15 - herculano pires - o espírito e o tempo (1)

Upload: maria-cristina-fioratti-florez

Post on 08-Apr-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    1/254

    www.autoresespiritasclassicos.com

    J. Herculano Pires

    O Esprito e o Tempo

    Introduo antropolgica ao Espiritismo

    Caspar David FriedrichNascer da lua sobre o mar

    http://opt/scribd/conversion/tmp/scratch13394/www.autoresespiritasclassicos.comhttp://opt/scribd/conversion/tmp/scratch13394/www.autoresespiritasclassicos.com
  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    2/254

    Contedo resumido

    Este livro o produto de um Curso de IntroduoAntropolgica ao Espiritismo, ministrado por J.Herculano Pires na Unio das Mocidades Espritas doEstado de So Paulo, nos anos 60.

    Analisa a fase pr-histrica e histrica da criao,aborda o trplice aspecto da Doutrina Esprita e a prticamedinica.

    Eleito o 7 melhor livro esprita do Sculo XX. uma obra-prima, destinada principalmente queles quedesejam se aprofundar no estudo da filosofia esprita.

    A Histria, que essencialmente Histria do Esprito, transcorre no tempo. Assim, pois, odesenvolvimento do Esprito cai no tempo. Hegel, porm, no se contenta em afirmar aintratemporacialidade do esprito como um factum,mas trata de compreender a possibilidade de que oEsprito caia no tempo, que o sensvel no-sensvel.O tempo h de poder acolher o esprito, por assim

    dizer. E o esprito h de ser, por sua vez, afim com otempo e com a sua essncia.

    HEIDEGGER, crtica de Hegel, em O Ser e o Tempo.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    3/254

    O ESPRITOEO TEMPO

    Introduo Antropolgica ao Espiritismo

    O homem, as geraes humanas, morrem no tempo,mas o esprito no. O tempo o campo de batalha emque os vencidos tombam para ressuscitar. Quem

    poderia deter a evoluo do esprito no tempo? Aconscincia humana amadurece na temporalidade. Aesperana esprita no repousa na fragilidadehumana, mas nas potencialidades do esprito, que seatualizam no fogo das experincias existenciais. Curta a vida, longo o tempo, e a Verdade intemporalaguarda a todos no impassvel Limiar do Eterno.

    Todas as Civilizaes da Terra se desenvolveram,

    numa assombrosa sucesso de sombra e luz, para queum dia - o Dia do Senhor, de que falavam os antigoshebreus - a Civilizao do Esprito se instale no Planeta martirizado pelas tropelias da insensatezhumana. Ento teremos o Novo Cu e a Nova Terra daprofecia milenar. Os que no se tornarem dignos dapromessa continuaro a esperar e a amadurecer nasestufas dos mundos inferiores, purgando os resduos

    da animalidade. Essa a lei inviolvel daAntropologia Esprita.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    4/254

    Sumrio

    Preliminares............................................................................8

    Primeira Parte:

    Fase Pr-histrica.................................................................12

    IHorizonte Tribal e Mediunismo Primitivo..............12

    1 - Mediunismo e Espiritismo.........................................122 - Origem Sensria da Crena na Sobrevivncia...........153 - Da Litolatria ao Politesmo Mitolgico......................18

    4 - Ampliao da Teoria de Spencer...............................21II

    Horizonte Agrcola:Animismo e Culto dos Ancestrais...........................26

    1 - Racionalizao Anmica.............................................262 - O Exemplo Egpcio....................................................293 - Os Mitos Agrrios......................................................324 - Jeov, Deus Agrrio...................................................35

    IIIHorizonte Civilizado:Mediunismo Oracular..............................................39

    1 - Os Estados Teolgicos...............................................392 - O Esprito de Civilizao...........................................423 - Mediunismo Oracular................................................464 - Os Arqutipos Coletivos............................................48

    IV Horizonte Proftico:Mediunismo Bblico................................................51

    1 - Superao do Gregarismo..........................................512 - As Dimenses do Profeta...........................................533 - Individualizao Medinica.......................................564 - Individualizao Espiritual.........................................58

    V

    Horizonte Espiritual:Mediunidade Positiva..............................................621 T d i H 62

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    5/254

    2 - Inteligncia Suprema..................................................643 - Inteligncia Finita......................................................674 - Mediunidade Positiva.................................................70

    Segunda Parte:

    Fase Histrica........................................................................74

    IEmancipao Espiritual do Homem........................74

    1 - Imanncia e Transcendncia......................................742 - Desenvolvimento da Razo........................................773 - O Drama Medieval.....................................................79

    4 - A Maturidade Espiritual.............................................83IIRuptura dos Arcabouos Religiosos........................87

    1 - Rumo Religio.........................................................872 - A Luta Contra os Smbolos........................................903 - Fragmentao da Igreja..............................................934 - Ruptura do Arcabouo Literal....................................96

    III

    A Invaso Espiritual Organizada...........................1001 - O Ciclo do Formalismo............................................1002 - Libertao das Foras Vitais....................................1023 - A Volta ao Natural...................................................1054 - Uma Invaso Organizada.........................................108

    IVAntecipaes Doutrinrias.....................................111

    1 - A Nebulosa de Swedenborg.....................................111

    2 - Restos de Nebulosa..................................................1143 - O Precursor Americano............................................1174 - Das Antecipaes s Correlaes.............................120

    VA Falange do Consolador......................................124

    1 - As Mesas Girantes...................................................1242 - A Mensagem da Cesta..............................................1273 - O Esprito Verdade...................................................1314 - A Falange do Consolador.........................................134

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    6/254

    Terceira Parte:

    Doutrina Esprita................................................................138

    IO Tringulo de Emmanuel.....................................138

    1 - Doutrina Trplice......................................................1382 - O Homem Trino.......................................................1413 - Pluralismo e Monismo.............................................1444 - Tringulo de Foras.................................................147

    IIA Cincia Admirvel.............................................150

    1 - Os Caminhos da Cincia..........................................1502 - Dualidade na Unidade..............................................1533 - Esprito e Matria.....................................................1564 - Sementes de Fogo....................................................159

    IIIA Filosofia do Esprito...........................................162

    1 - O Espiritismo e a Tradio Filosfica......................1622 - O Problema do Conhecimento.................................164

    3 - Determinismo e Livre-arbtrio.................................1684 - O Homem no Mundo...............................................172IV

    Religio em Esprito e Verdade.............................1761 - O Espiritismo e as Religies....................................1762 - Pantesmo Esprita....................................................1793 - Teologia Esprita......................................................1824 - Cristianismo e Espiritismo.......................................185

    V Mundo de Regenerao.........................................1901 - Humanidade Csmica..............................................1902 - Destinao da Terra..................................................1933 - Ordem Moral............................................................1964 - Imprio da Justia....................................................200

    Quarta Parte:

    A Prtica Medinica...........................................................204

    IPesquisa Cientfica da Mediunidade 204

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    7/254

    1 - Sesses Experimentais.............................................2042 - Sesses Doutrinrias................................................2083 - Sesses Medinicas..................................................211

    IIAs Leis da Mediunidade........................................226

    1 - As Condies da Cincia.........................................2262 - As Leis dos Fenmenos...........................................228

    IIIAntropologia Esprita.............................................235

    1 - A Condio Humana................................................2352 - O Homem Natural....................................................2393 - A Volta ao Humano.................................................2414 - O Problema da Educao.........................................2445 - Cultura Esprita........................................................247

    Bibliografia..........................................................................252

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    8/254

    Preliminares

    Um sculo aps a codificao do Espiritismo por AllanKardec, reina ainda grande incompreenso a respeito dadoutrina, de sua prpria natureza e de sua finalidade. Acodificao, entretanto, foi elaborada em linguagem clara,precisa, sensvel a todos. lucidez natural do esprito francs,Kardec juntava a sua vocao e a sua experincia pedaggicas,alm da compreenso de tratar com matria sumamente

    complexa. Vemo-lo afirmar, a cada passo, que desejava escreverde maneira a no deixar margem para interpretaes, ou seja,para divergncias interpretativas.

    Qual o motivo, ento, por que os prprios adeptos doEspiritismo, ainda hoje, divergem, no tocante a questesdoutrinrias de importncia? E qual o motivo por que os no-espritas continuam a tratar o Espiritismo com a maiorincompreenso? Note-se que no nos referimos a adversrios,

    pois estes tm a sua razo, mas aos no-espritas. Parece-nosque a explicao, para os dois casos, a mesma. O Espiritismo uma doutrina do futuro. maneira do Cristianismo, abrecaminho no mundo, enfrentando a incompreenso de adeptos eno-adeptos.

    Em primeiro lugar, h o problema da posio da doutrina.Uns a encaram como sistematizao de velhas supersties;outros, como tentativa frustrada de elaborao cientfica; outros,como cincia infusa, no organizada; outros ainda, como esbooimpreciso de filosofia religiosa; outros, como mais uma seita,entre as muitas seitas religiosas do mundo. Para a maioria deadeptos e no-adeptos, o Espiritismo se apresenta como simplescrena, espcie de religio e superstio, ao mesmo tempo,eivada de resduos mgicos.

    Ao contrrio de tudo isso, porm, o Espiritismo, segundo adefinio de Kardec e dos seus principais continuadores,constitui a ltima fase do processo do conhecimento. ltima, nono sentido de fase final mas da que o homem pde atingir at

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    9/254

    agora, na sua lenta evoluo atravs do tempo. evidente que setrata do conhecimento em sentido geral, no limitado a umdeterminado aspecto, no especializado. Nesse sentido geral, o

    Espiritismo aparece como uma sntese dos esforos humanospara compreenso do mundo e da vida. Justifica-se, assim, quehaja dificuldade para a sua compreenso, apesar da clareza daestrutura doutrinria da codificao. De um lado, o povo no pode abarc-lo na sua totalidade, contentando-se com o seuaspecto religioso; de outro, os especialistas no admitem a suanatureza sinttica; e de outro, ainda, os preconceitos culturaislevantam numerosas objees aos seus princpios.

    No captulo primeiro de A Gnese, nmero 18, Kardecexplica que o Espiritismo, do ponto de vista cientfico, tem porobjeto um dos dois elementos constitutivos do universo, que oesprito. O outro elemento a matria. Como ambos seentrelaam, para a constituio do todo universal, o Espiritismotoca forosamente na maioria das cincias, ou seja, estnecessariamente ligado ao desenvolvimento das cincias. Assimsendo, esclarece o codificador: Ele no poderia aparecer seno

    depois da elaborao delas, e surgiu por fora das coisas, daimpossibilidade de tudo explicar-se somente com a ajuda das leisda matria.

