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    A constitucionalizao do direito civil e seus

    efeitos sobre a responsabilidade civil*

    Maria Celina Bodin de Moraes**

    Em cada poca h palavras s quais se vincula intimamente o espritoobjetivo de uma sociedade. Atualmente, o conceito de responsabilidadeparece desempenhar este papel(Klaus Gnther).

    1. A constitucionalizao do direito civil1

    Nos quase vinte anos que j se passaram desde a promulgao daConstituio da Repblica, uma verdadeira reviravolta ocorreu no m-

    bito do direito civil. Na atualidade, poucos civilistas negam eficcianormativa ao texto constitucional ou deixam de reconhecer seu im-pacto sobre a regulao das relaes privadas. Estudos de teoria geraldo direito acerca da aplicao dos princpios constitucionais e da me-todologia de sua ponderao foram determinantes para afastar defini-tivamente a cristalizada concepo da Constituio como mera cartapoltica, endereada exclusivamente ao legislador.2

    *Este texto integrar a obra coletiva, organizada por Cludio Pereira de Souza Neto e DanielSarmento,A constitucionalizao do direito. Fundamentos tericos e aplicaes especficas, Riode Janeiro: Lumen Juris, 2007.**Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio e Professora Titular de Direi-to Civil da Faculdade de Direito da UERJ. E-mail: [email protected] o tema da constitucionalizao do direito civil, v., em geral, Pietro Perlingieri, Perfis dodireito civil. Introduo ao direito civil constitucional, trad. M. C. de Cicco, Rio de Janeiro:Renovar, 1999; Gustavo Tepedino, Temas de direito civil, 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004,espec. pp. 1-22; e seja consentido remeter a Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um

    direito civil constitucional, in Revista de Direito Civil, Imobilirio, Agrrio e Empresarial, v. 17,n. 65, jul./set. de 1993, pp. 21-32; Id., Constituio e direito civil: tendncias, in Revista dosTribunais, n. 779, 2000, pp. 47-63.2Exemplifica-se apenas com os pioneiros textos de R. Dworkin, Levando os direitos a srio, SoPaulo: Martins Fontes, 2002 [1977] e R. Alexy, Teora de los derechos fundamentales, trad. deE. Garzn Valds, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993 [1985]; e no Brasil, P.Bonavides, Curso de direito constitucional, 7. ed., So Paulo: Malheiros, 2000.

    Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 - jul/dez 2006

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    Neste contexto, dito ps-positivista, o respeito das normas inferio-res Constituio no examinado apenas sob o ponto de vista formal,a partir do procedimento de sua criao, mas com base em sua corres-pondncia substancial aos valores que, incorporados ao texto consti-

    tucional, passam a conformar todo o sistema jurdico. Valores que ad-quirem positividade na medida em que consagrados normativamentesob a forma de princpios. 3Assim, a soluo normativa aos problemasconcretos no se pauta mais pela subsuno do fato regra especfica,mas exige do intrprete um procedimento de avaliao condizente comos diversos princpios jurdicos envolvidos.4

    Mesmo a consagrao da dignidade da pessoa humana como funda-mento da Repblica no art. 1, III, da CF, dispositivo inicialmente ob-servado com ceticismo, hoje reconhecidamente uma conquista deter-minante e transformao subversiva de toda a ordem jurdica privada.De fato, a escolha do constituinte ao elev-la ao topo do ordenamentoalterou radicalmente a estrutura tradicional do direito civil na medi-da em que determinou o predomnio necessrio das situaes jurdicasexistenciais sobre as relaes patrimoniais.5

    Claramente, o efeito desta alterao na interpretao-aplicao dos

    institutos civilsticos tem sido notvel e, deve-se mesmo afirmar, aindano est completamente realizada. As influncias do contexto histricoburgus e liberal em que o direito civil era concebido, como a regula-o mnima necessria para garantir o livre jogo dos negcios, voltadounicamente para a proteo do patrimnio, fundado exclusivamente natutela da propriedade e da autonomia privada de cunho econmico eque erigia o Cdigo Civil como centro do sistema, vo porm se dissi-

    pando paulatinamente.A proliferao da legislao esparsa sob a forma de estatutos espe-cializados, por vezes tidos como microssistemas legislativos,6tornouinsustentvel afirmar a centralidade do Cdigo diante deste verdadeiro

    3Pietro Perlingieri,Manuale di diritto civile, Napoli: ESI, 2004, p. 9, segundo o qual: Il prin-cipio norma che impone la massima realizzazione di um valore.4Pietro Perlingieri, Perfis, cit., p. 80-81; Id.,Manuale di diritto civile, cit., p. 10 e ss.5Maria Celina Bodin de Moraes, O conceito de dignidade humana: substrato axiolgico econtedo normativo, in I. Sarlet (org.), Constituio, direitos fundamentais e direito privado,Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 137.6Para uma leitura crtica da concepo de microssistemas, v. Gustavo Tepedino, Premissasmetodolgicas para a constitucionalizao do direito civil, ora in Temas de direito civil, cit., pp.1-22. A concepo original do tema pode ser vista em N. Irti, Let della decodificazione, inRevista de Direito Civil, Imobilirio, Agrrio e Empresarialn. 10, out./dez. 1979, p. 15-33.

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    polissistema, que encontra, agora, na Constituio sua unidade siste-mtica e axiolgica.

    A suposta segurana oferecida pela estrutura milenar do direito ci-vil clssico, que justificaria seu predomnio sobre a instvel normativa

    constitucional, revela-se como apenas mais um mito elaborado para amanuteno de status quoindividualista e patrimonialista.7J o impres-cindvel reconhecimento da relatividade e historicidade dos institutos

    jurdicos demonstra que sob a sua aparente continuidade terminolgicase ocultam radicais transformaes semnticas.8Em especial, a afirma-o da democracia como fundamento de legitimidade de todo o orde-namento justifica a prevalncia da Constituio, elaborada pela sobera-na assemblia nacional constituinte, com intensa participao popular,sobre a atividade regular do legislador, representante ordinrio do povo.Em atendimento funo promocional do Direito, o princpio da de-mocracia impe a mxima eficcia ao texto constitucional, expressomais sincera das profundas aspiraes de transformao social.

    Por conta disso, a funcionalizao dos institutos clssicos do direitocivil s finalidades superiores consagradas na Constituio, tal como seobserva, por exemplo, na instrumentalizao da famlia ao livre desen-

    volvimento de seus membros e na subordinao da tutela do contrato eda propriedade realizao da funo (rectius, justia) social, tornou-seuma conseqncia necessria do respeito obrigatrio hierarquia das fon-tes. Evidentemente, o mesmo ocorre na seara da responsabilidade civil.

    A anlise da jurisprudncia destas duas dcadas, especialmente nombito do direito privado, serve a desfazer com as excees normais o justificado receio de que a aplicao direta das normas constitucionais,

    especialmente por meio de clusulas gerais carentes de preenchimen-to valorativo, viesse a ocasionar arbitrariedades, violando a esfera deautonomia individual por meio de um perigoso salto sobre o legisladorordinrio.9Da tambm a importncia fundamental da motivao dasdecises anteriormente acentuada10 ,revelando os princpios jur-

    7Maria Celina Bodin de Moraes, Constituio e direito civil, cit., p. 43 e ss.8Antnio M. Hespanha, Panorama histrico da cultura jurdica europia, 2. ed., Lisboa, Publi-

    caes Europa-Amrica, 1998, pp. 43 e ss.; Pietro Perlingieri, Normas constitucionais nas rela-es privadas, in Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 6 e 7, 1998/1999, pp. 63-64.9 Sobre o tema, v. Karl Engisch, Introduo ao pensamento jurdico, 8. ed., Lisboa: CalousteGulbenkian, 2001; e Judith Martins-Costa,A boa-f no direito privado, So Paulo: Revista dosTribunais, 1999.10V. Maria Celina Bodin de Moraes, Danos pessoa humana: uma leitura civil-constitucionaldos danos morais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp. 37, 190 e 274.

