foram refe-renciados pelo CRP, que são umas contribuições, uma nota técnica sobre a atuação do psicólogo na Educação, de que forma… qual seria o seu papel, enfim, quais são os limites dele, as possibilidades dentro enquanto profissional da Educação. Para além disso, então, nós temos uma atuação tam-bém em projetos de leis que, de alguma forma, entendemos como projetos que poderão ser bons para o atendimento de crianças e adolescentes na escola, nós temos também interferido bastante na questão da patologização de muitos comporta-mentos e aí, pensando até na questão da homos-sexualidade como uma patologia, então temos, também, procurado atuar e fazer uma intervenção na questão da medicalização e da patologização.

Temos procurado na questão da Educação inclu-siva, temos um documento que está sendo ela-borado de uma pesquisa voltada para… que traz o universo dos psicólogos, que estão trabalhando na área e mostra um pouco qual é esse perfil e criando referencias técnicas; nós temos também o CREPOP, que é o Centro de Referência de Políti-cas Públicas, já temos um documento da atuação do psicólogo na educação básica, um documento

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que, inclusive, vocês devem ter recebido, deve es-tar na pastinha de vocês, é um documento bas-tante importante, porque dá uma dimensão do trabalho que o psicólogo tem na Educação, que é diferente da atuação do psicólogo na saúde, na assistência social e que precisa ser melhor com-preendida, porque, inclusive, o papel do psicólogo na Educação ainda não é bem compreendido, as pessoas, as instituições, enfim, entendem o pa-pel dele ainda como aquele que entra no espaço escolar para tratar de problemas das crianças de aprendizagem, de comportamento e não é esse o papel do psicólogo na Educação. O papel dele é mais amplo, é um papel mais de trabalho ins-titucional, de mediar relações e de cuidar para que, realmente, essa criança possa ter uma me-lhor qualidade na Educação, possa, realmente, ser trabalhada da maneira mais adequada, enfim, é um papel que está ali e participar, ser membro da equipe. Então, gostaríamos muito que tivésse-mos mais psicólogos que trabalham na Educação, presentes, inclusive, aqui dentro do CRP juntos, fazendo essa construção, porque também temos essa dificuldade, de localizar quais são os profis-sionais, onde eles estão, infelizmente por todas essas questões, muitas vezes, não conseguimos ter esse acesso. E essas iniciativas que nós esta-mos fazendo como a de hoje, por exemplo, tam-bém fruto desse trabalho, do Núcleo da Educação junto com os outros Núcleos, no sentido de estar promovendo debates, discussões que possam contribuir para o entendimento, para a compreen-são mesmo desses processos que ocorrem den-tro dos espaços escolares. Bom, acho que agora faremos uma rodada com os nossos internautas, que estão on-line; eu queria só dizer que nós es-tamos com 125 pontos de acesso e eu vou ler aqui as perguntas dos nossos colegas que estão

on-line: “Bom dia, excelente o trabalho do CRP SP em colocar o tema em pauta. Meu nome é Ricardo, sou professor de Língua Portuguesa das redes particular e pública em São Paulo e gostaria de saber um questionamento não especificamente a um dos participantes, mas a quem considerar importante esclarecer o assunto: como inserir no cotidiano escolar o tema da homossexualidade, também da homofobia e da negritude, também do racismo sem cair no segregacionismo no re-forço dessa ideia como diferente, mas como um fato sociocultural tão normal e digno de respei-to como o é e vem sendo tratado o portador da necessidade especial, gestante, etc.?”. A outra pergunta: “Realmente inspirador para esta ma-nhã, Leonardo usou sua fala de forma, realmente, potente, para provocar a prática reflexiva, como aquela que deve ser proposta dentro das esco-las. O grande desafio é viabilizar junto ao espaço escolar novas práticas discursivas junto às mino-rias tradicionalmente excluídas. Definitivamente, a linguagem e a sua produção estão orando para uma nova ética no espaço escolar. Obrigada”. Lu-ciana Stoppa dos Santos, que é psicóloga e Mes-tre em Educação Especial pela Universidade de São Carlos. E a Juliana pergunta: “Eu gostaria de parabenizar a iniciativa e propor aos palestrantes a pergunta: vocês acham que falta uma atuação dos conselhos e coletivos de psicólogos que seja mais enfática na política das cidades, no sentido de promover eventos de grande porte sobre a di-versidade, mostrar estudos na área e não apenas restringir o assunto em momentos pontuais como esse? Essa atuação maior não contribuiria para valorizar a negritude e a homoafetividade no lu-gar de problematizar apenas a discriminação?”.

Leonardo Lemos de Souza: Bom, a primeira per-gunta é sobre a questão do cotidiano. Se eu estou entendendo, quando o Ricardo comenta: “Como trabalhar com o tema no cotidiano sem cair no se-gregacionismo e no reforço da ideia do diferente?”, eu acho muito difícil, quando você trata desses temas, se a ideia é não tratar desse tema como algo satélite que você reforça essa coisa simples-mente de que vamos tratar da temática das rela-ções étnico-raciais, vamos tratar da questão da homofobia na escola, como algo… é pontual, espe-cífico, precisamos falar disso hoje. Vamos imaginar numa sala de aula como isso pode ser trabalhado? Como algo que simplesmente… é discutido com o professor como um conteúdo outro, não é essa a ideia, pelo menos, não é essa a ideia que eu es-tou tentando defender, eu estou tentando defen-

“O papel do psicólogo na Educação ainda não é bem compreendido, as pessoas, as instituições, enfim, entendem o papel dele ainda como aquele que entra no espaço escolar para tratar de problemas de aprendizagem das crianças, de comportamento e não é esse o papel do psicólogo na Educação”.

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29der a ideia de que isso não é necessariamente um conteúdo somente, lógico, tem história dos movi-mentos sociais, eu acho que isso são conteúdos importantes do que chamamos de matriz curricu-lar, as discussões que podem ser feitas na escola, que traz essa temática como parte dos conteúdos, realmente, da escola seja transversal ou não, mas eu estou falando antes de tudo, talvez lá atrás, na formação dos professores que vão trabalhar com essas questões na sala de aula… porque quando você trabalha com crianças e adolescentes, jo-vens, você não está na sala de aula só lidando com o conteúdo, você e o adolescente ou a criança, você está lidando com relações e nessas relações, essas coisas aparecem e quando essas coisas aparecem, elas têm que ser discutidas, elas têm que ser compartilhadas essas experiências têm que ser compartilhadas.

Eu acho que é muito difícil um professor, por exemplo, hoje talvez, já existem alguns que fa-zem isso, óbvio, mas não é uma política da escola ou isso não é muito comum, ele parar tudo que ele está fazendo para discutir uma briga entre alunos ou uma situação que está acontecendo sobre isso, sobre homofobia, sobre a questão ét-nico-racial, um trabalho na escola como um todo para discutir essas questões de maneira mais ampla, oficinas, semanas, não estou falando de semanas temáticas, mas onde várias atividades são possíveis essas identidades, são possíveis de se expressar de uma forma ou de outra, isso não é ser segregacionista, isso é uma forma de se expressar, eu acho que as pessoas têm di-reito de se expressar como elas são e a escola impede isso, eu acho que o que deve ser feito é não se impedir isso, então, não é só tratar como um tema e conteúdo que se explique: “Olha, ser homossexual é bacana, é legal, não é patologia, não é doença…”, não é isso, é outra pessoa sim-plesmente que se expressa, se ela se expressa de uma determinada maneira na escola, ela não pode ser impedida de se expressar dessa forma, do seu jeito de ser, do seu afeto com relação a um companheiro ou uma companheira, é nesse sentido, quando trazer isso para a escola, é não o professor chamar a direção porque tem duas

alunas de mãos dadas. É isso. É no sentido, as-sim, elas estão de mãos dadas como o menino e a namorada estão de mãos dadas e estão ali na escola, como se beijam, trocam afetos sem se-rem discriminadas, sem serem retalhadas, sem serem estigmatizado por conta dessa condição. Penso mais assim.

Lauro Cornélio da Rocha: Bom, acho que pensan-do na questão que o Ricardo coloca, é interessan-te pensarmos assim, o que consideramos como conteúdos escolares, eu acho que esse é um dado fundamental, porque nós podemos ter, de um lado, os conteúdos historicamente acumulados pela humanidade e ditos aí historicamente acumula-dos pela humanidade, vemos que são conteúdos europeus; conteúdos historicamente acumulados pela áfrica ou pela ásia, não fazem parte do nosso universo de informação, então, pega primeiro essa base e, do outro lado, o que eu chamo de conte-údos da subjetividade, que estão no cotidiano. A grande questão é como eles estão hoje no cotidia-no. Eu acho que as discussões aqui nos levaram a pensar um pouco isso. Então, esses outros conte-údos ou que são conteúdos que estão no cotidia-no, que fazem parte do universo das crianças que estão, dos adolescentes que estão e dos jovens e adultos que estão na escola, muitas vezes, eles são desconsiderados ou, às vezes, quando não são desconsiderados, eles fazem parte de uma fala pequena nossa de educadores sobre o tema.

Então, em determinadas situações, você pode dizer, às vezes, o professor chama a atenção do aluno: “Não faça isso”, quando ele fala: “Não faça isso”, para no “não faça isso”, mas não pen-sa que isso pode se constituir como conteúdo curricular, porque pode ser conteúdo do ponto de vista da construção do conhecimento his-tórico, mas também tem que ser conteúdo do ponto de vista de pensar a subjetividade, de pensar as pessoas dentro da escola, e isso para mim, é o ponto mais difícil, porque as nossas formações não têm dado conta de nos ajudar

“Eu acho que as pessoas têm direito de se expressar como elas são e a escola impede isso”.

“Nós vivemos em um país que seja homem, branco, héterossexual como a norma, as outras coisas precisam ser construídas”.

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30 a fazer isso, nos ajudar a pensar melhor essas situações. Nós vivemos em um país que seja ho-mem, branco, héterossexual como a norma, as outras coisas precisam ser construídas. Então, aí o cotidiano nos dá a possibilidade dos assun-tos que vão aparecer, mas é a nossa formação que tem que nos ajudar a fazer com que esses assuntos vão para as práticas, então, eu acho que esse é um fundamento que ele colocou na pergunta dele. E na outra questão, com relação à atuação dos conselhos, acho que é importante isso, é importante darmos passos e é importan-te pessoas fazerem perguntas, como fizeram, está certo? Eu me lembro que estive em Goiânia, numa Abepsi, num encontro brasileiro de Psico-logia, também as questões eram recorrentes: “Mas são só encontros?”, os encontros têm que ser impulsionadores de momentos mais amplos, porque claro, se ficarmos só nos encontros, eu chamo como eu digo na escola onde eu traba-lho, ficamos como tranquilizador de consciência, o que é isso? 20 de novembro, eu falo sobre o negro, 8 de março eu falo sobre a mulher, entre aspas, 19 de abril, eu falo sobre o índio e não me venha falar mais sobre essas pessoas que já falamos, não me encham a paciência. Então, os nossos processos têm que ser de avanço, de ampliação. Esse universo que eu acho funda-mental. Então, é bom que alguém esteja sempre instigando para que não fiquemos parados, mas que fortaleçamos essas ações. É isso.

Leonardo Lemos de Souza: Só complementan-do um pouquinho o que o Lauro está… quando pensamos… antes na pergunta anterior ainda, como essa formação… dessa lógica que, às ve-zes, temos na formação que não dá conta de fazer essa discussão do cotidiano na escola, enfim, eu acho que uma das coisas importan-tes nessa formação, que eu acho que falta, que não é algo que se ensina necessariamente, que é a questão da formação ética, porque na ver-dade, é disso que estamos falando, possibili-tando uma formação ética que considere essas diferenças e ponto. E sabemos que há muitos professores, muitos educadores, a escola que não tem a oportunidade também de ter uma formação ética aberta a essas diferenças. En-tão, estamos falando, de um sujeito que vai para formação na Pedagogia, nas disciplinas de licenciatura, específicas todas, que depois vão parar na escola que não só nesses lugares eles vão ter essa formação, mas também na sua escola, na sua formação básica não tiveram.

Então, é desde o começo uma formação ética para essas diferenças que é desde o começo, que a escola… o Lauro falou isso no começo da apresentação dele, a escola desde o começo já trabalhando de alguma forma com isso, de se abrindo para essa discussão ou para essa for-mação que não existe ainda, ainda não temos, não existe essa abertura. Ainda tem muita coi-sa para se fazer, existem iniciativas sim, de uma maneira mais ampla, mais global, mas, de um todo, sabemos que tem iniciativas, tem traba-lhos, tem coisas pontuais. Sobre os conselhos, sobre essa segunda pergunta, que eu não tinha comentado, também considero que acho que fazemos alguma coisa na escola, sim, fazemos algo… o que os conselhos, na verdade, ela fala para as cidades, como as cidades pensam isso, como a cidade ou a comunidade também, de uma maneira mais ampla pensa isso. Eu acho que existem algumas coisas que acontecem, tem as paradas, tem algumas coisas que vão se constituindo e que se aliam aos conselhos pro-fissionais, que se aliam a outras entidades que as coisas vão acontecendo. Eu sou otimista, eu não sou tão pessimista assim, mas é sempre um trabalho que é devagar, infelizmente, ainda temos… é legal a pergunta para instigar que se faça bem mais. De coletivos de psicólogos, não tivemos tanto assim, isso é fato.

Jonathas Salathiel da Silva: Agradeço à Mesa, gostei muito do trabalho apresentado e queria trazer algumas provocações nesse tempo que eu estou na gestão aqui do CRP e também da minha experiência profissional e de vida, eu vejo que muito que tem feito nas universida-des, quando se traz a discussão do racismo ou da homofobia é sempre pela militância. Então, aquele professor que já milita num espaço e que traz a discussão, que eu acho muito bom, mas que precisávamos e, aí, eu acho que essa é uma das coisas que eu estou tentando trazer aqui nessa gestão dentro do Conselho é que essa discussão esteja na grade curricular. Fui lá em Assis há uma semana, duas semanas atrás e gostei muito de ver que na grade curricular da universidade tem a discussão de gênero, e é uma disciplina obrigatória, não é opcional e eu acho que isso poderia também acontecer e te-mos ainda a conquistar que essa discussão do racismo também estar dentro da grade. Traz para mim uma indignação pessoal saber que o racismo durante muito tempo não foi conside-rado tema dentro da Psicologia e precisamos

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31fazer essa discussão na sala de aula, não só da pós-graduação, como eu estou vendo ultima-mente, mas desde a graduação, pensar como o Leonardo colocou, esse pensamento ético de sujeito e queria colocar para a Mesa o que vo-cês pensam sobre isso, por que tem tanta difi-culdade de trazer isso para a grade curricular? Acho que é uma das perguntas.

Plateia: Bom dia. Meu nome é Elizangela. Pri-meiro, eu gosto muito de pensar a inclusão educacional como abrindo o espaço também para diversos outros temas que não só volta-do para uma área de crianças que têm alguma deficiência. Hoje, claro, tratamos de dois temas específicos, o racismo e a homofobia, porém, eu acredito que o espaço educacional, a escola é um espaço que oferece… é muito rico para se trabalhar e pensar, discutir vários outros temas que são estigmatizados pela sociedade. Uma pergunta e até entendi o que o Lucas perguntou a respeito dos termos, eu queria colocar para a Mesa o que vocês pensam sobre o uso dos ter-mos: não pode falar negro, é afrodescendente, não pode falar bicha que é atribuído para pobre e gay é atribuído para rico e assim, outras coi-sas. Não é favela, é comunidade, enfim… essa e a minha pergunta, eu gostaria que vocês discu-tissem a respeito.

Plateia: Bom dia. Gostaria de colocar uma ques-tão um pouco na linha do Jonathas, porque eu estava aqui pensando que… primeiro, parabe-nizar pelo evento, pela necessidade do evento e que é até um pouco, na verdade, um pouco sintomático o evento, pensar que precisa de um evento exclusivo para isso não só na Psicologia, mas a minha questão vai um pouco no senti-do de por que dessa dificuldade da discussão desses temas em vários outros espaços e pre-cisar um espaço só para isso, por que precisa os atravessamentos, como ele colocou, atra-vessamento econômico que é importantíssimo também, eles precisam de lugares fragmenta-dos para isso, por que essa fragmentação da discussão? E até pensando, quando eu penso na Psicologia Todo Dia, Todo Lugar, vai apare-cer uma série de conflitos quando se começar a aparecer Psicologia Todo Dia, Todo Lugar… por que sempre é uma coisa fragmentada? Queria refletir junto com a Mesa sobre isso.