    Lon Denis, sucessor e continuador de Kardec, observa emseu livro O Gnio Cltico e o Mundo Invisvel, o seguinte: Podedizer-se que a obra do Espiritismo dupla: no plano terreno, elatende a reunir e a fundir, numa sntese grandiosa, todas asformas, at aqui dispersas e muitas vezes contraditrias, dopensamento e da cincia. Num plano mais amplo, une o visvel eo invisvel, essas duas formas da vida, que, na realidade, seinterpenetram e se completam, desde o princpio das coisas.Logo a seguir, como prevenindo a objeo de dualismo que se poderia fazer, Denis acentua: No seu desenvolvimento, eledemonstra que o nosso mundo e o Lado-de-L no estoseparados, mas entrosados um no outro, constituindo assim umtodo harmnico.

    Os estudantes de Espiritismo sabem que muitos outrostrechos tanto de Kardec quanto dos seus seguidores podem ser

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    10/254

    citados, para se afirmar a tese da natureza sinttica da doutrina, bem como a sua posio, de ltima fase do processo doconhecimento. Lembramos particularmente a definio da

    doutrina em O que o Espiritismo, de Kardec, sobre a qualvoltaremos mais tarde. Basta-nos, no momento, esta colocaodo problema, para justificar a nossa tentativa de oferecer umaviso histrica do desenvolvimento espiritual do homem, como aforma mais apropriada de introduo ao estudo da doutrina.

    Foi o prprio Kardec quem criou a disciplina que procuramosdesenvolver neste curso, tanto com a Introduo ao estudo dadoutrina esprita, que abre O Livro dos Espritos, quanto com a

    obra O Principiante Esprita. O nosso curso no dispensa, antesrequer o estudo desses trabalhos do codificador. Mas evidenteque a introduo a qualquer ramo do conhecimento, comoexplica o filsofo Julin Marias, no caso particular da Introduo Filosofia, exige sempre novas perspectivas, de acordo com ofluir do tempo. A introduo, diz Marias, o agora, ocircunstancial, o ato de introduzir algum em alguma coisa. Essaalguma coisa, seja a Filosofia ou seja o Espiritismo, uma

    realidade histrica, uma coisa que existe de maneira concreta.Sendo o Espiritismo uma realidade histrica, afirmada pelo

    codificador e seus sucessores, tem ele o seu passado e o seupresente, como ter o seu futuro. No tempo de Kardec, introduziralgum no estudo do Espiritismo era introduzi-lo numa realidadenascente, numa verdadeira problemtica em ebulio, numprocesso histrico em princpio de definio, e principalmentenuma nova ordem de idias. Hoje, introduzir esse algumnum processo j definido, e no apenas numa ordem de idias,mas tambm no quadro histrico em que essa ordem surgiu.Dessa maneira, introduzi-lo tambm na prpria introduo deKardec. Esse o motivo por que escrevemos, para a nossatraduo de O Livro dos Espritos, editado pela Editora Lake,uma introduo obra.

    Sem o exame histrico do problema medinico, por exemplo,os estudantes de hoje estaro ameaados de flutuar no abstrato.Introduzindo-se numa ordem de idias, sem o conhecimento desuas razes histricas arriscam se a confundir como fazem os

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    11/254

    leigos, mediunismo e Espiritismo, ou seja, o processo medinicode desenvolvimento espiritual do homem, com o Espiritismo.Arriscam-se, ainda mais, a aturdir-se com fatos medinicos

    rudimentares, considerando-os, por sua aparncia extravagante,como novidade. Por outro lado, dificilmente compreendero aaparente contradio existente no fato de ser o Espiritismo, aomesmo tempo, uma doutrina moderna e um processo histricoprovindo das eras mais remotas da humanidade. Existe ainda o problema religioso e, particularmente, o das ligaes doEspiritismo com o Cristianismo, que somente uma introduohistrica pode esclarecer.

    Por tudo isso foi que nos propusemos a dar este curso, aconvite da Unio da Mocidade Esprita de S. Paulo a partir dohorizonte primitivo, ou seja, das manifestaes medinicasentre os homens primitivos, examinando as fases histricas quenos conduziram at ao momento presente. Para isso, servimo-nosda bibliografia doutrinria, como fundamental, e de outros livros,de reconhecido valor cultural, como subsidirios. Daremos aindicao bibliogrfica, para facilitar aos interessados maior

    aprofundamento do assunto.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    12/254

    Primeira Parte:

    Fase Pr-histrica

    I

    Horizonte Tribal e Mediunismo Primitivo

    1 - Mediunismo e Espiritismo

    As cincias sociais tm uma grande contribuio a dar aoestudo do Espiritismo. Quem viu isso com mais clareza, segundonos parece, foi Ernesto Bozzano. O grande discpulo italiano deHerbert Spencer, profundamente ligado ao desenvolvimento dosestudos sociolgicos, uma vez atrado para o campo dos estudosespritas, soube aplicar a este o conhecimento adquirido emoutros campos. Seus trabalhos sobre as manifestaessupranormais entre os povos selvagens, publicados na revista

    milanesa Luce e Ombra, em 1926, posteriormente reunidos nolivro Popoli Primitivi e Manifestazioni Supernormali,representam uma das mais poderosas contribuies para oesclarecimento histrico do problema esprita.

    Kardec j havia esclarecido que os fatos espritas so de todosos tempos, uma vez que a mediunidade uma condio naturalda espcie humana. Mas com Bozzano que temos a primeira penetrao esprita no exame antropolgico e sociolgico do

    homem primitivo, revelando-nos, com base em investigaescientficas, as formas pr-histricas do fenmeno medinico.Alis, os estudos de Bozzano levam-nos mais longe, poisrevelam tambm as origens medinicas da religio. Temos assimuma teoria esprita da gnese da crena na sobrevivncia, que seapresenta como uma sntese das teorias opostas da teologia e dasociologia.

    Para maior clareza do nosso estudo, servimo-nos do esquemaque nos fornece o chamado mtodo cultural, dos antroplogosingleses aplicado por John Murphy com pleno xito em seus

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    13/254

    estudos sobre as origens e a histria das religies. Mtodo usadona antropologia cultural e no estudo das religies comparadas,aplica-se perfeitamente s necessidades de clareza do nosso

    estudo. Seu esquema constitudo pelos horizontes culturais,dentro dos quais o desenvolvimento humano pode ser analisadona amplitude de cada uma das suas fases. evidente que novamos muito alm do esquema. Nosso intuito no o estudoantropolgico, nem o das religies comparadas, mas apenas oesclarecimento do problema esprita.

    Os horizontes culturais so os meios em que sedesenvolveram as diferentes fases da evoluo humana. A

    expresso metafrica. Chama-se, por exemplo, horizonteprimitivo, o mundo do homem primitivo. A palavra horizontemostra que devemos encarar esse homem dentro dos limites danossa viso, de todas as condies do meio fsico e social em queele vivia, na paisagem cultural fechada pelos horizontes domundo primitivo. Podemos assim examinar cada fase em seumeio, cada homem em seu mundo, compreendendo-os melhor. Oestudo de Bozzano, embora anterior a esse mtodo, integra-se

    nele.O horizonte primitivo geralmente dividido em trs

    formas: o primitivo propriamente dito, o anmico e o agrcola.Em nosso esquema, reduzimos as duas primeiras formas a umanica: o horizonte tribal, que nos permite abranger numa visogeral o problema medinico do homem primitivo, e destacamosa terceira forma, dando-lhe autonomia. Isso porque o horizonteagrcola tem interesse especial no tocante mediunidade.Assim, nosso esquema da fase pr-histrica do Espiritismo oseguinte: horizonte tribal, agrcola, civilizado, proftico eespiritual. At o horizonte proftico, segundo Murphy. Ohorizonte espiritual uma formulao nova, exigida peloEspiritismo.

    O horizonte tribal caracteriza-se pelo mediunismo primitivo.Adotamos a palavra mediunismo, criada por Emmanuel paradesignar a mediunidade em sua expresso natural, pois evidente que ela corresponde com preciso ao nosso objetivo.Mediunismo so as prticas empricas da mediunidade Dessa

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    14/254

    maneira, temos as formas sucessivas do mediunismo primitivo,do mediunismo oracular e do mediunismo bblico, s atingindo amediunidade positiva no horizonte espiritual, que surge com o

    Espiritismo. Somente com o Espiritismo a mediunidade se definecomo uma condio natural da espcie humana, recebe adesignao precisa de mediunidade e passa a ser tratada demaneira racional e cientfica.

    Convm deixar bem clara a distino entre fatos espritas edoutrina esprita, para compreendermos o que Kardec dizia, aoafirmar que o Espiritismo est presente em todas as fases dahistria humana. Os fatos espritas assim chamados os

    fenmenos ou as manifestaes medinicas so de todos ostempos. As prticas mgicas ou religiosas, baseadas nessasmanifestaes, constituem o Mediunismo, pois so prticasmedinicas. A doutrina esprita uma interpretao racional dasmanifestaes medinicas. Doutrina ao mesmo tempo cientfica,filosfica e religiosa, pois nenhum desses aspectos pode seresquecido, quando tratamos de fenmenos que se relacionamcom a vida do homem na terra e sua sobrevivncia aps a morte,

    sua vida e seu destino espiritual. enorme a confuso feita pelos socilogos neste assunto,

    seguindo de maneira desprevenida a confuso proposital feita pelos adversrios do Espiritismo. Os estudos sociolgicos domediunismo referem-se sempre ao Espiritismo. Entretanto, apalavra Espiritismo, criada por Allan Kardec, em 1857, e porele bem explicada na introduo de O Livro dos Espritos,designa uma doutrina por ele elaborada, com base na anlise dosfenmenos medinicos e graas aos esclarecimentos que osEspritos lhe forneceram, a respeito dos problemas da vida e damorte. As prticas do chamado sincretismo religioso afro- brasileiro, por exemplo, no so espritas. O sincretismoreligioso um fenmeno sociolgico natural. O Espiritismo uma doutrina.

    Defrontamo-nos, neste ponto, com uma complexidade quetambm tem dado margem a confuses. Os fatos medinicos sofatos espritas, assim chamados pelo prprio Kardec, mas noso Espiritismo Porque o Espiritismo se serve dos fatos

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    15/254

    medinicos como de uma matria-prima, para a elaborao deseus princpios, ou como de uma fora natural, que aproveita demaneira racional. Exatamente como a hidrulica se serve das

    quedas dgua ou do curso dos rios para a produo de energia.Esclarecidos estes pontos, podemos passar anlise dosfenmenos medinicos no horizonte tribal.

    2 - Origem Sensria da Crena na Sobrevivncia

    Bozzano apia-se especialmente nas pesquisas doantroplogo Andrew Lang e do etnlogo Max Freedom Long,realizadas entre as tribos da Polinsia, para mostrar a existnciados fenmenos espritas no horizonte tribal. Serve-se tambm deoutras fontes, no esquecendo os estudos de seu mestre HerbertSpencer. Andrew Lang o autor da tese esprita da origemmedinica da religio, tese que lanou em seu livro The Makingof Religion. Bozzano esposa essa tese e procura esclarec-la,confrontando-a com a tese spenceriana, na qual encontra, alis,os germes da explicao esprita do problema.

