174-678-1-pb

20
25 Conjectura, Milena Aragão e Lúcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010 Considerações acerca da Educação Infantil: história, representações e formação docente Milena Aragão * Lúcio Kreutz ** 2 * Psicóloga. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected] ** Doutoe. Professor Doutor no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected] Resumo: O presente artigo tem como objetivo chamar a atenção para a historicidade do sujeito, em especial daquele atuante na educação de crianças pequenas. Para tanto, parte do levantamento da trajetória histórica da Educação Infantil no Brasil, analisando os avanços e desafios dessa modalidade educacional. Como foco de debate é discutida a posição da Educação Infantil na sociedade e na cultura e as representações culturais sobre a mulher- professora no processo de construção de sua identidade profissional. O texto é finalizado abordando as repercussões de tais representações no ser e agir docente e as possibilidades de ação no contexto da formação inicial e continuada, a fim de amenizar tais influências, com vistas à qualidade do trabalho pedagógico. Palavras-chave: História da educação. Educação Iinfantil. Feminização do magistério. Representação cultural. Identidade. Formação docente. Abstract: This study has as main objective to call the attention for the historical dimension of people, especially the one who works whith small children’s education. Firstly describe the historical trajectory of the infantile education in Brazil, analyzing theyer progresses and challenges. The focus of the debate is the position of the infantile education in the society and in the culture and the cultural representations on the woman-teacher in the process of construction of its professional role, inside of this teaching level. I conclude the text approaching the repercussions of such representations in the “to be” and “to act” of the teacher and the possibilities in the context of the initial and continuous formation, in order to liven up such influence, with views the quality of the pedagogic work. Keywords: History of education. Infants education. Feminization of teaching. Cultural representation. Identity. Teacher’s formation. CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:38 25

Upload: trabalhos-academicos

Post on 14-Nov-2015

216 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Tecnicas de gestao

TRANSCRIPT

  • 2 5Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    Consideraes acerca da EducaoInfantil: histria, representaes

    e formao docente

    Milena Arago*Lcio Kreutz**

    2

    * Psicloga. Mestranda no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade de Caxiasdo Sul (UCS). E-mail: [email protected]** Doutoe. Professor Doutor no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade deCaxias do Sul (UCS). E-mail: [email protected]

    Resumo: O presente artigo tem comoobjetivo chamar a ateno para ahistoricidade do sujeito, em especial daqueleatuante na educao de crianas pequenas.Para tanto, parte do levantamento datrajetria histrica da Educao Infantil noBrasil, analisando os avanos e desafios dessamodalidade educacional. Como foco dedebate discutida a posio da EducaoInfantil na sociedade e na cultura e asrepresentaes culturais sobre a mulher-professora no processo de construo desua identidade profissional. O texto finalizado abordando as repercusses de taisrepresentaes no ser e agir docente e aspossibilidades de ao no contexto daformao inicial e continuada, a fim deamenizar tais influncias, com vistas qualidade do trabalho pedaggico.

    Palavras-chave: Histria da educao.Educao Iinfantil. Feminizao domagistrio. Representao cultural.Identidade. Formao docente.

    Abstract: This study has as main objectiveto call the attention for the historicaldimension of people, especially the one whoworks whith small childrens education.Firstly describe the historical trajectory ofthe infantile education in Brazil, analyzingtheyer progresses and challenges. The focusof the debate is the position of the infantileeducation in the society and in the cultureand the cultural representations on thewoman-teacher in the process ofconstruction of its professional role, insideof this teaching level. I conclude the textapproaching the repercussions of suchrepresentations in the to be and to actof the teacher and the possibilities in thecontext of the initial and continuousformation, in order to liven up suchinfluence, with views the quality of thepedagogic work.

    Keywords: History of education. Infantseducation. Feminization of teaching.Cultural representation. Identity. Teachersformation.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3825

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20102 6

    Todo caminhar tem um incio...

    Durante o Brasil colonial, o cuidado e a educao das crianasficavam a cargo da famlia, circunscrita ao ambiente domstico e realizadapreferencialmente por mulheres. Somente aps o desmame, quando acriana j alcanava certo grau de independncia o que ocorria porvolta dos 6 ou 7 anos de idade ela passava a ajudar os adultos nasatividades cotidianas e a aprender o bsico para sua insero social, oque poderia ocorrer fora do mbito domstico para os meninos e nointerior do lar para as meninas. Os responsveis pela educao formaldos meninos eram os Jesutas, que se preocupavam em disseminar umaeducao religiosa e propagar a cultura europeia, tendo como alunosgrupos indgenas, filhos de portugueses e de senhores de engenho. (ARIS,1981; PRIORE, 2002; VEIGA, 2007).

    Durante os 210 anos de educao jesuta, essa teve um cartercivilizador. Inicialmente foi adotada uma poltica educativa depropagao da f e da obedincia, especialmente entre os ndios. Mesmosendo a catequese o objetivo inicial, era na propagao dos colgios queresidia o maior interesse. Assim, em 1759, existiam 24 colgios, 3seminrios, 17 casas, 36 misses e 25 residncias distribudas por todasas capitanias brasileiras, o que alcanava 0.5% da populao. (ARIS,1981; PRIORE, 2002; VEIGA, 2007).

    A segunda fase do perodo colonial brasileiro iniciou com aexpulso dos Jesutas por Marqus de Pombal (1759) e a instituio daeducao laica. Nesse momento, a educao formal passou por intensadesestruturao, com falta de professores, professores despreparados e odesejo de difundir a instruo por toda a populao longe de seralcanado. Ao fim do perodo colonial, a fragmentao da educao eranotria; o cenrio mostrava um Pas multilngue, etnicamentediversificado, agrcola e com uma populao analfabeta, havendo faltade escolas, professores e investimentos. (ARANHA, 2006; PRIORE, 2002;VEIGA, 2007).