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    dicos envolvidos e as ponderaes realizadas pelo magistrado ao julgaro caso concreto, de modo a permitir o debate em bases racionais e adeterminao de critrios capazes de nortear novas decises de maneiraisonmica.

    No entanto, as conquistas at aqui obtidas no diminuem a exten-so do desafio que temos diante de ns. Diversos obstculos persistem enovos problemas se pem metodologia civil-constitucional no sculo

    XXI. O principal deles foi a promulgao da Lei n. 10.406, de 10 dejaneiro de 2002 o novo Cdigo Civil. Alguns civilistas, animadoscom a suposta novidade, vieram a afirmar o ocaso do direito civil-cons-titucional diante do novo diploma,que j teria nascido constituciona-lizado em virtude de sua promulgao posterior Constituio.11

    Post hoc ergo propter hoc. 12Tal falcia pode ser desfeita j a partir daanlise dos diversos anacronismos e deficincias que o texto, elaboradona dcada de 1970, traz em seu corpo, consagrando, em numerososdispositivos, entendimentos que se opem ao movimento de personali-zao que se vinha operando em doutrina e jurisprudncia.13Neste mo-mento, portanto, e talvez mais firmemente do que antes, ser precisopersistir no esforo de conferir aos institutos civilsticos a interpretao

    condizente com a tbua axiolgica prevista na Constituio.

    2. A responsabilidade civil como mecanismo de proteo dos in-teresses da pessoa humana

    Na definio de Ulrich Beck, vivemos atualmente em sociedades derisco. 14O sentido da expresso, porm, no se vincula diretamente s

    11O alerta de Gustavo Tepedino, O Cdigo Civil e o direito civil-constitucional, in Temasde direito civil, t. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 377. V., a propsito, Francisco Amaral,Direito civil. Introduo, 6. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 151 e ss., espec. p. 157,onde afirma que a promulgao do novo Cdigo deve levar ao refluxo a idia de constitucio-nalizao do direito civil nos termos formulados.12A expresso significa: Depois disso, ento por causa disso e configura uma freqente fal-cia lgica tambm denominada correlao coincidente ou falsa causa. Em virtude dela seassume que porque um evento ocorreu depois de outro, ento o primeiro deve ser causa dosegundo.13Maria Celina Bodin de Moraes, Apresentao a Princpios do direito civil contemporneo, Rio

    de Janeiro: Renovar, 2006, no prelo. Para uma perspectiva crtica na ocasio da promulgao doCdigo, v. Gustavo Tepedino, O novo Cdigo Civil: duro golpe na recente experincia consti-tucional brasileira, in Temas de Direito Civil, t. II, cit., especialmente p. 358. V. ainda Antonio

    Junqueira de Azevedo, Insuficincias, deficincias e desatualizao do Projeto de Cdigo Civilna questo da boa-f objetiva nos contratos, in Revista Trimestral de Direito Civil, n. 1, 2000,pp. 3-12.14Ulrich Beck, Risk Society: Towards a New Modernity, New Delhi: Sage, 1992.

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    crescentes hipteses de risco entendidas estas como o aumento real donmero de acidentes mas s sociedades que se organizam para fazerfrente ao incremento daquelas hipteses, introduzidas principalmentepelos avanos tecnolgicos e pela intensa interferncia humana no meio

    ambiente. Trata-se de sociedades preocupadas com o seu futuro, com asobrevivncia das geraes futuras, 15e que necessitam desenvolver ins-trumentos aptos a garanti-lo. No entanto, assinala Stefano Rodot, a an-gstia em relao ao futuro no acarreta uma recusa ao futuro: ao ladoda percepo, sempre mais clara, dos riscos do progresso tecnolgico,existe a conscincia da impossibilidade de parar tal progresso, mesmo seeste no se apresenta mais com estimativas apenas positivas. 16

    O sentimento de angstia aprofunda-se diante do descompassoexistente entre a velocidade do progresso tecnolgico e a lentido coma qual amadurece a capacidade de organizar, social e juridicamente, osprocessos que acompanham esse progresso. A todo momento, de fato,percebe-se a obsolescncia das solues jurdicas para fazer frente a umnovo dado tcnico ou a uma nova situao conflituosa.

    A conceituao como sociedades de risco , na realidade, conseq-ncia do fim da fase de f cega no progresso da humanidade, confiana

    que havia definido a sociedade ocidental do sc. XIX como a de ummundo de segurana e delineado a legislao que o regulava medianteum sistema fechado e pretensamente completo que continha todas asrespostas normativas.

    No decorrer do sc. XX, porm, a segurana foi sendo irreversivel-mente corroda. Como reflexo do novo panorama, pleno de incertezas,o legislador comea a utilizar-se de uma diversa linguagem normativa,

    passando a adotar clusulas gerais e conceitos jurdicos indeterminados,que, ao abrirem amplo espao ao intrprete, acabam por acentuar a sen-sao de indeterminao e de insegurana perante o Direito.

    Adverte-se ento a necessidade de individuar os princpios jurdicosque devem direcionar cada interpretao-aplicao do direito, de referi-los continuamente para enfrentar tendncias de mais longo prazo, e

    15Hans Jonas, El principio de responsabilidad. Ensayo de uma tica para la civilizacin tecnol-gica, Barcelona: Herder, 1995.16Stefano Rodot,A vida na sociedade de vigilncia, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, no prelo,p. 191. V., ainda, Andr Comte-Sponville, Bom dia, angstia!,So Paulo: Martins Fontes,1999, p. 61 e ss., segundo o qual: A cincia, qualquer cincia, no tem conscincia nemlimites, alm dos limites que ela se impe como tarefa a transpor e que transpe de fato, maiscedo ou mais tarde.

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    de adot-los para o preenchimento, em cada caso, das clusulas geraise dos conceitos indeterminados, os quais funcionam assim como ins-trumentos de incidncia dos princpios e valores constitucionais nasrelaes intersubjetivas.

    No tarefa simples. A dificuldade na identificao dos princpiosenvolvidos no provm, contudo, somente do fato de que se trata deregular uma demanda em transformao. Decorre ainda da necessidadede se levar em considerao uma multiplicidade de exigncias, de in-teresses e de necessidades com freqncia conflitantes entre si. A nicaconstante a ser seguida encontra-se na prevalncia da tutela da pessoahumana, princpio previsto no art. 1, III, da Constituio Federal,considerada a sua dignidade como o valor precpuo do ordenamento,configurando-se como a prpria finalidade-funo do Direito. 17

    O princpio da proteo da pessoa humana, determinado consti-tucionalmente, gerou no sistema particular da responsabilidade civil,a sistemtica extenso da tutela da pessoa da vtima, em detrimentodo objetivo anterior de punio do responsvel. 18Tal extenso, nestembito, desdobrou-se em dois efeitos principais: de um lado, no ex-pressivo aumento das hipteses de dano ressarcvel; de outro, na perda

    de importncia da funo moralizadora, outrora tida como um dosaspectos nucleares do instituto.