    A primeira afirmao de Bozzano a da universalidade dacrena na sobrevivncia. Vejamos como ele inicia o seu estudo:Se consultamos as obras dos mais eminentes antroplogos esocilogos, notamos que todos concordam em reconhecer que acrena na sobrevivncia do esprito humano se mostrauniversal. Esse fato confirmado por vrias citaes textuais. Aseguir, Bozzano analisa as explicaes que lhe do os socilogose antroplogos, para concluir pela inoperncia das mesmas.

    Somente Spencer encontra intuies seguras, que so mais tardedesenvolvidas por Lang. Este realizou um trabalho de anlisecomparada dos fenmenos do mediunismo primitivo com asexperincias metapsquicas, concluindo pela realidade daquelesfenmenos, que constituem a base concreta da crena nasobrevivncia.

    O primeiro fato concreto a surgir no horizonte primitivo, notocante a esse problema, o da existncia de uma fora

    misteriosa que impregna ou imanta objetos e coisas, podendoatuar sobre criaturas humanas. a fora conhecida pelos nomesli i d d C id d l

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    16/254

    imaginria, essa fora produz os mais estranhos fenmenos.Bozzano lembra a resposta de Marcel Habert a GobletDAlviella, sobre a natureza imaginria dessa fora. Dizia

    Habert: Passa-me pela mente uma nuvem de dvida. Mana eOrenda no seriam talvez concepes demasiado abstratas, parapodermos consider-las o princpio de que partiram os selvagens,para chegar aos espritos?

    A dvida de Habert considerada por Bozzano fundamentale psicologicamente justa, uma vez que conhecemos a naturezaconcreta do pensamento primitivo, incapaz dos processos deabstrao mental que caracterizam o homem civilizado. Mana ou

    Orenda no uma fora imaginria, mas uma fora real,concreta, positiva, que se afirma atravs de amplafenomenologia, verificada entre as tribos primitivas, nas maisdiversas regies do mundo. Essa fora primitiva corresponde aoectoplasma de Richet, a fora ou substncia medinica dasexperincias metapsquicas, cuja ao foi estudadacientificamente por Crawford, professor de mecnica daUniversidade Real de Belfast, na Irlanda. O mtodo comparativo,

    seguido por Lang, oferece-nos a o seu primeiro resultado. Aimaginria fora dos selvagens encontra similar nas pesquisasdos sbios europeus e americanos, empenhados nos estudosespritas e metapsquicos.

    O etnlogo Max Freedom Long, que era tambm mitlogo,realizou demoradas pesquisas entre as tribos da Polinsia, eparticularmente das ilhas do Hava, convivendo durante anoscom os selvagens, para verificar a realidade e a natureza dessafora primitiva. Conclui que os kahunas, curandeiros polinsios,consideravam a existncia de trs formas de Mana, ou trsfreqncias, trs voltagens dessa fora, semelhana da correnteeltrica. A mais baixa voltagem correspondia fora emitida pelos corpos materiais do cristal ao organismo humano; avoltagem mdia, proveniente da mente humana; e a voltagemsuperior, proveniente de uma espcie de centro espiritual damente humana, permitindo ao homem prever o futuro e realizar

    fenmenos fsicos a distncia, bem como materializao edesmaterializao de objetos.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    17/254

    Outra curiosa concluso de Freedom Long a de que oskahunas consideravam essa fora como susceptvel deacumulao. Os curandeiros, que usavam de feitiaria, podiam

    prender espritos inferiores que, a seu mando, faziam provisesde Mana para atuar em ocasies oportunas. Bozzano mostra queas concluses do etnlogo correspondem s de Andrew Lang eaos relatos e observaes de numerosos outros estudiosos doassunto, bem como de viajantes e missionrios que conviveramcom tribos diversas, em diferentes pocas e vrias regies doglobo. Por outro lado, estabelece as relaes entre essa fora e oectoplasma, o que tambm fizera Freedom Long.

    O segundo fato concreto, de ordem esprita, do horizontetribal, o da existncia dos prprios espritos, tambmuniversalmente afirmada. Antroplogos e etnlogos costumamestabelecer arbitrariamente certa distncia de tempo entre oaparecimento de um e outro fato. Bozzano, entretanto, rejeitaessa tese, para sustentar a simultaneidade de ambos. Lembra quenenhuma pesquisa ou observao revelaram essa pretensasucesso dos fatos, e assevera: A verdade, pelo contrrio, que

    essas duas concepes aparecem sempre associadas. Uma das provas est nas prprias concluses de Freedom Long, ondevemos os espritos operarem atravs de mana, ou seja, servindo-se dessa fora. A coexistncia das duas concepes, a da foramisteriosa e a dos espritos, impe-se tambm diante damultiplicidade dos fenmenos medinicos no meio primitivo,onde, como acentua Bozzano, a presena de agentes espirituaisse impunha, de maneira positiva.

    Vemos, assim, que as supersties dos selvagens, as suasprticas mgicas, no eram nem podiam ser de natureza abstrata,imaginria. Decorriam, como tudo na vida primitiva, derealidades positivas e de fatos concretos, conhecidosnaturalmente dos selvagens, como sempre foram e soconhecidos dos homens civilizados, em todas as pocas e emtodas as latitudes da terra. Somente nos momentos de granderefinamento intelectual, quando os homens constroem o seu

    mundo prprio, de abstraes mentais, e se encastelam nas suastentativas de explicao racional das coisas, que essas

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    18/254

    realidades passam a ser negadas, por uma reduzida elite. Omaterialismo , portanto, uma espcie de flor de estufa, artificial,cultivada em compartimentos de vidro, que isolam a mente da

    realidade complexa da natureza.O aparecimento desses dois fatos espirituais no horizonte

    primitivo a ao de uma fora misteriosa e a ao de entidadesespirituais deve ser considerado, entretanto, juntamente com o problema do antropomorfismo. De uma posio positivista,como a que Bozzano assumia, antes de se tornar esprita, essesdois fatos se explicariam pelo prprio antropomorfismo. De umaposio esprita, entretanto, tal explicao se torna insuficiente.

    Porque o antropomorfismo a caracterstica psquica do mundoprimitivo, a maneira rudimentar de interpretao da naturezapelo homem. Reduzir todo o processo da vida primitiva a essepsiquismo nascente, limit-lo apenas mente embrionria decriaturas semi-animais, um simplismo que o Espiritismorejeita.

    3 - Da Litolatria ao Politesmo Mitolgico

    O antropomorfismo uma espcie de fase preparatria doanimismo. A fase em que o homem primitivo ainda nodesenvolveu suficientemente o seu psiquismo, e em queinterpreta todas as coisas em termos exclusivamente humanos.Quer dizer, aplica ao exterior as noes rudimentares que possuida natureza humana, dando forma humana aos elementosnaturais. Podamos aplicar-lhe o princpio de Pitgoras, o sofista:

    O homem a medida de todas as coisas. Mas uma medida porassim dizer afetiva, sem o controle da razo. pelo sentimento, eno pelo raciocnio, que o homem primitivo humaniza o mundo.

    Estamos certamente no alvorecer da razo, e mais do queisso, no subsolo do processo do conhecimento. As teoriasmaterialistas no enxergam nada mais do que a luta dessa razonascente com o mundo exterior. Para elas, as manifestaessupranormais no so outra coisa alm de projees desse poder

    psquico, vises alucinatrias da mente primitiva. Murphy,citando Rodolf e Otto, lembra que estamos diante de umd d di t h

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    19/254

    adorar-se a si mesmo nas coisas exteriores. Veremos como oantropomorfismo, por este aspecto, se enquadra na lei deadorao, que Kardec estuda em O Livro dos Espritos.

    O antropomorfismo se revela por duas formas, que tantopodem ser sucessivas como simultneas, o que difcil precisar.Admitindo que sejam sucessivas, podemos citar como primeiraforma a vital, ou seja, aquela em que o homem primitivo projetanas coisas o seu sentimento vital, dando vidas s coisasinanimadas. A segunda forma a volitiva, esse segundo grau doantropomorfismo, de acordo com Murphy, em que o homemprojeta tambm a sua vontade, e por isso mesmo personaliza as

    coisas. Neste grau j nos defrontamos com o desenvolvimento doanimismo, a fase em que o homem vai dar no apenas vida evontade aos objetos e coisas, mas a sua prpria alma.

    Bozzano j nos mostrou o absurdo de admitir-se um processoto complexo de abstrao mental em homens primitivos.Somente a tese esprita pode, portanto, socorrer as teoriasmaterialistas, que tateiam no caminho certo, mas no conseguemfirmar-se nele. A tese esprita nos mostra que o processo doantropomorfismo auxiliado pelos fenmenos medinicos. Osimplismo da projeo anmica nas coisas exteriores complica-se, com a resposta dessas coisas ao homem, atravs da aonatural dos espritos. evidente que o homem primitivo tem deinterpretar as coisas de acordo com as suas experincias vitais. Arazo se forma na experincia. O homem enquadra o mundo nascategorias nascentes da razo, enche essas categorias, comoqueria Kant, com o contedo das sensaes. Mas as categorias,como explica hoje o Relativismo Crtico, e particularmente RenHubert, no so fixas ou estticas, mas dinmicas. So a prpriaexperincia em movimento, e no um resultado da experincia. Eessa experincia implica os fatos supranormais, o contato dohomem primitivo com foras estranhas, como no caso de manaou orenda, e com os agentes espirituais de que fala Bozzano.

    Podemos formular uma verdadeira escala da adorao nomundo primitivo. Embora seus graus possam ser simultneos eno sucessivos, o simples fato de existirem esses graus, mostraque a adorao resultando de um sentimento inato no homem

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    20/254

    desenvolve-se num verdadeiro processo. No grau mais baixo,temos a litolatria ou adorao de pedras, rochas e relevos dosolo; no grau seguinte, a fitolatria ou adorao vegetal, de

    plantas, flores, rvores e bosques; logo acima, a zoolatria ouadorao de animais; e somente num grau mais elevado, amitologia propriamente dita, com a sua forma clssica de politesmo. O processo da adorao se desenvolve, assim, a partir do reino mineral at o humano ou hominal. Cada umadessas fases ligada outra por uma interfase, em que oselementos de adorao se misturam. E os resduos das vriasfases, desde a litoltrica, permanecem ainda nos sistemas

    religiosos da atualidade. O homem carrega consigo as suasheranas, atravs do tempo.

    Se encararmos todo esse processo dentro apenas da teoria doantropomorfismo, ou mesmo do animismo, ser difcil ouimpossvel explicar a sua persistncia nas fases superiores dodesenvolvimento humano. Porque o natural, e at mesmo odialtico, no desenvolvimento, o homem libertar-seprogressivamente daquilo que o ajudou numa fase e o atrapalha

    em outra. A persistncia do antropomorfismo e do animismo, nasprprias elites culturais da atualidade, demonstra que neles haviaalguma coisa alm da simples projeo do homem nas coisas.Essa alguma coisa, como j vimos, a presena dos agentesespirituais, atuando incessantemente sobre o homem e ascomunidades humanas, em todas as fases da pr-histria e dahistria.