    Foi somente com a chegada da Famlia Real em solo brasileiro(1808) que a situao escolar ensaiou uma mudana. Para atender snecessidades dessa nova populao, houve a abertura de escolas deprimeiras letras em todo o Pas e se multiplicaram as escolas secundriasde artes e ofcios, bem como o Ensino Superior. Contudo, esse movimentono foi eficaz na democratizao educacional, j que o analfabetismo

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3826

  • 2 7Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    ainda persistia, sobretudo entre os no brancos, sendo, na prtica, umafase de poucos avanos educacionais. (ARANHA, 2006; VEIGA, 2007).

    No entanto, o Brasil escravocrata e monocultor que cedia espaopara a urbanizao, com a abertura de portos e a reorganizaoadministrativa sofria fortes presses dos ideais liberais europeus, quedefendiam a instruo populacional em massa. Assim, o artigo 179 daConstituio de 1824 estabelecia a gratuidade da instruo primriapara todos os cidados, e, em 1827, uma lei determinou a criao deuma escola de primeiras letras em cada cidade, a qual no chegou a sercumprida. A partir desse momento, as meninas anteriormente educadasem casa e para o lar puderam frequentar a escola, um dos fatores queestimulou a abertura de escolas para formao docente (escolas normais)em 1834. (LOURO, 1997; VEIGA, 2007).

    Da segunda metade ao fim do sculo XIX, escolas elementares ecursos normais foram abertos em diversas capitais do Brasil,acompanhando o aumento populacional, as mudanas poltico-econmicas e a recente industrializao, que exigia uma escolarizaomnima para a contratao de pessoas pelas fbricas.

    Nesse contexto, foi no fim dos anos 1800 que a educao de umafaixa etria at ento esquecida comeou a ter forma: a primeira infncia,compreendida entre zero e 5 anos de idade.

    A Educao Infantil e a construo de um espao

    Anteriormente, pensava-se a escolarizao mesmo que tmida erepleta de restries para crianas a partir dos 6 ou 7 anos de idade.Crianas menores eram cuidadas e educadas no seio familiar. So astransformaes socioeconmicas ocorridas a partir do perodorepublicano com alteraes nos modos de relao entre os sujeitos,alm das mudanas no exerccio das funes, em especial aquelas realizadaspelas mulheres que espaos destinados aos pequenos comearam a serpensados. (ARIS, 1981; PRIORE, 2002).

    A posio da mulher na sociedade e na cultura deu o tom paraque esse processo se iniciasse. Essas passam a trabalhar fora de casa enecessitam de um local para deixar seus filhos. Pode-se cogitar que umafamlia com uma rede de apoio estruturada poderia deixar as crianassob os cuidados de parentes, entretanto, ocorria tambm a migrao emlarga escala de populaes rurais para centros urbanos, ocasionando

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3827

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20102 8

    rupturas na rede de apoio familiar e de vizinhana, o que ocasionou umdistanciamento entre os diferentes membros (irmos, tios, avs...)levando dificuldade e busca por solues para o cuidado de crianasfora do espao familiar. (OLIVEIRA, 2005; PRIORE, 2002).

    Diante desse cenrio, foi trazida para o Brasil uma ideia que jexistia na Frana desde o sculo XVIII: as creches. De origem francesa,a palavra crche significa manjedoura, denominao dada aos abrigosque comeavam a surgir na Frana, no sculo XVIII para fins de cuidadode bebs e crianas necessitadas. Com carter basicamente assistencialista,a creche mantinha as crianas para que as mes pobres pudessemtrabalhar, j que com idade inferior a 6/7 anos, no poderiam frequentara escola, sendo esse seu objetivo primordial. (KUHLMANN, 2003;MARIOTTO, 2003).

    Assim, a primeira creche brasileira foi inaugurada em 1899, noRio de Janeiro, destinada a filhos de operrios da Fbrica de TecidosCorcovado. Aps, em 1901, foram inauguradas em So Paulo escolasmaternais e creches agregadas a asilos para rfos, chegando a 18 unidadesmaternais e 19 creches-asilo no ano de 1910. Em Belo Horizonte, em1908, a prefeitura inaugurou a Escola Infantil Delfim Moreira e, em1914, a Escola Infantil Bueno Brando. Em Porto Alegre, a primeiracreche foi inaugurada somente na dcada de 40 do sculo XX.(KUHLMANN, 2003).

    Vale ressaltar que as creches no eram instituies de ensino apriori, mas sobremaneira de assistencialismo. Tinham como objetivodispor um espao para que as crianas ficassem enquanto suas mestrabalhavam, estando livres dos perigos do mundo e cuidadas em suasade e higiene.

    O papel da creche , primordialmente, o de assistir criana quefica privada dos cuidados maternos em razo do trabalho da mefora do lar. A creche uma obra auxiliar da famlia, cuida da crianapara a famlia, sem deslig-la do lar. (KUHLMANN, 2005, p. 487).

    Kuhlmann (2005, p. 184) complementa afirmando que essediscurso esconde uma educao de cunho assistencialista, que promoveuma pedagogia da submisso, que pretende preparar os pobres paraaceitar a explorao social. A chamada creche, dentro dessa viso, serviriano s para prever carncias culturais, nutricionais e afetivas, mas tambmpara civilizar. Contudo, as instituies pblicas de acolhimento a crianas

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3828

  • 2 9Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    ofertavam basicamente alimentao, higiene e segurana fsica, sendorealizado o cuidado de forma precria e com baixa qualidade.