    Quanto ao aumento das hipteses de ressarcimento, sabe-se que aresponsabilidade civil um dos instrumentos jurdicos mais flexveis,dotado de extrema simplicidade, estando apto a oferecer a primeiraforma de tutela a interesses novos, considerados merecedores de tutelato logo sua presena seja identificada pela conscincia social, e que de

    outra maneira ficariam desprotegidos, porque ainda no suficientemen-te amadurecidos para receberem ateno e, portanto, regulamentaoprpria por parte do legislador ordinrio. 19

    Tambm por esta razo se diz que o direito da responsabilidadecivil antes de tudo jurisprudencial. Os magistrados, com efeito, soos primeiros a sentirem as mudanas sociais e, bem antes de se poder

    17Assim, Fabio Konder Comparato, O papel do juiz na efetivao dos direitos humanos.

    Disponvel em http://www.dhnet.org.br, acesso em 20 out. 2005.18Em 1980, Orlando Gomes, Tendncias modernas da reparao de danos, in Estudos emhomenagem ao Professor Silvio Rodrigues, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 293, chamava aateno, com base em G. Tucci, para a importante reviso por que passava o regime da respon-sabilidade civil, aludindo ao giro conceitual do ato ilcito para o dano injusto.19Stefano Rodot, Entrevista, Revista Trimestral de Direito Civil, n. 11, jul.-set. 2002, pp.287-288.

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    colocar em movimento qualquer alterao legislativa, esto aptos aatribuir-lhes, atravs de suas decises, respostas normativas.

    Mas isto somente ocorre porque o mecanismo da responsabilidadecivil composto, em sua maioria, por clusulas gerais e por conceitos

    vagos e indeterminados, carecendo de preenchimento pelo juiz a partirdo exame do caso concreto. Como a incidncia dos princpios e valo-res constitucionais se faz, em via mediata, justamente desta maneira,atravs do preenchimento valorativo destes conceitos, v-se que a cons-titucionalizao da responsabilidade civil pode se dar naturalmente.

    J a cannica finalidade de moralizao da responsabilidade civil pa-rece ter sido substituda com vantagens pela concepo que vislumbrano instituto a presena, e a conseqente realizao, de um dever geralde solidariedade, tambm hoje previsto constitucionalmente (CF, art.3, I), que se encontra na base do aforismo multissecular do neminemlaedere, isto , da obrigao de comportar-se de modo a no lesar os in-teresses de outrem.20 Trata-se aqui de tomar conscincia de importanteatualizao de fundamento, fruto daquela historicidade, imprescindvel cincia jurdica, que se permite atribuir novo contedo a conceitosradicados.21

    3. O evento danoso e o problema de sua identificaoO dano, como se sabe, o fundamento unitrio da responsabilidade

    civil, a prpria razo de ser do dever de indenizar.22Conceitualmente, aresponsabilidade civil consiste justamente na imputao do evento dano-so a um sujeito determinado, que ser, ento, obrigado a indeniz-lo.

    Diversamente do direito penal, porm, o direito civil no tipifica

    legislativamente cada comportamento danoso; ao contrrio, a obrigaode indenizar est inserida em uma clusula geral, prevista no art. 186c/c o art. 927 do Cdigo Civil. Cumpre, assim, identificar, quais so oseventos que fazem nascer a obrigao de indenizar. Em outras palavras, preciso circunscrever a rea dos danos ressarcveis, de modo a evitara propagao irracional dos mecanismos de tutela indenizatria 23.

    20Stefano Rodot, Il problema della responsabilit civile, Milano: Giuffr, 1967, p. 95 e ss.21Antnio M. Hespanha, Panorama histrico da cultura jurdica europia, cit., p. 43.22Stefano Rodot, Il problema della responsabilit civile, cit., p. 78. A noo fundamentalporque se, eventualmente, o ilcito no causar dano no ter qualquer relevncia no mbito daresponsabilidade civil.23Luiz Dez-Picazo, Derecho de daos, Madrid: Civitas, 1999, p. 296.

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    Ocorre que meras atividades cotidianas, devidas normal aohumana, com freqncia causam prejuzos a terceiros. Assim, porexemplo, a prtica comercial bem sucedida pode ter como conseqnciaa diminuio do nmero de clientes e do prprio lucro daqueles que

    atuam no mesmo ramo, ainda que a concorrncia no ofenda os par-metros legais, do mesmo modo que a construo de um novo edifcio,sem nenhuma inteno emulativa e em total consonncia com as nor-mas edilcias pertinentes, pode acarretar o fim da vista panormica, daincidncia de luz solar ou da brisa que refrescava o vizinho.

    Tais situaes, ainda que causadoras de danos, so autorizadas peloordenamento jurdico; os danos que a se produzem so, portanto, l-citos, no acarretando a responsabilizao daquele que, embora tenhadado causa a prejuzos, no se afastou dos limites impostos pelo orde-namento jurdico ao pautar sua atuao.

    De outro lado, porm, em cada vez mais numerosas situaes, omesmo ordenamento jurdico determina danos que se forem causados,no obstante a liceidade da ao ou da atividade, a vtima no deve fi-car irressarcida. Aqui tambm os danos seriam, primeira vista, lcitos;geram, no entanto, obrigao de indenizar. Neste caso enquadram-se,

    por exemplo, as inmeras hipteses de responsabilidade objetiva, hojereguladas seja atravs de clusula geral (CC, pargrafo nico do art.927) seja mediante dispositivos especficos (CC, arts. 931, 932, 937,938 etc.), consubstanciando-se, pois, em figuras de danos ressarcveis,embora no resultantes da prtica de qualquer ilcito.

    O debate acerca da noo de dano ressarcvel divide-se basicamenteem duas correntes doutrinrias: de um lado, os que identificam o dano

    com a antijuridicidade, ou seja, com a violao culposa de um direitoou de uma norma; e, de outro, os defensores da chamada teoria dointeresse, hoje majoritria, que o vinculam leso de um interesse (oubem) juridicamente protegido24. Na realidade, a primeira teoria acabapor interpretar o sistema da responsabilidade civil como se fora tpico,uma vez que somente diante da violao de normas que, especifica-mente, reconhecem direitos subjetivos absolutos admite o surgimentoda sano civil.

    Modernamente, pois, desvincula-se o conceito de dano da noode antijuridicidade, adotando-se critrios mais amplos, que englobamno apenas direitos (absolutos ou relativos) mas tambm interessesque, porque considerados dignos de tutela jurdica, quando lesionados,obrigam sua reparao. Eis a a tutela ressarcitria com base na clu-

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    sula geral de responsabilidade. Sob esta tica, porm, ser necessrioindicar os critrios para a identificao da qualidade do interesse, se equando deve ser considerado digno da tutela jurdica. O critrio maisconsistente, como se ver, sustenta que indenizvel ser o evento dano-

    so relevante segundo uma ponderao dos interesses em jogo luz dosprincpios constitucionais.25

    O alargamento da noo de dano ressarcvel, todavia, veio ocor-rendo de maneira avassaladora. Com efeito, fala-se hoje em dano aoprojeto de vida, dano por nascimento indesejado, dano hedonstico,dano de mobbing, dano de mass media, dano de frias arruinadas, danode morte em agonia, dano de brincadeiras cruis, dano de descumpri-mento dos deveres conjugais, dano por abandono afetivo e assim pordiante. 26O aumento desordenado de novas espcies de dano fez sur-gir o temor, antecipado por Rodot, de que a multiplicao de novasfiguras de dano venha a ter como nicos limites a fantasia do intrpretee a flexibilidade da jurisprudncia.27

    A preocupao com o significativo incremento de hipteses dedano extrapatrimonial, situao cognominada como a indstria dodano moral, no parece injustificada.28Somente no mbito do Supe-

    rior Tribunal de Justia, o nmero de aes com pedidos desta naturezaaumentou quase 200 vezes nos ltimos 10 anos. 29E isto evidentementenem se compara com o crescimento exponencial ocorrido nos JuizadosEspeciais e na primeira instncia. No foi apenas o volume dos pedi-dos a inflacionar; o nmero de concesses e o seu valor sem qualquercritrio tm gerado, como conseqncias previsveis, de um lado, a ba-