    Kardec dedicou o segundo captulo da terceira parte de OLivro dos Espritos Lei da Adorao. Os Espritos Superiores,que o ajudaram mediunicamente na elaborao do livro,ensinaram-lhe que a adorao o resultado de um sentimentoinato no homem, como o sentimento da existncia da divindade.Acrescentaram que ela faz parte da lei natural, ou seja, doconjunto de foras naturais que constituem o mundo, ao qual ohomem naturalmente pertence. A seguir, mostraram como a leide adorao se desenvolve nas sociedades humanas, a partir da

    adorao exterior de objetos materiais, at atingir aquela fasesuperior que definiram com estas palavras: A verdadeira

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    21/254

    adorao a do corao. J vimos, anteriormente, que essesensinamentos espirituais concordam com a interpretaoantropolgica de Murphy e Rodolfe Otto, de que o

    antropomorfismo uma forma de adorao rudimentar.Lembremos ainda, para evitar confuses, que os Espritos no

    falavam a Kardec por meio de vises ou de outras formasmsticas de revelao. Quando dizemos que os EspritosSuperiores ajudaram Kardec a elaborarO Livro dos Espritos, oschamados homens cultos costumam torcer o nariz, lembrandoque tambm a Bblia, os Evangelhos e o Alcoro foram ditados por Deus ou por Espritos. Acontece, porm, que as antigas

    escrituras pertencem s fases do mediunismo emprico, enquantoa codificao esprita pertence fase da mediunidade positiva.Os Espritos Superiores (superiores em conhecimento erefinamento espiritual, precisamente como os homenssuperiores), conversavam com Kardec e o auxiliavam atravs da prtica medinica. Quer dizer: atravs de comunicaesmedinicas sujeitas a controle, e no de revelaes msticas,aceitas de maneira emotiva.

    Por outro lado, quando acentuamos a natureza racional doEspiritismo, no negamos o valor do sentimento. O velho debatefilosfico entre razo e sentimento, traduzido no plano religioso pelo dualismo de razo e f, encontra no Espiritismo a suasoluo natural, pelo equilbrio de ambos, na frmula clssica deKardec: a f raciocinada. No estudo do antropomorfismo, comsuas formas rudimentares de adorao, encontramos todo umesquema elucidativo do velho e debatido problema. Razo e f seapresentam como as formas de contradio de um processodialtico.

    4 - Ampliao da Teoria de Spencer

    O materialismo do sculo dezoito negou a ao dos agentesespirituais, tanto sobre as comunidades primitivas, quanto sobreas coletividades civilizadas. Bozzano, que foi positivista durante

    anos, explicava a crena na sobrevivncia atravs da teoria deSpencer, o filsofo que chegou a considerar como um Aristtelesd E t d d i lid d i l

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    22/254

    dos fatos espritas mostrou a Bozzano que a tese spencereanaestava errada, que no era possvel explicar-se a gnese dacrena universal na sobrevivncia por alguns fenmenos

    comuns, sensoriais, que exigiriam do homem primitivo umareelaborao mental, no plano abstrato. No obstante, Bozzanoreconheceu que Spencer pusera os ps no caminho certo.Chega a ser emocionante a maneira por que o antigo discpulocorrige o mestre, reconhecendo-lhe os mritos.

    Entende Bozzano que faltou a Spencer o conhecimento dasexperincias metapsquicas. Dessa maneira, o gnio de Spencerviu-se obrigado a tatear no plano das cincias materiais. Apesar

    disso, precisamente por ser um gnio, Spencer tocou no pontocentral do problema, indicando os rumos certos de sua soluo.A crena na sobrevivncia decorre de experincias concretas dohomem primitivo, e no de formulaes do pensamento abstrato.Sua origem est nas sensaes, e no na cogitao filosfica.Esse o ponto central, que Spencer soube ver. Usando o mtodocomparativo, Bozzano mostra como a tese de Spencer pode serdesdobrada ou ampliada, com o acrscimo dos fatos

    metapsquicos, para tornar-se plenamente verdadeira.Vejamos como isso possvel. As origens da crena na

    sobrevivncia, para Spencer, so estes fatos comuns da vidaprimitiva: o sonho, quando o selvagem se sentia liberto do corpoe agindo em lugar distante; a sombra que o seguia nascaminhadas ao sol e a sua imagem refletida na gua, quando sedebruava nas bordas de um lago; o eco de sua voz, repetidapelos desfiladeiros e as cavernas. Bozzano acrescenta, ao sonhocomum, o sonho premonitrio, que faz ver com antecedncia umacontecimento futuro; ao fenmeno da sombra e do reflexo nagua, os fenmenos de vidncia, de apario e de materializaode espritos; ao eco, o fenmeno da voz-direta. E acrescenta,ainda, fora imaginria de mana ou orenda, a prova concretadas ectoplasmias. Como se v, a tese spencereana desdobra-se,amplia-se, atingindo os fatos metapsquicos, que escapavam aSpencer. Com essa ampliao, a gnese da crena na

    sobrevivncia no deixa o terreno do concreto, dos fatossensoriais, em que Spencer a colocara. Mas, ao mesmo tempo, o

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    23/254

    problema da induo, que implica o uso do pensamento abstrato, substitudo pela experincia imediata, mais acorde com amentalidade primitiva. O selvagem no precisava induzir, dos

    vrios fenmenos citados por Spencer, uma supra-realidade, poisesta se impunha a ele atravs dos fenmenos espritas oumetapsquicos, direta e imediatamente.

    Quanto ao problema das ectoplasmias, convm lembrarmosque o ectoplasma, emanao fludica do corpo do mdium, hoje uma realidade, cientificamente comprovada. No somenteas experincias clssicas de Richet, Crookes, Schrenck-Notzinge outros a comprovaram, como tambm e principalmente os

    estudos experimentais do Prof. W. J. Crawford, da Universidadede Belfast, Irlanda, que j referimos. Esses estudos foramrealizados entre 1914 e 1920, com a mdium Kathleen Goligher.Verificou Crawford a existncia de alavancas de ectoplasma,produzindo os fenmenos de levitao. Mais tarde, chamou essasalavancas de estruturas psquicas. No Tratado deMetapsquica, entretanto, Richet se refere a essas estruturascomo Alavancas de Crawford.

    Gustavo Geley realizou tambm numerosas experincias como ectoplasma, servindo-se da mdium Eva Carrire, a mesma querealizara sesses com Richet, em Argel, na casa do GeneralNoel, produzindo as excelentes materializaes de Bien Boas,um rabe. Richet publicou, no Tratado, uma fotografia dessasmaterializaes, vendo-se o fantasma de Bien Boas pairando noar e ligado por uma alavanca ao corpo da mdium. ConstatouGeley, com o mais rigoroso critrio cientfico, as formas deemanao fludica do ectoplasma, que descreveu como umasubstncia esbranquiada que sai do corpo da mdium.Aconselhamos os interessados neste assunto a lerem o captulointitulado Ectoplasma, do livro Histria do Espiritismo,editado em portugus pela Livraria O Pensamento, de S.Paulo, em 1960, em traduo de Jlio Abreu Filho.

    Mas o que nos interessa, quanto ao ectoplasma, nestemomento, a sua relao com as foras mgicas de mana ouorenda. Alm da emanao fludica esbranquiada, a que serefere Geley o ectoplasma apresenta se tambm de forma

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    24/254

    invisvel. Assemelha-se, ento, a uma fora impondervel, comoo magnetismo ou a eletricidade. O Prof. Imoda, italiano, nasexperincias de ideoplastia, que realizou com a mdium Linda

    Gazzera, em conjugao com Richet, expe uma curiosa teoriadas trs formas do ectoplasma: a invisvel, a fludica-visvel e aconcreta, no seu livro Fotografias de Fantasmas. Geley, porsua vez, constatou que o ectoplasma, em forma invisvel, giravaem torno das pessoas, nas sesses, antes da produo defenmenos.

    O mais curioso, porm, a comparao dos dados colhidossobre a fora mana ou orenda, na Polinsia, por Freedom Long, e

    as observaes do Prof. Crawford, em Belfast, sobre oectoplasma. Verifica-se ento a plena correspondncia entre asduas foras. Os selvagens polinsios diziam, como j referimos,que o ectoplasma humano produzido pela mente. O Prof. Geleyafirma, por sua vez, que os Espritos, nas sesses experimentaisrealizadas por ele e outros cientistas, na Europa e na Amrica,agiam sobre o crebro dos mdiuns e dos participantes dareunio, para provocar a emanao do ectoplasma. A observao

    vulgar dos selvagens, traduzindo uma simples opinio, coincide,assim, com a observao cientfica de Geley. Como em tantosoutros casos, a cincia confirma, dessa maneira, umconhecimento vulgar, adquirido na experincia comum.

    Provocada a emanao, o ectoplasma gira em torno dosassistentes, flui em redor do grupo, aumentando pouco a poucosua intensidade e sua fora, para afinal se dirigir ao mdium.Liga-se ao sistema nervoso deste, formando aquilo que Geleyconsidera um suprimento. graas a este suprimento que osEspritos, chamados por Geley de operadores, conseguem produzir, em seguida, os vrios fenmenos de levitao,movimento de objetos e materializao. A teoria cientfica dosuprimento de ectoplasmas corresponde tambm superstio polinsica de acumulao ou armazenamento demana ou orenda, para operaes mgicas posteriores.

    Resta acentuar que o processo de seleo do mdium e derealizao de sesses praticamente o mesmo, entre selvagens ecivilizados Bozzano explica que os selvagens se utilizam de

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    25/254

    indivduos sensitivos, depois de prov-los quanto a essaqualidade, e realizam suas sesses noite ou ao entardecer,evitando a luz excessiva do sol. Freedom Long chega a

    pormenores curiosos. Os selvagens se dispem ao redor de umapequena cabana de palhas, para cantar e danar, ao entardecer. Omdium fica no interior da cabana. Esta corresponde, comovemos, cabina medinica das experincias cientficas, onde omdium se livra da incidncia da luz na sala de sesses. Asexperincias de Croockes, por exemplo, feitas a plena luz, comas famosas materializaes de Katie King, eram desse tipo. Amdium ficava num gabinete ou cabina, onde se processa a

    elaborao ectoplsmica. S depois de materializado, o espritosai para a sala iluminada.

    Os fenmenos produzidos nas selvas so naturalmente maisgrosseiros, violentos e fortes que os produzidos nas experinciascientficas. Isso se explica pela qualidade mental dos assistentes,do prprio mdium e, conseqentemente, dos operadores ouespritos que atuam no meio selvagem. Os fenmenos do meiocivilizado so mais sutis, revestindo-se, por vezes, de inegvel

    harmonia e beleza, como ocorria nas materializaes de KatieKing, com Croockes, e nas famosas sesses com o mdiumDouglas Home, onde havia encantadoras materializaes demos.