    A formao docente e o perfil da professora

    Concomitantemente difuso de creches, havia o crescimentodas instituies formadoras de docentes. Em solo brasileiro, a primeiraEscola Normal foi inaugurada no ano de 1835, em Niteri/RJ. A partirde ento, cerca de 15 estados abriram as portas para o ensino deprofessores at o ano de 1890. Entretanto, o nmero de escolas abertasno foi diretamente proporcional ao seu sucesso, j que muitas tiveramum funcionamento intermitente, uma vez que eram consideradasineficientes e dispendiosas, j que mobilizavam grande estrutura parapoucos formandos. (SAVIANI, 2008).

    As Escolas Normais abriram suas portas tanto para homens quantopara mulheres, entretanto, at o fim do sculo XIX a maioria dosmatriculados era do sexo masculino. Almeida (1998) relata que a primeiraEscola Normal de So Paulo, inaugurada em 1846, foi destinada somentea homens e mesmo com a inaugurao da Escola Normal mista, em1874, o nmero de formandos masculinos ainda era maior que ofeminino. Somente nos primeiros anos do sculo XX que as mulherespassaram a ocupar mais espao, tanto que, em 1900, 72,66% dosmatriculados na Escola Normal de So Paulo eram mulheres e, no anode 1910, essa porcentagem subiu para 83,61%. (CAMPOS, 2002).

    O aumento significativo de mulheres na docncia ocorreu pormltiplos fatores, dentre eles, a crescente urbanizao e industrializao,que, por um lado, estimulava a entrada de um contingente ainda maiorde meninas nos bancos escolares e, por outro, impulsionava os homens-professores para as fbricas uma vez que ofereciam boa remunerao deixando um espao cada vez maior para o ingresso feminino na docncia.(CAMPOS, 2002; LOPES, 2002; LOURO, 1997).

    Autoras como Louro (1997), Almeida (1998), Diniz (2001),Campos (2002) e Lopes (2002) afirmam que o ingresso da mulher nomercado de trabalho como docente necessitou ser estimulado, j que otrabalho fora do mbito domstico no era comum e tampouco aceitoculturalmente.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3829

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20103 0

    A educao feminina, apesar de pretendida igualdade, diferenciava-se nos seus objetivos, pois segundo os positivistas, o trabalhointelectual no devia fatig-las, nem constituir um risco a umaconstituio que se afirmava frgil e nervosa e que poderia,certamente, debilitar seus descendentes. Na realidade o fim ltimoda educao era preparar a mulher para atuar no espao domsticoe incumbir-se do cuidado com o marido e os filhos, no se cogitandoque pudesse desempenhar uma funo assalariada. (ALMEIDA, 1998,p. 19).

    Essa ideia era corroborada pelos pais das meninas, os quais nodeixavam suas filhas estudarem, para no aprenderem o que no deviamsaber. (CAMPOS, 2002, p. 14). Assim, a ignorncia e a timidez, traosfemininos no perodo colonial brasileiro, adentraram o sc. XIX aindacom fora, mas sofrendo o embate de outros argumentos, que afirmavamque as mulheres tm, por natureza, uma inclinao para o trato com ascrianas, que elas so as primeiras e naturais educadoras (LOURO, 1997,p. 78) e por isso seria sua vocao o ensino da infncia:

    Se a maternidade , de fato, o seu destino primordial, o magistriopassa a ser representado tambm como uma forma extensiva damaternidade. Em outras palavras, cada aluno ou aluna deveria servisto como um filho ou filha espiritual. A docncia assim nosubverteria a funo feminina fundamental, ao contrrio, poderiaampli-la ou sublim-la. (LOURO, 1997, p. 78).

    Esse ltimo discurso ganhou maiores adeptos no s emdecorrncia da j difundida representao da mulher como dona de casae me e pela crescente necessidade de professores nas escolas elementares,mas tambm em decorrncia de movimentos sociais pela independnciafeminina. Nesse contexto, o ingresso das mulheres na funo docenteseria triplamente eficaz, j que atuariam num ofcio similar ao j exercido,necessitando de pouca formao, amenizaria o problema da falta deprofessores e proporcionaria certa liberdade e independncia muitorequisitadas. (CAMPOS, 2002; LOPES, 2002; LOURO, 1997).

    Dessa forma, a criao das creches, entendidas como espaos quevisam a suprir a falta materna, vieram ao encontro da representao daprofessora como me.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3830

  • 3 1Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    Essas experincias, demonstrando o valor insubstituvel do convviomaterno, da vida do lar para a criana, demonstraram tambm queinstituies auxiliares da familiar como a creche, que cuida da crianasem deslig-la do grupo familiar so indispensveis na estrutura dasociedade atual. (KUHLMANN, 2003, p. 487).

    Ora, se o espao no qual trabalhavam trazia embutida umacaracterstica de segundo lar, e se os discursos difundidos culturalmentediziam que a professora deveria ser a segunda me, como ficava a formaodessa docente?

    Aproximaes e distanciamentos: os CursosNormais e a formao para a Educao Infantil

    As Escolas Normais formavam professores para atuar com crianasa partir dos 7 anos de idade. A ideia era formar uma populao capaz deler e escrever, diminuindo o nmero de analfabetos. A formao deprofessores para creches no era comum, geralmente eram voluntrias,religiosas ou donas de casa que se formavam em servio, tendo disposioraros cursos de aperfeioamento, como o ministrado pelo ColgioMetodista Bennett, em 1932, na cidade do Rio de Janeiro.Posteriormente, em 1949, o Instituto de Educao do Rio de Janeiro(IERJ) abriu um curso de especializao em Educao Pr-Primria, oqual, em 18 anos, formou 549 educadoras, consolidando o Centro deEstudos da Criana, criado por Loureno Filho. (ARIS, 1981; KUHLMANN,2003).