Luiz Fernando de Oliveira Saraiva: Bom dia, sou o Luiz Saraiva, sou conselheiro e estou aqui

representando o Núcleo de Sexualidade de Gê-nero. Primeiro, fiquei pensando a importância de um debate como este promovido pelo Conselho, que eu acho que a nossa tarefa, Mirna e Jona-thas, tem muito a ver como que estamos aqui buscando construir um certo lugar para a Psi-cologia, principalmente em São Paulo, mas te-mos um projeto para a Psicologia Todo Dia e em Todo Lugar, e em todo lugar, mesmo. E por que estamos nessa discussão? Porque hegemo-nicamente, nós, psicólogos, somos chamados justamente para categorizar, para patologizar as existências e, com isso, justificar desigual-dades e processos de dominação. Então, acho que um evento como esse serve para justamen-te podermos conversar entre nós a respeito de qual projeto que temos para a nossa profissão e, com isso, qual projeto que temos para a nos-sa sociedade, então penso que a nossa atua-ção como Conselho tem muito a ver com dois níveis: um nível mais micro desse diálogo tête-à-tête que esperamos que possa se ramificar na atuação cotidiana dos nossos profissionais e num nível macro onde possamos intervir em processos mais sociais e políticos de outra or-dem. Fico lembrando que acho que uns três me-ses atrás, por exemplo, o Conselho atuou ativa-mente junto ao Conselho Estadual de Educação em defesa do uso do nome social de travestis e transexuais. E esse foi um projeto aprovado e fomos referidos na aprovação do projeto, con-seguimos derrubar a ideia que ao invés de nome social, fossem usados apelidos ou pseudôni-mos, tipo o Silvio Santos poder ser chamado de Silvio Santos, porque se ele for chamado de Abravanel no dia a dia, ele estaria sendo cons-trangido ou a Xuxa não ser a Maria das Graças, isso é um constrangimento, quando estamos falando que chamar ao invés de Agatha, chamar de João, isso é constrangimento. Mas queria fa-zer duas provocações para a Mesa. Primeiro, a respeito… quando estamos falando de educa-ção inclusiva, estamos falando de diferenças, mas, comumente, ao falar disso, defendermos a afirmação dessas diferenças, estamos falando de uma certa produção de indiferença, como se orientações sexuais distintas variassem ape-nas pelo objeto do desejo, ou como se questões étnico-raciais variassem apenas pela tonalida-de das nossas peles e que, no final, é falarmos tudo a mesma coisa, ser branco e ser negro é tudo a mesma coisa, ser hétero ou ser homo é a mesma coisa. Então, como é que nesta afirma-ção da diferença, não vamos para a ideia de res-

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32 peito à diferença? Parece-me que é uma ideia bastante apaziguadora e quando estamos fa-lando de afirmar diferenças, estamos indo para um campo de batalhas porque estamos falando de apostar num potencial disruptivo trazido por essas diferenças que quero crer que ser branco e ser negro não é a mesma coisa e ser homo e ser hétero também não é a mesma coisa e que bom! E afirmar isso pretende romper com um certo funcionamento social e na sequência, que eu acho que essa é uma questão que nos toca, tem a ver com o que falamos de educação inclu-siva em tempos de fundamentalismo religioso e quando estamos falando de fundamentalismo religioso, falamos de algo que ataca justamen-te, questões que têm a ver com o racismo e a homofobia, é quando estamos vendo que toda discussão étnico-racial na escola acaba sendo coibida como se fosse… vou usar os termos que lemos na mídia, eles dizem do nosso mundo, do nosso tempo, mas é macumba, é coisa do de-mônio, do diabo, não pode, as mães de santo que estão sendo expulsas por fundamentalis-tas nos morros cariocas e tudo mais e fora toda questão das homossexualidades que estarí-amos, promovendo, estimulando algumas se-xualidades e eu preciso dizer que eu acho que estamos estimulando sim, estamos estimulan-do que as pessoas possam viver seus desejos abertamente, tudo mais e eu quero apostar que estimulamos, sim, as pessoas fazerem seus de-sejos. Enfim, essas duas questões.

Plateia: Bom dia, meu nome é Josete, eu sou estudante de Psicologia, estou no terceiro ano na UNG e nós já aprendemos a falar homoafeti-vo e não homossexual ou homossexualismo. Eu queria primeiro agradecer ao Lauro pelo vídeo, me provocou mesmo, me fez chorar porque eu acho que é um absurdo tremendo essa coisa de preconceito, de racismo. E é o que ele falou, é tão sutil essa coisa de preconceito, essa coi-sa de racismo, isso nos vem e, assim, minhas melhores amigas eram negras na escola, eu

nunca concordei com isso e, quando eu vi esse vídeo... porque todo mundo sabe que palavras machucam, que uma palavra pode levantar você como pode derrubar você. Eu fui adotada, es-cutei muitas palavras que machucaram. Então, eu não concordo e é como ele falou, nós temos que enxergar as pessoas como pessoas e não se ela é homoafetiva, se ela é negra, se ela é branca… então, eu agradeço a ele, eu nem pen-sava em trabalhar em escola, mas por causa dele, agora eu já penso porque você tem que trabalhar a criança.

Eu aprendi que as pessoas são iguais a mim, eu aprendi quando criança, essa coisa de precon-ceito eu fui vendo, mas foi como eu fui ensina-da, que as pessoas são iguais a mim. E outra questão que eu gostaria de colocar não é uma pergunta… gostaria de colocar. O respeito. Eu queria saber se o CRP pensa dessa forma a res-peito do homoafetivo. A questão do racismo já é algo antigo, eu conheço essa questão desde quando eu era criança, por isso me foi ensinado: todos são iguais, a cor da pele não modifica em nada. Já a questão do homossexualismo é to-talmente nova, para mim é nova, o pessoal fala: “Está saindo do armário”, agora a mídia, essa coisa toda, tudo novo e, eu como adulta, eu sinto dificuldade, às vezes, porque eu vejo um homem com trejeitos, então, eu quero agradá-lo, eu fico sem saber se eu falo ela ou ele. Aí por exem-plo, eu tenho um amigo que é o Evandro, fofo demais, mas você olha para ele, é um menino, cabelo arrepiado, tudo, mas ele fala como uma moça. Então, eu quero agradar ele, eu quero que ele fique bem, então por exemplo, conversando com outra pessoa no começo, não sabia como tratar, aí eu falava: “Ela”, aí ele virou para mim e falou: “Não, ele”, eu falei: “Ah, está bem”. En-tão, eu queria saber do CRP também, se se pen-sa em educar a sociedade porque se eu sendo adulta, tenho… tive, agora já estou aprendendo, estou na faculdade, pessoal lá… as meninas: “Minha esposa”, minha amiga fala: “Minha es-posa”, o Danilo, amadíssimo, adoro quando ele fala as coisas, então, estamos aprendendo, en-tendeu? Então é assim que tem que ser visto, é novo para a sociedade. Então, às vezes, eu vejo assim, que está um confronto. Na mídia, eu vejo nas redes sociais e eu não tenho nada contra, sabe, mas eu vejo essa dificuldade. Eu consi-go entender, por exemplo, uma pessoa que tem homofobia, eu consigo entender essa pessoa, porque eu, às vezes, tenho alguma dificuldade,

“A questão do racismo já é algo antigo, eu conheço essa questão desde quando eu era criança, por isso me foi ensinado: todos são iguais, a cor da pele não modifica em nada”.

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33eu já fui maltratada por um homoafetivo numa empresa de telemarketing, onde tem muito, tem muitas pessoas bissexuais e tal, e o moço co-meçou a me tratar mal. Acho que achando que eu não ia gostar dele, do nada, batia o elevador na minha cara, falava promiscuidades do meu lado sem me conhecer, porque trabalhamos tudo juntinho e havia outras pessoas que não gostavam e quanto mais ele sabia, mais ele fa-lava. Então, são coisas que… é respeito, temos que respeitar os outros, os outros têm que nos respeitar. Eu gostaria de saber sobre o CRP se pensa nisso, de educar. Eu sei que vocês estão falando a respeito da escola, é lá que começa, mas os adultos também precisam ser compre-endidos nisso. É só isso que eu queria falar.

Lauro Cornélio da Rocha: Ok. Eu acho que é assim, eu começo um pouco desse final, que na verdade, às vezes, quando partimos para os nossos exemplos pessoais, corremos o ris-co de generalizar, quando estamos no pesso-al, generalizamos, então, você foi maltratada por alguém que é homossexual, você pode ser maltratada por um negro, você pode ser mal-tratada por uma mulher, é o universo amplo que está presente, não é isso que o faz ser alguém que maltrate ou não, talvez até lembre um pou-co essa questão de universo humano. Agora, o vídeo e as crianças, na verdade, eu sempre digo na escola, o que nós queremos é formar crianças que sejam seres humanos melhores do que nós. O processo é esse, que cada um deles possa ser melhor do que nós, porque nós já car-regamos nessa nossa trajetória de vinte, trin-ta, quarenta, cinquenta, sessenta anos alguns vícios muito difíceis, muito arraigados dessa sociedade que nós vivemos. Pensando nisso, a ideia dessa sociedade que nós vivemos, eu entro na questão específica da questão das di-ferenças. Então, pensamos nas diferenças em explicitar essas diferenças e que elas se expli-citem e fiquem, porque, culturalmente, somos muito diferentes uns dos outros e essas cultu-ras precisam ser explicitadas. Então, é romper com o funcionamento da sociedade que temos atualmente e quando falamos em romper com o funcionamento da sociedade que temos atual-mente, estamos querendo romper com essa vi-são de homem branco, hétero como o mandante da sociedade. Então, explicitar, explicitar para ficar. Eu lembro quando ele falava, eu lembrava das questões do fundamentalismo, lembrava de um juiz por exemplo no Rio de Janeiro que diz

que religião de matriz africana não era religião ou alguns traficantes que vão para dentro dos presídios, chegam lá e se convertem e voltam para destruir os terreiros etc. nos morros ou mesmo, de um trabalho em escolas em que eu fui para discutir religião de matriz africana e al-gumas pessoas jogaram uma Bíblia em cima da mesa numa professora, jogaram uma Bíblia em cima da mesa, que estava discutindo sobre reli-gião de matriz africana e não era na perspectiva de converter ou convencer, não tem nada disso, referenciais históricos de religião de matriz afri-cana e eu começava dizendo que é uma religião como uma outra qualquer e se eu achar que a minha religião vale mais do que a sua é porque eu acho que valho mais do que você. Então, isso acaba. Aí, se eu valho mais do que vocês, aí cai por terra um pouco a questão do humano. Agora, o uso de termos tem a ver com algumas referências culturais. Então, você encontra… para falarmos de referências culturais, você en-contra o movimento hip-hop que trata o preto: “Preto pra cá, preto pra lá” etc. e tal e outros movimentos que falam de negro ou outro que vai trabalhar com afrodescendente.

Eu sempre acho que os termos têm variantes de acordo com cultura e de acordo com o tempo e alguns vão sendo abandonados e as pessoas vão refletindo e conceituando alguns termos: “Esse não serve mais, esse não dá mais conta, então é necessário que criemos outros”, e isso faz parte desse processo mesmo de vivência nosso, de evolução. E, por último, quando pensa na questão grade, eu já fui, num determinado tempo, defensor ferrenho de disciplinas dentro das grades das universidades. Hoje, eu tenho pensado um pouco mais nessa perspectiva de ter disciplinas em alguns cursos e outros cursos não, ou de ter uma base de formação que tem

“Hoje, eu tenho pensado um pouco mais nessa perspectiva de ter disciplinas em alguns cursos e outros cursos não, ou de ter uma base de formação que tem que perpassar todos os cursos, porque esse é um movimento que temos feito”.

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34 que perpassar todos os cursos, porque esse é um movimento que temos feito. Alguns .... têm discutido isso nas universidades e alguns têm feito a opção por ter uma disciplina específica, outros por um tronco comum. Raramente, te-mos já universidades… nós temos universidades que já colocaram no currículo, mas têm outras que ainda continuam como optativas e eu acho que esse é um processo que estamos vivendo, já, porque é um processo que a cada novo tem-po, novas discussões, novos horizontes vão se ampliando e vamos entendendo que parece que o mundo vai ficando um pouco mais diferente ou um pouco mais negro, ou um pouco mais nosso. Então, é essa um pouco a perspectiva que estamos vivenciando. E, aí, entra a ques-tão da fragmentação também, porque costumo dizer que, às vezes, nós particularizamos para explicitar melhor e ver como é que colocamos isso no cotidiano ou no hall de relações que se estabelecem de fato. Então, às vezes, para nós nos afirmarmos, é necessário que particularize-mos, mas não para ficar segregado, mas para que também possamos avançar por um mundo que é cruel com relação a esses temas, mas avançar com qualidade. Então, nos fortalece-mos para ampliar e, já agradecendo, acho que foi importante para mim estar aqui hoje, impor-tante estar com vocês e acredito que possamos ter muitos outros momentos de encontro e de conversa, de diálogo, que eu acho que é isso que vai nos tornar um pouco mais fortes ou um pouco mais humanos nas nossas relações.

Leonardo Lemos de Souza: Eu acho que o Lau-ro falou bastante, respondeu todas as pergun-tas, mas… eu queria só falar em relação a várias questões, tanto dos termos quanto da fragmen-tação, acho que da grade também como o Jona-thas comentou é uma questão política eu acho que tudo isso, assim de posicionamento, de fato.

A maneira como quer ser chamado, porque, por exemplo, você falou várias coisas, da terminolo-gia, na terminologia oficial não se usa homosse-xualismo, não se fala homossexualidade. Agora, as pessoas no dia a dia, no cotidiano, dois gays ou dois homens, ou duas mulheres, mas dois ho-mens gays, como que chama: “E aí, veado, sua bi-cha” é menos pejorativo quando um hétero cha-ma ele. Então, eu volto no Bakhtin, ele fala assim: “Depende de quem fala e para quem você fala”, é a questão da audiência, quem é que diz, porque, assim, tem a ver com a questão política mesmo, posicionamento, enfim. E pensando numa manei-ra mais ampla nos conselhos, na sociedade como um todo, essa fragmentação, nesses discursos que, isoladamente, fazemos e defendemos é uma questão política. Se os psicólogos trazem isso aqui para discutir é uma questão política, de posicionamento da categoria, das pessoas que estão trabalhando com isso no dia a dia e que são temas que são recorrentes e na Educação, a mesma coisa. É difícil ter na grade, muitas vezes, temas… eu sou da mesma opinião do Lauro, eu não sei hoje se precisa ter uma disciplina, acho que a disciplina tem um papel importante por-que ela afirma a necessidade daquilo. Eu acho que nesse momento, precisaríamos, talvez, de repente, de disciplina, mas em outros o ideal é que não fosse necessário, porque senão, caímos na cilada da diferença como discurso do gueto e do isolado de tudo e você vai criando disciplinas para várias coisas. Então, temos que começar a criar disciplinas para vários excluídos e não é essa a questão. E, aí, é você despotencializar essa diferença de alguma forma naquilo que ela deveria trazer que é a questão do humano, de fa-zer parte do humano, de algo mais amplo. Bom, é mais ou menos por aí. Eu queria agradecer tam-bém o CRP, o convite, a oportunidade de estar aqui e poder, de repente, que nos encontremos outras vezes. Obrigado.

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Luciana Stoppa dos Santos Gestora da Subsede de Ribeirão Preto do CRP SP - Representante do Núcleo de Educação do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo - CRP 06.

Apresentação

Boa noite a todos e todas. É com muita satis-fação que estamos aqui hoje para discutir o Direito à Educação de Adolescentes em Cum-primento de Medidas Socioeducativas. Essas discussões surgem da importância e da neces-sidade de destacar a contribuição da Psicolo-gia como ciência e como profissão na luta pela efetivação do direito à Educação para todos e todas, respaldado nos princípios do compromis-so social, dos direitos humanos e do respeito à diversidade como um dos fundamentos para efetivar a inclusão social, além disso, pretende-mos ampliar a discussão sobre educação inclu-siva, que está para além da educação especial e se destina ao trabalho, não somente com os estudantes público alvo da educação especial, mas busca garantir uma prática democrática, que garanta direitos e respeite as diferenças nos processos de aprendizagem e no desen-volvimento das crianças e adolescentes.Neste ano, a proposta de discutir o direito à Educação de Adolescentes em cumprimento de Medidas Socioeducativas vem em consonância com uma Grande Campanha que o CRP SP está promo-vendo em comemoração aos 25 anos do ECA- “Brincar para Valer. Valer para Brincar”.Vamos passar agora para as falas de nossos convida-dos. Convido à mesa Jorge Broide, psicólogo, psicanalista, analista institucional e professor do curso de psicologia da PUC-SP; Débora Cris-tina Fonseca, psicóloga, doutora em Psicolo-gia Social e docente da Universidade Estadual Paulista e Jean Fernando dos Santos, psicólogo, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e psi-cólogo do CREAS de Mauá.Cumprimento a to-dos e agradeço, de antemão, a participação de

cada um de vocês. Peço licença, para introduzir essa fala e ampliar a reflexão sobre Educação inclusiva, trazendo para vocês um pouco do que o CRP SP e o Núcleo de Educação vêm discutin-do sobre o tema. Para pensar a escola inclusiva devemos repensar a escola que temos, aquela que, historicamente, reproduziu o fenômeno da exclusão, que é um fenômeno social. Uma esco-la que se dedicou a produzir ordenamentos, que docilizou corpos, que silenciou e harmonizou vozes dissonantes Para Carlos Skliar “O que temos é uma atitude de administrar diferenças, um discurso que não transforma efetivamen-te, mas que acaba se tornando mera retórica, não tendo outra função além de garantir a boa consciência de práticas educacionais e criar uma ilusão de que estamos produzindo trans-formações profundas”

A diferença desestabiliza e perturba e o desafio da escola inclusiva é utilizar essa pertur-bação para produzir novos percursos de existir, desconstruindo o encadeamento imediato que se faz entre diferença e desigualdade. Temos

O Direito à Educação de Adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas

“Quem é o adolescente que comete um ato infracional? Que tipo de concepções a escola tem validado sobre esse adolescente? Quais os efeitos subjetivos desses discursos na produção de futuros, de novos caminhos de vida?”