    As mos grosseiras da selva, porm, e as delicadas mosinglesas das sesses de Home, revelam a mesma coisa: asobrevivncia do homem aps a morte do corpo e a possibilidadede comunicao entre encarnados e desencarnados. As mosproduzidas por mana ou orenda indicam aos homens o mesmocaminho de espiritualizao indicado pelas mos de ectoplasma.Das selvas civilizao, os Espritos ensinam aos homens que avida no se encerra no tmulo, como no principia no bero.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    26/254

    II

    Horizonte Agrcola:Animismo e Culto dos Ancestrais

    1 - Racionalizao Anmica

    Quando estudamos o horizonte agrcola, ou seja, o mundodas primeiras formas sedentrias de vida social, vemos oanimismo tribal desenvolver-se no plano da racionalizao.

    Estamos naquele momento hegeliano, e por isso mesmodialtico, em que a razo se desenrola no processo histrico,entendido este como o progresso do homem na terra. Adomesticao de animais e de plantas, a inveno e o emprego deinstrumentos, a criao da riqueza, processam-se de maneirasimultnea com o aumento demogrfico e o desenvolvimentomental do homem.

    precisamente do desenvolvimento mental que vai surgir

    uma conseqncia curiosa: o aprofundamento da crena tribalnos espritos, num sentido de personalizao, envolvendo osaspectos e os elementos da natureza. A experincia concreta, quedeu ao homem primitivo o conhecimento da existncia dosespritos, alia-se agora ao uso mais amplo das categorias darazo. As duas formas gerais de racionalizao do Universo, queaparecem nesse momento, e que devem constituir a base de todoo processo de racionalizao anmica, so a concepo da Terra-

    Me e a do Cu-Pai. Essas formas aparecem bem ntidas no pensamento chins, que conservou at os nossos dias oselementos caractersticos do horizonte agrcola. O cu odeus-pai, que fecunda a terra, deusa-me.

    Em algumas regies, como podemos ver no estudo dacivilizao egpcia, h uma inverso de posies: o cu me e aterra pai. Essa inverso no tem outra significao que a demaior importncia da terra ou do cu para a vida das tribos.

    Quando as inundaes do Nilo no dependem das chuvas locais,no parecem provir do cu, mas das prprias entranhas da terra.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    27/254

    Esta encarna, ento, o poder fecundante, cabendo ao cu, to-somente, o papel materno de proteger as plantaes. Os estudosmaterialistas confundem o problema da racionalizao com o da

    experincia concreta da sobrevivncia. Tomam, pois, a Nuvempor Juno, ao conclurem que o homem primitivo atribui terra eao cu uma feio humana, unicamente para tornar o mundoexterior acessvel compreenso racional. Os estudos espritasmostram que h uma distino a fazer-se, nesse caso. O processode racionalizao decorre da experincia concreta, e por issomesmo no pode ser encarado de maneira exclusivamenteabstrata.

    Procuremos esclarecer isto. De um lado, temos a experinciaconcreta, constituda pelos contatos do homem com realidadesobjetivas. De outro lado, temos o processo da racionalizao domundo, ou seja, de enquadramento dos aspectos e dos elementosda natureza nas categorias da razo ou categorias da experincia.Da mesma maneira porque o contato do homem com o espaofsico lhe fornece uma medida para aplicar s coisas exteriores a categoria espacial, o conceito de espao assim tambm o

    contato com os fenmenos espirituais lhe fornece uma medidaespiritual, que conceito de esprito. Este conceito usado noprocesso de racionalizao, como qualquer outro. Mas absurdoquerermos negar os fatos concretos que deram origem categoria racional, ou querermos atribuir a essa categoria umaorigem abstrata, diferente das outras.

    Somos levados, assim, a concluir que o animismo dohorizonte agrcola apresenta trs aspectos distintos, quandoencarados sob a luz do Espiritismo. Temos primeiramente oaprofundamento do animismo tribal na personalizao danatureza, que chamaremos Fetichismo, com os fetiches bsicosda Terra-Me e do Cu-Pai. Depois, temos a fuso daexperincia e da imaginao, com o desenvolvimento mental dohomem, no progresso natural do Mediunismo. Dessa fuso vainascer a mitologia popular, impregnada de magia. E em terceirolugar encontramos a primeira forma de religio antropomrfica,

    conseqncia da experincia concreta de que fala Bozzano, como culto dos ancestrais. Deuses-lares, manes e deuses-locais,

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    28/254

    como os deuses dos nomos egpcios, por exemplo, soentidades reais e no formas de racionalizao. Nos deuses dosnomos egpcios, ou seja, das regies do antigo Egito, temos j

    o momento de transio dos deuses reais para o processo deracionalizao.

    A transio se efetua por uma maneira bastante conhecida. um processo de fuso, que encontramos ao longo de todo odesenvolvimento espiritual do homem. O Fetichismo se fundecom o Culto dos Ancestrais, atravs do Mediunismo. Os fetiches,como a terra e o cu, misturam-se aos ancestrais, identificam-sea eles, na imaginao em desenvolvimento. A mente rudimentar

    no sabe ainda fazer distines precisas. Assim, por exemplo,Osris, que foi um antepassado e como tal recebeu um cultofamiliar, transforma-se numa personificao da terra, com o seupoder de fecundao, ou no prprio Nilo, cujas guas sustentama vida. A projeo anmica se realiza, nesse caso, atravs de umaexperincia concreta. A mitologia nasce da histria, pois aexistncia histrica de Osris convertida em mito, pelanecessidade de racionalizao do mundo. Nada melhor que os

    estudos de sir James Frazer sobre o mito de Osris, para nosmostrar isso.

    Kardec esclarece este problema, ao comentar a pergunta 521de O Livro dos Espritos, afirmando: Os antigos haviam feitodesses Espritos divindades especiais. As Musas no eram maisdo que personificao alegrica dos Espritos protetores dascincias e das artes, como chamavam pelos nomes de lares epenates os Espritos protetores da famlia. Entre os modernos, asartes, as diferentes indstrias, as cidades, os pases, tm tambmos seus patronos, que no so mais do que os EspritosSuperiores, mas com outros nomes. Ao fazerem dos Espritosdivindades especiais, como assinala Kardec, os antigosprocediam racionalizao do mundo, o que no quer dizer queos Espritos fossem apenas formas racionais. Essas formas, pelo contrrio, decorriam de fatos concretos, de realidadesnaturais.

    Como vemos, ao tratar do animismo primitivo e seudesenvolvimento no horizonte agrcola no podemos negar a

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    29/254

    existncia real dos espritos, a pretexto de explicar o mecanismodo processo de racionalizao. Esse mecanismo torna-se mesmoinexplicvel, quando lhe suprimimos a base concreta dos fatos,

    como dizia Bozzano, na qual se encontram os espritoscomunicantes. V-se claramente a distoro da realidade, aguinada do pensamento para os rumos do absurdo, quando oscientistas materialistas tentam explicar o processo deracionalizao, ignorando as experincias medinicas do homem primitivo. O Espiritismo restabelece a verdade, ao mostrar aimportncia do mediunismo no desenvolvimento humano.

    2 - O Exemplo Egpcio

    A China e a ndia so os dois pases que conservaram at osnossos dias a estratificao religiosa do horizonte agrcola. Masno so os nicos. Aquilo que chamamos de horizonte agrcola,o mundo das grandes civilizaes agrrias, constitui uma espciede subconsciente coletivo das civilizaes modernas. Os resduosmgicos, anmicos e mitolgicos do horizonte tribal e dohorizonte agrcola apresentam-se ainda bastante fortes no mundocontemporneo. Nossas religies mostram-se poderosamenteimpregnadas desses resduos. Mas o antigo Egito oferece-nos,talvez, o quadro que melhor demonstra a passagem dos deuses-familiares para a categoria dos deuses-csmicos ou universais.

    O exemplo egpcio fecundo em vrios sentidos. No sdemonstra essa transformao dos deuses, como tambm nosfornece as razes histricas de vrios dogmas, sacramentos e

    instituies das religies dominantes em nosso mundo. Jestudamos, embora rapidamente, o caso de Osris, cujaexistncia real transformada em mito. Esse caso nos colocanuma posio semelhante a de Evmero, para quem os deusesmitolgicos haviam sido personagens reais. Mas essa,exatamente, a posio esprita, como j vimos em Kardec. Amitologia, encarada atualmente como uma forma deracionalizao, para o Espiritismo um pouco mais do que isso.Porque tambm uma prova da participao dos Espritos naHistria, ao mesmo tempo que uma poderosa fonte deesclarecimento dos problemas religiosos

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    30/254

    Vemos no Egito duas categorias de deuses, bem definidas: ados deuses-csmicos e a dos deuses-familiares. Na primeiraencontramos a trade familiar constituda por Osris, sis e Hrus,

    com toda a sua corte de divindades consangneas e de outrasdivindades. Na segunda encontramos casos curiosos, como osreferentes aos deuses Imhotep, Amenhotep e Bs, o ano. Essesdeuses-familiares oferecem-nos o exemplo de divinizaocsmica e universal que justifica a tese evemerista. Imhotep,mdico do rei Dsejer, da terceira dinastia, e Amenhotep,arquiteto e mdico de Amenofis 3, da dcima oitava dinastia,passam lentamente da categoria de deuses-familiares para a de

    deuses-universais, adorados como entidades-terapeutas, parachegarem depois ao limiar da categoria superior de deuses-csmicos, encarnando a prpria medicina ou os poderescuradores da natureza.

    Quando vemos todo esse processo de transformao realizar-se aos nossos olhos, atravs dos estudos histricos,compreendemos a maneira por que a famlia csmica de Osris,sis e Hrus, o deus-pai, a deusa-me e o deus-filho, foram

    elevados da terra ao cu. Assim como Imhotep e Amenhotep,anteriormente adorados na famlia real, como deuses-familiares,depois se tornam deuses-populares, e por fim se transformam emdivindades mitolgicas ou deuses-csmicos, assim tambmaconteceu, forosamente, com a famlia osiriana. E isso querdizer, pura e simplesmente, o seguinte: que aquilo que hojechamamos, no Espiritismo, de espritos-familiares, ou seja, amanifestao medinica dos parentes e amigos mortos, que

    velam pelos nossos lares, a fonte da mitologia, a base doprocesso de racionalizao e a prpria origem das religies.

    O caso do ano Bs tambm bastante elucidativo. Esse anotornou-se um esprito-popular, isto , passou do culto familiarpara o culto do povo. Costumava aparecer cercado de macacos.Devia ter sido um ano que tratava de macacos sagrados. Depoisde morto, seu esprito aparecia aos videntes, ou nos momentos deapario medinica, da mesma maneira por que ele vivera. E

    como possua virtudes que interessavam ao povo, alm deapresentar-se de maneira curiosa, em breve rompeu os limites do

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    31/254

    culto familiar. Os macacos que o cercavam eram remanescentesda zoolatria, alis muito abundante no Egito, onde a zoolatriaimperou at o fim da civilizao. O ano Bs um caso tpico de

    universalizao de um deus-familiar. O fato de no ter esse processo atingido a categoria do deus-csmico nada tem deextraordinrio. Os processos naturais nem sempre se completam.