    24C. Massimo Bianca, Diritto civile, vol. 5, Milano: Giuffr, 1995, pp. 584-585.25V. Guido Alpa, Il problema della atipicit del illecito, Napoli: Jovene, 1979, p. 245. V. infraitem 4.1.26Assim Anderson Schreiber, Tendncias atuais da responsabilidade civil, in Revista Trimestralde Direito Civil, n. 22, abr./jun. 2005, p. 60.27ApudAnderson Schreiber, Tendncias atuais, cit., p. 60.28Em 10.10.1998, o ento Des. Dcio Antnio Erpen, do TJRS, em artigo intitulado Aindstria do dano moral, publicado no Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, afirmava: Semuma definio cientfica do que seja, realmente, o dano moral, sem uma norma estabelecendoas reas de abrangncia e sem parmetros legais para sua quantificao, permite-se o perigoso

    e imprevisvel subjetivismo do pleito, colocando o juiz numa posio de desconforto. Ele quedeve ser o executivo da norma, passou a personaliz-la. (...) A corrente belicosa, se vitoriosa,gerar uma sociedade intolerante, na qual se promover o dio, a rivalidade, a busca de van-tagens sobre outrem ou at a exaltao do narcisismo. A promissora indstria do dano morallevar a esse triste quadro.29Consultor Jurdico, 21.07.2005: Em 1994 foram 47 aes contra 8.201 em 2004. Dispon-vel em www.conjur.com.br, acesso em 22 jul. 2005.

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    nalizao do dano moral e, de outro, a mercantilizao das relaesextrapatrimoniais.

    verdade, tambm, que o aumento do nmero de reclamaesdeste tipo tem o significado, relevante, de representar um reforo da ci-

    dadania, da luta em defesa dos prprios direitos e do amadurecimentocultural da sociedade. Mais do que isto. Como se tentar demonstrar, adifuso da reparao do dano moral conseqncia direta, embora in-consciente, de um processo de constitucionalizao da responsabilidadecivil.30Com efeito, o expressivo aumento de indenizaes a este ttulo revelador do fato de que o direito nacional voltou-se, como determi-na a Constituio, para a proteo dos interesses extrapatrimoniais daspessoas humanas.

    Todavia, cabe indagar-se o que faria se o iogurte viesse mofado, seo sinal da TV a cabo deixasse de ser recebido por alguns dias, se o voatrasasse ou a bagagem se extraviasse, se o alarme da loja soasse porque avendedora se esqueceu de remover o dispositivo anti-furto, se o quartodo hotel no estivesse reservado como solicitado, se o noivo desistissedo casamento? Em todas essas hipteses e em muitssimas outras domesmo jaez juzes brasileiros, examinando casos concretos, tiveram

    ocasio de mandar indenizar, em quantias por vezes exorbitantes, asvtimas de tais espcies de danos. Com razo, afirmou-se que se nin-gum quer ter a sua dignidade colocada em dvida, ento precisoparar com esse truque de ir dormir ofendido para acordar milionrio.31No h dvida que a configurao atual do dano extrapatrimonial temensejado substancioso incentivo malcia, m-f, ao lucro fcil.

    Na realidade, o problema maior da reparao do dano moral refere-

    se ao seu mecanismo de identificao.

    Sobre o conceito de dano moral,a maioria dos operadores jurdicos nacionais o define de acordo com oentendimento elaborado, na dcada de 1940, por Ren Savatier segun-do o qual dano moral todo sofrimento humano que no causadopor uma perda pecuniria. 32Tal conceituao, contudo, no permite

    30V., infra, item 4.1.31Martha Medeiros, A loteria dos espertos apudRamon von Berg, Dano moral, artigo dispo-

    nvel em http://www.blindagemfiscal.com.br, acesso em 13 jul. 2005.32Trait de la responsabilit civile. vol. II, n. 525 apudCaio Mrio da Silva Pereira, Responsabili-dade civil, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994. Tambm muito citado pela doutrina brasileira o italiano Alfredo Minozzi, Studio sul danno non patrimoniale (Danno morale),3. ed., Milano:Societ Editrice Libraria, 1917, p. 80 e ss., segundo o qual: Quando parleremo di danni chenon ledono il patrimonio della persona, il contenuto di questi danni non il danaro, n una cosacommercialmente riducibile in danaro, ma il dolore, lo spavento, lemozione, lonta, lo strazio fisico

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    que se colha uma noo especfica, satisfazendo-se a doutrina com umaidia ampla e genrica a ponto de se admitir praticamente tudo na con-figurao do dano moral, isto , justamente todo sofrimento humano.Da, a subseqente especificao, feita jurisprudencialmente, do dano

    moral como gerador dos sentimentos de tristeza, constrangimento,vergonha ou humilhao.Em 1996, ao julgar o Recurso Extraordinrio n. 172.720, o Supremo

    Tribunal Federal considerou que o dano moral se distingue da violaoa direitos da personalidade bem como dos efeitos no-patrimoniais daleso.33No julgamento discutia-se a reparao de dano moral decorren-te de extravio de bagagem em transporte areo, em que a 1 C. C. doTribunal de Justia do Rio de Janeiro havia negado a indenizao sob oargumento de que a simples sensao de desconforto ou aborrecimen-to, ocasionado pela perda ou extravio de bagagens, no constitui danomoral, suscetvel de ser objeto de reparao civil. O Supremo, porm,deu provimento ao recurso para reconhecer a existncia de dano moralreparvel, que estaria configurado nos sentimentosde desconforto, cons-trangimento, aborrecimento e humilhao, causados pelo extravio debagagem em viagem ao exterior.

    Todavia, ser possvel que a dor, a tristeza, o constrangimento, a per-plexidade, o vexame ou a humilhao configurem elementos concretossuficientes para a conceituao jurdica do dano moral? Na verdade, to-das as relaes humanas ensejam sofrimentos e tristezas cuja causa nor-malmente atribumos a outrem. Na perspectiva de Unamuno el dolores la sustancia de la vida y la raz de la personalidad pues slo sufriendo sees persona. Como podem a dorou os sentimentosser considerados ob-

    jetivamente para os fins de seu ressarcimento? Enfim, como distinguiras dores que devem ser reparadas das que no merecem s-lo?Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justia

    julgou improcedente o pedido de indenizao de danos morais por usono consentido de imagem, de duas enfermeiras, publicada em materialpublicitrio da clnica em que trabalhavam. Em seu voto, a MinistraRelatora afirma que o dano moral compensvel deve ser qualificadopor um elementopsicolgicoque evidencie o sofrimentoa que foi subme-tida a vtima, o sentimento de tristeza, desconforto, vexame, embarao

    o morale, in generale una dolorosa sensazione provata dalla persona, attribuendo alla parola doloreil pi largo significato.33STF, 2 T., RE 172.720, Rel. Min. Marco Aurlio, publ. DJ de 21.02.1997.

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    na convivncia social ou a exposio ao ridculo no meio social ondereside ou trabalha. 34As autoras, em vez de alegarem tristeza profundae constrangimento infinito, haviam afirmado no ser necessria a provada ocorrncia de dano moral pelo uso inconsentido da imagem, por se

    tratar de danoin re ipsacomo, alis, entende o STF.35

    Na situao de indefinio em que se encontra o conceito de danomoral, tem sido possvel nele incluir qualquer coisa, isto , qualquersofrimento humano, e, de outro lado, considerar que pouco ou nadaseria suficiente para oferecer as extremas do instituto, sob o argumentode que no passam de aborrecimentos comuns ou extraordinrios do dia-a-dia, no chegando a configurar real e verdadeiro sofrimento.