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36 a ideia, quando falamos de desigualdade, que o desigual é aquele que possui mais ou menos em relação a alguém. A nós, psicólogos, cabe a defesa de uma educação inclusiva como meio de possibilitar reflexão sobre o que aparecer naturalizado na escola e que pode ser diferen-te. Quem é o adolescente que comete um ato infracional? Que tipo de concepções a escola tem validado sobre esse adolescente? Quais os efeitos subjetivos desses discursos na produção de futuros, de novos caminhos de vida? Natura-lizar um fenômeno? Um comportamento diferen-te de estudante, o não aprender, a violência, o próprio ato infracional, nos coloca num lugar de produzir explicações pretensamente racionais e nos impede de olhar para as singularidades, de suportar a ansiedade de fazer a experiência do outro e, assim, refletir sobre os juízos previa-mente construídos. Nesta noite, teremos a opor-tunidade de problematizar como temos buscado como sociedade, garantir o direito à Educação, pensando como um aspecto fundamental esse direito para o desenvolvimento dos indivíduos e para a sua emancipação subjetiva, social, econô-mica e cultural. Para além disso, importa pensar como se articulam as políticas públicas visando a atenção integral às necessidades educativas

desses adolescentes. O desafio que está posto é o de lutar por uma Educação verdadeiramente comprometida com os princípios dos direitos hu-manos e da transformação da sociedade. Paulo Freire nos diz que não é uma tarefa fácil, essa de superar verdades universais e fatos imutáveis que produzem a exclusão, mas ele mesmo apon-ta que essa briga nos reserva uma certa bonite-za, ele usa essa expressão, pois segundo ele, a vida só ganha sentido à medida que nós nos ex-perimentamos enredados nas suas tramas e nas suas incoerências. Termino esta breve apresen-tação com uma citação literal do próprio Paulo Freire, do livro “Pedagogia e Esperança”, em que ele fala sobre transformação social: “Não é puro idealismo não esperar que o mundo mude radi-calmente para que se vá mudando a linguagem. Mudar a linguagem faz parte do processo de mu-dar o mundo. A relação linguagem/pensamento/mundo é uma relação dialética processual e con-traditória”. Então, é nessa leitura de Educação inclusiva que pretendemos aprofundar e aí, como eu disse, dar continuidade aos debates que já ví-nhamos fazendo desde o ano de 2014. Nessas contradições, nesses avanços e também, nesses retrocessos que vimos observando no contexto da criança e do adolescente.

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Jorge BroidePsicólogo. Psicanalista. Analista institucional. Professor do Curso de Psicologia da PUC/SP. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Trabalha desde o ano de 1976 com adolescentes em conflito com a lei.

Obrigado, Luciana. Eu queria agradecer, inicial-mente, ao CRP, e quero dizer a vocês que é uma honra de verdade estar aqui, porque um convite como esse é um convite muito importante para podermos pensar juntos sobre a nossa experi-ência, o que estamos pensando, o que estamos vivendo num espaço como esse que é o nos-so Conselho Regional. Eu acho que é da maior importância mesmo, é muito importante para quem vem, para nós é um convite muito hon-roso, de fato, e poder estar aqui e poder trocar com vocês é muito bom. Eu vou falar para vo-cês a partir desse lugar que a Luciana estava dizendo, de começar a trabalhar com crianças e adolescentes, conflito com a lei no ano de 1976.

Ou seja, faz quase 40 anos e eu vou falar para vocês o que eu penso a partir disso, o que é trabalhar quase 40 anos nisso de onde é que eu estou pensando, no que eu estou pensando, por onde é que eu ando. Para mim está claro que o que estamos fazendo funciona pouco e que é necessário que quebremos alguns paradigmas. Se não quebrarmos alguns paradigmas, nós va-mos continuar funcionando pouco. E aqui, fun-cionar pouco, gente, não é simplesmente funcio-nar pouco, aqui funcionar pouco é a morte dos

adolescentes, funcionar pouco é a insistência do horror, funcionar pouco somos nós enquanto trabalhadores desse campo ficarmos cada vez mais adoecidos e mais frustrados e mais decep-cionados pela vida e pela nossa profissão, então funcionar pouco tem muitas consequências e a primeira delas, evidentemente, é com os ado-lescentes em conflito com a alei. Então, eu vou partir de uma questão que eu acho que todos vocês que estão aqui, todos nós temos quando estamos escutando um adolescente em con-flito com a lei. Muitas vezes, o moleque está ali falando e fazemos a seguinte pergunta, ou pelo menos, eu me fiz muitas vezes isso: “Como é que esse moleque ainda está vivo?”; vocês não fazem essa pergunta muitas vezes? “Não é possível que esse moleque que está aqui falando essas coisas, aqui na minha frente ainda esteja vivo!”, e comecei a pensar muito então “por que esse moleque está vivo? O que mantém ele vivo?”. E aí, eu fui começando a escutar de um jeito diferente. Vocês sabem que psicanalista gosta de escutar, escuta, escuta… então, eu comecei a escutar uma coisa que demos um outro nome, que é: quais são os fios muitas vezes invisíveis que amarram esse adolescente à vida? Se ele está vivo ali diante de mim tem alguns fios que o amarram à vida.

O trabalho do psicólogo junto aos adolescentes em conflito com a lei: processos de escuta e a garantia de direitos

“Para mim está claro que o que estamos fazendo funciona pouco e que é necessário que quebremos alguns paradigmas”.

“Quando eu estava na faculdade, começamos a mudar aquela coisa de escutar o indivíduo e não é importante escutar a família e, de fato, é superimportante escutar a família”.

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38 Alguma coisa amarra-o à vida e eu pre-ciso na minha escuta do meu adolescente en-tender que fios são esses, muitas vezes, eles são quase invisíveis, poder compreender isso e esses fios é que são a verdadeira força do meu trabalho. Se eu conseguir encontrar esses fios, eu tenho muito mais chance de poder trabalhar. Então, a escuta muda, gente, por que muda? Quando eu estava na faculdade, começamos a mudar aquela coisa de escutar o indivíduo e não é importante escutar a família e, de fato, é superimportante escutar a família. Depois co-meçamos a escutar: “Não, é muito importante escutar a instituição”, é muito importante es-cutar a instituição. Hoje em dia, gente, eu saí desses dois lugares ou desses três lugares e eu não estou mais preocupado em escutar a fa-mília ou escutar a instituição ou escutar o que quer que seja. Eu estou preocupado em escutar quais são os fios que amarram esse adolescen-te à vida que é o que eu chamo de ancoragens. Veja que o próprio SUAS, como estava se dizen-do, ele… eu sou absolutamente a favor do SUAS, trabalho no SUAS há muitos anos, mas o SUAS de todo nosso trabalho, está fixado na questão da família, gente, como se a família fosse o eixo imutável do nosso trabalho e isso, do meu pon-to de vista, hoje em dia é um erro, eu não penso mais assim, se a família for a ancoragem, óti-mo, se não for, não é. Nós sabemos todos aqui, quantas vezes mandar alguém de volta para a família ou trazer a família é um desastre com-pleto. Então, eu queria convidar vocês nessa mudança de paradigma para mudarmos o para-digma da família, eu estou propondo um outro paradigma, eu quero que comecemos a escutar o que mantém essa pessoa viva e nós traba-lhando nas situações sociais críticas como eu digo, essa escuta é fundamental, muda a nossa escuta e muda a nossa clínica, isso muda fun-damentalmente, a nossa clínica, seja ela onde for. Então, essa é uma primeira questão que eu queria colocar para vocês. Ao invés de escutar a família, a instituição, não, eu quero escutar o que mantém esse adolescente vivo. A partir daí eu preciso pensar, por exemplo, o PiA; uma coisa é eu pensar o PiA através da família, outra coisa é eu procurar as ancoragens desse adolescente para fazer o PiA.

Muito bem, se eu for procurar as ancora-gens desse adolescente para fazer o PiA tenho que quebrar outro paradigma. Qual é o outro paradigma que eu tenho que quebrar? Nós ain-

da, gente, trabalhamos no modelo médico, pode parecer um xingamento isso, mas eu me incluo. Estamos lá no CREAS, estamos lá no CRAS, es-tamos lá na Medida Sócio Educativa, estamos lá onde quer que seja, sentados atrás de uma mesa atendendo adolescente, atendendo a fa-mília esperando eles chegarem lá, no modelo mais careta possível e imaginário. Não é que não tenhamos que fazer isso, não, não, não, temos que fazer, mas temos que começar a pensar na construção de outros dispositivos de atendi-mento. Então, uma outra questão que surge é o atendimento para buscarmos as ancoragens que escutamos desse adolescente, nós temos que poder ir para o território, nós temos que poder ir para o campinho, nós temos que poder ir para a casa, nós temos que ir para o mocó, nós temos que ir para onde for que essa an-coragem esteja e é lá que nós temos construir dispositivos de atendimento, é no campinho? É no campinho. É na família? É na família. É a na-morada? É a namorada. Pessoal, pode parecer uma coisa boba, mas todos nós aqui sabemos e temos receio de falar, eu, como estou ficando velho, estou perdendo o receio de falar, então, aproveitem, e a importância dos animais e dos cachorros? Tem que trazer o cachorro, sim, para dentro do atendimento. Sabemos como é impor-tante para o adolescente solitário, humilhado, diante da morte ter o seu cachorro ali do lado e, muitas vezes num PiA, dizemos assim: “Olha companheiro, vai fazer parte do teu PiA você cuidar do teu cachorro, porque ele está doente. Então, você vai levar ele no veterinário, eu quero ver o teu cachorro como é que está, quero ver o teu cachorro dar risada, está certo? Abanar o rabo”, não é verdade, gente? isso é uma anco-ragem, pode ser… o cachorro pode ser uma an-coragem. Então, eu estou falando da quebra de paradigmas, eu estou dizendo que temos que quebrar alguns paradigmas. Então, nós temos

“Estamos lá no CREAS, estamos lá no CRAS, estamos lá no MSE, estamos lá onde quer que seja, sentados atrás de uma mesa atendendo adolescente, atendendo a família, esperando eles chegarem lá, no modelo mais careta possível e imaginário”.

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39que ir onde a ancoragem está, como dizemos, nós psicólogos ou psicanalistas, temos que ir onde a vida está e temos que buscar a brecha de vida onde quer que ela esteja, pode ser no lugar dos horrores, mas se tem uma brecha de vida lá, nós temos que ir atrás dela. E essas an-coragens são essas brechas de vida. É a tia, é a vizinha, é a namorada: “Não traz a namora-da”, gente, atendendo adolescente em conflito com a lei, diz: “Não traz a sua namorada aqui”, como é que é isso, gente? imagina, a namorada vai dizer: “Meu, oh, você para com isso ou eu vou embora”, é muito diferente. Então, o que eu estou propondo na questão do adolescente em conflito com a lei?

Que encontremos as ancoragens através dessa escuta e que tragamos essas ancora-gens para dentro do nosso atendimento, seja ele no território, seja ele na instituição, seja ele dentro do lugar onde nós estamos e que pos-samos construir junto com todos esses o PiA. É isso que vai permitir um PiA consistente e é isso que vai permitir um PiA, que talvez seja realiza-do num projeto de vida, onde essas ancoragens que já sustentam a vida desse moleque sejam também testemunhas do PiA desse menino e dialoguem sobre o PiA desse menino. Então, essa é uma primeira questão que eu queria co-locar. Vejam só, mudamos o paradigma de famí-lia, instituição e começamos a escutar de outro jeito, onde estão os fios que amarram esta pes-soa à vida? isso vale não só para adolescente em conflito com a lei, mas vale para qualquer situação social crítica. A partir daí nós temos que ir atrás desses fios, nós temos que cons-truir dispositivos que permitam, que esses fios, essas pessoas falem, a escuta dessas pessoas. Por que ela está tão comprometida com a vida desse moleque, por exemplo? O que faz com que ela sustente a vida desse moleque, muitas vezes, sem ela perceber, inclusive, que é o olhar da vizinha: “Fulano, vai tomar banho, você está sujo, você está feio, você estava tão bonito, o que você está…?”, são falas, palavras desse jei-

to que marcam esse sujeito. Ou seja, os nossos adolescentes em conflito com a lei, eles têm um olhar no lugar de outro que chamamos na psicanálise, esse grande outro, o olhar do outro sobre ele é que quer que ele morra. Veja o re-baixamento da maioridade penal, é isso, coloca os adolescentes como bodes expiatórios dessa brutal violência social dessas relações sociais e colocam eles como bodes expiatórios, então o olhar que ele está acostumado a ver é que não quer que ele viva. Então, de novo, as ancoragens são aqueles olhares que querem que ele viva e é isso que o mantém vivo muitas vezes, e nós te-mos que trazer isso para junto dele. isso é uma questão. Outra questão que eu queria trazer é da saúde mental tanto dos adolescentes tanto de nós que trabalhamos com os adolescentes.

Então, existem alguns conhecimentos, eu aqui falo como psicanalista, que nos ajudam muito. Por exemplo, entendermos a questão da transferência, como é que funciona… sabe o que Freud dizia para o pessoal que nunca teve vontade de estudar psicanálise, o Freud dizia o seguinte: “O que é transferência?”. Transferên-cia é um clichê, é um negócio que está marcado dentro de mim com essas experiências que eu já tive e a partir dessas experiências, eu leio o mundo, evidentemente, eu leio o mundo a partir daquilo que aconteceu comigo. Então, quando nós estamos atendendo esses adolescentes, como é que eles nos leem? Eu sou polícia, eu sou juiz, eu sou aquele que quer que ele morra, ele está lendo a relação que ele está tendo co-migo a partir da sua experiência mais profunda de vida e ele está se relacionando comigo e no lugar que ele está com o serviço que ele está, a partir dessa experiência. Como é que podemos sair desse lugar, gente, que o adolescente nos coloca sem perceber e que aceitamos ficar sem perceber, muitas vezes? Então, a possibilida-

“Então, vejam só, mudamos o paradigma de família, instituição e começa a escutar de outro jeito, onde estão os fios que amarram esta pessoa à vida?”

“Transferência é um clichê, é um negócio que está marcado dentro de mim com essas experiências que eu já tive e a partir dessas experiências, eu leio o mundo, evidentemente, eu leio o mundo a partir daquilo que aconteceu comigo”.

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40 de de entendermos isso faz com que ao invés de eu ser juiz, eu possa meio que sair de lado, assim, e conversar sobre a relação dele com o juiz. Ao invés de eu ser polícia, eu saio um pou-quinho de lado e conversar da relação dele com a polícia e coisas desse jeito. Então, eu queria colocar aqui na Mesa aqui para conversarmos como é que podemos sair desse lugar enquanto trabalhadores que os adolescentes e a socie-dade nos colocam, que são lugares tão duros, tão rígidos e que somos empurrados muitas vezes por responder por esses lugares, muitas vezes, sem perceber. E como é que ao invés de respondermos a isso, podemos sair um pouco de lado e ser o lugar onde o adolescente pode falar sobre esse lugar?

Pode falar sobre essa situação que ele vive? Dá para entender o que eu estou dizendo, gente? Dá?

isso tudo para chegarmos na Educação, porque na Educação é como… se vamos que-brando esses paradigmas e vamos criando ou-tras coisas, vamos pensando a educação de forma diferente, até como vamos nos relacio-nar com a escola e com todo aparato da edu-cação. Vou contar uma experiência para vocês, um “causo” muito engraçado. Nós fizemos em Campinas, no COMEC… alguém conhece o CO-MEC (Centro de Orientação ao Adolescente de Campinas)? Estávamos fazendo uma experiên-cia no COMEC que era uma experiência de eco-nomia solidária com os adolescentes em confli-to com a lei. Como é que estávamos pensando economia solidária? Eu proponho também den-tro dessa quebra de paradigmas, pensarmos desse jeito. A ideia do grupo era assim, como é que encontrávamos nichos no território que agregassem valor? O que eu estou dizendo aqui em linguagem econômica ou psi? Como é que os adolescentes podem entender no território de-

les, onde é que eles podem ganhar dinheiro de uma forma lícita? Esse era o jogo. E está cheio de nicho invisível, eles lá no COMEC fizeram uma experiência superbacana de fotografia, então, a fotografia é um nicho ótimo, imagina só a mo-lecada que aprende a fotografar e vai sair pelo lugar, bate lá: “Oi tia, tudo bem? Tia, a senhora tem foto da senhora com seus filhos em cima da mesa? A senhora tem?”. “Não, não tenho”. “Dez ‘real’. Tiro uma foto da senhora e trago emoldu-rada para a senhora colocar em cima da mesa, dez ‘real”; qual é a mãe que não quer ter essa foto? Ele vende essa foto, com certeza que ele vende. isso que é encontrar um nicho de valor no território. Então, ele vai, a partir daí, encon-trando um nicho de valor, esse era o papo lá da economia solidária e aí, então, o que eles acha-vam que era um nicho de valor e tal e começou um dia uma história que era de estudarmos as cadeias produtivas e eles acharam que a cadeia produtiva de fazer suco de abacaxi, suco de fru-tas perto da rodoviária era um tremendo de um negócio. Evidente que era um péssimo negócio, eles não falavam o “lé com cré”, eu lá escreven-do na lousa a cadeia produtiva, me enchia a pa-ciência, assim: “Pessoal, para com isso, gente, em vez de fazer a cadeia produtiva do suco de abacaxi, vamos fazer a cadeia produtiva do ba-seado”. “Legal, bacana”. Aí, saiu a cadeia pro-dutiva do “baseado”, eu garanto para vocês, sei um pouquinho de economia, não muito, sei um pouquinho de produção, não muito, mas já tive que trabalhar fortemente com produção, os conceitos eram absolutamente sofisticados. Custo, produção, distribuição, qualidade, dife-rentes tipos de qualidade. Aí chegou uma hora que eu falei: “Mas vocês não pagam imposto”. “Ó, Jorge, está pensando o quê? Nós pagamos, sim, 35% é para a polícia”, não é o que pagamos de imposto? 35% é para a polícia.

Então veja, isso foi uma luz na minha ca-beça que era o seguinte, quando eles falam na Educação com os adolescentes, quando eles

“Se vamos quebrando esses paradigmas e vamos criando outras coisas, vamos pensando a educação de forma diferente, até como vamos nos relacionar com a escola e com todo aparato da educação”.

“Então, como é que nós podemos fazer na questão da Educação de deslizar esse saber tão sofisticado que ele tem ilícito por um lícito?”