    Os egpcios mantiveram-se apegados zoolatria, como osindianos se mantm at hoje. O escaravelho dos amuletos, aadorao do Boi pis em Mnfis, de bis na bacia do Nilo, dosCrocodilos em Tebas e do Bode de Mendes no Delta, soexemplos da arraigada zoolatria egpcia. Mas h casos de

    ambivalncia, como o do Crocodilo, que era adorado em Tebas ena regio do Lago Noeris, mas caado em Elefantina. A zoolatriapassa por uma fase de humanizao, que culmina na fuso deelementos animais com as figuras humanas. O caso da deusaHator tpico. Essa deusa, que equivale Ceres dos romanos e Demeter dos gregos, ora apresentada com orelhas de vaca, oracom chifres, ora com o bucrnio, ou ainda com este e o sistro. Alei de adorao de que fala Kardec, evolui dos animais para as

    formas humanas, mas de maneira lenta. Os resduos animais seconservam ainda nas figuras dos deuses antropolgicos, comonas prprias imagens de Hrus, com cabea de falco.

    A humanizao dos deuses animais, que fatal, pois azoolatria no mais que uma projeo anmica, vai implicartambm a organizao familiar do panteo divino. Os deuses soreunidos em famlias, e a forma mais simples destas famlias atrade, constituda pelo pai, a me e o filho, como vimos no casode Osris. Essa trade familiar, derivada do sistema patriarcal dohorizonte agrcola, uma das formas mais antigas da trindadedivina. O conceito de esprito, entretanto, far sentir a suainfluncia nesse processo de socializao dos deuses. Assimcomo, de um lado, os elementos animais sero fundidos nasfiguras humanas das divindades, de outro, o conceito de esprito,ou seja, a idia de esprito como forma sobre-humana deexistncia, far a sua interveno, em sentido contrrio, na

    organizao das famlias humanas.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    32/254

    Digamos isto de maneira mais clara, se possvel. No processode desenvolvimento da lei de adorao, os resduos animais soprojetados nas figuras humanas dos deuses, como no caso das

    orelhas e dos chifres da deusa Hator. Mas, ao mesmo tempo, oconhecimento que o homem obteve, atravs da experinciamedinica, da existncia de seres espirituais, semelhantes aosseres humanos, permitir o agrupamento dos deuses em famliase far que as famlias humanas sofram a interveno divina. ocaso dos deuses gregos, que se enamoravam das filhas doshomens. O caso de Pitgoras, que no era filho de seu paihumano, mas do deus Apolo. O caso da teogamia egpcia, de que

    derivam as doutrinas teogmicas das religies crists.A teogamia egpcia atingiu sua forma perfeita, ou pelo menos

    a mais definida, com a rainha Hatsepshut, cerca de 1.500 a. C.,conservando o seu vigor at os Ptolomeus, no 4 sculo a. C..Segundo essa doutrina, os Faras eram portadores de duplanatureza, a humana e a divina, porque eram filhos da rainha como deus-solar. No eram, portanto, filhos de um homem, e nemmesmo de um homem-deus, mas do prprio Deus, que atravs de

    processos divinos fecundava a rainha. O conhecimento dessesprocessos histricos indispensvel ao esprita, para imuniz-locontra as deturpaes msticas ou supersticiosas da doutrina, tocomuns num mundo que, apesar de se orgulhar do seu progressocientfico, ainda no se libertou de sua pesada heranamitolgica.

    3 - Os Mitos Agrrios

    A vida agrria, como j acentuamos, marcou profundamenteo esprito humano, em seu desenvolvimento nos rumos dacivilizao. Os mitos do horizonte agrcola exercem ainda poderosa influncia em nosso mundo. Isso contribui para odescrdito das religies, em face dos estudiosos de histria, emais ainda, dos que tratam de mitologia. Osris, por exemplo,como tpico deus agrrio, parece constituir uma prova dasorigens mticas do dogma da ressurreio. Quando os cristosproclamam a ressurreio de Cristo, os estudiosos sorriem comdesdm lembrando a ressurreio de Osris

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    33/254

    Vejamos porque: Osris, filho da Terra e do Cu, cresce,viceja, esplende, e ento ceifado, retalhado ou modo, e por fimenterrado. Mas da terra, como as sementes, Osris renasce, para

    comear novo ciclo, semelhante ao anterior. Morto e espostejadopor Set, seu irmo, ressuscitado por sua esposa e irm, a deusasis, atravs de ritos especiais. Est bem visvel a analogiaagrria. Osris como o trigo, que depois da ceifa sofre adebulha, volta a ser enterrado na semeadura e por fim renasce.s vezes, associado ao Nilo, um deus fluvial. Cresce com ainundao, declina e morre na vazante, mas depois ressuscita efaz nascerem as plantas, com o poder mgico das guas.

    Osris, deus-fluvial, est naturalmente ligado ao cultivo daterra. No seu aspecto fluvial, porm, apresenta-nos um elementonovo, que a magia da gua. Vemos nele a gua pura, queserve para purificar a terra seca, estril, poeirenta, e com ela oshomens e os animais; a gua da renovao, usada largamentenas ablues sagradas e utilizada nas formas batismais, como nocaso clssico de Joo Batista; e, por fim, a gua fecundante,que representa a virilidade do deus-fluvial, fecundando a terra.

    Por isso, na sua mais alta expresso mitolgica, o Nilo flui dasmos de Osris, para se derramar como uma bno sobre a terrarida.

    Deus-agrrio, diz John Murphy deus da inundao e deuma vida nova, a todos levava a esperana da ressurreio. Essaesperana mantinha o prestgio do deus. Assim como ele morrerapara ressuscitar, atravs dos ritos agrrios de sis, assim tambmos homens, uma vez submetidos a ritos semelhantes,ressuscitavam. Essa crena ingnua faz lembrar o dogma cristo,nas palavras do apstolo Paulo: Se no h ressurreio dosmortos, tambm Cristo no ressuscitou. (1. Cor. 15:12.) Osentido osrico da ressurreio crist torna-se mais evidente,quando os ritos agrrios so exigidos para que a alma se salve,ou seja, para que realmente possa ressuscitar. Por outro lado, hum paralelismo histrico bastante comprometedor. Osris, graas ressurreio, mostrou-se capaz de superar os outros deuses

    egpcios, da mesma maneira por que, mais tarde, graas

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    34/254

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    35/254

    Assim tambm o mistrio do po e do vinho. O porepresentava nos mistrios gregos a deusa Demeter, ou a Cerespara os romanos, me dos cereais. O vinho representava Baco ou

    Dionsio, deuses da alegria, da vida, e portanto do esprito.Comer o po e beber o vinho era simbolizar a fecundao damatria pelo poder do esprito. A matria impregnada pelo poderdo esprito era representada, nas cerimnias religiosas pags,pelo po embebido de vinho. Quando os hebreus chegaram aCana encontraram essa prtica entre os cananitas.

    Todo o horizonte agrcola se mostra dominado por essasimbologia mgica do po e do vinho, de que o prprio Cristo se

    serviu, no para sujeitar os homens ao smbolo, mas para ilustr-los atravs dele. Bastam esses exemplos, para vermos aintensidade da impregnao mtica do pensamento religiosocontemporneo. O Espiritismo luta contra essa impregnao,libertando o homem do peso esmagador do horizonte agrcola,para conduzi-lo ao horizonte espiritual, que Jesus anunciou mulher samaritana.

    4 - Jeov, Deus Agrrio

    Quando estudamos religio comparada, ou histria dasreligies, o exame do horizonte agrcola nos revela a naturezaagrria do deus bblico Iav ou Jeov. As diferenasfundamentais existentes entre o Deus bblico dos hebreus e oDeus evanglico dos cristos decorre da diferena dehorizontes. Jeov um deus mitolgico, em fase de transio

    para o horizonte espiritual. Nasceu, como todos os deusesagrrios, por um processo sincrtico. Nele se fundem aexperincia concreta da sobrevivncia humana, obtida atravsdos fatos medinicos, e a exigncia de racionalizao do mundo,manifestada nas elaboraes mitolgicas. Ao mesmo tempo,concepes vrias, e at mesmo contraditrias, originadas aolongo da vida tribal e da vida agrcola, tambm se misturamnessa figura bblica. Da as suas contradies, que do margem atantas crticas, oriundas da incompreenso do fenmeno e daignorncia do processo histrico.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    36/254

    Encontramos em Jeov, num verdadeiro conflito, ascaractersticas de deus-tribal e deus-universal, de deus-familiar edeus-popular, de deus-lar e deus mitolgico. Como deus-tribal,

    Jeov o guia e o protetor das tribos de Israel, e como deus-universal, pretende estender suas leis a todos os povos. Comodeus-familiar, o clssico Deus de Abro, Isaac e Jac,protetor de uma linhagem de pastores, e como deus-popular, oprotetor de todos os descendentes de Abro. Como deus-lar, oEsprito que falava a Ter e a Abro em Ur, revelia dos deuses-nacionais dos caldeus, e como deus-mitolgico, aquele quedeclara na Bblia Eu sou o que sou, tendo a terra por escabelo

    de seus ps e o cu por morada infinita de sua grandeza sobre-humana.

    O mesmo sincretismo que j estudamos no caso dos deusesegpcios aparece no deus hebraico. Se a deusa Hator, porexemplo, tinha orelhas de vaca, Jeov ordena matanas,misturando em sua natureza caractersticas humanas e divinas.Protege especialmente um povo, uma raa, com ferocidade tribal,e se no exige mais os antigos sacrifcios humanos, entretanto

    exige os sacrifcios animais e vegetais. Suas monumentaisnarinas, embora invisveis, dilatam-se gulosas, como as deMoloc, aspirando o fumo dos sacrifcios. No Templo deJerusalm, maneira do que acontecia com os templos gregos,havia locais especiais para os sacrifcios sangrentos e osincruentos. Assim como Pitgoras, vegetariano, podia oferecerao deus Apolo, na ara especial do templo, sacrifcios vegetais,assim tambm os hebreus podiam escolher a espcie de

    homenagens que deviam prestar a Jeov.A histria dos sacrifcios ainda est por ser escrita, embora

    muito j se tenha escrito a respeito. No dia em que a tivermos, naextenso e na profundidade necessrias, veremos uma novaconfirmao histrica do desenvolvimento da lei de adorao.Dos sacrifcios humanos passamos aos de animais, destes aosvegetais, e destes aos cilcios, s penitncias e aos simples ritosdevocionais. Correr muita gua por baixo das pontes, antes que

    Paulo, apstolo, possa proclamar, apoiado no ensino espiritual deJesus, que existe um culto racional, consistente em oferecermos

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    37/254

    a Deus nosso prprio corpo, como Hstia imaculada. Noentanto, Jeov j proclamara: Misericrdia quero, e nosacrifcio, demonstrando a sua evoluo irrevogvel para o

    horizonte espiritual, que raiaria mais tarde.Muitos estudiosos estranham a afirmao esprita de que o

    Deus bblico o mesmo Deus de Jesus. Fazendo uma distino,que nos parece natural e necessria, entre a Bblia, como VelhoTestamento, e os Evangelhos, como Novo Testamento, diremosque o Deus bblico o mesmo Deus evanglico. As diferenasentre ambos se explicam atravs da lei de evoluo. Se oshomens do horizonte agrcola no podiam conceber o Deus nico

    seno por uma forma sincrtica, uma mistura de Deus e deHomem, os do horizonte espiritual iro conceb-lo de maneiramais pura. No se trata, porm, de dois Deuses, e sim de ummesmo Deus, visto de duas maneiras. Por trs de todas as formasde Deus, encontra-se uma realidade nica, que o prprio Deus.Isso o que permitia a Jesus dizer-se filho de Jeov e ao mesmotempo apontar o seu Pai como pai universal, em esprito everdade.