    Mesmo em geral, as mulheres que atuassem diretamente com ascrianas nas creches no tivessem qualificao, de se supor quemuitas das que participavam ativamente da superviso, dacoordenao e da programao das instituies eram professoras,carreira escolar que se oferecia para a educao feminina, inclusivepara as religiosas, responsveis pelo trabalho em vrias creches.(KUHLMANN, 2005, p. 487).

    Vale ressaltar que a educao da mulher previa a sua preparaonos mistrios da puericultura, de modo que se tornassem mes-modelo.(KUHLMANN, 2003, p. 479, grifo nosso). Interessante notar que em

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3831

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20103 2

    1913 foi veiculada, no Congresso Internacional de Proteo Infncia,realizado em Bruxelas, uma proposta de ensino de puericultura j emtenra idade: Enquanto os meninos entretivessem com os jogos deconstruo, a boneca poderia ser um brinquedo instrutivo,transformando-se em uma amvel escola de mamezinhas. (KUHLMANN,2003, p. 479).

    Assim, no se falava em formao para a professora de creche, jque se acreditava que cuidar de crianas fazia parte da natureza feminina,mas em aprimoramento das regras bsicas de sade e higiene. Talmovimento no era frequente, j que o olhar para essa etapa dodesenvolvimento humano tinha um carter assistencialista e maternal,reforado por discursos que interpunham o papel docente ao papelmaterno. As questes implcitas eram: para que formar professoras paracreches se essas j sabem naturalmente o que fazer? Para que investir naprimeira infncia se o importante alfabetizar a populao?

    Alm das creches reservadas a crianas de zero a aproximadamente4 anos de idade existiam tambm os Jardins de Infncia, espaosdestinados a crianas de 5 a 6 anos, os quais iniciavam sua trajetriacom um carter mais educativo do que o das creches:

    No comeo do sculo, a jardineira ministrava educao sensorialcom materiais destinados comparao sistemtica de formas,tamanhos coloridos. A atividade da criana [se] restringia a obedecerinstrues da mestra. Hoje, a mestra incentiva a evoluo natural ea criana quem toma a iniciativa de organizar sua prpria atividadecriadora. (KUHLMANN, 2003, p. 485).

    Assim, em locais onde funcionavam creches e Jardins, as crianasatendidas na creche eram beneficiadas pelos conhecimentos dasprofessoras que atuavam no Jardim, sob a inspirao de Frobel.Entretanto, os espaos onde s havia creches, mantinham seu carterassistencialista, priorizando o cuidado e a higiene.

    Esse olhar foi reforado pela forte tendncia mdico-higienistapresente na dcada de 50. Nesse perodo, o Departamento Nacional daCriana desenvolveu diversos programas e campanhas visando a combatera desnutrio, incentivar a vacinao e defender uma slidafundamentao cientfica e pesquisas experimentais para odesenvolvimento infantil, tanto que, na mesma dcada, foi confeccionadapor estudiosos brasileiros uma Escala do Desenvolvimento Fsico,

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3832

  • 3 3Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    Psicolgico e Social da Criana Brasileira, experimentada at a dcadade 70 do mesmo sculo. (KUHLMANN, 2003).

    Dcada de 70: as mudanas continuam, e umnovo adjetivo criado. Mais do mesmo?

    Em 1970, um novo adjetivo atribudo s creches e Jardins deInfncia: educao compensatria. Com o nvel de ensino obrigatrio egratuito, garantido pela Constituio de 1969, foi verificada umacrescente evaso escolar e a repetncia das crianas das classes pobres noprimeiro grau. Em vista disso, instituiu-se a educao compensatriapara crianas de 4 a 6 anos, visando a suprir carncias culturais existentesna educao da famlia de baixa renda. O pressuposto, por detrs desseacolhimento, era a crena sobre a incapacidade familiar de proporcionar criana um espao saudvel para os desenvolvimentos afetivo e cognitivo,e as crianas eram adjetivadas como carentes, social e culturalmente.(CAMPOS, 1993; KUHLMANN, 2003; VEIGA, 2008).

    Nesse contexto, o cientificismo nos estudos sobre odesenvolvimento infantil elevou-se, ao passo que a escala construda nadcada de 50 transformou-se, em 1977, em um livro intituladoEstimulao essencial, o qual descreve os comportamentos esperados dascrianas desde os seus 8 meses at os 9 anos de idade, tornando-sereferncia para o trabalho em muitas creches e Jardins.

    Cabe ressaltar que nem todas as educadoras de creches eramprofessoras ou tinham acesso s pesquisas realizadas. Frequentemente, otrabalho era efetivado por voluntrias, religiosas ou outras mulheres semquaisquer cursos de aprimoramento, atuando de acordo com o queacreditavam ser o melhor para a criana, muitas vezes utilizando deviolncia fsica e verbal (j que, munidas do poder de serem consideradassegundas mes, era legitimado que agissem dessa forma), em ambientespequenos e superlotados, o que resultava num trabalho de baixaqualidade. (KUHLMANN, 2003; PRIORE, 2002).

    Interessante notar que, mesmo com a emergncia dos estudosna rea da Educao Infantil, no fim dos anos 70 do sculo XX, socriadas creches domiciliares, geridas por uma mulher, chamada mecrecheira, que cuidava de crianas em sua prpria casa mediantepagamento enquanto os pais trabalhavam. No desempenho de suaatividade, a me crecheira zelava pelas crianas sob sua responsabilidade,

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3833

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20103 4

    cuidando de sua alimentao, higiene, sade, vesturio e demaisnecessidades. As creches domiciliares existem at os dias atuais, sendocomum encontrar esses espaos em localidades de menor poderaquisitivo. (DELGADO, 2005).