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41saem do lugar onde eles estão, eles cruzam um muro da exclusão, eles estão impedidos de deslizar esse saber que eles têm aqui (na co-munidade, na vida) para cá (escola, instituição). Eu acho que todo mundo está entendendo per-feitamente o que eu estou falando. O que isso faz? isso faz com que a reincidência seja fatal, porque quando ele sai daqui (da vida, da comu-nidade) e vem para cá (instituição), ele se sente completamente despossuído de qualquer saber, ele se sente zero, uma folha em branco e a única coisa que resta a ele é a reincidência, é a única vida que ele pensa que pode viver. Muito bem. Eu estou falando de Educação. Como é que nós podemos fazer deslizar esse saber tão sofisti-cado que ele tem ilícito por um lícito? Não é um lícito careta, babaca, é um lícito que permita vi-ver, que ele não seja brutalmente assassinado na “quebrada” ou pela polícia ou dentro do trá-fico. Então, esse deslizamento, para mim é o sa-ber, esse deslizamento é a Educação. Então, eu diria, se nós formos pensar na questão do ado-lescente em conflito com a lei e a questão da educação, eu diria que a Educação tem que res-ponder, tem que dar conta desse deslizamen-to, desse saber que ele tem tão refinado sobre o mundo e que ele não sabe que tem. Muitas vezes, essa sensação de não saber nada e de

estar adiante do impossível é quando estamos trabalhando com os adolescentes e pergunta-mos para a equipe assim… vou fazer essa per-gunta, vocês sabem o que eu estou perguntan-do: “Mas dá para vocês me dizerem quem é que está conversando com a morte?”; não sabemos os adolescentes que estão conversando com a morte? Sabemos! Aquele que está ali de conver-sa séria com a morte, não sabemos? Ele avisa: “Estou conversando com a morte”, e quando ele está conversando com a morte é porque ele está nessa angústia profunda que ele não tem saída e que aqui não dá e aqui ele é zero. Então, eu queria propor para vocês para pensarmos na questão da Educação como exatamente a pos-sibilidade que vamos ter de descobrir, de fazer o deslizamento desse saber, que é o saber que ele tem da vida. Algumas ideias para pensarmos como é que podemos quebrar esses paradig-mas que não só fazem um terrível mal para os adolescentes e que não funcionam, como fazem um terrível mal para nós que estamos submeti-dos a essas mesmas questões, que sentimos essa mesma impotência no trabalho e que nos sentimos submetidos as mesmas coisas e que vamos adoecendo diante da impotência e dian-te da morte desses adolescentes que lutamos tanto para que eles vivam.

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Débora Cristina Fonseca Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Atualmente é docente na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Rio Claro

Boa noite a todos e todas. Quero agradecer o con-vite do grupo que tem pensado as questões da Educação e as questões da infância e juventude; cumprimento o Jorge, o Jean. Então eu me propus a vir aqui hoje não do lugar de psicóloga, mas do lugar da Educação, que é onde eu estou hoje e te-nho tentado olhar e entender um pouco mais quem são esses adolescentes, esses jovens que estão nas escolas e as escolas de forma geral; claro que aqui eu vou pensar um pouco mais esses jovens que cumprem medidas socioeducativas. Para isso, eu vou partir de alguns dados das falas desses jo-vens para pensarmos juntos o que eles estão nos dizendo sobre a escola, sobre o sentido que a es-cola tem para eles, o significado que a escola tem para eles e, principalmente, nos apontando algu-mas possibilidades de repensar essa escola.

Então, essas são algumas pesquisas que eu tenho feito com a colaboração de alguns alu-nos de graduação e pós-graduação. No momen-to, estamos com a pesquisa ”Trajetória de alunos protagonistas de violência” tentando acompa-nhar desde aquilo que acontece na escola, quan-do eles adentram o sistema de justiça, quando eles cumprem a medida e quando eles voltam

para a escola. Estamos traçando essa trajetória, o que acontece com esse jovem a partir do mo-mento em que ele é denunciado pela escola, que é um processo comum, atualmente, aquilo que antes era indisciplina, hoje se tornou ato infra-cional no cotidiano das escolas e isso tem que ser transformado num boletim de ocorrência, num processo judicial, numa medida socioedu-cativa. Mas não vou me ater a esses dados, eles me ajudam a pensar aquilo que eu quis trazer, são sentidos de escola e de Educação que fo-ram sendo construídos por jovens que cumprem medidas socioeducativas. Primeiro, dos adoles-centes que nós conseguimos entrevistar, porque um dado importante é que eles não falam, existe uma lógica só: silenciamento; grande parte de-les, assustam quando perguntamos para eles: “O que vocês acham disso? O que vocês acham da escola? O que é a escola para você?”, eles fa-lam: “Eu não sei falar, não sei dizer”, mas quando vamos tentando aprofundar um pouco mais, va-mos tentando ouvir, um primeiro dado que temos é que destes adolescentes, eu vou depois contar quantos entrevistamos, 40% deles que cumprem medidas estão evadidos da escola, estou falan-do dos dados da minha pesquisa, se pegarmos os dados nacionais veremos que é mais ou me-nos isso o que acontece.

Adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas: trajetórias escolares

“O que acontece com esse jovem a partir do momento em que ele é denunciado pela escola, que é um processo comum, atualmente, aquilo que antes era indisciplina, hoje se tornou ato infracional no cotidiano das escolas”.

“Você gosta da escola? Você já gostou da escola em algum momento? Você gosta da escola?”, para quem está evadido, se já gostou e para quem está, se ele gosta da escola”.

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43Grande parte dos jovens que cumprem me-didas socioeducativas, na verdade, estão eva-didos da escola e muitos evadiram-se antes da medida e quando recebem a medida, continuam evadidos da escola, então esse é um dado para começarmos a pensar. 30% estão em situação regular quando se pensa a relação idade/série e 30% são repetentes, ou seja, têm uma defasa-gem de série, portanto 70% desses jovens têm um problema com relação à escolarização. Per-guntamos a eles: “Você gosta da escola? Você já gostou da escola em algum momento? Você gosta da escola?”, para quem está evadido, se já gostou e para quem está, se ele gosta da escola. Nós perguntamos em dois momentos da pesqui-sa, num primeiro momento, de dez adolescentes, apenas dois disseram que não gostavam da es-cola, todos eles diziam gostar da escola. Nesse primeiro momento, desses jovens, quatro ainda estavam cumprindo medidas socioeducativas, os outros já não estavam mais, mas continua-vam acompanhadas pelo CREAS. Numa segunda etapa da pesquisa, focamos apenas os jovens, os adolescentes, jovens, que estavam em cum-primento de medidas e desses quatro acabavam de sair da Fundação Casa apenas um disse não gostar da escola e um disse que gostava mais ou menos. Todos os outros afirmaram gostar da escola. Por que isso? Se estão evadidos, se 70% têm problema com a escola, como é que pode esse número tão grande dizer que gosta, afirmar, nesse universo de 23 podem dizer que gostam da escola. E fomos perguntar: “Por que vocês gos-tam da escola?”; eu trouxe algumas frases, algu-mas falas para vocês nos ajudarem a pensar o que eles estão nos dizendo, procurei não teorizar para pensar junto com vocês: “É bom, até porque, tipo, é um lugar onde você conhece pessoas. A metade das pessoas que eu conheço, se não fos-se lá, eu não tinha conhecido”, ou seja, ele está dizendo algo aí muito importante, que escola é um lugar de encontros, um lugar de pessoas, um lugar de convivência, onde eu faço amigos. O ou-

tro: “Porque eu estudo e tenho amigos, é um meio de Educação”; “Ah, é boa parte da minha vida”, então algumas falas, são por que eles gostam da escola, eles não estão dizendo que eles apren-dem a teoria x ou y, porque eles aprendem a ler e a escrever, mas, fundamentalmente, porque é o lugar do encontro, é um lugar onde ele encontra, onde ele faz amigos, onde ele tem a convivência e a sociabilidade.

Muito bem, então, a escola é o lugar da so-cialização, desde o início; hoje as crianças vão para a escola aos seis meses de idade. Então, é o lugar onde eles aprendem, têm a possibilidade de aprender tudo da vida, não só os conhecimen-tos teoricamente acumulados. É o lugar de fazer amigos, é o lugar da convivência com o outro. E aí eu pergunto para vocês e tenho perguntado nas escolas onde eu tenho trabalhado: “Qual é o espaço pensado, planejado pela escola para a socialização? Qual é o momento cotidiano da escola planejado, permitido para a fala, para a conversa, para o diálogo, para a convivência e para a sociabilidade?”.Eu não consigo encontrar pois inclusive o intervalo é vigiado...o tempo todo tem alguém olhando o que eles estão fazen-do, com quem estão conversando e com quem estão partilhando. A escola tem se constituído como um lugar de silenciamento, desde pequeno , a primeira coisa que você aprende? Ficar quieto, fazer silêncio, sala de aula é um lugar de silêncio, não é o lugar da fala e aí existem muitas formas de dizer isso. Você precisa ouvir o outro, precisa ouvir o que o professor tem a dizer… enfim, mas é o lugar onde vamos aprendendo a não falar, a não dizer o que estamos vivendo, pensando e sentindo e, aí, eles vão nos dizer que aprendiza-gem não se resume àquilo que eu me aproprio enquanto conteúdo, mas, também, eu aprendo na relação com o outro, na relação com o cole-ga. Olha o que o Pedro disse: “Tem dia que eu posso aprender mais com os meus amigos e tem dias que eu posso aprender mais com a esco-

“Então, é o lugar onde eles aprendem, têm a possibilidade de aprender tudo da vida, não só os conhecimentos teoricamente acumulados. É o lugar de fazer amigos, é o lugar da convivência com o outro”.

“Então, o espaço da escola, ele precisa ser ressignificado, porque, nesta lógica do silenciamento, ele não vai de encontro com aquilo que eles estão nos dizendo que a escola é importante, para que serve a escola”.

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44 la. Eu acho que é assim”. Ele está dizendo isso, que, às vezes, aprendemos mais com o outro do que com aquele que é o professor e que está ali transmitindo alguns conhecimentos e eu vou lá buscar no Vygotsky para entendermos um pouco isso - ele vai dizer sobre a importância do outro no processo de aprendizagem.

Esse outro não é o professor, pode ser o professor, pode ser o adulto, pode ser o colega da mesma idade com algum conhecimento, algu-ma experiência que lhe permite uma apropriação desse conhecimento de uma forma qualitativa. Então, o espaço da escola precisa ser ressigni-ficado, porque, nesta lógica do silenciamento, não vai de encontro com aquilo que eles estão nos dizendo. E, aí, perguntamos: “E o que signi-fica então, a escola para você?”, e o discurso é o discurso pronto: “É a promessa do futuro”, en-tão todos eles depois de se impactar um pouco com a pergunta, vão dizer: “É o lugar que eu vou ser alguém na vida, preciso estudar para ser al-guém na vida, para ter trabalho, para ter empre-go, é o lugar onde se aprende”, que é o discurso que eles vêm ouvindo desde pequenos, desde a sua introdução na escola, eles ouvem que têm que ir para a escola para ser alguém na vida, para ter um bom emprego. O Denis fala: “Eu acho que é um lugar bom de aprender”, ele acha, ele não tem muita certeza, mas ele acha que pode ser um lugar bom para aprender. “Sem estudo, não somos nada, temos que estudar para, pelo menos, sermos alguém na vida”; então esse é o discurso que pregamos e que ouvimos os profes-sores pregando até hoje cotidianamente na sala de aula. Depois, conversamos um pouco sobre os professores. E eu ouvi de vários meninos na nos-sa pesquisa, não só eu, mas minhas alunas ou-viram que eles dizem: “A escola não tem sentido algum”, ele afirma categoricamente, é a fala dele: “Não tem sentido nenhum a escola para mim”, ele gosta de ir na escola porque ele tem convivência, mas a escola não tem sentido para ele.

E o Denis repete ali: “Nossa, eu nem sei, faz tanto tempo que eu não vou para a escola”, nós perguntamos quantos anos fazia, dois anos que ele estava fora da escola. Então, não consegue nem pensar, lembrar da sua experiência, do que significou a escola para ele. E nós perguntamos: “O que você acha que deveria mudar na escola?”, isso é bastante interessante pensarmos porque eles dizem: “Nada”. Se a escola não tem sentido para ele, faz sentido essa escola mudar, mudar algumas coisas, mudar alguns elementos. Alguns arriscam falar da estrutura física: “Precisava ter uma quadra para jogarmos futebol, precisava ter uma cantina”, mas falar da questão das relações, falar da ques-tão da hierarquia, do processo de silenciamento da escola, eles não falam, porque eles já não acredi-tam nessa escola, ela não faz sentido para eles. E aí teve um desses meninos que disse: “tem que mudar tudo”, mas o que é tudo? É tudo! Não tem o que, isso, aquilo, é tudo! Foi a mesma coisa do nada. O nada significa que essa escola não ser-ve, essa escola não… muito bem e aí, perguntamos para eles assim: “O que te faria ter vontade de ir para a escola?”, se fosse para pensarmos, porque acho que é a pergunta que muitos de vocês que trabalham com esses jovens perguntam, “Mas o que te faria ter vontade de ir para a escola? Ou para assistir à aula? O que você imagina?”, eles dizem: “Nada”, alguns até arriscam: “Tem umas au-las mais interessantes de Artes, de Futebol”, mas a grande maioria diz que nada o faria ter vontade de ir para a escola. isso é um pouco assustador pensar que eles não conseguem encontrar nada que os mostre, que tenha sentido na sua vida e para essa escola que está colocada, apesar deles gostarem da escola, mas eles não conseguem nem mesmo refletir sobre a ideia de que a escola pode ser um lugar de convivência, pode ser o lugar onde ele encontre o outro, mas uma escola que propo-nha isso e não uma escola que apenas pregue o silenciamento. Aí, um deles falou assim… um des-ses daí: “Tem umas aulas mais interessantes”, aí o Leo falou assim: “Ah, ter computação, estudo bí-blico, porque antes tinha…”, daí ele completa: “Tirô. Para vocês verem, os caras tiram da escola e dão na cadeia. Não é mais fácil dar na escola?”, ele está

“Você gosta mais da escola da Fundação ou a escola da comunidade?”. “Da escola da fundação” “Por quê?”. “Porque lá eu aprendi algumas coisas”.

“O que você acha que deveria mudar na escola?”, isso é bastante interessante pensarmos porque eles dizem: “Nada”, se a escola não tem sentido para ele, faz sentido essa escola mudar, mudar algumas coisas, mudar alguns elementos”.

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45nos dizendo algo, quer dizer, a partir do momento em que ele é incluído no sistema socioeducativo de privação de liberdade, aí ele passa a ter várias dessas coisas que antes não tinha, e ele está fa-lando da cadeia e também não só a cadeia, não só o socioeducativo, está falando depois.

Claro que aqui ele está se referindo ao es-tudo bíblico, mas podemos pensar isso para as outras questões, quantas outras coisas não são trabalhadas na escola, não são possibilitadas na escola e que, depois, serão oferecidas. Quer dizer, é preciso infracionar para ter os seus direitos ga-rantidos em algumas questões. E aí quando ouvi-mos dos meninos que saíram da Fundação Casa, eles falam assim: “Eu prefiro…” [quando você per-gunta]: “Você gosta mais da escola da Fundação ou a escola da comunidade?”. “Da escola da funda-ção” “Por quê?”. “Porque lá eu aprendi algumas coi-sas”. “E por que lá você aprendeu?”. “Porque lá eles me davam atenção, porque lá eu tinha que ir todos os dias, tal”. “Mas você prefere mesmo aquela es-cola?”. “Não, prefiro aqui porque aqui eu sou livre.

Eu não prefiro lá, mas lá eu aprendi algu-mas coisas que antes eu não aprendi, eu não tive acesso”. E perguntamos para eles: “Você se lem-bra de alguma coisa marcante na sua vida esco-lar, desde que você entrou na escola, que coisas marcaram a sua vida?”, e aí essa fala do Breno é muito importante, porque ele diz assim: “Não tem nenhum momento marcante, nenhum professor marcante. Eu apago o que eu fiz na sala para po-der entender, eu mesmo aprendo comigo mesmo”, o que ele está dizendo, gente? Quer dizer, mesmo aquilo que acreditamos que a escola dê conta, ele está dizendo que não dá conta, não é? Não tem… o que marca a sua experiência escolar? De todos, acho que teve um garoto que respondeu que o que mais marcou foi a formatura da oitava série e um outro disse assim: “Pensando bem, quando eu ganhei uma medalha nas Olimpíadas de Matemá-tica”, fora isso, eles não contam experiências nem boas e nem ruins, o quanto a escola não significa nada para eles, essas experiências não marcam a

sua trajetória, pode ser que muito eles não tenham dito, aquilo que eu falei, eles não falam muito, mas aquilo que eles estão nos dizendo estão dizendo que essa escola não marca a sua trajetória do ponto de vista de ele se lembrar de momentos que possam ser significativos. E aí, a Carol disse assim: “Quando eu estudei na sala das minhas colegas”, a única coisa que eu me lembro foi que foi muito bom quando as minhas amigas estavam na mesma sala que eu, caímos na mesma turma, na mesma sala e elas tinham o processo de identificação.O que cor-re normalmente, no cotidiano das escolas, quando começa o ano? Separa-se os grupinhos. Série A, B, C, D é justamente para separar os amigos, quem é que vai para tal escola, para quê? Para o con-trole, assim é mais fácil ter controle sobre o grupo. Quando perguntamos: “Que dificuldades que você tem na escola?”, a relação professor/aluno, o que eles mais apontam é a questão do respeito. inte-ressante, porque quando eu vou fazer pesquisa com os professores, eles dizem a mesma coisa: “Qual é o problema da escola?” “É a falta de res-peito, os alunos não respeitam”, e os professores adoecem por falta de respeito, por que isso? Os alunos, principalmente os alunos que se envolvem com as situações de violência, estão reclamando respeito dos profissionais da Educação.