    O fato que a reparao dos danos morais no pode mais operar,como vem ocorrendo, no nvel do senso comum. Sua importncia nomundo atual exige que se busque alcanar um determinado grau detecnicidade, do ponto de vista da cincia do direito, contribuindo-separa edificar uma categoria terica que seja elaborada o suficiente parademarcar as numerosas especificidades do instituto. A ausncia derigor cientfico e objetividade na conceituao do dano moral tmgerado obstculos ao adequado desenvolvimento da responsabilidade

    civil alm de perpetrar, cotidianamente, graves injustias e incertezasaos jurisdicionados.

    O ressarcimento do dano moral deve ser tratado com maior serie-dade, tanto cientfica quanto metodolgica, visto que sria tambm a exigncia de proteger eficazmente a pessoa humana e seus direitosfundamentais. Torna-se urgente, pois, identificar, especialmente no quetange s hipteses de dano moral, que interesses, sob a perspectiva civil

    constitucional, so merecedores de tutela a ponto de sua violao com-pletar os requisitos da tutela ressarcitria.

    4.Aplicaes da constitucionalizao na responsabilidade civilAs profundas transformaes ocorridas na responsabilidade civil,

    ramo do direito civil que apresenta atualmente grandes desafios aos ju-ristas, devem ser enfrentadas a partir da perspectiva da aplicao direta

    34STJ, 3 T., REsp. 622.872, Rel. Min. Nancy Andrighi, v.u., julg. em 14.06.2005, publ. DJde 01.08.2005. Grifou-se.35STF, 2T, RE 215.984, Rel. Min. Carlos Velloso, julg. 04.06.2002, v.u. O acrdo entendeuque a Constituio (art. 5, X) prev a existncia de direito indenizao em caso de danos ad-vindos da violao da intimidade, da vida privada, da honra e imagem das pessoas, condenandoo ofensor ao pagamento de danos morais.

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    e imediata das normas constitucionais. De fato, somente a perspectivaconstitucionalizada capaz de oferecer respostas s complexas indaga-es presentes no direito dos danos contemporneo.

    De maneira geral, a inspirao constitucional fez com que prin-

    cpios normalmente alheios ao surgimento da obrigao de indenizarfossem incorporados ao definir o regime de reparao civil. Se a res-ponsabilidade civil tradicional se baseava exclusivamente na tutela dodireito de propriedade e dos demais direitos subjetivos patrimoniais,hoje a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, e a justiadistributiva influenciam profundamente toda a sistemtica do dever deressarcir.36

    A constitucionalizao do direito dos danos imps, como se viu, areleitura da prpria funo primordial da responsabilidade civil. O focoque tradicionalmente recaa sobre a pessoa do causador do dano, quepor seu ato reprovvel deveria ser punido, deslocou-se no sentido datutela especial garantida vtima do dano injusto, que merece ser repa-rada. A punio do agente pelo dano causado, preocupao pertinenteao direito penal, perde a importncia no mbito cvel para a reparaoda vtima pelos danos sofridos.

    O impacto desta mudana de perspectiva pode ser percebido emdois problemas que tm atrado a ateno da doutrina e provocadoacesas controvrsias na jurisprudncia: o da conceituao do dano mo-ral, j referido, e o do contedo da clusula geral de responsabilidadeobjetiva, prevista ex novopelo Cdigo de 2002. Ambos os temas seroanalisados a seguir.

    4.1 A conceituao do dano moralA Constituio, nos incisos V e X de seu art. 5, consagrou a pos-sibilidade de indenizao pelo dano exclusivamente moral, colocandoum ponto final na acirrada controvrsia doutrinria at ento reinanteneste tema.37Sua aplicao, contudo, no se resume determinao dareparao do dano moral, mas tem tambm um papel fundamental nadefinio de seu conceito.

    36Gustavo Tepedino, A evoluo da responsabilidade civil no direito brasileiro e suas contro-vrsias na atividade estatal, in Temas de direito civil, cit., p. 194.37CF, art. 5, V: assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alm da indeniza-o por dano material, moral ou imagem; e X: So inviolveis a intimidade, a vida privada,a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenizao pelo dano material ou moraldecorrente de sua violao.

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    Majoritariamente, como se viu, o dano moral conceituado comoo efeito moral da leso a um interesse juridicamente protegido, referidoconstantemente em doutrina e na jurisprudncia como os sentimentosde dor, vexame, sofrimento e humilhao. A abrangncia da definio

    costuma ser mitigada, em termos igualmente subjetivos e arbitrrios,por meio da exigncia de que se trate de um dano grave, um mal evi-dente, que no configure mero desconforto ou aborrecimento.38

    Em contraposio a essa conceituao de dano moral subjetivo,buscou-se refinar a definio, ajustando-a de acordo com a melhor tc-nica jurdica. Assim que, de outro lado, definiu-se o dano moral comoa leso a um direito da personalidade.39 Esta concepo de dano moralobjetivo j contribui para oferecer maior rigor tcnico no exame doscasos, evitando a praxe recorrente de avaliar a ofensa com base no sensocomum.

    necessrio, contudo, recordar as crticas concepo de dano res-sarcvel como violao a um direito subjetivo, vinculado, pois, noode antijuridicidade. 40Tal viso foi superada pela teoria do interesse,que concebe o dano ressarcvel como a leso a interesse juridicamenteprotegido. Alm disso, no possvel ater-se ao modelo do direito sub-

    jetivo para tutelar os interesses existenciais relativos pessoa humana:qualquer situao jurdica subjetiva pode ser idnea a proteger os as-pectos extrapatrimoniais da personalidade.41Assim, melhor do que serestringir a modelos tpicos especficos de direitos subjetivos recorrera uma clusula geral de tutela da personalidade.42Enquanto em algunsordenamentos esta clusula vem expressa na legislao ordinria, nonosso sistema deve ser encontrada no princpio constitucional da dig-

    nidade da pessoa humana.43

    Sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moralcomo a leso dignidade da pessoa humana. Em conseqncia, toda

    38Por exemplo, o voto do Min. Francisco Rezek no julgamento do RE 172.720 (STF, 2 T.,Rel. Min. Marco Aurlio, julg. 06.02.1996, publ. DJ 21.02.1997).39Paulo Luiz Neto Lobo, Danos morais e direitos da personalidade, in Revista Trimestral deDireito Civil, n. 6, abr.-jun. 2001, pp. 79-97.40V. supraitem 3.41Como afirma Pietro Perlingieri, Perfis, cit., p. 156: No existe um nmero fechado de hip-teses tuteladas: tutelado o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interessee naqueles de outras pessoas.42Gustavo Tepedino, A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro,in Temas de direito civil, cit., p. 50 e ss.43 o caso do Cdigo Civil portugus de 1966, que afirma em seu art. 70.1: A lei protege os indi-vduos contra qualquer ofensa ilcita ou ameaa de ofensa a sua personalidade fsica ou moral.

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    e qualquer circunstncia que atinja o ser humano em sua condiohumana, que (mesmo longinquamente) pretenda t-lo como objeto,que negue sua qualidade de pessoa, ser automaticamente consideradavioladora de sua personalidade e, se concretizada, causadora de dano

    moral.44

    Socorre-se, assim, da opo fundamental do constituinte paradestacar que a ofensa a qualquer aspecto extrapatrimonial da persona-lidade, mesmo que no se subsuma a um direito subjetivo especfico,pode produzir dano moral, contanto que grave o suficiente para serconsiderada lesiva dignidade humana.