    Em suma, at a dcada de 70, muito se discutia a questo daqualidade nas creches e, principalmente nos Jardins, ao mesmo tempoque as demandas aumentavam vertiginosamente, estimulando aconstruo de mais espaos. Contudo, pouco foi feito em termos deformao para os educadores ou investimento na rea. As creches, emespecial, eram locais de abrigo, depsitos para as crianas ficaremenquanto suas mes trabalhavam, no fazendo parte de um sistemaeducacional, com polticas pblicas que as regulamentasse.

    As dcadas de 80 e 90 e o prenncio de uma real mudana:Educao Infantil e formao docente em pauta

    Nos anos 80, os problemas referentes Educao Infantilcontinuam, apontando ausncia de uma poltica global e integrada, predominncia do enfoque preparatrio para o Ensino Fundamental e adocentes despreparados. Entretanto, a mobilizao popular em prol daredemocratizao demandava a criao e investimentos nas creches, oque culminou, no fim da dcada de 80, com anos marcados porsubstanciais transformaes no que se refere s polticas pblicas para ainfncia. (KUHLMANN, 2003; MARIOTTO, 2003; PRIORE, 2002).

    A Constituio de 1988 fundamentou-se em uma nova concepode criana-cidad, sujeito de direitos, cuja proteo integral deve serassegurada pela famlia, pela sociedade e pelo Poder Pblico com absolutaprioridade. Nesse nterim, a Constituio retira a Educao Infantil dombito da assistncia e a insere no sistema educacional, estabelecendoem seu artigo 206, inciso VII, a garantia de qualidade. (BRASIL, 1998).

    No mbito da formao docente, o documento tambm enfatizasua preocupao com a formao consistente dos profissionais. No mesmoartigo, o inciso V determina:

    A valorizao dos profissionais da educao escolar, garantidos, naforma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente porconcurso pblico de provas e ttulos, aos das redes pblicas.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3834

  • 3 5Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    A Constituio de 1988 foi um importante avano no olhar tantopara a criana, quanto para o docente; contudo, foi na dcada de 90 quedebates, pesquisas e aes buscaram a melhoria do atendimento emcreches no Pas.

    Nesse contexto, a Coordenao de Educao Infantil (Coedi) doMEC apresentou, em 1993, um documento que lanava novas diretrizespara a rea, entre elas, a que afirmava a necessidade de construir aprofissionalizao dos trabalhadores em Educao Infantil, recomendandoque seus profissionais fossem formados em cursos de nvel mdio ousuperior, desde que contemplassem contedos especficos relativos a essaetapa da educao. Tal orientao incorporava a compreenso de que aqualificao profissional subsidiaria o professor para melhor enfrentar otrabalho com

    as particularidades desta etapa de desenvolvimento [as quais] exigemque a Educao Infantil cumpra duas funes complementares eindissociveis: cuidar e educar, complementando os cuidados e aeducao realizados na famlia ou no crculo da famlia. (BRASIL,1993, p. 17).

    Com a Lei de Diretrizes e Bases para a Educao Nacional (LDB),promulgada em 1996, a Educao Infantil passa a ter maior destaque.Nessa, a finalidade da Educao Infantil acompanha as mudanasanteriores (1988 e 1993), a qual defende o desenvolvimento integral dacriana em seus aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social,complementando a ao da famlia e da comunidade e reforando aindissociabilidade das funes de educar e cuidar.

    Cuidado, educao e historicidade: o X da questo

    Nesse contexto, o Referencial Curricular Nacional para a EducaoInfantil (1998) enfatiza que

    o cuidado precisa considerar, principalmente, as necessidades dascrianas, que quando observadas, ouvidas e respeitadas, podemdar pistas importantes sobre a qualidade do que esto recebendo.Os procedimentos de cuidado tambm precisam seguir osprincpios de promoo da sade. Para se atingir os objetivos dos

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3835

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20103 6

    cuidados com a preservao da vida e com o desenvolvimento dascapacidades humanas, necessrio que as atitudes e procedimentosestejam baseados em conhecimentos especficos sobredesenvolvimento biolgico, emocional e intelectual das crianas,levando em conta diferentes realidades scio-culturais. (BRASIL,1998, p. 25).

    Contudo, o discurso oficial que direciona a atuao docente nogarante que todas as professoras cuidaro da mesma forma. Embora asnecessidades humanas bsicas sejam comuns, a identificao, a valorizaoe o atendimento delas so construdos culturalmente. Nesse sentido, amaneira de cuidar, muitas vezes, influenciada por crenas e valores,comumente transmitidos de gerao em gerao e reproduzidosirrefletidamente. Assim, caso no haja uma formao adequada paraesse docente, o cuidado com a criana seguir os ensinamentos do sensocomum.

    O educar, por sua vez, segue a mesma linha. Para o ReferencialCurricular, educar significa favorecer situaes de aprendizagem orientadase que possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantisde relao interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitudebsica de aceitao, respeito e confiana, e o acesso, pelas crianas, aosconhecimentos mais amplos da realidade social e cultural.

    Mesmo que o referencial para a Educao Infantil conceitueeducao, caso no haja uma formao integral do professor (queultrapasse o tecnicismo) para compreender o processo educativo naEducao Infantil, bem como seu papel nele, esse ir atuar da formacomo aprendeu com outros atores sociais.

    Vale salientar que essa aprendizagem vivencial, seja observando,seja experimentando, enraizada a partir da histria de vida, do seuprocesso de formao profissional e da sua insero dentro de um contextosocial e cultural determinado. Assim, suas concepes e a sua prticaso o resultado da compreenso de todo esse conjunto de fatores que irdirigir a sua ao. (ANDAL, 1995; PERRENOUD, 1993).