Alessandra fala assim: “Eu tinha umas pro-fessoras que queriam que déssemos o respeito para elas, mas elas não davam o respeito, enten-deu?”. É muito comum no relato deles, situações cotidianas de desrespeito no sentido assim: “Mas você não vai aprender mesmo, você não tem o que fazer. Você é burro mesmo”, enfim: “Da família que vem, sendo filho de quem é…”, então eles estão dizendo que tem um processo de desqualificação, de desrespeito a ele enquanto sujeito, que ele… e ele não pode retribuir da mesma maneira, pode? Não, porque se ele retribui, ele vai para o livro de ocorrência, quando não vira boletim de ocorrência. Essas são as ditas violências, claro que têm outras formas de violência, mas o mais comum hoje, den-tro da escola, é a violência que diz respeito ao des-respeito. Outra coisa que eles reclamam é a falta

“Quer dizer, nem mesmo aquilo que acreditamos que a escola dê conta, ele está dizendo que não dá conta, não é? Não tem… o que marca a sua experiência escolar?”

“Essas são as ditas violências, claro que têm outras formas de violência, mas o mais comum hoje, dentro da escola, é a violência que diz respeito ao desrespeito”.

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46 de paciência por parte dos professores. Os profes-sores não têm essas qualidades. Aí, outra questão que vai aparecer, que aqueles que vêm da Funda-ção Casa, da escola dentro da Fundação Casa, di-zem que eles têm que é a falta de atenção e paci-ência e lá eles dizem: “Olha, lá dentro são poucos alunos e o professor tem paciência porque tem um segurança na porta…”, então, como não ter paci-ência? Eu lembro que eu entrevistei um professor que falava assim: “Um dia eu estava dando aula de História, aí quando falei: ‘A Revolução France-sa…’, o segurança entrou correndo na sala dizendo: - Qual que é a revolução? Qual que é a revolução?”, todo mundo se assustou porque… então, existem palavras, existem coisas que não podem ser ditas na escola dentro da Fundação Casa, desenhos que não podem ser feitos e algumas aulas que não po-dem ser ministradas, principalmente com essa ên-fase: “A Revolução…”, mas eles vão dizer que… eu perguntava alguma coisa para a professora, e ela não respondia sobre a matéria dela e isso ouvimos muito dos alunos, eles vão dizer: “Eu pergunto e ela não responde, porque acha que eu já deveria sa-ber, mas eu não sei”, então eles vão se silenciando. Então, o que eu estou querendo chamar a atenção e provocar vocês para discutirmos juntos; é assim: existe um descompasso entre o que está legal-mente instituído no ECA e o cotidiano escolar so-cial. O que nós temos é uma escola que não serve.

Ela precisa ser reinventada e isso não é só para os jovens que cumprem medidas socioedu-cativas, todos os jovens têm dito isso. O que eles fazem é se adaptar a essa escola, não é a escola que se adapta aos jovens, o que nós temos fei-to é tentado trabalhar esses jovens para que eles se adaptem àquela escola, porque você tem que cumprir a medida, você tem que ir para a escola e não essa escola que tem que se repensar enquan-to o lugar que recebe esses jovens, esses e todos os outros jovens. Primeira coisa para repensar a escola é essa lógica do silenciamento, o tempo

todo, ensinamos a silenciar-se, precisamos ensi-nar a falar, aliás, não precisamos ensinar a falar, precisamos deixar falar. Eu tenho uma filha de dois anos que parece uma tagarela, e o que a escola vai fazer com ela? “Não pode falar, não pode falar, não é hora de falar, não deve falar”, quer dizer, claro que precisamos aprender para a convivência social que tem o momento de falar, mas não significa não poder falar o que você pensa, o que você sente, mas aprender a estabelecer o diálogo. Outra coisa, a garantia de direitos parece ocorrer primordial-mente no nível do discurso e da legalidade. Então, aqui eu trouxe algumas falas dos professores da Fundação Casa, eu trabalhei com vários professo-res de diferentes unidades e o que eles dizem as-sim: “Você acredita na reeducação? Você acredita que o que você faz educa?”, e a professora disse: “Acredito que eles devem sair daqui sabendo pelo menos o nome, as quatro operações… sempre digo que eles estão tendo uma oportunidade, pois eu estou com 43 anos, curso a segunda faculdade e não preciso mais de estudos, eles sim”, portanto, isso é o que eles estão nos dizendo, o que eles re-clamam por respeito. O que eu espero quando um professor diz isso para mim? E é o que ela diz para eles: “Eu não preciso disso, eu já estudei, eu já fiz até faculdade, quem precisa são vocês”, o que es-tão nos dizendo? Aí, o outro professor diz assim: “Não é questão de não se aproximar…”, vai falar da relação professor/aluno, “Não ultrapasse esse limite, porque você nunca sabe o que eles querem de você aqui fora”. Aí: “Existe respeito sim, por-que eu chego junto com eles. Eu não fico atrás de agente, eu chego junto.

Eu uso muito da palavra, o que acontece na sala, fica na sala. Então, quando eles veem que eles estão errados, eles vêm pedir desculpas”…

“Primeira coisa para repensar a escola é essa lógica do silenciamento, o tempo todo, ensinamos a silenciar-se, precisamos ensinar a falar, aliás, não precisamos ensinar a falar, precisamos deixar falar”.

“Eu não quero culpabilizar os professores, essa é uma outra discussão importante para se fazer, mas eles não discutem os problemas sociais, eles acham que isso é uma questão da sociedade, o problema da Educação e da aprendizagem é do aluno que não aprende por seus próprios méritos”.

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47enfim, ele está dizendo o quê? É a lógica do si-lenciamento também naquele espaço e também da hierarquia: eu mando e você obedece. Então, o que estou querendo mostrar com isso? Que a visão dos professores… e esses professores que dão aula na Fundação Casa são os professores da rede pública estadual, eu não quero culpabili-zar os professores, essa é uma outra discussão importante para se fazer, que não vai dar tempo hoje, mas eles não discutem os problemas sociais, eles acham que isso é uma questão da sociedade, o problema da Educação e da aprendizagem é do aluno que não aprende por seus próprios méritos. E eles afirmam em várias falas que depende deles, eles que não querem: “Eles não querem aprender, eles não querem ir para a escola”, a ideia de que eles não aderem, esse é um discurso muito co-mum em diferentes campos. Ali, um professor fala assim: “Aquilo ali é um mal necessário”, aquilo ali é a escola dentro da Fundação Casa. “Ah não pode-mos esquecer jamais que eles são bandidos, que aqui fora não vai pensar duas vezes para roubar a sua bolsa e te dar um tiro.

Aquilo ali é um mal necessário”...Se o agente que está ali trabalhando a Educação, a escolari-zação pensa isso, se as nossas ações são me-diadas pelo nosso pensamento, , então devemos pensar que escola é essa, que escolarização é essa que estamos oferecendo aos jovens que cumprem medidas socioeducativas?

Os jovens aprendem em sociedade outras formas de linguagem que são interpretadas pela escola como desrespeito, indisciplina e violência. Ou seja, o que eles estão nos dizendo dentro da-quilo que eles fazem na escola e na relação com o professor são interpretadas como violência. Só que a escola se utiliza dos mesmos procedimen-tos, bastante violentos, os livros de ocorrência das escolas, por exemplo, eu nunca vi um aluno escre-ver o que aconteceu, quem que escreve? O profes-sor, a equipe gestora e a direção. Cadê a fala do jovem que se envolveu com a situação de violên-

cia? É um inquérito. Na verdade, serve para levar a justiça para dentro da escola. Eles gostam da es-cola e gostam de aprender, odeiam a dinâmica de funcionamento da escola, porque não os reconhe-ce como sujeitos e o que aparece, então? Esses sujeitos concretamente, esses jovens, eles estão invisíveis e como é que eles saem dessa invisibi-lidade? Quando eles se fazem presentes pelas si-tuações de violência, de desrespeito, de desacato, porque isso dá a eles uma identidade. Qual que é a identidade comum na escola? É o bom e o mau. O bom e o problema. Se ele não vai ser o bom, nunca, então que seja o problema e, aí, ele consegue ter um lugar de reconhecimento e sair dessa invisibi-lidade. Então, o que nós temos para pensar é que existe uma ausência de espaços planejados para a convivência, troca, construção de sentidos para estar na escola e para aprender.

Eu trouxe aqui alguns dados, para entender-mos o seguinte: se considerarmos que o acesso e a permanência na escola são um direito garantido e nos últimos 25 anos estamos dizendo isso, por-que está lá no ECA porque está na Constituição de 1988, o que os dados estão nos mostrando, os dados oficiais, os relatórios, é a incompetência das políticas públicas e dos seus executores, aí eu vou botar o dedo na testa de cada um que está neste lugar e todos nós, nós somos incompeten-tes em garantirmos esse direito, porque estamos dizendo que tem esse direito, que está garantin-do, mas o que eles estão dizendo é que não está sendo garantido e o fato de 70% estarem fora da escola ou estarem em conflito com a escola mos-tra isso. Claro que não é tão simples, precisamos pensar outras coisas. Acho que, principalmente, o que precisamos pensar é que no Brasil, de modo geral, quando os adolescentes jovens são consi-derados nas políticas públicas, eles aparecem na ótica da prevenção e eliminação da violência. To-das as políticas públicas (estou exagerando, mas

“Só que a escola se utiliza dos mesmos procedimentos, bastante violentos, os livros de ocorrência das escolas, por exemplo, eu nunca vi um aluno escrever o que aconteceu, quem que escreve?”

“Acho que, principalmente, o que precisamos pensar é que no Brasil, de modo geral, quando os adolescentes jovens são considerados nas políticas públicas, eles aparecem na ótica da prevenção e eliminação da violência”.

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48 depois vocês me contem se tem alguma que não seja), elas têm uma perspectiva da segurança pú-blica. É sempre trabalhar a sexualidade do ponto de vista da segurança para não ter filhos e isso… trabalhar a questão da violência para ele não se envolver com o ato infracional ou a lógica da pro-fissionalização, sempre é para incluí-lo no merca-do de trabalho. Eu quero uma política para quê? Para aprender a fazer alguma coisa, para eles (os adolescentes/jovens) ganharem dinheiro, para serem incluídos no mercado de trabalho. Então, é a lógica da profissionalização e não da criação do espaço de sociabilidade, de convívio. Então, o cumprimento de medidas socioeducativas, a es-cola deixam de ser um direito e passam a ser ape-nas uma punição. É isso que eu entendo, a esco-la é punição para eles e para os professores. Os professores acham que eles estão sendo punidos e também se sentem de certa forma punidos por terem que receber esses meninos depois que eles estão no cumprimento de medidas. O que aconte-ce é que nada é feito para mudar a lógica do fra-casso escolar que está sendo produzida. Nada se modifica, ele (o adolescente) volta para a escola pior ainda, porque, agora, ele carrega o estigma, o preconceito, a ideia do medo, porque ele é infrator. Então, se queremos uma escola que faça sentido aos jovens, aos educandos, a sua reestruturação e reorganização devem passar pelo reconheci-mento de que a escola é um lugar de encontro de convivência e de histórias de vida. Esse é um ponto fundamental e nós, enquanto psicólogos, e a Psicologia o que tem a ver com isso? Eu vou provocar um pouco para entendermos o seguinte: que as políticas públicas são segmentadas, exis-te política pública de saúde, de educação… e es-

tamos fazendo a mesma coisa, dividimo-nos em psicólogo escolar, psicólogo social, psicólogo da saúde e, aí, o que eu faço? isso não é problema meu, eu encaminho, eu não sou competente nis-so e as dificuldades escolares, também para nós, psicólogos, assistentes sociais, não achamos que é problema nosso, achamos que é problema da escola, dos educadores, não é? Eu entendo de uma coisa, essas outras coisas eu vou encami-nhar para o serviço que é competente nisso.

…Será que nós não podemos assumir parte desse processo educativo e de escolarização? Será que nós também não podemos assumir as dificuldades de ensinar? Será que nós não po-demos participar desse processo de educação e de escolarização? Não é para assumir o que a escola faz, mas para fazer isso de outro jei-to, para fazer isso de outro modo, não importa se eu sou psicólogo da assistência social, ou se eu sou psicólogo da saúde, eu tenho a ver com isso e estou falando das outras áreas, também. Porque senão, vamos continuar dando essa res-posta, qual é? Redução da maioridade penal, que é a saída que está aí, porque não damos conta deles, mostrando, então, a incompetência do po-der público e da sociedade de dar conta disso. É isso, pessoal. Obrigada e espero que converse-mos um pouco sobre essas coisas.

“Será que nós não podemos participar desse processo de educação e de escolarização?”

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Jean Fernando dos SantosPsicólogo. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP. Psicólogo do CREAS em Mauá, SP.

Boa noite a todas e todos. Agradeço o con-vite do Conselho Regional de Psicologia. Para mim também, assim como o Jorge coloca, é uma gran-de honra estar aqui, e poder dialogar sobre esse tema e eu falo do lugar de quem toma o dedo na testa da Débora, aceita o dedo na testa e ajuda a colocar o dedo na nossa testa, também. Acho que um pouco da minha fala vai poder apontar isso, o fato de que precisamos nos implicar nesse pro-cesso; não entendendo que, simplesmente assim, dizendo ser responsabilidade de um ou de outro que nós vamos conseguir caminhar no sentido de uma resposta de fato, efetiva.

Muito bem, falei do dedo na testa, mas não falei de onde eu falo. Falo como trabalhador da po-lítica de assistência social, trabalho num CREAS e, há alguns anos, tenho trabalhado com adoles-centes que estão cumprindo medidas socioeduca-tivas em meio aberto, liberdade assistida e pres-tação de serviços à comunidade. Sempre quando vou falar da política de assistência, eu gosto de fazer uma breve contextualização dessa política, entendendo, assim, que não é algo novo no Brasil, não é uma política em que o psicólogo é novidade, a presença do psicólogo, mas que tem, sim, gran-des novidades, pelo menos do ponto de vista do marco legal, considerando o Sistema Único que

organiza essa política de uma forma totalmen-te diferente do que ela era organizada antes. Se olharmos dez anos atrás, não tínhamos estrutu-ra e infraestrutura pensando desde o número de equipamentos que temos hoje, quanto em relação ao financiamento, que ainda é pequeno, extrema-mente pequeno, ou extremamente direcionado para certas políticas, deixando por exemplo de in-vestir propriamente nos serviços. Eu estou falan-do diretamente, de investir muito nos programas de gestões de renda que têm visibilidade, que dão voto e se investe ainda muito precariamente nos serviços, ainda que tenhamos um financiamento que há dez anos, não tínhamos.

Então, desse ponto de vista, nós conquista-mos… do ponto de vista legal, do ponto de vista da infraestrutura, a responsabilização do estado pelo direito de todo cidadão à assistência social. Conquistamos também que não se faz mais as-sistência social do jeito que se quer, não se faz assistência social enquanto caridade, são neces-sários recursos público, o estado tem obrigação de colocar recurso público. Mas vivenciamos a dis-puta entre concepções de assistência social que são assistencialistas e concepções de assistência social enquanto uma política de fato de produção social. Eu estou construindo essa contextualiza-

A política pública da Assistência Social e a garantia do Direto à Educação

“Sempre quando vou falar da política de assistência, eu gosto de fazer uma breve contextualização dessa política, entendendo, assim, que não é uma política que é nova no Brasil”.

“Mas vivenciamos a disputa entre concepções de assistência social que são assistencialistas e concepções de assistência social enquanto uma política de fato de produção social”.

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50 ção, lembrando um pouco isso e trazendo essa questão da disputa para apontar um discurso que muitas vezes tem me preocupado: o discurso de crítica ferrenha ao assistencialismo, numa tentati-va de reafirmar a política, contudo eu muitas vezes vejo que isso pode causar desassistência, de não implicação. Estávamos conversando eu e a Débora sobre essa ideia da não adesão, presente na polí-tica de assistência na política de saúde, na política educacional. Esse discurso de não adesão, de que o usuário não adere ao serviço e ponto final gera a não implicação dos agentes dessas políticas E aí, na medida socioeducativa, isso tomou uma outra dimensão, porque a tal “não adesão”, pode signi-ficar internação para esse adolescente Dessa for-ma, precisamos tomar cuidado quando se coloca essa ideia de adesão e se isso não se configura por vezes, uma prática de desassistência.