    Para esta fundamentao possvel encontrar base na premissa kan-tiana de que a humanidade das pessoas reside no fato de elas seremracionais, dotadas de livre arbtrio e de capacidade para interagir su-

    jeitos, portanto, do discurso e da ao e, desse modo, ser desu-mano, isto , contrrio dignidade humana, tudo aquilo que puderservir para reduzir a pessoa (o chamado sujeito de direitos) condiode objeto. Esta perspectiva desdobra-se nos seguintes postulados: i) osujeito moral (tico) reconhece a existncia dos outros como sujeitosiguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito integridade psicofsicade que titular; iii) dotado de vontade livre, de autodeterminao; iv)

    parte do grupo social, em relao ao qual tem a garantia de no vir aser marginalizado.

    Aplicados esfera jurdica, sero corolrios desta elaborao osprincpios da igualdade, da integridade fsica e moral psicofsica ,da liberdade e da solidariedade social ou familiar, que se encontramprevistos na Constituio da Repblica. Dano moral ser, em conse-qncia, a leso a algum desses aspectos ou substratos que compem,

    ou conformam, a dignidade humana, isto , a violao liberdade, igualdade, solidariedade ou integridade psicofsica de uma pes-soa humana. Quando, contudo, estes princpios, entrarem em colisoentre si, ser preciso ponderar, atravs do exame dos interesses emconflito, tais princpios em relao a seu fundamento, isto , a prpriadignidade humana.

    o que se observa hoje no tocante, por exemplo, reparao dedanos morais no mbito das relaes familiares. Nestas relaes, de ma-neira geral, subsiste o princpio da solidariedade em correspondncia pessoa da vtima e o princpio da liberdade ou autonomia em cor-respondncia pessoa do suposto ofensor. Contudo, como em toda

    44Maria Celina Bodin de Moraes, Danos pessoa humana, cit., p. 188.

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    ponderao, necessrio levar em considerao os aspectos distintivosde cada relao concreta. Assim, defende-se que, enquanto nas relaesparentais necessrio ponderar igualmente a integridade psicofsica dosmenores, o que justificaria a indenizao, nas relaes conjugais parte-

    se da igualdade entre os cnjuges e da livre dissolubilidade da relao,o que justificaria a ausncia de reparao nas hipteses de infidelidade,abandono do lar, descumprimento de dbito conjugal, e desassistnciassemelhantes, podendo-se contar apenas com a sano especfica da se-parao judicial ou do divrcio.45

    4.2 A fundamentao da clusula geral de responsabilidade objetivaOutro campo em que se percebe nitidamente a influncia da nor-

    mativa constitucional sobre a responsabilidade civil no mbito daresponsabilidade civil dita objetiva, ou seja, a que prescinde da avalia-o da conduta subjetiva do agente para imputar o dever de reparar odano causado.

    Como se sabe, o sistema tradicional da responsabilidade civil foiconstrudo a partir do conceito de ato ilcito, ou seja, da conduta re-provvel daquele que, por negligncia, imprudncia ou impercia, viola

    direito e causa dano a outrem.46O surgimento da responsabilidade exi-gia que a vtima conseguisse provar a quebra de um dever de cautela, deum padro de conduta exigvel por parte do agente que causou o dano.Esta exigncia de uma avaliao tico-jurdica do comportamento docausador do dano para imputar-lhe o dever de repar-lo era tida comoprincpio axiomtico, correspondente idia de punio pelo ilcitocometido.47

    No entanto, a complexificao social e a industrializao provoca-ram um salto no nmero cotidiano de acidentes, gerando danos in-justos que, em virtude da incapacidade da vtima de provar a culpa do

    45Maria Celina Bodin de Moraes, Danos morais em famlia? Conjugalidade, parentalidade eresponsabilidade civil, in T. da Silva Pereira e R. da Cunha Pereira (coords.), A tica da con-vivncia familiar. Sua efetividade no cotidiano dos tribunais, Rio de Janeiro: Forense, 2006,p. 171 e ss.; Id., Deveres parentais e responsabilidade civil, in Revista Brasileira de Direito deFamlia, n. 31, ago-set. 2005, p. 39 e ss.46 CC, art. 186: Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia,violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito.47O representante maior deste pensamento foi Rudolf von Jhering para quem no era o danoque obrigava o ressarcimento, mas a culpa, assim como no a chama da vela que queima maso oxignio: V. Rudolf von Jhering, Il momento della colpa nel diritto privato romano, trad. de F.Fusili, Napoli: Jovene, 1990, p. 38.

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    agente na produo do dano, ficavam irressarcidos. A insuficincia deum sistema de reparao calcado exclusivamente na noo de culpalato sensufoi destacada de maneira pioneira por alguns juristas, 48quebuscaram a construo de outros mecanismos de imputao de respon-

    sabilidade que prescindissem do elemento subjetivo.As transformaes legislativas, inicialmente tmidas, principiaramesta transformao a partir de dispositivos legais de presuno de culpa,que invertiam o nus dessa prova diablica em benefcio da vtima.Progressivamente, contudo, afastou-se inclusive a possibilidade de oofensor provar a sua diligncia para evitar o dever de reparar, atravs dapreviso de verdadeiros casos de responsabilidade objetiva.

    Assim, aqui no Brasil, foi promulgado em 1912 o Decreto n. 2.681,sobre transporte ferrovirio, o qual abria exceo ao princpio da cul-pa, embora o legislador tenha ento preferido usar a expresso culpapresumida.49Em 1919 foi promulgada a primeira lei acidentria bra-sileira, o Decreto Legislativo n. 3.724, de 15.01.1919. 50Alm destas,cumpre mencionar ainda a legislao acerca de atividades de minerao(DL. 227/67), acidentes de veculos (L. 6.194/74 e L. 8.441/92), ati-vidades nucleares (L. 6.453/77), atividades lesivas ao meio-ambiente

    (L. 6.938/81), transporte areo (L. 7.565/86) e relaes de consumo(CDC, arts. 12 e 14). A Constituio de 1988 atribuiu responsabili-dade objetiva s pessoas jurdicas de direito pblico e s pessoas jurdi-cas de direito privado prestadoras de servios pblicos (art. 37, 6o) equeles que exploram energia nuclear (art. 21, XXIII, c).

    48A partir dos precursores Venezian (1884), Coviello (1887) e Orlando (1893) na Itlia eMerkel (1885) e Mataja (1888) na Alemanha, so indicados como pioneiros da responsabi-lidade objetiva Raymond Saleilles, Les accidents du travail et la responsabilit civile, Paris: A.Rousseau, 1897; e Louis Josserand, La responsabilit du fait des choses inanimes, Paris: A. Rous-seau, 1897.49Prev o art. 17 do aludido Decreto: As estradas de ferro respondero pelos desastres que nassuas linhas sucederem com viajantes e de que resultem a morte, ferimento ou leso corporal.

    A culpa ser sempre presumida, s se admitindo em contrrio alguma das seguintes provas: i.caso fortuito ou fora maior; ii. culpa do viajante. Por analogia, a normativa foi estendida,posteriormente, aos demais meios de transporte coletivos, isto , aos bondes, s empresas de

    nibus, ao metr, etc.50A responsabilidade objetiva foi adotada em todas as sucessivas leis especiais sobre acidentesdo trabalho que vigoraram no pas at 1967, quando o seguro foi integrado Previdncia So-cial, e passaram a carecer de fundamento as coberturas com base na responsabilidade civil dopatro. De acordo com a teoria atualmente em vigor nesta rea, a teoria do risco social, a res-ponsabilidade pelos danos advindos dos acidentes do trabalho deve ser da coletividade, tendoem vista a funo social que a empresa desempenha.