    Essa uma realidade em qualquer nvel de atuao, uma vez quesomos seres culturalmente construdos e desenvolvemos diversasrepresentaes sobre essa ou aquela funo ao longo da nossahistoricidade. Contudo, na funo docente em especial na EducaoInfantil h a necessidade de uma observncia maior. Como esse foium espao originariamente assistencialista, com profissionais em sua

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3836

  • 3 7Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    maioria leigos e onde o cuidado prevaleceu em detrimento da educao,a possibilidade de uma professora atuar a partir dessa representaocresce.

    Para Kuhlmann (2003), a consequncia de um atendimento maisfocado no cuidado a formao, tanto de crianas como de famlias,passivas e submissas, sendo em muitas ocasies percebido pelas famliase a comunidade como um favor prestado s camadas populares que,juntamente com a no obrigatoriedade das escolas infantis, acaba sendorepresentado novamente como um espao de assistencialismo, onde ascrianas brincam enquanto aguardam a sada de seus pais do trabalho.

    Pretendemos ressaltar com essa exposio que, apesar dasmudanas significativas na trajetria da Educao Infantil que levaram uma concepo de infncia como uma etapa singular dodesenvolvimento humano, criana como um sujeito de direitos eEducao Infantil como espao de cuidado e educao, no bastammudanas textuais para que dcadas de assistencialismo, associadas maternagem, se esvaiam do imaginrio populacional.

    imprescindvel que a professora, representada como tia afetiva epaciente, dotada de um dom maternal inato, sendo guiada somentepelo amor e pela intuio, d lugar ao profissional da educao, comestudos especficos que abrangem o ser, o saber, o conhecer e o conviverda e na ao docente.

    Representao e identidade: esclarecendo conceitos

    Importante destacar que, quando nos referimos representao,no falamos de maneira ingnua, utilizando-a como um termo qualquer.Para Chartier (1990) e Pesavento (2008), as representaes so comoculos utilizados por uma coletividade para interpretar o mundo. Emtodas as pocas, ns, sujeitos e construtores de nossa histria, elaboramosformas de explicar, expressar e traduzir coletivamente a realidade, masconstrumos tambm formas de representar essa realidade, a fim de darsentido ao mundo, gerando condutas e prticas sociais, as quais soexpressas entre outros exemplos na forma de discursos.

    Oportuno ressaltar que os discursos no so simplesmentereflexos da realidade social, mas podem ser instrumentos de constituioe transformao dessa realidade. Hall apud Wortmamm (2002) destacaque um discurso jamais consiste em uma declarao, um texto, uma

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3837

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20103 8

    ao ou uma fonte. [...] O discurso aparece ao longo de uma cadeia detextos, e como forma de conduta, em um conjunto de locaisinstitucionais da sociedade. (p. 85).

    Nesse sentido, os discursos atuam no somente na construo derepresentaes coletivas, mas fundamentalmente na produo de prticassociais.

    Pesavento (2008) argumenta que a representao pressupeprocessos identitrios, na medida em que produz uma sensao depertencimento a um dado grupo social, a partir do reconhecimento deanalogias e divergncias, fornecendo a coeso grupal e articulando umapercepo sobre o mundo.

    Vale salientar que, ao utilizar a expresso processos identitrios,autores como Woodward (2000), Hall (2002) e Pesavento (2008)afirmam ser essa construda, nunca pronta e acabada, ocorrendo de formarelacional, uma vez que s existe na alteridade, em um outro. Asseveram,tambm, que a identidade no unitria, mas diversa, dando conta demltiplos recortes do social, sendo tnicas, raciais, religiosas, etrias, degnero, de posio social, de classe ou de renda, ou ainda, ento,profissionais (PESAVENTO, 2008, p. 91), possibilitando ao sujeito assumirdiversos perfis identitrios.

    Historicidade, identidade e formao docente:a reconstruo de um espao

    Nesse sentido, podemos aferir que as dcadas que impuseramuma representao sobre a funo da professora na Educao Infantilcomo uma responsvel pelos cuidados bsicos da criana tarefa para aqual a afetividade o maior atributo como: ter jeito, ter amor scrianas, gostar (CUNHA; CARVALHO, 2002, p. 4) podem terproporcionado tanto a identificao de uma gama de educadoras comesse papel, quanto a legitimao social e ter contribudo para um pequenoinvestimento na formao docente dessas profissionais, bem como oinvestimento delas para com elas mesmas, no que diz respeito formaocontinuada.

    Ressaltamos, no entanto, que a crtica a essa representao denada exclui o fato da necessidade e importncia da afetividade na atuaodocente. Conforme Freire (1993), a tarefa de ensinar uma tarefa

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3838

  • 3 9Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    profissional que, no entanto, exige amorosidade, criatividade,competncia cientfica. (p. 10). Exige, sobretudo, seriedade, [...]preparo cientfico, [...] preparo fsico, emocional e afetivo.

    Entretanto, para viabilizar um curso de formao inicial econtinuada de professores que contemple tais dimenses, preciso, emprimeira instncia, a valorizao da Educao Infantil como espao dedesenvolvimento integral do sujeito. Outro fator importante ir almdo cientificismo e perceber os atores sociais que l convivem tambmcomo detentores de uma historicidade.

    Para tanto, Andal (1995) levanta uma proposta de formaocontinuada sistemtica atravs da

    formao de grupos que envolvessem os vrios segmentos da escolaem encontros sistemticos, que versassem sobre a prtica que vemsendo utilizada. Provavelmente, de incio, esses espaos serviriamapenas como ponto de encontro e continente s queixas elamentaes dos componentes a respeito do seu trabalho. (p. 195).