O adolescente que vai cumprir uma medi-da mesmo em meio aberto, ele não vai cumprir uma medida em meio aberto o faz porque há uma determinação judicial que diz que ele tem que cumprir. A questão é onde nós, que estamos por exemplo executando a medida lá no CREAS, nas entidades que aplicam medidas socioeducativas, em que lugar que nós estamos nos colocando- estamos nos colocando a serviço do juiz, a serviço do prefeito, ou estamos nos colocando a serviço dos direitos desse adolescente? Em que medida, aquilo de fato fazemos e produzimos está dire-cionado a atender os interesses desse adoles-cente? Quando de fato, conseguimos efetivar isso na prática, a ideia do protagonismo do adoles-cente? Falamos do protagonismo na elaboração do PiA, falamos de protagonismo no que tange à questão dos atendimentos que realizamos com ele, falamos de protagonismo em relação a cada uma das metas que se estabelece, mas, de fato, onde ali na prática, na vivência desse adolescen-te, se experimenta, de fato, o tal protagonismo? Em que medida conquistamos isso? Ou melhor, em que medida permitimos isso? Certamente falando um pouco da nossa experiência lá, o adolescente quando chega nos primeiros atendimentos conos-

co, ele vem cheio de desconfiança em relação a esse atendimento, ele tem todos os motivos para isso, ele tem todos os motivos para desconfiar o que queremos e, por vezes, ele desconfia com to-tal razão, porque muitas vezes nós, de fato, não garantimos que estamos a serviço dele. Não ga-rantimos que a produção do relatório que tem que ser uma produção conjunta, tenha efetivamente a participação do adolescente, ainda que tenhamos um marco legal para essa garantia. Temos discuti-do no serviço há bastante tempo que, no primeiro momento, o que precisamos construir com o ado-lescente é um espaço de confiança, porque o nos-so principal papel junto deles é, de fato, ser uma referência, de permitir um espaço onde ele possa falar de coisas que lhes foram negadas de expres-sar. Na delegacia embora haja todos os marcos legais que apontam que ele tem o direito de falar e de não falar quando quiser geralmente, ele é insta-do a falar e a confessar sobre o ato infracional que ele cometeu. Por vezes, confessar até coisas que ele não cometeu. Então, de fato, não se dá o espa-ço para a escuta desse adolescente. O adolescen-te passa pelo processo de ser escutado diversas autoridades do sistema de Justiça, mas na grande parte delas, não há escuta efetiva, não há de fato, direito à defesa, que é um problema que aí está sendo colocado. E, aí, por fim, quando ele chega, por exemplo, na medida de internação ou na me-dida de meio aberto, isso mais uma vez se repete, quando, por exemplo, não permitimos que esse adolescente ocupe o espaço de protagonista.

E, assim, de uma certa forma, esse silencia-mento… para quem foi silenciado todo esse mo-mento, eu não vejo por exemplo, como ser dife-

“Em que medida que, de fato, aquilo que nós fazemos e que nós produzimos está direcionado a atender os interesses desse adolescente?”

Falo disso pensando assim: quando estamos executando a medida de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade, nós estamos entre a pressão do gestor público que precisa atingir determinados resultados, o adolescente e a família desse adolescente que por vezes chega após várias situações de humilhação”

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51rente. Então, se não conseguimos construir com o adolescente esse lugar de referência, se não conseguimos avançar na escuta não atendere-mos de fato, os interesses do adolescente. Falo disso pensando assim: quando estamos execu-tando a medida de liberdade assistida e presta-ção de serviços à comunidade, nós estamos entre a pressão do gestor público que precisa atingir determinados resultados o adolescente e a famí-lia desse adolescente, que, por vezes, chega após várias situações de humilhação. E nós estamos aí juntos nesse conjunto para poder pensar e, ain-da, supondo, que o que está escrito na política, de fato acontece: um espaço de protagonismo do adolescente, um espaço de referência, um espa-ço de favorecer fortalecimento de vínculo, de pro-mover acesso a direitos e serviços. Tudo isso não servirá para nada. Todo esse conjunto de norma-tivas não bastam, se não tivermos a condição de fazer a leitura deles a partir de um posicionamen-to ético-político muito claro a partir da defesa in-transigente dos direitos desse adolescente, o que vai exigir de nós que compremos algumas brigas, que articulemos parceiros e isso não é nada fácil. Estou falando como quem, no dia a dia, faz esse enfrentamento. Só que nós precisamos construir parcerias, nós precisamos nos posicionar e nós precisamos, sobretudo, considerando toda essa fragmentação que temos no campo das políticas públicas, nós precisamos construir novas tecnolo-gias, novas formas de poder ofertar esse serviço.

No município, tivemos uma experiência muito recente, pensando todos esses problemas de arti-culações com os serviços, a da construção do plano municipal de atendimento socioeducativo, que foi, de uma certa forma, uma conquista.Buscamos, na hora de construção desse plano, chamar todas as

políticas públicas para podermos pensar juntos sua construção e buscarmos, também, chamar famílias e adolescentes para construção desse processo. No entanto, o que observamos é que, mais uma vez, a lógica do silenciamento vai se mostrando presente, denotando como não construímos espa-ços efetivos de participação e protagonismo sendo que aqueles que seriam os maiores interessados diretamente não se sentem legitimados a partici-par efetivamente, o processo não é feito de uma forma que eles possam efetivamente participar.

A Diretoria de Ensino do Município participou pouco do processo. Já a Secretaria Municipal de Educação já participou do começo ao fim do pro-cesso de construção do plano e a riqueza dessa construção foi exatamente a possibilidade de po-der junto com todos esses atores, discutir a reali-dade desses adolescentes em relação a todas es-sas políticas, às ofertas de políticas e poder pensar que o atendimento do adolescente, a garantia des-ses direitos é responsabilidade de todos nós. Pen-sando, particularmente, nesse desafio em relação à questão das medidas socioeducativas e educação, o que temos de experiência em contato com os adolescentes é que a experiência do adolescente na escola se configura por vivências de discrimina-ção que vêm de diversos lados, marcadas de forma mais intensa por uma certa perseguição dos agen-tes escolares em relação a esses adolescentes. Assim como a Débora traz os dados, observamos no cotidiano, quando vamos fazer… Quando esta-mos construindo com os adolescentes o plano de atendimento, costumamos questionar um pouco da trajetória na escola, costumamos contar com esse histórico escolar e, às vezes, confirmamos que boa parte deles está há dois ou três anos fora da escola, um número muito grande.

No entanto, o que observamos é que, mais uma vez, a lógica do silenciamento vai se mostrando presente denotando como não construímos espaços efetivos de participação e protagonismo sendo que aqueles que seriam os maiores interessados diretamente não se sentem legitimados a participar”

“Pensando, particularmente, nesse desafio em relação à questão das medidas socioeducativas e educação, o que temos de experiência em contato com os adolescentes é que a experiência do adolescente na escola se configura por vivências de discriminação que vêm de diversos lados”.

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E quando você levanta com o adolescente o que aconteceu e o porquê de ele estar fora da es-cola, o que ele traz, geralmente, está relacionado com perseguição, com discriminação... eles trazem falas do tipo “Eu vou para lá, mas todo mundo fica me olhando o tempo inteiro e tudo o que aconte-ce de errado é culpa minha”, isso é muito comum: “Ficam me perseguindo, enfim, por isso que eu não volto mais lá, por isso que eu não quero”, e uma grande parte deles diz que não quer voltar para a escola. Porém essa ideia de que não quer, não quer dizer que não gostam da escola, não quer di-zer que não acham a escola importante. Ninguém diz que a escola não é importante, ninguém vai na contramão disso dentre os adolescentes, de que a escola não é importante ou de que não gosta da escola, mas diz que não quer voltar e trazem essas relações, principalmente, com os agentes escolares como a maior problemática. Pelo lado dos agentes escolares, o que percebemos é uma dificuldade muito grande de se fazer a matrícula escolar, nós temos conseguido, em muitas situa-ções, matrícula escolar porque eu tenho acessado o Conselho Tutelar. Uma escola nega a matrícula dizendo que não tem vaga, aí você vai na Diretoria de Ensino, você vai na Secretaria de Educação, a vaga surge, então essa é uma situação. E essas vagas têm sido garantidas porque, muitas vezes, se aciona o Conselho Tutelar. A outra situação é assim: “Tem vaga”, só que não se percebe nenhum esforço no sentido da manutenção desse adoles-cente naquele espaço, aliás, há situações em que ouvimos, relatos de diretores que ligam no serviço falando que há adolescentes em liberdade assisti-da que estão tocando o terror na escola e, aí, você vai verificar, nessa escola não tem nenhum ado-lescente em liberdade assistida. Então e constrói essa marca da liberdade assistida como os meni-nos que tocam o terror. Já tivemos situações de discussões acaloradas com diretores tentando pensar sobre isso mas o que vemos é que eles não têm disposição nenhuma para ouvir. Eu estou trazendo essas situações e acho que falar disso não se trata de apontarmos o dedo simplesmente

para os agentes escolares, mas se trata de pen-sar os agentes escolares também como parte de uma escola que tem uma forma de funcionar que não é para todos, tem uma forma estruturada de que a prioridade não é, de fato, a educação das crianças. É difícil de se conseguir isso, é difícil de se conseguir a manutenção dele pelas formas vi-gentes na legislação, mas é mais difícil ainda se precisarmos que haja algumas quebras de proto-colo, às vezes, por falhas do próprio sistema que não funciona adequadamente. Mas eu chamo a atenção para qual é o nosso lugar enquanto po-lítica de assistência social, enquanto executores da medida diante desse quadro? O nosso lugar é só reclamar do juiz, do promotor, da defensoria, da escola, da saúde, é só reclamar dos equipamentos que não funcionam? Qual que é o nosso lugar nis-so? É só encaminhar? Eu encaminhei à escola, fiz a minha parte. Eu encaminhei ao Conselho Tutelar, consegui a vaga, fiz a minha parte, qual é o nosso lugar? Onde entramos nessa história? Eu tenho pensado muito e é um pouco nessa lógica do as-sistencialismo versus assistência social, pensan-do um pouco nessas coisas, pensando também no adere, não adere que já temos pensado e pro-blematizado bastante, que, de fato, nós precisa-mos nos implicar e sermos, provocadores mesmo, com o vínculo que estamos construindo com esse adolescente, com essa família, com o que esta-mos conhecendo e podendo ouvir a história dele, a partir da confiança que ele coloca em nós, que conquistamos com ele. De fato, nos implicarmos na construção desses espaços e nos implicarmos acionando, as instituições escolares.

Às vezes, teremos que acionar a justiça, às vezes teremos que acionar o Conselho Tute-lar se for necessário, mas precisamos também tentar novas propostas, novas tecnologias que não necessitem passar por processo de judi-cialização, que não necessitem trabalhar numa lógica de rompimento de vínculos. Eu diria para vocês que não tem receita para todos, aí, eu acho que é uma questão que nós vamos cons-truir no processo de trabalho com cada um, em

“Ninguém diz que a escola não é importante, ninguém vai na contramão disso dentre os adolescentes, de que a escola não é importante ou de que não gosta da escola”.

“Nesse sentido, nós precisamos, de fato, trabalhar numa linha de responsabilização efetiva, primeiramente, do estado nisso, primeiramente”.

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53cada caso. Nesse sentido, nós precisamos, de fato, trabalhar numa linha de responsabilização efetiva, primeiramente, do estado.

Temos que pensar nessa perspectiva e esse momento é claríssimo para se pensar isso, uma vez que está se pensando a desresponsabili-zação do estado, tendo como exemplo a redução

da maioridade penal que na prática consiste em pegar adolescentes dos 16 aos 18 anos, jogar no sistema prisional e o estado já não ter mais res-ponsabilidade com a questão da educação, com a questão da saúde.. A perspectiva da medida so-cioeducativa vai na contramão disso e digo até mais, a perspectiva da medida socioeducativa não só é uma possibilidade de fortalecer a ques-tão da responsabilização do estado na garantia de direitos, como é, também, a possibilidade de colocar a possibilidades e responsabilidades para esse adolescente. Enfim, eu acho que falar em articulação é falar em se implicar, é falar em você chamar, por exemplo, a educação, é chamar a saúde, mas é falar, sobretudo, de poder chamar esse adolescente e pensar junto com esse ado-lescente e essa família, esse processo. Eu trou-xe algumas questões para podermos pensar. Eu acho que é melhor agora, talvez, irmos para o de-bate, porque conseguimos trazer um pouco mais de elementos. Obrigado.

“A perspectiva da medida socioeducativa vai na contramão disso e digo até mais, a perspectiva da medida socioeducativa não só é uma possibilidade de fortalecer a questão da responsabilização do estado na garantia de direitos”.

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Não identificado: Faço questão de parabenizar essa Mesa, estou muito feliz de estar aqui, bem bacana as provocações de vocês e tentar ser bas-tante breve. Sou muito solidário e me toca muito a convicção com que o Jean fala dessa briga que precisamos comprar, me traz essa ideia de que é simplesmente assumirmos um posicionamento, então do lado de quem estamos e essa convic-ção me toca bastante. Vou contar de forma bem breve, Jorge, a experiência de uma adolescente de 17 anos atendida por um serviço de Campinas, e que assume o tráfico na região do terminal cen-tral utilizando-se de recursos que ela aprendeu na vida. Basicamente, ela pega um caderninho que o cara anotava as coisas, leva numa lan house e coloca numa planilha de Excel e, de posse desses recursos, ela se organiza ali dentro, então faz mui-to sentido a sua fala. Mas eu queria colocar, Dé-bora, fiquei superangustiado com a sua fala, com as suas provocações e gostaria de saber se você tem relatos, enfim, algumas experiências que pos-sa apontar para nós… experiências de fato revolu-cionárias em relação à escola...

Não identificado: Boa noite, eu queria parabeni-zar a vocês todos pela riqueza de detalhes des-sas pesquisas, esse conhecimento que vocês compartilharam hoje conosco. Então, a minha fala não é uma pergunta, é uma impressão particu-lar. Eu tenho muitos amigos professores, muitos psicólogos professores e sempre conversamos sobre essa questão da educação. Não sei, é uma impressão que eu tenho, que a educação que nós temos hoje, principalmente na escola pública, é uma educação antiga, pensada naquela época da ditadura militar, se eu não me engano, se eu não estiver errado, a maioria das escolas, a constru-ção, a arquitetura dela, elas foram construídas exatamente nessa época, da ditadura militar, que

tem aquela questão do controle e tudo mais. E se vocês entrarem numa escola pública, aqueles portões, aquelas grades, aqueles muros, cercas, aquelas portas com janelas para facilitar a obser-vação de quem está de fora o que está aconte-cendo dentro, eu costumo comparar essa estru-tura física, essa arquitetura da educação pública com presídio, aqueles corredores enormes, tudo para se ter um controle. E se eu não me engano, Goffman acredita que a questão do cenário, a vida acaba acontecendo num teatro e você acaba as-sumindo papéis dentro desse teatro, então, feito todo o cenário, você apenas assume um papel que é posto ali. Então, eu gostaria de… não sei, a im-pressão que eu tenho é que tanto professor quan-to aluno são vítimas dessa educação pensada há tempos atrás. E quando você começa a observar a experiência desse professor, saindo desse cenário através daquelas excursões dentro daquele espa-ço da Lapa, Estação Ciência, onde o professor sai daquele cenário da escola pública e entra nessas excursões e vai fazer a sua aula naquele espaço aberto, é comovente você ver a reação dos alunos, eles participando, ele falando, diferente daquela participação que temos dentro dessa arquitetura da escola. Eu acho muito difícil mudar toda a es-trutura, toda a arquitetura para que facilite esse convívio de aluno, então acredito muito nessa sa-ída do professor como uma estratégia de ter esse espaço provocativo para a participação do aluno, quanto dele, para facilitar esse conhecimento. É uma impressão, uma colocação, se algum de vo-cês se sentir provocado para adicionar algum co-mentário a respeito, fica a critério de vocês.

Não identificado: Olá, boa noite. Muito do que o co-lega estava dizendo, eu fiquei pensando enquanto vocês diziam, principalmente a Débora, sobre o Paulo Freire, quando ele fala da relação vertical,

Debates

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55porque, como ele diz sobre os muros, sobre as cer-cas o ambiente físico, mas eu acredito que o am-biente da educação tradicional não serve mais, é outra geração, outras cabeças, é diferente. Então, fico pensando em mudar o modelo, mesmo, não sei se a escola humanista seria melhor, ou qual seria, mas não faz muito tempo que eu saí do colégio, então eu tenho algumas recordações e não eram legais. Enfim, eu queria saber se não só na questão da socioeducativa, mas no contexto da educação, qual seria o modelo apropriado, se existe, na ver-dade, seria válida essa mudança. Obrigado.

Não identificado: Boa noite a todos e a todas. Realmente, estamos agraciados, a Mesa foi ma-ravilhosa em todas as colocações. Em especial, eu fiquei muito feliz com as palavras do Professor Jorge Broide, ver que a psicanálise está pegando um pouco esse lado social. Eu sou um psicólogo de formação, estudante de psicanálise, tentando en-tender esse homem e Lacan - e acho que fiz algu-mas identificações - foi muito interessante. Gostei muito da sinonímia de ancoragem como brechas de vida e vejo isso muito no meu trabalho. No meu trabalho é bem essa a realidade, encontrar mes-mo o que amarram essas pessoas, essas famílias, no caso específico esses adolescentes, à vida e, talvez, não uma pergunta, mas uma provocação, realmente: até que ponto os serviços, as institui-ções enquanto hierarquia que pertencemos, cada um no seu trabalho e, talvez, a provocação caia um pouco mais sobre o Jean, enquanto CREAS: , como será que conseguiremos colocar esse cão-zinho no PiA, como será que conseguiremos colo-car esses supervisores? Essas colocações mexem muito comigo e principalmente por não ver ainda a possibilidade de colocá-las na prática, por uma hierarquia que ainda não ve isso como importante. Mas, enfim, foi ótima a colocação, realmente, pen-sarei mais nos cachorrinhos nos meus próximos atendimentos, com certeza. Obrigado.