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    Mesmo no mbito do Cdigo anterior j era visvel esse processo deobjetivao de certas hipteses de responsabilidade, como por exemplo, aeffusum et deiectum, nos termos do antigo art. 1.529; a responsabilidadepelo fato dos animais (art. 1.527); a responsabilidade decorrente de runa

    (art. 1.528); etc. Foi o que tambm ocorreu com a responsabilidade dopatro pelos atos culposos de seus empregados, na dcada de 1960,quando o STF instituiu a Smula 341,adotando verdadeira interpreta-o contra legemem relao ao art. 1.523 do Cdigo Civil de 1916.

    Estas hipteses partilham de uma inspirao comum, capaz de subs-tituir a culpa como fundamento da responsabilidade, que a noo derisco. O prprio funcionamento da sociedade industrial transforma osacidentes, tradicionalmente vistos como acontecimentos extraordin-rios, em eventos normalmente esperados, decorrentes do curso naturalde atividades coletivas. As fatalidades tornam-se estatisticamente pre-visveis e regulares: so danos que devemacontecer.51

    Neste novo contexto, a utilizao de um princpio de imputabilida-de moral para justificar que o dano fosse transferido da vtima ao agenterevelava-se incondizente com as diversas espcies de relaes jurdicasprprias da sociedade moderna. Na medida em que estes danos anni-

    mos so algo esperado pelo prprio desempenho da atividade, a imposi-o do dever de repar-los h de decorrer da mera assuno deste risco.

    A objetivao da responsabilizao, neste ponto, nada mais do queum aspecto de um processo maior de releitura do direito civil em virtu-de da incidncia dos princpios constitucionais. Ela traduz a passagemdo modelo individualista-liberal de responsabilidade, compatvel coma ideologia do Code Napolon e do Cdigo de 1916, para o chamado

    modelo solidarista, baseado na Constituio da Repblica, fundado naateno e no cuidado para com o lesado: questiona-se se vtima devaser negado o direito ao ressarcimento e no mais, como outrora, se hrazes para que o autor do dano seja responsabilizado.52Trata-se, assim,de vincular diretamente a responsabilidade civil aos princpios consti-tucionais da dignidade, da igualdade e da solidariedade.

    As vantagens deste modelo em relao responsabilidade civil somuito claras: alm de desonerar a vtima de uma prova (quase) im-possvel e, concomitantemente, de diminuir a margem de discriciona-riedade judicial, no sistema da culpa, a fim de elidir o pagamento de

    51Stefano Rodot, Il problema della responsabilit civile, cit., p. 21.52 Maria Celina Bodin de Moraes, Danos pessoa humana, cit., p. 29.

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    indenizaes, basta ao agente atingir o nvel de cuidado exigvel, isto ,ser diligente; j no sistema da responsabilidade objetiva, ao contrrio, osistema fora o agente a internalizar o custo de sua atividade. Indepen-dentemente de seu maior ou menor cuidado, ter que pagar por todo

    dano causado, portanto lhe convm, em seu prprio interesse, escolhero nvel de atividades que acarreta a maior diferena entre a utilidaderesultante da atividade e os danos por ela produzidos.53

    A partir da objetivao da responsabilidade civil do Estado e dosprestadores de servio pblico na Constituio de 1988 (art. 37, 6)e dos fornecedores de produtos e servios nas relaes de consumo(CDC, arts. 12 e 14), j se tornara difcil afirmar que no ordenamentobrasileiro a responsabilidade civil subjetiva permanecia sendo a regra eas hipteses de responsabilidade objetiva eram excees, uma vez que assegundas superavam as primeiras em volume de demandas. Contudo,o reconhecimento definitivo da existncia de um sistema dualista deresponsabilidade civil veio com o Cdigo Civil de 2002 que, ao ladode uma clusula geral de responsabilidade pela culpa, instituiu umaclusula geral de responsabilidade pelo risco. 54

    A adoo, no pargrafo nico do art. 927 do Cdigo Civil, da clu-

    sula geral de responsabilidade pelas atividades de risco, vem causandoextensa controvrsia na doutrina, que busca esclarecer o sentido e oalcance da expresso. Assim refere-se a risco-proveito, risco-criado, vio-lao de dever de segurana e habitualidade ou profissionalidade nainterpretao da expresso legal atividade normalmente desenvolvida.O estado atual do debate revela que, como o modelo anterior estavaainda fortemente radicado na noo de culpa, ser preciso aguardar o

    tempo necessrio gradual transio.Com o passar do tempo, porm, o dever de solidariedade social, ofundamento constitucional da responsabilidade objetiva, sobressair eaceitar-se- que seu alcance amplo o suficiente para abranger a repa-rao de todos os danos injustamente sofridos, em havendo nexo decausalidade com a atividade desenvolvida, seja ela perigosa ou no. No

    53Assim, Fernando Gmez Pomar, Carga de la prueba y responsabilidad objetiva, in In Dretn.1, 2001. Disponvel em http://www.indret.com, acesso em 20 jul. 2005.54Art. 927. Aquele que, por ato ilcito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigadoa repar-lo.Pargrafo nico. Haver obrigao de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casosespecificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do danoimplicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

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    se sustentar mais qualquer resqucio de culpa, de sano ou de des-cumprimento de deveres no fundamento da responsabilidade objetiva.Com efeito, todas so as atividades que geram risco para os direitos deoutrem, como prev o dispositivo legal.

    O fundamento tico-jurdico da responsabilidade objetiva deve serbuscado na concepo solidarista, fundada pela Constituio de 1988,de proteo dos direitos de qualquer pessoa injustamente lesada, fa-zendo-se incidir o seu custo na comunidade, isto , em quem quer quecom o ato danoso esteja vinculado. No modelo solidarista, invertem-seos termos do problema e a responsabilidade subjetiva nada mais doque uma outra hiptese de imputao de responsabilidade. 55

    Em decorrncia do princpio constitucional de solidariedade social,pois, distribuem-se as perdas e estende-se o mais amplamente possvel asgarantias integridade psicofsica e material de cada pessoa humana. Esta a razo justificativa, a um s tempo tica e jurdica, do deslocamentodos custos do dano da vtima para o responsvel pela atividade. 56

    5. ConclusesO atual modelo da responsabilidade civil assemelha-se a um terreno

    muito acidentado, ou a um canteiro de obras, conforme o pessimismo,ou otimismo, do observador. fato, porm, que seus alicerces no estobem assentados no que se refere a uma concepo sistemtica e globaldo instituto, seja com relao funo que deve desempenhar, seja noque tange aos critrios de imputao que deve adotar (culpa, risco, pe-rigo, atividade, propriedade, obrigao de custdia, parentesco etc.). 57

    A fragilidade dos conceitos, de um lado, e a fragmentao da disci-plina, de outro, tendo que fazer frente ainda, segundo o entendimentomajoritrio, a diversificadas funes, acarretam srias dificuldades tantopara os estudiosos do tema, que no possuem uma firme base conceitualna qual se apoiar, como para os magistrados que, em conseqncia, notm o conforto doutrinrio com o qual fundamentar adequadamente

    55Cesare Salvi, Responsabilit extracontrattuale, in Enciclopedia del diritto, vol. XXV, Milano:Giuffr, p. 1222: Il danno ingiusto trasferito a un terzo se la fattispecie concreta sussumibi-le in uno tra i differenti criteri previsti a tal fine dallordinamento; fra questi , qualitativamente

    non diversi dagli altri, la colpevolezza della condotta dannosa. No mesmo sentido, Stefano Ro-dot, Il problema della responsabilit civile, cit., passim. V. ainda, do autor, Modelli e funzionidella responsabilit civile, in Rivista critica di diritto privato, 1984, p. 599 e ss.56Para o desenvolvimento deste ponto, v. Maria Celina Bodin de Moraes, Problemas em tornoda clusula geral de responsabilidade objetiva, in Estudos em Homenagem ao Professor Celso

    Mello, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, no prelo.57V. Pietro Barcellona, Diritto privato e processo economico, Napoli: Jovene, 1977, p. 293.