    Diniz (2001) expe que o comportamento de queixa representauma transio, isto , um sintoma que denuncia um aborrecimento eque, ao mesmo tempo, assegura que tudo siga tal como est. (p. 204).Esse primeiro momento seria, ento, um tempo de desabafo, um perodopara que as professoras se ouvissem e se identificassem nas dores epossibilidades, importante para o aprendizado. Conforme Lisondo(2003), aprender implica saber sobre si mesmo, aprender a sequestionar, aprender a ser. (p. 32).

    Andal (1993) continua afirmando que

    gradativamente, por meio do encaminhamento de um processo dereflexo, esses grupos tornar-se-iam conscientes de suas formas deatuao e mais crticos com relao s (pr-) concepes eperspectivas que nutrem a respeito do seu trabalho e da clientelaatendida, com quem passariam a comprometer-se mais efetivamente.(p. 195).

    Dessa forma, para atuar de maneira a extrapolar o conhecimentotcnico, de essencial importncia que a professora seja estimulada arefletir crtica e conscientemente a respeito de crenas e papis sociais,de teorias e prticas pedaggicas e, fundamentalmente, que tenha um

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3839

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20104 0

    espao para desabafar seus medos, suas angstias, dvidas e incertezasem grupos de discusso, mediados por profissionais qualificados. Essasso ferramentas que contribuem para que as emoes tomem conta cadavez menos da atuao profissional, uma vez que agem como uma vlvulade escape, amenizando, assim, o peso de anos de representao culturalsobre sua funo, auxiliando a docente a assumir de forma mais segurae consciente seu papel profissional. (ANDAL, 1995; DINIZ, 2001).1

    Consideraes finais

    O sujeito no est no mundo como um simples residente, mascomo construtor desse, na medida em que por ele construdo.Conforme Severino,

    apesar de toda sua contingncia e finitude, cabe ao sujeito a tarefade construo de seu mundo, sendo que sua nica ferramenta paratanto aquela do conhecimento, informador de todas as suas prticashistoriais. E desse modo no estar construindo apenas o mundo,ele estar tambm se auto-construindo. (SEVERINO, 2005, p. 28).

    Nesse sentido, ousamos afirmar que no nascemos neste sculoou no sculo passado, no temos 10, 20, 30 ou 40 anos, mas somosmuito antigos, na medida em que somos fruto de um processo histricoque deve ser considerado, entendido e respeitado, uma vez que esseprocesso influencia sobremaneira nosso ser e agir no mundo.

    A criana, quando ingressa no que hoje chamamos EducaoInfantil, no est entrando numa construo arquitetnica comcaractersticas diversas, tampouco est sob o olhar de uma pessoa querecebera o ttulo de professora e age da mesma forma que outras

    1 A proposta da Professora Andal se enquadra numa abordagem em pesquisa social chamadaGrupo Foco. Gatti (2005) afirma tratar-se de um grupo de discusso informal, de tamanhoreduzido, visando a obter informaes de carter qualitativo, podendo ser um instrumentoimportante na compreenso dos processos de construo da realidade por determinados grupossociais, bem como para o conhecimento de representaes, preconceitos, linguagem esimbologias que prevalecem em relao a determinadas questes nos grupos de pessoaspesquisadas. (p. 9). Ressel et al. completam afirmando que essa tcnica facilita a formao deidias novas e originais [...] e ainda possibilita entender o estreitamento em relao ao tema, nocotidiano. (2008, p. 781).

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3840

  • 4 1Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    recebedoras do mesmo ttulo. Essa criana est adentrando um espaocultural, est imersa numa cultura que dita, ora explcita, oraimplicitamente, como deve ser vista, cuidada e educada.

    As professoras desse nvel de ensino, por sua vez, durante dcadas,construram sua prtica de forma emprica, baseada em crenas e valoreslegtimos para um dado tempo histrico, mas ineficiente e at prejudicialpara o momento atual.

    O mundo est em constante transformao, sendo de sumaimportncia que os culos adotados para v-lo sejam trocados,acompanhando as mudanas. Entretanto, questionamos: at que pontoas professoras de Educao Infantil tm conscincia sobre as lentes queutilizam? Em outras palavras, ser que essas docentes percebem-se comoseres histricos, que agem muitas vezes influenciadas por representaesacerca de seu papel profissional?

    A clareza sobre essa condio fundamental para que as professorase futuras professoras possam reconstruir seu pensar e agir pedaggico demaneira consciente. Severino (2005) refere que a clareza a respeito dessaconcepo torna a existncia humana acrescida de responsabilidade epassa a ser chamada a uma profunda reflexo sobre o que o autor nomeiade esfera simblica, ou seja, seus valores e sua cultura, pois somente apartir de mudanas nessa esfera que o ser social poder transformar a simesmo e a sociedade.

    Nesse sentido, fundamental que os cursos de formao inicial econtinuada invistam na qualificao profissional para alm doconhecimento tcnico/cientfico. Uma educao de qualidade se faztambm com professores cientes do seu papel e das dimenses prtica,subjetiva e cultural da docncia, sob pena de tais influncias converterem-se em verdadeiro obstculo sua formao profissional e, por conseguinte, aprendizagem do educando.

    Tornar-se ciente sobre si, seu grupo social e sua historicidade um passo importante para amenizar a influncia das representaes sobrea funo docente, abrindo portas para uma atuao profissional, a partirdo qual a mulher sairia da posio de vtima diante de uma exignciasociocultural e passaria a protagonista de sua histria, revendo conceitose questionando certezas e, ento, de forma sistmica, moldaria suas aespautadas em escolhas refletidas, sabedora de que a docncia umaprofisso, e a Educao Infantil, um espao educativo.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3841

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20104 2

    Referncias

    ALMEIDA, Jane Soares. Mulher e educao: paixo pelo Brasil. So Paulo: Unesp,1998.