    Da mesma maneira, os princpios fundamentais da Bblia noso negados, mas confirmados pelos Evangelhos. A Lei no destruda, mas confirmada. Mais de uma vez nos servir deesclarecimento a afirmao de Paulo: A lei era o pedagogo, paranos conduzir a Cristo. A Tor judaica no valia pelas suasnormas exteriores e transitrias, circunstanciais, mas pela suasubstncia. Essa substncia que prevalece, sendo confirmadapor Jesus, nos dois mandamentos principais: Amar a Deus sobretodas as coisas e ao prximo como a si mesmo. O processohistrico no contraditrio, mas progressivo. Quando nosabemos enxergar as linhas da evoluo, em seudesenvolvimento natural, enxergamos apenas as aparentescontradies das coisas. Assim como a idia de Deus evolui comos homens, desde a litolatria at as formas mitolgicas, e destas concepo espiritual que hoje aceitamos, assim tambm os princpios e os postulados bblicos vo atingir sua verdadeira

    expresso nos Evangelhos, e por fim sua espiritualizao noEspiritismo.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    38/254

    H um encadeamento perfeito no processo histrico, que no podemos perder de vista. Graas a esse encadeamento osEspritos puderam dizer a Kardec que o Espiritismo o

    restabelecimento do Cristianismo, o que vale dizer: a ltima fasedo desenvolvimento histrico do Cristianismo. Quando sabemosque este originou-se no solo do Judasmo, representando umdesenvolvimento natural da religio judaica, entocompreendemos que o Espiritismo, como queria Kardec e comosustentava Lon Denis, o ponto mais alto que podemos atingir,at hoje, em nossa evoluo religiosa. Jeov, o deus-agrrio,transforma-se no Pai evanglico, para chegar Inteligncia

    Suprema, no Espiritismo. Jeov se depura, e com ele sedepuram os ritos do seu culto, que por fim se transformam naadorao em esprito e verdade, de que falava Jesus.

    O horizonte agrcola permanece subjacente em nossamentalidade moderna. Ainda no conseguimos libertar-nos desuas frmulas agrrias, de seus deuses e seus cultos, carregadosde sacrifcios animais e vegetais. O horizonte civilizadodesenvolve-se sob os signos agrcolas. Mas vir, por fim, o

    momento de transio para o horizonte espiritual, queassinalar uma fase de transcendncia na vida humana.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    39/254

    III

    Horizonte Civilizado:Mediunismo Oracular

    1 - Os Estados Teolgicos

    Os grandes imprios da antigidade, as chamadas civilizaesorientais, passaram lentamente do horizonte agrcola para ohorizonte civilizado. O mesmo aconteceu com os imprios

    ocidentais, que constituiriam mais tarde a civilizao clssicagreco-romana. Os gregos, e posteriormente os romanos, tiverambem marcado o seu horizonte agrcola. Roma nunca se livrou dasmarcas profundas da sua origem camponesa. Mas antes que aGrcia e Roma superassem a fase agrria, j as civilizaesorientais haviam desenvolvido todo um ciclo evolutivo,atingindo o horizonte civilizado, com as gigantescas estruturasde seus Estados Teolgicos.

    Realmente, os grandes imprios do Egito, da Assria, daBabilnia, da China, os reinos da ndia, o pequeno reino deIsrael, o fabuloso imprio da Prsia, constituem verdadeirosEstados Teolgicos, em que o humano e o divino se fundem e seconfundem, numa estrutura nica. A Prsia vai assinalar oapogeu das civilizaes orientais, que encontraro na suagrandeza e no seu esplendor, ao mesmo tempo, a sntese e oarremate desse espantoso ciclo evolutivo. O imprio persa ser o

    ltimo elo da grande cadeia, e com ele comear uma fase nova,cujo desenvolvimento, entretanto, caber aos gregos e aosromanos: a fase de libertao do Estado do domnio teolgico.

    Essa libertao no se processar com rapidez, mas demaneira lenta. Assim, a prpria civilizao grega, e sua herdeiradireta, a romana, apresentaro ainda, no horizonte civilizado,acentuado aspecto teolgico. Mas com os persas j se inicia aseparao dos dois poderes, o poltico e o religioso. Curioso

    notar-se que essa separao, iniciada pelos persas no terreno daeducao, vai projetar-se na Grcia em duas formas diferentes de

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    40/254

    estrutura estatal: Esparta ser o Estado Poltico por excelncia,com a religio submetida aos interesses temporais, e Atenas oEstado Teolgico, dominado pelos deuses, mas j impulsionado,

    graas ao desenvolvimento econmico e cultural, nos rumos daemancipao poltica. Esparta recebe, por assim dizer, a heranapersa como um impacto, que a modela de maneira rgida. Atenas, pelo contrrio, absorve lentamente a contribuio persa e areelabora atravs da crtica. A separao dos dois poderes, o civile o religioso, se acentuar em Atenas com o desenvolvimento dademocracia. Esparta opor ao domnio teolgico a supremaciaestatal. Atenas, pelo contrrio, opor a reflexo crtica e o

    individualismo, ou seja, os direitos do homem, como indivduo.Os Estados Teolgicos das civilizaes orientais nos

    oferecem, portanto, o primeiro panorama desse novo ciclo daevoluo humana, que chamamos horizonte civilizado.Analisando esses Estados, verificaremos que sua estrutura herdada do horizonte tribal. O monarca egpcio, babilnico,hindu ou chins, um cacique tribal, cujas dimenses foramaumentadas quase ao infinito. Suas prerrogativas so as mesmas

    da vida tribal: domnio absoluto sobre o povo, que o deverespeitar e adorar, como a um deus. A evoluo econmica etcnica do horizonte agrcola, que determinaram acentuadodesenvolvimento do animismo, daro estrutura racional, maissutil e complexa, a essas prerrogativas. Mas as civilizaesorientais, dominadas pelo absolutismo tribal, sero estruturasteolgicas asfixiantes, em que no haver lugar para o indivduo.O homem civilizado, maneira do homem-tribal, ser apenas

    uma pea da gigantesca engrenagem do Estado Teolgico, quelhe determinar, de maneira irrevogvel, as formas de pensar ede sentir. O estatismo espartano ser uma espcie de reaopoltica a esse absolutismo teolgico, mas servindo-se do mesmo processo de absoro. Somente a democracia ateniense abrirpossibilidades a um individualismo, to novo e to fascinante,que acabar por embriag-la, fazendo-a perder-se nos excessosdo liberalismo.

    Nos Estados Teolgicos, a estrutura poltica assemelha-se estrutura metafsica ou divina. A Religio e o Estado se

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    41/254

    modelam reciprocamente, uma sobre o outro, e vice-versa. Aclasse sacerdotal, racionalmente organizada, elabora os mitos noplano intelectual, criando a teologia, estruturando o ritualismo,

    estabelecendo a genealogia dos deuses e as formas de relaesentre estes e os homens. A teogamia egpcia, de que j tratamos, um dos mais perfeitos exemplos dessas formas de relaes: agenealogia divina se prolonga na genealogia humana dos faras,graas fecundao da rainha por um deus. Amalgamados assimos dois poderes, o temporal e o divino, na prpria carne dosmonarcas, os Estados Teolgicos tornam-se monolticos. Aindana Grcia vemos isso: a figura humana de Zeus, na sua corte

    olmpica, refletindo no espao a estrutura poltica da nao.Murphy acentua esse aspecto do horizonte civilizado, da

    seguinte maneira: No horizonte que chamamos civilizado, areligio reflete o sistema poltico e social: em geral politesta,com um grupo de deuses semelhante ao Senado de umaRepblica ou, mais freqentemente, corte de um monarcasupremo e mais ou menos autocrata. Os deuses soprincipalmente as foras da natureza, como anteriormente, sob o

    horizonte agrcola, mas, agora, mais profundamentepersonalizadas e dotadas de uma realidade dramtica, que resultado progresso da reflexo mental, entre as classes que dispuseramde lazer nessas antigas naes civilizadas. Os Espritospresentes nesse horizonte devemos acentuar, por nossa vez so ainda os da tribo e os do horizonte agrcola, masenriquecidos pela experincia e pelo desenvolvimento dopensamento abstrato.

    Um novo Esprito, entretanto, marcar esse horizonte.Murphy considera o seu aparecimento, e com razo, comoacontecimento de imensa importncia. Trata-se do EspritoCivilizado, como o chama Murphy, ou o que poderamoschamar Esprito de Civilizao. Esse Esprito se caracteriza portrs funes especiais: a capacidade de formulao de conceitosabstratos, de formulao de juzos ticos e morais, e deformulao de princpios jurdicos. Dessas funes surgir o

    indivduo, como a mais bela afirmao do horizonte civilizado.Como vemos, o homem se liberta de si mesmo, da sua condio

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    42/254

    humana, construda penosamente atravs das estruturas sociaisdo horizonte tribal e do horizonte agrcola, procurando umaforma mais precisa de definio de sua natureza. Na organizao

    tribal, ele se libertou da condio animal e do jugo absoluto dasforas da natureza, para elaborar a sua condio prpria. Naorganizao agrcola, ele aprendeu a dominar a natureza esubmet-la ao seu servio, mas caiu prisioneiro da estruturasocial. No horizonte civilizado, ele comea a romper os liamesda organizao social, para descobrir-se a si mesmo, o que sfar quando se tornar um indivduo.

    A evoluo do Esprito est bem clara nesse imenso processo

    de desenvolvimento histrico da humanidade. O homem se eleva progressivamente da selva civilizao, atravs de perodoshistricos que podem ser definidos como horizontes, ou seja,como universos prprios, nos quais os diferentes poderes daespcie vo sendo treinados em conjunto, at que odesenvolvimento da razo favorea o processo deindividualizao. Primeiramente, o homem se destaca danatureza atravs do conjunto tribal; depois, reafirma a sua

    independncia atravs dos conjuntos mais amplos dascivilizaes agrrias; e, depois, ainda, constri os conjuntos maiscomplexos das grandes civilizaes orientais. Nestes conjuntos, porm, o homem descobre a possibilidade de destacar-seindividualmente da estrutura social. O esprito humano se afirmacomo individualidade, como entidade autnoma, capaz desuperar no somente a natureza, mas a prpria humanidade.