Jorge Broide: É verdade, eu sou um psicanalista e gosto muito e sempre trabalhei com a psicanálise, além de trabalhar no consultório, fora do consultó-rio, algumas pessoas que me conhecem há mais tempo sabem que eu sempre fiz isso, mas eu que-ria contar um trecho para vocês para dizer o que eu estou pensando, porque eu acho que nós temos, nós todos aqui, está claro que todos nós temos um compromisso ético-político, caso contrário nós não estaríamos aqui se não tivéssemos um com-promisso ético-político. Compromisso ético-políti-co de esquerda, quando estamos vendo o mundo

que é um mundo melhor, um mundo progressista, isso aqui para mim, está claro, está dado, funda-mentalmente, não precisa ser de esquerda ou de direita, até, um mundo melhor, que seja isso. Mas isso não é o suficiente, isso não é o suficiente, isso não nos garante. Então, eu vou trazer aqui uma passagem que eu tenho usado muito que é o seguinte: de um filósofo chamado Badiou, filósofo francês que trabalha muito com o Zizek, que tra-balha com a questão do Marx, Lacan, essas coisas todas, ele tem um livro que tem uma passagem que é absolutamente extraordinária que eu tenho usa-do muito na construção do pensar, na construção de dispositivos que é o que nós precisamos fazer. Ele relata a seguinte cena: ele diz que estava o Ar-quimedes, filósofo, matemático, fazendo os seus problemas matemáticos na praia e o Arquimedes havia lutado junto com os gregos - ele era um gre-go contra os romanos na época da dominação ro-mana, mas era um cara muito respeitado. Então, o Arquimedes estava lá fazendo seus problemas matemáticos na praia e o general romano queria conhecer o Arquimedes e manda o soldado buscar o Arquimedes e o soldado chega e fala para o Ar-quimedes o seguinte… ele estava na praia, na pran-cheta escrevendo aquelas coisas, aí o soldado diz assim: “O general está lhe chamando, vamos!”, e o Arquimedes responde o seguinte: “Olha, eu vou depois que acabar o problema matemático”. O soldado diz: “Não, vamos! É impensável você não obedecer ao general”, e o Arquimedes diz: “Não, é impensável eu sair daqui sem resolver um proble-ma matemático”, o que acontece? O soldado mata o Arquimedes. Eu acho esse exemplo muito bom porque este é o lugar onde nós estamos, como é que podemos fazer a passagem de duas lógicas que são completamente diferentes entre si? Na ló-gica do soldado, é impensável que o Arquimedes não diga sim imediatamente e, na lógica do Arqui-medes, é impensável ele largar de fazer um proble-ma de Matemática para atender um idiota de um soldado para falar com um idiota de um general.

“A nossa função, enquanto psicólogos, trabalhadores sociais, psicanalistas, o que vocês quiserem chamar, atendentes, porteiros, cozinheira, faxineira, o que seja, é descobrir como é que encontramos passagem entre essas duas lógicas que não dialogam”.

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56 Ok, nós aqui todos, que estamos nesta sala, nós estamos exatamente neste mesmo lugar, den-tro de um espaço de duas lógicas que não se co-municam. A nossa função, enquanto psicólogos, trabalhadores sociais, psicanalistas, o que vocês quiserem chamar, atendentes, porteiros, cozinhei-ra, faxineira, o que seja, é descobrir como é que encontramos passagem entre essas duas lógicas que não dialogam. isso pressupõe de nós uma questão técnica, não adianta só ficarmos dizen-do que o mundo é muito ruim, porque ele é, isso aqui já é até consenso, nós sabemos que a escola é o que é, nós já sabemos que a justiça é o que é, nós já sabemos… isso é “consensoado” entre nós, precisamos encontrar formas de dispositivos que permitam uma passagem e uma transformação entre essas duas lógicas que não dialogam, que é aguentarmos uma coisa que o próprio Badiou fala que é o vazio, aguentarmos e, aqui, você vê que eu estou rigorosamente aqui na psicanálise também, aguentar o vazio que é aguentar não sa-ber o que temos diante nós. Quando temos esse adolescente que está conversando com a morte, que sabemos que a morte está aqui no cangote dele, não sabemos o que fazer e nós temos que aguentar o não saber o que fazer, é o único jeito que temos de poder encontrar uma passagem en-tre essas lógicas, mas nós temos que aguentar a nossa angústia, nós temos que aguentar esse não saber. É deste momento em que aguentamos esse não saber que podemos escutar o outro e pode-mos criar alguma coisa nova e o mesmo Badiou vai dizer… muito interessante, porque ele diz assim: “Esse espaço vazio, na Filosofia, ele possibilita o surgimento do ser e, na Psicanálise, possibilita o surgimento do sujeito”. Então, a nossa questão no nosso trabalho é como vamos constituindo es-ses espaços vazios que permitem a busca de uma passagem entre lógicas opostas, que são o novo, que nos deixa profundamente angustiados. Eu acho que essa é a nossa grande tarefa e é muito difícil, porque estamos vendo uma coisa acontecer, geralmente, catastrófica diante de nós e como é que aguentamos seguir pensando no meio disso? Que isso aqui está caótico, nós estamos carecas de saber. Agora, como é que dentro desse caos, conseguimos encontrar uma passagem entre o Arquimedes e o soldado, de tal maneira que esse sujeito que está diante de nós possa viver uma vida digna, mas não é só viver, é uma vida digna, uma vida de direito, uma vida com tudo isso que nós estamos dizendo. Então, a questão que eu trago para vocês é como é que aguentamos ficar diante de um desconhecido de tal magnitude para

ver como é que encontramos essa brecha de vida, como é que encontramos essa ancoragem, como é que operamos sobre ela, como é que operamos sobre a fragmentação que tem no campo, como é que operamos sobre o sistema de justiça, como é que operamos sobre a polícia, como é que opera-mos sobre os matadores, como é que operamos… enfim, sobre todas essas coisas? Acho que nós temos uma questão dificílima, a nossa escolha de trabalhar na questão social aguda é uma escolha que muitas vezes nós ficamos porque temos algu-ma coisa a ver com isso, porque vamos, se não te-mos alguma coisa a ver com isso, nós saímos, mas nós estamos. isso nos diz respeito. Então, o meu convite a todos nós é como é que aguentamos esse vazio para mudar; só assim, nós vamos poder mudar esses paradigmas que estamos falando e aguentarmos não saber, aguentarmos não enten-der, aguentarmos não enxergar, é isso.

Débora Cristina Fonseca: Então, é isso. Acho que não temos respostas para as várias perguntas que aparecem aqui. Mas acho que podemos pen-sar juntos algumas saídas, algumas passagens. Lá da Baixada, como superar essa fragmentação de atendimento ao jovem, é isso, é não olharmos esse jovem fragmentado. Eu acho que o começo da história é por aí, como é que eu enxergo esse adolescente, esse jovem que está diante de mim e que dizem que ele cometeu um ato infracio-nal, mas pouco interessa qual foi o delito, o que interessa é quem é esse sujeito? Então, quando eu dou o espaço para reconhecer esse sujeito o que não é fácil, porque ele também já não sabe mais quem ele é, ele já está tão imbuído dessa trajetória que ele pouco sabe, mas podemos dar esse espaço de começar saber um pouco mais, conhecer um pouco mais, porque eu acho que um grande problema que nós temos e, aí, eu falo nós psicólogos, professores, pesquisadores é que nós ouvimos já sabendo o que queremos ouvir, não estamos ouvindo o que o sujeito está dizendo, estamos ouvindo aquilo que já sabemos que ele vai dizer e o resto nós ignoramos. Então, acho que esse é o exercício: como é que conseguimos ouvir sem estar com todas as nossas certezas já colo-cadas sobre a mesa, ou nos relatórios que vamos produzir sobre isso, porque já sabemos tudo que ele vai dizer e o que ouvimos é filtrando aquilo que confirma o que eu já sei sobre ele.

Então, acho que o começo é isso, começar a ouvir enquanto ele está dizendo, que ele está dizendo coisas da saúde, da educação, da assistência, eu

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não tenho que ouvir como isso não me interessa, porque eu não sei disso. Eu tenho que ouvir essas coisas pensando “como é que eu posso olhar para esse sujeito e, de algum modo, começar a repen-sar essa trajetória com ele”, porque tem que fazer sentido para ele, não é para mim, enquanto agen-te. É claro que em algum momento, eu vou ter que dar conta dessa burocracia que me cerca e ela faz parte do processo. Agora, como é que eu faço isso não pode se subverter o sujeito à burocracia, mas, ao contrário e aí eu digo que é o espaço da ree-xistência, da reexistência, de uma outra existên-cia, dar um espaço de existência para esse sujeito que até então, não existiu. Não existiu lá na esco-la, não existiu no serviço e, aí, eu posso dialogar com os outros serviços, porque também não sa-bemos tudo, mas não saber tudo não significa que eu não sei do sujeito, talvez isso seja um começo para superar essa fragmentação, porque, senão, ficaremos mesmo nessa história do “empurra”, do encaminhamento, eu mando para o outro porque isso não é da minha competência. E o “empurra” tem se tornado hoje a batata quente, eu quero me livrar dela, eu jogo mas eu não quero saber o que aconteceu depois, talvez esse seja um caminho, como é que eu faço isso de mão dupla, eu peço lá a colaboração do outro, mas eu continuo me respon-sabilizando por isso. Então, se todos se responsa-bilizam e possibilitam esse diálogo sobre essa si-tuação, você vai provocando algumas mudanças, não muitas, não revolucionárias; acho que não temos essas mudanças revolucionárias, mas po-demos ir fazendo aos poucos algumas pequenas revoluções, acho que no modelo que nós temos hoje de sociedade, de política estabelecida, prin-cipalmente no Estado de São Paulo, eu não con-sigo, já entrando na pergunta do Gustavo, eu não conheço uma experiência revolucionária de escola, mas eu conheço pequenas experiências de pesso-as e grupos que se propõem a pensar esse espaço da escola ou pensar essa relação com esse jovem de outra maneira e, aí, têm algumas situações que eu acho que dão algumas dicas de que é possível fazer isso, por exemplo, a questão das Artes é mui-to interessante, mas não é a Arte porque é aquela que está na moda, mas o que ele produz? Coisas

que podemos achar que não são tão artísticas, as-sim, mas para ele faz algum sentido. Nós tivemos uma experiência de um projeto de extensão que foi justamente tentando trabalhar com esses jovens dentro de um CREAS, mas o CREAS, infelizmente a equipe que estava lá, ela queria que assumísse-mos o lugar da equipe, então assim: “Vocês vão ter que preencher todos os formulários, os pron-tuários” “Não, nós não vamos preencher prontuá-rios, nós não vamos assumir o lugar de vocês, nós vamos olhar para os jovens pensando no que é a escola para eles” e, aí, as meninas diziam que elas odiavam a escola, que não queriam ir à escola… en-tão, está bom, então não vamos falar de escola: “Do que vocês gostam? De que artista você gos-ta? O que você gosta de fazer?”. “Eu adoro o Luan Santana”. “Legal”, não acho tão legal assim o Luan Santana, mas a menina adora Luan Santana, en-tão: “Vamos lá buscar a biografia do Luan Santana, trajetória do Luan Santana, vamos ler os textos juntos, vamos produzir uma história do Luan San-tana”, e foi aí que as meninas foram trabalhando as dificuldades de aprendizagem a partir da leitura de algo que para elas fazia todo sentido. A partir daquilo ali, elas foram produzindo outros textos sobre outras histórias, sobre outros personagens: “E, aí, a trajetória da sua bisavó, você sabe quem ela foi? Onde ela nasceu?”. “Nossa, nunca pensei, eu nem sabia que eu tinha bisavó”, e elas foram buscando coisas da história de vida que tinha a ver com o próprio sentido para ela de estar naquele lugar, da sua história de vida e isso foi sendo tra-balhado pedagogicamente, não na pedagogia do lugar que agora tem que escrever, agora tem que avaliar, agora… não, nós estávamos trabalhando, quer dizer, aquilo que ela estava produzindo, ela estava produzindo textos, corrigindo suas escritas de um outro jeito. Quem diz que isso não é esco-larização? É de um outro modo e não para tirar o papel do CREAS e nem da escola, porque elas con-tinuavam indo para a escola, mas nós podemos, talvez, trazer outras possibilidades de fazer isso. Por exemplo, um desses meninos, a escola dizia assim: “Ele só sabe contar até seis”, o relatório era esse, a equipe do CREAS dizia: “Eu não tenho o que fazer, ele tem um problema, um déficit de aprendizagem, de atenção, problema neurológico, cognitivo”, tudo estava no laudo e tinha laudo, era laudado. Não queremos saber o que tem no laudo, pouco importa o que tem no laudo, o que nós que-remos é saber que, que ele é. E começamos a con-versar com o menino, fazer umas atividades, ver o que ele gosta e o que ele não gosta e, aí, ele gos-tava de pintar, de desenhar, então vamos pintar e

“É claro que em algum momento, eu vou ter que dar conta dessa burocracia que me cerca e ela faz parte do processo”.

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58 desenhar até o dia em que falamos: “Vamos fazer alguma coisa para todo mundo, coletivamente? O que podemos fazer?”. “Todo mundo adora briga-deiro”. “Então, vamos fazer brigadeiro para todo mundo”, fizeram lá 150 brigadeiros. E as meninas… estou dizendo que são as meninas da Pedagogia que estão comigo nesse projeto, elas que vão lá para a prática e elas começaram: “Bom, agora, nós temos um problema…”, falou o nome do menino lá, “Nós temos 150 brigadeiros e tantas crianças para comer. O que nós vamos fazer agora? Como é que resolvemos isso?”, rapidamente o menino fez toda a divisão e contou os brigadeiros que cada um iria receber. Quer dizer, ele sabia contar muito mais do que seis, ele sabia contar até 150, ele não sabia aquilo que a escola queria que ele soubesse. Ele não tinha nenhum problema cognitivo. Então, a partir daí, é possível você perceber que dá para trabalhar de outras formas. É claro que em algum momento, isso precisa ser sistematizado, porque isso inclui do ponto de vista da escolarização, do acesso ao conhecimento, mas não precisa ser tão traumático quanto tem sido, ele não precisava sa-ber aqueles números que aprendemos, o que é o dois, aquele desenho, até ele vai aprender isso em algum momento, mas não como um processo do-lorido e que você não sabe, você tem um problema neurológico. Talvez, esquecer os rótulos, esquecer os diagnósticos, os laudos. Nas escolas, eu vou para algumas experiências nas escolas em que te-mos pesquisado a história da violência e é muito comum ouvir assim: “Aquela sala ali é a sala pro-blema, aquele ali é laudado aquele não é, mas não tenho dúvida de que ele tem problemas”.

Pouco importa qual é o laudo, não quero saber qual é o laudo e nem qual é o diagnóstico, vamos sa-ber o que eles sabem e o que eles podem fazer com a ajuda do outro. Talvez, isso seja alguns dos caminhos que possamos começar a traçar. E tem professor que consegue pensar um pouco por aí. Agora, a grande maioria está tão presa à política que não pode, do que não pode e a história do pro-

fessor mediador da escola é outro problema muito sério na política, porque ele fez o quê? Despoten-cializou o professor na relação com o aluno, tudo é conflito e manda para o mediador. Aí, ele virou um santo Deus que vai resolver tudo, mas que, na verdade, não sabe o que fazer, ele manda para o Conselho Tutelar, para os CREAS que também já não sabem mais o que fazer. Então, eu acho que tem uma despotencialização do professor e o pro-fessor não acredita que ele é capaz de fazer mais nada, aí ele adoece. Ele adoece mesmo, muito, por-que ele não percebe que ele pode fazer a reexis-tência. O menino está brigando na sala de aula e ele manda para o mediador ou para o diretor, com isso ele está dizendo: “Eu sou incompetente em resolver esse conflito”, agora também não dá para ir para o confronto, ele precisa ser de algum modo pensado e, aí, eu vou jogar a responsabilidade na formação que não dá conta disso, que a formação não prepara para as relações com o outro, só pre-para para conteúdos e os professores estão sain-do cada vez mais malformados porque não têm um espaço de pensar o outro na relação. Então, acho que aí existem algumas questões para pensarmos, quando aqueles professores falaram aquelas coi-sas, eles estão falando porque, de fato, eles viven-ciam isso, tem professor que diz assim: “Eu prefiro dar aula dentro da Fundação Casa porque eu me sinto seguro. Eu vou na escola, na comunidade, eu não tenho segurança, eu me sinto ameaçado”, ele não percebe que ele está encarcerado tanto quanto o menino, mas ele precisa da segurança, é uma lógica que se vai colocando de que ser pro-fessor nessas condições é a melhor condição para ser professor e ele não compreende a sua possi-bilidade de um outro fazer. Então, assim, talvez, a mudança na política é fundamental, mas nós não temos muitas perspectivas de que isso aconteça, então do ponto de vista da revolução, acho que vamos fazendo pequenas revoluções, porque, de fato, essa escola, quando você fala da estrutura, acho que a estrutura pode ser um elemento inte-ressante, mas eu acho que ela pode ser ressignifi-cada se você tiver outras práticas, outras possibi-lidades de utilizar esse espaço da escola de outras maneiras. Então, não é a estrutura, a estrutura diz muito de como ela é hoje, mas ela pode também ser ressignificada, os alunos dizem isso: “Essa es-cola parece cadeia”, as janelas estão todas cheias de grades. Então, de fato, elas estão cada vez mais reproduzindo esse modelo. E, aí - já me alonguei muito - qual seria o modelo apropriado? Acho que não tem, talvez o modelo seria não ter modelo, e cada lugar, cada espaço construir a sua possibi-

“Agora, a grande maioria está tão presa à política que não pode, do que não pode e a história do professor mediador da escola é outro problema muito sério na política, porque ele fez o quê?”

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59lidade de trabalhar, mas, de fato, se implicando, porque nós não temos hoje… a grande dificuldade da implicação, eu estou implicado naquilo que eu faço, mas até um certo ponto, porque eu me sin-to tão limitado e, aí, eu não percebo que a minha implicação tem que ser com o sujeito e não com a política e não com o governante ou com qualquer outro. Acho que é isso.