    ANDAL, Carmen Silva. Fala professora! Repensando o aperfeioamento docente.Petrpolis: Vozes, 1995.

    ARANHA, Maria Lcia de Arruda. Histria da educao e da pedagogia: geral e deBrasil. 3. ed. So Paulo: Moderna, 2006.

    ARIS, Philippe. Histria social da criana e da famlia. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC,1981.

    BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF: Senado Federal,1988, 305 p.

    BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Bsica. Parmetros Nacionaisde Qualidade para a Educao Infantil. Braslia, DF, 1993.

    BRASIL. LEI 9.394/96. Diretrizes e Bases da Educao Nacional. Braslia: Editora doBrasil, 1996.

    BRASIL. Ministrio da Educao e do Desporto. Secretaria de Educao Fundamental.Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil/. Braslia: MEC/SEF, 1998.3v. Disponvel em: . Acessoem: 28 out. 2009.

    CAMPOS, Maria Christina Siqueira de Souza; SILVA, Vera Lcia Gaspar da (Org.).Feminizao do magistrio: vestgios do passado que marcam o presente. 1. ed. BraganaPaulista: Ed. da Universidade So Francisco, 2002.

    CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histrica das prticas culturais. In: _____. Ahistria cultural entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

    CUNHA, Beatriz Belluzzo Brando; CARVALHO, Luciana de Ftima. Cuidar decrianas em creches: os conflitos e os desafios de uma profisso em construo. In:REUNIO ANUAL DA ANPED, 25.,Caxambu, 2002. Anais... Caxambu, 2002.

    DELGADO, Ana Cristina Coll. Como as mes de uma creche domiciliar percebem otrabalho de tomar conta de crianas? Rev. Bras. Educ., n. 28, p.151-163, abr. 2005.

    DINIZ, Margareth. Do que sofrem as mulheres professoras? In: LOPES, Eliane MartaTeixeira (Org.). A psicanlise escuta a educao. 2. ed. Belo Horizonte: Autntica,2001.

    FREIRE, Paulo. Professora sim, tia no: cartas a quem ousa ensinar. 11. ed. So Paulo:Olho-dgua, 1993.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3842

  • 4 3Conjectura, Milena Arago e Lcio Kreutz, v. 15, n. 1, jan./abr. 2010

    GATTI, Bernadete Angelina. Grupo Focal na pesquisa em cincias sociais e humanas.Braslia: Lber Livro, 2005.

    KUHLMANN, Moyss. Educao Infantil no sculo XX. In: STEPHANOU, Maria;BASTOS, Maria Helena Cmara (Org.). Histria e memria da educao no Brasil. SoPaulo: Vozes, 2005. v. 3.

    ______. Educando a infncia brasileira. In: LOPES, Eliane Marta Santos Teixeira;FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de educaono Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Autntica, 2003.

    LOPES, Eliane Marta Teixeira. Da sagrada misso pedaggica. In: LOPES, ElianeMarta S. Teixeira (Org.). A psicanlise escuta a educao. 2. ed. Belo Horizonte: Autntica,2002.

    LOURO, Guacira Lopes. Gnero e magistrio: identidade, histria e representao.In: CATANI, Denice Brbara (Org.). Docncia, memria e gnero. So Paulo: Escrituras,1997.

    MARIOTTO, Rosa Maria Marini. Atender, cuidar e prevenir: a creche, a educao e apsicanalise. Estilos clin. [online]. jun. 2003, v. 8, n. 15, p. 34-47. Disponvel em:. Acesso em: 28 out. 2009.

    OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos. Educao Infantil: muitos olhares. So Paulo:Cortez, 2005.

    PERRENOUD, Philippe. Prticas pedaggicas, profisso docente e formao: perspectivasociolgica. Lisboa: Domn Quixote, 1993.

    PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & histria cultural. Belo Horizonte: Autntica,2008.

    PRIORE, Mary Del. Histria das crianas no Brasil. 3. ed. So Paulo: Contexto,2002.

    RESSEL, Lcia Beatriz; BECK, Carmem Lcia Colom; GUALDA, Dulce MariaRosa et al. O uso do Grupo Focal em pesquisa qualitativa. Texto & contexto enferm.v. 17, n. 4, Florianpolis out./dez. 2008. Disponvel em < http://www.scielo.br/s c i e l o . p h p ? s c r i p t = s c i _ a r t t e x t & p i d = S 0 1 0 4 -07072008000400021&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12/11/2009.

    SAVIANI, Demerval. Formao de professores: aspectos histricos e tericos no contextobrasileiro. In: REUNIO ANUL DA ANPED, 31., 2008. Disponvel em: .Acesso em: 20 out. 2009.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3843

  • Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 1, p. 25-44, jan./abr. 20104 4

    SEVERINO, Joaquim Antnio. Educao, sujeito e historicidade. In: KUIAVA, EvaldoA.; PAVIANI, Jaime. Educao, tica e epistemologia. Caxias do Sul: Educs, 2005.

    WORTMAMM, Maria Lcia C. Anlises culturais: um modo de lidar com histriasque interessam educao. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos investigativosII: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educao. Rio de Janeiro: DP&A,2002.

    VEIGA, Cynthia Greive. Histria da educao. So Paulo: tica, 2007.

    Recebido em julho de 2009 e aprovado em setembro de 2009.

    CAPITULO2.pmd 22/6/2010, 17:3844