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    suas decises e dot-las do grau necessrio de racionalidade, libertando-se do arbtrio.

    No obstante o Cdigo Civil seja novo e os dispositivos relativos responsabilidade civil tenham sido relativamente atualizados, sua disci-

    plina normativa , como se sabe, muito mais resultante de um conjuntode solues jurisprudenciais conjunturais do que fruto de um pensa-mento cientfico-doutrinrio estruturado, voltado para a elaborao deum modelo coerente e integrado.

    Neste aspecto, o Cdigo representou uma significativa perda deoportunidade no que se refere ocasio para a reflexo acerca do mo-delo da responsabilizao civil. Mas, para alm deste inconveniente,os prprios conceitos bsicos da disciplina encontram-se em discusso,havendo atualmente grande vacilao at mesmo no que se refere ssuas noes mais elementares: h controvrsias, como se viu, acercado conceito de dano ressarcvel mas h, tambm, acerca das noes deculpa, de risco, de nexo de causalidade etc.

    fragmentao e fragilidade presentes no direito da responsabi-lidade civil corresponde, todavia, o monumental crescimento de suaimportncia na sociedade contempornea. Com efeito, responsabili-

    dade civil deve ser reconhecido o papel de constituir-se como um dosfenmenos scio-jurdicos mais importantes da ps-modernidade.

    imperioso, portanto, proceder sua sistematizao, a qual so-mente poder ser realizada tendo-se em vista a adequada interpretaoconstitucional da normativa ordinria bem como a aplicao direta dosprincpios e valores constitucionais, como prev a metodologia civil-constitucional.

    As constituies, assim como os demais documentos legislativos,so sempre causa e conseqncia. So conseqncia de uma determi-nada idia de justia presente na sociedade quando de sua elaborao;so causa de interpretaes renovadas relativas a institutos antigos, cujaorigem se perdeu nas brumas do tempo.

    sob esta benigna influncia que se deve analisar o movimentode rotao completo da finalidade da responsabilidade civil que se ob-servou no ltimo quartel do sc. XX, conquistando o lugar central aidia de que a vtima no deve permanecer irressarcida e funcionando osistema da responsabilidade como um mecanismo de controle e distri-buio dos riscos da vida em sociedade.

    Com efeito, o objetivo do sistema reparatrio, perante um eventodanoso, ampliou-se a ponto de se abandonar, com cada vez maior freq-

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    ncia, o pressuposto da culpa, antes tido como um marco civilizatriona histria da humanidade. O paradigma da culpa, em vigor desde osc. III a.C, inserido que foi pela Lex Aquilia, perdeu consistncia quan-do as atenes comearam a se voltar para o objetivo da reparao, em

    detrimento do objetivo anterior de responsabilizao, radicando-se naconscincia coletiva a idia de justia diante da reparao de todos osdanos injustificados, independentemente de conduta ilcita. 58

    O modelo, dito solidarista, que veio se delineando no horizontebem antes da promulgao da Constituio, nela encontrou o seu re-ceptculo privilegiado. O modelo tornou-se ento constitucional e, as-sim hierarquizado, ganhou impulso para modificar mais incisivamentea normativa ordinria, passando a Constituio de conseqncia deuma idia de justia ento presente na sociedade causa da interpre-tao-aplicao do direito, de lege latae lege ferenda.

    Mas, h sempre um porm. Se antes se temia o ocaso do institutopor conta do desenvolvimento de sistemas assecuratrios, que, previa-se, iam se tornar mecanismos monopolizadores do enfrentamento dosriscos pelos acidentes, o que, de fato, no ocorreu, hoje a preocupao oposta: teme-se o alargamento excessivo do direito da responsabilidade

    civil, advertindo-se para a crise de superabundncia, o excesso deinputs 59e colapso do sistema. 60

    Diante do seu vigor, pareceria contraditrio falar-se em crise. 61Mascrise h e o que se discute, no momento atual, o prprio papel que aresponsabilidade civil deve desempenhar no ordenamento jurdico. Se-gundo alguns, a responsabilidade civil estaria sendo desfigurada porquedirecionada para exercer funes incompatveis com a sua natureza. 62

    58Alberto Trabucchi, Istituzioni di diritto civile, 27. ed., Padova: Cedam, 1985, p. 202, apropsito, assim se manifestou: Possiamo dire che la tendenza a generalizzare la nozione di re-sponsabilit constituisce un rilevante fenomeno sociale degli anni a noi vicini. Di fronte ad unevento che reca danni tutti gli sforzi si dirigono alla ricerca di una responsabilit. Nella coscien-za del pubblico prende radice lidea che ogni danneggiato deve poter reclamare una riparazionedallautore del fatto dannoso; e il fenomeno cos si allarga nellaspetto della tendenza a unaseparazione tra i normali pressuposti soggettivi di imputabilit e la riparazione dei danni.59Stefano Rodot, Modelli e funzioni, cit., p. 59660Gustavo Tepedino, O futuro da responsabilidade civil, Editorial, in Revista Trimestral deDireito Civil, n. 24, out.-dez. 2005, p. v.61Assim, Stefano Rodot, Modelli e funzioni, cit., p. 596.62V., entre ns, Gustavo Tepedino, O futuro da responsabilidade civil, cit., p. iv, segundo oqual (...) por mais louvvel que seja a ampliao do dever de reparar, protegendo-se as vtimasde uma sociedade cada vez mais sujeita a riscos, no se pode desnaturar a finalidade e os ele-mentos da responsabilidade civil.

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    Assim, alm de sua funo estrutural, a reparao do dano, a chamadafuno compensatria, estaria ela sendo distorcida para cumprir tantasoutras funes, de carter variado: funo punitiva, pedaggica, exem-plar, de consolo, de desestmulo, de instrumento de justia social, de

    distribuio de renda, de substituio dos deveres do Estado etc.Uma interessante parbola foi criada para narrar a histria recentedo direito da responsabilidade civil: um curso de gua, alimentado poruma antiga fonte, atravessa um territrio e condiciona sua exploraoeconmica que, na origem, era fundamentalmente agrria. Quando sedeu a passagem da economia agrcola de subsistncia para um desen-volvimento industrial cada vez mais amplo, o fluxo dgua revelou-seinsuficiente e os engenheiros tiveram que trabalhar, construindo diquese realizando todos os tipos de obras, para utilizar melhor e distribuira escassa gua disponvel. De repente, o curso dgua aumenta de vo-lume, com a confluncia de pequenos riachos e a descoberta de novasfontes e, ento, preciso chamar de volta os engenheiros, agora, porm,para fazer as obras de conteno que permitam evitar perigosas inun-daes. 63

    As inundaes de fato esto ocorrendo como resultado do encontro

    entre um instrumento ainda no consolidado e demandas sociais porlongo tempo reprimidas. Cabe agora, respeitado o modelo solidaristaimposto pela Constituio, reelaborar os conceitos, delimitar as fun-es, racionalizar os critrios de imputao, em suma, proceder re-construo racional do sistema da responsabilidade civil no mbito doordenamento jurdico nacional. Este o trabalho da doutrina e precisaser realizado.

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    63Francesco Donato Busnelli, La parabola della responsabilit civile, in Rivista critica di dirittoprivato, 1988, VI-4, p. 643 e ss.

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