Jean Fernando dos Santos: Acho que Jorge e Dé-bora colocaram bem, não existe uma resposta, eu acho para todas essas questões, pelo menos não uma única, mas eu acho que podermos pen-sar no nosso caso a caso, no nosso cotidiano, o que criamos de novo. Acho que o que temos con-dição de poder criar, pensando nessa questão, por exemplo, sob de que maneira podemos superar a fragmentação, a questão da fragmentação é um problema político e acho que até um pouco mais do que isso, se formos pensar. E também não sei, por exemplo, se o contrário disso… agora tem uma discussão muito forte no campo das políticas pú-blicas de intersetorialidade, algumas conferên-cias, por exemplo, esse ano foram construídas pensando as áreas políticas, diretrizes para as áreas políticas, mas, por outro lado, o que temos olhado é que, no fim das contas, são aqueles no-mes abstratos, totalmente distantes do cotidiano da vida das pessoas que até nas conferências fica até mais difícil ainda das pessoas poderem discu-tir sobre aquilo, porque ninguém entende, nenhum de nós entende o que está se colocando ali. Então, é difícil falar, de fato, de uma resposta, de uma re-ceita. Mas eu coloco aqui um pouco assim, pensar como adaptamos esse adolescente ao serviço da medida, para ele cumprir a medida certinho, bo-nitinho, de acordo com o que está previsto pelo juiz, é pensar como eu faço para garantir que esse adolescente entre na escola e permaneça e fique na escola, porque se entende que é o melhor lu-gar para ele ou é, de certa forma, a partir desses adolescentes, a partir da experiência desses ado-lescentes e daquilo que eles denunciam, daquilo que eles estão denunciando de uma certa forma sobre essa escola, sobre esse serviço de medida socioeducativa, sobre a Fundação Casa, se pen-sar a mudança dessas políticas. Eu não vejo al-guma mudança nessas políticas que seja de fato substancial se não for debaixo para cima. Falando isso, estou dizendo que não temos essa governa-bilidade ou controle sobre isso, mas acredito que, sim, quando falarmos, por exemplo, do adolescen-te que está em medida socioeducativa na escola, nós precisamos falar da questão da escola para

esse adolescente, A quebra do silenciamento, precisamos trabalhar, não estou dizendo que va-mos resolver essa questão, mas o que eu quero dizer é que é assim, não podemos, simplesmen-te, nos eximirmos e trabalhar numa linha somente de adaptação desse sujeito a esse espaço, ainda que por vezes, pode ser o que ele queira, mas é uma coisa que precisamos estar muito atentos. Nesse sentido, por que tal protocolo da política de educação não pode ser revisto? Se não está atendendo efetivamente a população, por que tal protocolo da política social não pode ser revisto? Ou o tal protocolo da política de saúde? Talvez, aí, efetivamente, consigamos que as vozes dos adolescentes, dessas famílias, de fato, cheguem a esses espaços que são megainstitucionalizados e megaburocratizados, mas, enfim, não estou di-zendo isso como solução, mas dizendo isso para se pensar como com o nosso trabalho no dia a dia, podemos, de fato, construir esses espaços. Ou-tra coisa clara é que essa construção precisa ser coletiva, porque uma coisa que o serviço vai nos colocando muitas vezes é numa condição de soli-dão, numa condição de impotência, isso não é di-ferente com outros parceiros, isso não é diferente com o professor que está na escola, com o diretor, com o coordenador, sobretudo aqueles que fazem uma resistência às coisas, de como funcionam, as coisas como são, isso não é diferente, isso não é diferente com esse adolescente, não é diferente assim, a solidão dele em relação a ser colocado como aquele que é olhar e que ele não serve para aquele espaço, não cabe ele naquele espaço. En-tão, pensar isso, pensar questões que são cole-tivas de forma coletiva, proporcionar pensar isso com esse jovem, com essas famílias com o parcei-ro da educação com o parceiro de saúde,. Sobre a questão de escola revolucionária, realmente, as-sim, temos algumas escolas que são diferentes do padrão de sistema educacional que está colocado hoje no Brasil, nós temos algumas experiências que são colocadas, fala-se muito das escolas de-mocráticas, mas concordo que não é simplesmen-te pensarmos um modelo de escola e falar que esse modelo de escola vai servir para todo mundo e para todas as circunstâncias e tentar adaptar todo mundo a esse modelo.

Não identificado: Boa noite. Eu só queria colocar realmente essa reflexão, por que não se retoma, enfim, não faz parte de políticas públicas ter um psicólogo no caso, dentro da escola para se tra-balhar a questão da prevenção? Por que eu tenho que aguardar esse adolescente cometer um ato

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60 infracional para eu poder olhar para ele, para po-der pensar sobre as medidas socioeducativas? De repente, acho que é algo para se retomar a im-portância da presença desse profissional dentro do campo da educação para que se trabalhe na prevenção. Eu acho que isso me ocorreu de uma forma a partir da fala de todos aqui.

Não identificado: Professor Jorge, algo me in-comodou muito e eu queria saber a sua opinião sobre isso. Essa parábola do Arquimedes com o soldado e das lógicas que não se encontram, será que não é exatamente esse desencontro de pro-duzir medidas ressentidas como, por exemplo: “Eu vou me vingar do adolescente infrator”, porque eu vejo a medida, o projeto como um projeto de vingança de uma organização social que não con-seguiu lidar com as suas contradições, então, eu vou me vingar agora. Então, ouvimos as pessoas falando sobre a medida, elas falam com ódio, elas falam com raiva, é uma coisa de um ressentimen-to irreconciliável. Será que não é por causa disso? Qual a sua opinião sobre isso?

Jorge Broide: Eu tenho trabalhado muito esse exemplo de como nós temos uma… o nosso com-promisso ético-político é, também, encontrar ca-minhos técnicos transformadores, precisamos encontrar caminhos de transformação dentro da-quilo que não existe, porque estamos trabalhando sobre uma coisa que não existe, não existe saber ainda que dê conta disso, o saber vai se cons-truindo. Eu acho sim, que essa ausência de pas-sagem entre lógicas diferentes causa isso. Agora, esse ressentimento que você está dizendo, outro dia eu estava até falando aqui numa entrevista para o programa do Conselho, quando vem esse ódio que nós estamos vendo em relação aos jo-vens, as estatísticas dizem que não têm sentido, quer dizer, tem uma irracionalidade aí.

As estatísticas dizem: “isso aqui não tem senti-do, tanto ódio, tanto isso não tem sentido”, eu acho, como eu disse antes, que os jovens, como sempre, estão sendo colocados como bodes expiatórios da violência da sociedade e é mais ou menos dentro daquela mesma lógica de nós, mais velhos, mandarmos os nossos filhos para guerra. É mais ou menos isso, então, pegamos meninos de 18 anos e mandamos para a guer-ra, uma guerra que é nossa, não é deles. Eu acho que está sendo feito isso. Quando vem toda essa ideologização da questão do rebaixamento da maioridade penal, é uma ideologização, está se cegando a sociedade, exatamente para não se falar da violência que existe no tecido social que é dos adultos, é dos adultos essa violência, é nossa, é nossa! Então, só queria dizer que esse ódio vem daí. Então, esse jovem, novamente, vai ficar como bode expiatório. Agora, eu insis-to nisso que você está colocando, essa questão de trabalharmos sobre o desconhecido e aguen-tar o desconhecido dessas lógicas diferentes e aguentarmos a criação desses espaços vazios, que é de onde vai surgir o novo, e aguentar essa violência podendo ver como manejar com ela, eu acho que é o que nos convoca, isso nos convoca, entende? Então, isso é uma coisa que eu queria responder a você; a outra coisa, como estamos falando de educação, e de coisa assim, e foi fa-lado aqui na Hannah Arendt, eu vou me dar ao luxo de falar de um autor mais antigo ainda, para o pessoal que está trabalhando com adolescen-te em conflito com a lei que talvez não conheça, se não conhecer, vale a pena ver. É um cara que se chamava Anton Makarenko. Alguém conhece? Era um educador soviético, olha só o que a lin-guagem neoantiga que está sendo falada aqui, é um educador soviético na guerra civil sovié-tica, 21, 22 depois da Revolução Soviética, ele era um pedagogo, um educador muito respeita-do. Chamaram-no e disseram o seguinte: “Você está vendo aquela montanha que tem lá, aquela fazenda toda abandonada? Você vai pegar um monte de jovens que estão na rua, órfãos, filhos da guerra, você vai para lá e dá um jeito nesses caras”, e ele faz, então, um relato, o livro dele é um relato disso, chama-se “Poema Pedagógico”, é muito bonito, porque ele vai relatando o dia a dia e como é que ele, como pedagogo, vai fazen-do a escuta desse jovem e vai dialogando com esse jovem. É um clássico, por isso que é um clás-sico escondido, por isso que eu estou me dando esse… de contar para vocês desse autor, já que falamos da Hannah Arendt, poder falar desse au-

“Quando vem toda essa ideologização da questão do rebaixamento da maioridade penal, é uma ideologização, está se cegando a sociedade, exatamente para não se falar da violência que existe no tecido social que é dos adultos, é dos adultos essa violência, é nossa, é nossa!”

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61tor, é muito bonito, chama-se “Poema Pedagógi-co”, é um poema, de fato, onde ele vai relatando o dia a dia, como é que era o menino, o moleque que quebrava tudo, o outro que roubava não sei o que, o outro que fazia não sei o que, como ele ia lidando com essa situação de um jeito muito bonito. Recomendo a leitura, nos dá uma aber-tura. “Poema Pedagógico”, chama-se. O autor é Anton Makarenko. Falando aqui de autores e de coisas novas que são tão antigas, são clássicas, o clássico sempre é novo, o clássico sempre traz coisas novas. É isso.

Débora Cristina Fonseca: Eu só queria comentar que quando você fala em retomar a discussão do psicólogo dentro da escola para trabalhar a pre-venção, eu tenho um pouco de receio. Assim, eu fico pensando o que o psicólogo vai fazer lá. Acho que pode ser muito importante a presença do psi-cólogo na escola se for; não porque ele é um espe-cialista que sabe trabalhar a prevenção, mas para potencializar a discussão e a reflexão sobre isso, eu acho que temos que pensar que os agentes da escola, todos eles têm que pensar essa questão da prevenção, porque ela não é uma coisa de cima para baixo, não é uma coisa que eu ensino, é uma coisa que se constrói e se constrói coletivamente, como é que eu quero sempre estar nessa escola e como é que trabalhamos as relações? Então, acho que se o psicólogo for para lá para problematizar isso e colocar em discussão com todo mundo, le-gal. Agora, para ser o especialista que vai dizer qual é o certo, qual é o errado, o que é prevenção, o que não é, eu acho que aí temos um retrocesso, infelizmente, temos muitos colegas que não têm essa clareza do que o psicólogo faz na escola ain-da, na escola, no CREAS, no serviço de saúde, en-fim, acho que, aí, temos que retomar a discussão do que é que o psicólogo vai fazer nesse lugar, se ele for para problematizar, colocar essas questões em discussão e produzir modos de prevenção, não como aquilo que eu ensino, mas como aquilo que construímos coletivamente, aí penso que pode ser interessante, assim como a história da violência, eu acho que não tem que botar os especialistas lá para resolver o problema de violência na escola, e acho que essa violência não existe assim tanto quanto ela está alardeada, mas existem conflitos, conflitos que têm a ver com questões pedagógi-cas que não são encaradas pedagogicamente, são transformadas em violência. Então, acho que isso significa que precisamos potencializar todos os que estão dentro da escola para discutir isso e, de fato, entender o que estamos falando quando

no aluno… eu tenho uma historinha, eu gosto de contar, desculpe, mas eu vou ter que contar. A pro-fessora estava lá na sala de aula e a menina con-versando com a outra, eu acompanhei esse relato. A menina conversando com a outra e a professo-ra pedindo para ela fazer silêncio, a menina: “Fica quieta aí, cala a boca, o que você quer, biscate?”, a menina falou para a professora, nossa, a professo-ra… aquilo foi um desrespeito, ela ficou… saiu cho-rando, mandou para a direção, chamou a polícia, fez boletim de ocorrência e aquela… tudo aquilo, aquele circo todo armado e tal. E aí, chamaram a mãe, a mãe demorou para chegar e toda a confu-são pronta, a professora passou mal, teve que ir para o pronto-socorro, ser chamada de biscate.

Aí, a mãe chega, todo mundo lá e a mãe chega: “Mas o que essa biscate fez que vocês estão me chamando aqui?”, ou seja, aquela menina talvez nem soubesse o que significava… é uma forma de tratamento e essa professora, ao invés de pensar que está me atacando, minha honra, problemati-zasse isso na sala de aula: “O que é ser biscate? O que é para você?, o que significa na socieda-de?”, talvez tenha outro sentido, ser biscate é fazer um trabalho aqui, outro ali, talvez, por aí eu possa ser como professora, eu dou aula aqui, dou aula ali, dou aula lá… mas tem outro sentido… en-tão, problematiza e vamos discutir o que é isso, porque todo mundo vai entender que não é legal chamar o outro de biscate e talvez, ela vá levar para essa mãe essa discussão para a família… então, talvez estejamos num enfrentamento em que tomamos isso como uma ofensa, sem nem mesmo entender o que aquilo está significan-do para o outro. Então, acho que nesse sentido, acho que problematizar essas coisas dentro da escola pode ser muito interessante do ponto de vista educativo, mas que não temos a tolerância e o discernimento para fazer isso, infelizmente. Não sei se eu respondi o que você colocou.

“Então, acho que nesse sentido, acho que problematizar essas coisas dentro da escola pode ser muito interessante do ponto de vista educativo, mas que não temos a tolerância e o discernimento para fazer isso, infelizmente”.

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62 Luciana Stoppa: Tem um comentário aqui. Não sei se o Jean vai querer fazer alguma colocação, mas tem um comentário da Subsede de Campi-nas, do Marcio de Oliveira Santos, que é conse-lheiro tutelar; ele diz que as mudanças sugeridas pelo palestrante Jean para quebra de paradig-mas e construção de uma educação inclusiva, não excludente, será apenas imaginável a todos os alunos e não somente aos que estão em con-flito com a lei, pois o processo de exclusão está tão enraizado que os próprios alunos não aco-lhem o adolescente em vulnerabilidade.

Jean Fernando dos Santos: Essas experiências de conflitos escolares também aparecem com colegas, discriminação, também observamos isso. Mas eu acho que o que precisamos é ter es-ses espaços para podermos pensar e pensando enquanto executores de serviço da política de assistência, precisamos ter aí na nossa pauta, a possibilidade de discutir pautas que não estão nessa pauta, que, de fato, a vivência que esses adolescentes estão tendo no cotidiano, como eles estão vivenciando esse cotidiano escolar e também, como eles estão vivenciando esse co-tidiano do próprio serviço de medida socioedu-cativa; acho que precisamos problematizar isso e poder refletir sobre essas coisas, já que nor-malmente não refletimos a respeito disso; acho que tem que se provocar no âmbito da escola, pensar nas coisas que acontecem no âmbito dela, tem que se provocar no âmbito do serviço de medida socioeducativa. Acho que quando a Débora traz a questão, por exemplo, da adesão, acho que é de pensar um pouco isso, quando es-tamos falando, por exemplo, que os meninos não aderem, estamos falando apenas dos meninos ou estamos falando também de uma forma de funcionar, estamos falando que eles não aderem ao cumprimento da medida ou estamos falando que eles resistem a uma certa forma de funcio-nar que não atende, de fato, ao que eles estão buscando, ao que eles precisam para aquele es-paço? Enfim, nós estamos falando dos adoles-centes em medida socioeducativa, mas também, podemos estender a vários outros serviços que são executados em várias políticas públicas. En-tão assim, eu acho que nós, enquanto executo-res das políticas, de fato, proporcionarmos sair um pouco desse lugar e pensar esse lugar junto com outros atores que vão nos colocar por ve-zes, na parede e que vão nos ajudar, quem sabe,

a refletir juntos e pensar esses caminhos. Não acho por exemplo, que consigamos progredir pensando numa escola, uma educação inclusiva para todos, se não começarmos pensando e re-pensando sobre isso que não está bom, prova-velmente, para ninguém.

Luciana Stoppa: Eu queria fazer um último co-mentário, acho que para encerrarmos as falas de todos vocês, do lugar que eu falo, a discussão dos adolescentes em conflito com a lei para mim é uma discussão da qual eu estou me aproprian-do, mas falo de um lugar de quem trabalha com crianças e adolescentes com sérias dificuldades de escolarização, com deficiência. E estamos muito acostumados a ouvir no lugar da educa-ção especial para estas crianças e jovens. Faz todo sentido pensar em educação inclusiva de uma forma ampla como estamos propondo aqui, porque está muito claro que o problema do ado-lescente em conflito com a lei é o mesmo do es-tudante público alvo da educação especial, é o mesmo do estudante negro, pobre, homossexual A escola tem sido especialista em produzir invi-sibilidade, assujeitamento, tem sido especialista nisso. E essas invisibilidades, vamos perpetuan-do porque vamos sempre tendo uma explicação racional para a coisas, então ele não aprende porque ele tem deficiência intelectual, ele tem um transtorno desafiador positivo, vai ser um de-linquente, enfim, vamos produzindo explicações racionais e vamos perpetuando estereótipos, preconceitos… e, é aí, que precisamos realmen-te nos colocar no lugar do vazio e eu acho que a grande questão é essa, nós não suportamos esse lugar de vazio. Para produzir encontro e va-lorizar a diferença, precisamos não ter medo de sair do lugar, de nos desestabilizarmos e de su-portarmos esse vazio, porque estamos passan-do a bola, estamos passando adiante a ansie-dade, a angústia e ninguém está se implicando nesse processo. Era esse o comentário que eu queria fazer para fechar e para reafirmar o sen-tido de discutir educação para todos e todas e a escola democrática; Eu gostaria de agradecer a presença de todos os que permaneceram até aqui, os que ficaram num trecho apenas do even-to, enfim, agradecer aos que participaram tam-bém a distância e mandaram seus comentários. É uma discussão que vamos continuar fazendo ao longo da gestão sobre os avanços e desafios do ECA. Obrigada e boa noite a todos e todas.

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