    2 - O Esprito de Civilizao

    O homem supera a Natureza desde o momento em que setorna capaz de organizar-se em sociedade. Nesse momento, eledeixa de ser o animal gregrio das cavernas, para adquirir umanova natureza, tornando-se o animal poltico de Aristteles, ouseja: um ser social. Dessa maneira, o ser biolgico superadopor uma forma nova de ser. O desenvolvimento humano umprocesso de transcendncia. Cada fase do processo representauma superao da anterior. Superar a Natureza, portanto, no

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    43/254

    quer dizer apenas domin-la, adquirir poder sobre as coisasexteriores, mas superar-se a si mesmo.

    Quando falamos da Natureza, referimo-nos, em geral, aobinmio Homem-Natureza, que um contraste dialtico. De umlado colocamos o Homem, como um poder oposto ao que seencontra do outro lado, representando o mundo exterior. Essa,entretanto, uma concepo simplista, pois a verdade bemmais complexa. O Homem no se ope Natureza como umapotncia contrria, mas como parte dela mesma. A oposio no externa, mas interna. Pelo seu corpo, o Homem pertence resextensa cartesiana, uma espcie animal. Pelo seu esprito,

    pertence res cogitans, uma substncia pensante. Podemosdizer, com Espinosa, que o Homem uma simples afeco doTodo, em que se conjugam as modalidades extensa e pensante daSubstncia, o que equivale a dizer, com o apstolo Paulo, queem Deus estamos e em Deus nos movemos.

    Natureza Universal, portanto, devemos opor a NaturezaHumana, que uma simples diferenciao daquela. O processoevolutivo explica essa oposio, mostrando-nos que a matria e oesprito, ou o que Kardec chama o princpio material e o princpio inteligente do Universo, modificam-se atravs dotempo. Essa modificao progressiva, assinalando umdesenvolvimento qualitativo, como podemos verificar pelaevoluo fsica do planeta e das espcies vegetais e animais queo povoam. Esta evoluo, por sua vez, encontra no Homem o seuponto culminante. Quando dizemos, pois, que o Homem supera aNatureza, podemos acrescentar que essa superao no apenasdo Homem, mas da prpria Natureza, que atinge na espciehumana a sua mais elevada expresso. Isso nos permitecompreender, tambm, o que queremos dizer, quando falamos dasuperao da Humanidade. Nessa fase superior, a evoluo estalcanando um novo plano, e o homem que avana alm dacraveira comum, superando a sua poca, supera a sua prpriaespcie.

    O Esprito de Civilizao, cujo aparecimento Murphyassinala como conseqncia do horizonte agrcola, marca a fasede superao do animal poltico com a transformao do ser

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    44/254

    social do Homem num ser-moral, e conseqentemente atransformao da espcie humana num processo histrico.Simone de Beauvoir adverte, com razo, que a humanidade no

    uma espcie, mas um devir. No obstante, devemos acentuar queela j foi uma espcie, e que por isso mesmo guarda as marcas dasua animalidade ancestral. As caractersticas do Esprito deCivilizao constituem os carismas dessa transformaoprofunda, que assinalam a passagem da espcie humana para odevir, ou seja, do concreto para o abstrato, da forma animal paraa forma espiritual.

    Analisemos rapidamente essas caractersticas, que se

    apresentam como trs funes do Homem numa fase superior dasua evoluo. Temos primeiramente a capacidade de formulaode conceitos abstratos, que o resultado de uma longa evoluoda rs cogitans, da coisa pensante cartesiana. A Histria daMatemtica nos ajuda a compreender esse processo, mostrando-nos o desenvolvimento da capacidade de contar, na vida primitiva. O pensamento do homem-selvagem revela a suanatureza concreta na incapacidade para contar alm do nmero

    dos dedos das mos ou dos ps, nas tribos mais atrasadas.Somente nas tribos mais evoludas o homem se torna capaz deutilizar-se de nmeros abstratos. A abstrao mental , portanto,uma conquista da evoluo. E a Histria da Filosofia nos mostraque, apesar do enorme desenvolvimento intelectual dos gregos,foi Scrates quem descobriu o conceito e revelou a suaimportncia.

    Depois de haver conquistado o conceito, ou seja, acapacidade de conceituar, de formular a concepo dos objetosmateriais, o homem se torna capaz de ajuizar, de comparar,medir e julgar as coisas. Somente nesse momento ele se tornaapto a formular juzos ticos e morais, a elaborar regras para asua conduta moral e a esboar um panorama tico das relaeshumanas e divinas. evidente que uma funo no decorreimediatamente da outra. A capacidade de abstrao evoluilentamente para a de julgamento das coisas, e s numa fase

    adiantada da evoluo intelectual atinge a de formulao dejuzos ticos e morais. o que nos mostra, por exemplo, a

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    45/254

    evoluo do pensamento grego, ao passar dos antigos fisilogospara os sofistas, e destes para os filsofos da linha socrtica.

    A capacidade de formular princpios jurdicos, ou normasreguladoras da vida social, aparece bem cedo, antecedendo acapacidade de formulao dos juzos ticos e morais. Essaprecedncia natural e decorre das exigncias materiais da vidaem sociedade. Entretanto, suas primeiras fases so aindainconscientes, determinadas pelo mecanismo das exignciassociais. Somente no horizonte civilizado a funo se define, permitindo a elaborao verdadeira dos princpios, que seincorporam nos primeiros cdigos, como o de Hamurabi, para

    depois se desenvolverem em estruturas mais complexas. Asnecessidades de organizao do Imprio exigiram dos romanos oaprimoramento dessa funo, que caracterizou a sua civilizao.Todas as dificuldades de ligao das substncias cartesianas, queEspinosa tentou resolver com a sua formulao pantesta,resolveram-se, assim, no no plano filosfico, mas no planohistrico. A Histria nos mostra a conjugao dos elementosmateriais e espirituais no desenvolvimento do processo

    evolutivo.O Esprito de Civilizao, ou o Esprito Civilizado, a que

    John Murphy se refere, , portanto, um produto da evoluo da Natureza Universal, que aparece e se desenvolve no planosuperior da Natureza Humana. Ao atingir o horizonte civilizado,o homem se transforma no ser moral que supera o ser social, ouo animal poltico aristotlico, projetando-se em direo ao serespiritual do futuro. A humanidade deixa de ser uma espcie,para se transformar num devir. Por isso mesmo, o mediunismoprimitivo, o animismo e o culto dos ancestrais se refundem numaforma nova de manifestao psquica, que o mediunismooracular. Os juzos ticos, morais e jurdicos remodelam asantigas formas de relaes medinicas do homem com osEspritos, as maneiras rudimentares de intercmbio do mundohumano com o mundo espiritual, formalizando essas relaes ecercando-as de cuidados especiais no plano moral.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    46/254

    3 - Mediunismo Oracular

    Os orculos dominam todo o horizonte civilizado.

    Constituem, praticamente, o centro de orientao de toda a suavida urbana e rural, poltica e religiosa. Mas que so os orculos?Sua definio no muito fcil, o que mostra a naturezatransitria dessas instituies religiosas. As antigas formas derelaes medinicas esto em trnsito para novas formas, e porisso mesmo apresentam, na sua constituio oracular,evidentemente sincrtica, motivos para diferentes interpretaes,dificultando a sua definio.

    O orculo s vezes a prpria Divindade, outras vezes aresposta dada s consultas, o santurio ou templo, o mdium queatende aos consulentes, ou o local das consultas: um bosquesagrado, uma gruta misteriosa, uma fonte miraculosa. A palavraserve para designar todas essas coisas, uma de cada vez, ou todasem conjunto. Porque a mentalidade popular no sabe aindadistinguir a fora misteriosa que age, nem os seus meios de ao.A Divindade pode falar por si mesma, como pode estar

    encarnada no santurio, no templo, na trpode, na pitonisa ou noselementos da natureza.

    Os orculos so procurados por todos: reis e sbios,guerreiros e comerciantes, homens e mulheres do povo. Nisso,esto todos de acordo, porque todos reconhecem e respeitam apresena de uma fora sobrenatural nesses locais sagrados. Alei de adorao, de que trata Kardec, atinge nos orculos umaforma de sntese, reunindo as conquistas efetuadas ao longo de

    sua evoluo nos horizontes anteriores. Esto ali presentes, emescladas, as formas sucessivas de desenvolvimento da lei, queencontramos nos horizontes tribal e agrcola. A concepoanmica do mediunismo primitivo, o culto dos ancestrais, adeificao dos elementos naturais, podem ser facilmenteidentificados. Os prprios elementos larvares, rudimentares, damagia e da religio, esto ali presentes: a litolatria, a fitolatria, azoolatria, na adorao de pedras, de guas, de rvores e bosques,

    de animais e divindades semi-animais.

  • 8/6/2019 15 - Herculano Pires - O Esprito e o Tempo (1)

    47/254

    Por outro lado, as conquistas mentais do homem, na longaevoluo que realizou, desde a era tribal at a civilizao,constituem a fora aglutinadora desses elementos. A capacidade

    de abstrao mental, o desenvolvimento tico e a formulao denormas jurdicas, responsveis pela individualizao, modelamos elementos aglutinados, dando assim uma estrutura complexaao processo de comunicao medinica. O fenmeno natural, deintercmbio medinico, artificializa-se, O processo deracionalizao, por outro lado, exige a elaborao decosmogonias. Os orculos no so, portanto, formas simplriasde culto religioso, ou simples locais de consulta medinica. Sua

    estrutura, muitas vezes bastante complicada, alicera-se numaconcepo do mundo.

    A natureza vaga dessa concepo corresponde prprianatureza sincrtica da instituio oracular. O fenmenomedinico aparece nela como um mistrio. Nada o explica, nempode explic-lo, nem deve atrever-se a tanto. O tabu tribal seimpe de maneira mais vigorosa e mais ampla, agoradesenvolvido numa forma racional, que a concepo do

    sagrado. A humanidade se encontra, nessa fase, como umadolescente, que reelabora em seu ntimo os sonhos, os temores eas esperanas provenientes das primeiras visualizaes domundo exterior. A fase infantil de indiferenciao psquica,vivida coletivamente no horizonte tribal, exerce ainda a suainfluncia sobre as cosmogonias oraculares.

    Curioso notar-se que no h, nos orculos, aquilo quechamaremos de individualizao medinica. Embora exista omdium, ora chamado de orculo, ora de pitonisa, e emboraexista uma entidade comunicante, as mensagens so dadasatravs de processos impessoais. s vezes, o murmrio dafonte que responde ao consulente; de outras vezes, o rumorejardo bosque ou os sons