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SEGUINDO VOTOS E EX-VOTOS NO CÍRIO DE NAZARÉ (BELÉM-PA): PERSPECTIVAS PARA COMPREENSÃO DA CULTURA MATERIAL RELIGIOSA 1 Anselmo do Amaral Paes 2 RESUMO O presente esforço de pesquisa está centrado nos chamados ex-votos (abreviação de ex-voto suscepto - voto realizado), considerando suas práticas e lógicas e, assim, segue (literalmente) estes artefatos durante a performance ritual e “paisagem devocional” (Paes) da procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará. Durante a principal procissão, os ex-votos são levados por devotos como pagamento de “promessas” (promissum, voto) visando à superação do adoecimento, obtenção e recuperação de bens, agradecimento e proteção, dentre outras perspectivas existenciais. Considera-se, assim, a necessidade de dissolver suas fronteiras (enquanto “objetos”), investindo em concepções teóricas que permitam que nos aproximemos de sua materialidade e fenomenologia (Morgan), recorrendo à categoria “paisagem”, à perspectiva da consideração das “coisas” e seus “fluxos vitais” (Ingold), assim como "assemblage" (Deleuze & Guattari). É, portanto, sobre estes artefatos sagrados que circulam durante o Círio de Nazaré em Belém do Pará e os muitos ângulos e diálogos produzidos em busca de sua apreensão que buscamos construir referenciais para a compreensão atual da cultura material religiosa. Palavras-chave: Círio de Nossa Senhora de Nazaré, ex-votos, corpo, performance, cultura material religiosa. RESUME The present research effort is focused on so-called ex-voto (ex-voto suscepto, vote taken), considering their practical and logical and thus follows (literally) these artifacts during the ritual performance and "devotional landscape" (Paes) of procession of Círio of Nazaré in Belém do Pará. During the main procession, ex-votos are taken by devotees as payment, "promises" (promissum, vote) aimed at overcoming illness, getting and asset recovery, appreciation and protection, and other existential perspectives. Thus it is considered the need to dissolve their borders (as "objects"), investing in theoretical concepts that allow us to approach their materiality and phenomenology (Morgan), using the category "landscape", the prospect of considering “things" and their "vital flows " (Ingold) and "assemblage" (Deleuze & Guattari). It is, therefore, on these sacred artifacts that circulate during the Círio of Nazareth in Belem and the many angles and dialogues produced in search of his concern that seek to build reference to the current understanding of religious material culture. Key-words: Círio of Our Lady of Nazareth, ex-votos, body, performance, religious material culture. 1. APRESENTAÇÃO Esta breve comunicação segue os artefatos votivos no Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Grão Pará, considerando-os como parte e etapa de um processo, a 1 Trabalho apresentado no GT 56 - Materialidades do sagradoda 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, da 29ª, realizada entre os dias 04 e 06 de agosto, em Natal-RN. 2 Doutor em Ciências Sociais-Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais PPGCS/UFPA, pesquisador-antropólogo do Sistema Integrado de Museus e Memoriais do Pará (SIM/Secult-PA) e docente na Faculdade de Belém (PA).

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SEGUINDO VOTOS E EX-VOTOS NO CÍRIO DE NAZARÉ (BELÉM-PA):

PERSPECTIVAS PARA COMPREENSÃO DA CULTURA MATERIAL RELIGIOSA1

Anselmo do Amaral Paes2

RESUMO

O presente esforço de pesquisa está centrado nos chamados ex-votos (abreviação de ex-voto suscepto -

voto realizado), considerando suas práticas e lógicas e, assim, segue (literalmente) estes artefatos

durante a performance ritual e “paisagem devocional” (Paes) da procissão do Círio de Nossa Senhora

de Nazaré em Belém do Pará. Durante a principal procissão, os ex-votos são levados por devotos

como pagamento de “promessas” (promissum, voto) visando à superação do adoecimento, obtenção e

recuperação de bens, agradecimento e proteção, dentre outras perspectivas existenciais. Considera-se,

assim, a necessidade de dissolver suas fronteiras (enquanto “objetos”), investindo em concepções

teóricas que permitam que nos aproximemos de sua materialidade e fenomenologia (Morgan),

recorrendo à categoria “paisagem”, à perspectiva da consideração das “coisas” e seus “fluxos vitais”

(Ingold), assim como "assemblage" (Deleuze & Guattari). É, portanto, sobre estes artefatos sagrados

que circulam durante o Círio de Nazaré em Belém do Pará e os muitos ângulos e diálogos produzidos

em busca de sua apreensão que buscamos construir referenciais para a compreensão atual da cultura

material religiosa. Palavras-chave: Círio de Nossa Senhora de Nazaré, ex-votos, corpo, performance,

cultura material religiosa.

RESUME

The present research effort is focused on so-called ex-voto (ex-voto suscepto, vote taken), considering

their practical and logical and thus follows (literally) these artifacts during the ritual performance and

"devotional landscape" (Paes) of procession of Círio of Nazaré in Belém do Pará. During the main

procession, ex-votos are taken by devotees as payment, "promises" (promissum, vote) aimed at

overcoming illness, getting and asset recovery, appreciation and protection, and other existential

perspectives. Thus it is considered the need to dissolve their borders (as "objects"), investing in

theoretical concepts that allow us to approach their materiality and phenomenology (Morgan), using

the category "landscape", the prospect of considering “things" and their "vital flows" (Ingold) and

"assemblage" (Deleuze & Guattari). It is, therefore, on these sacred artifacts that circulate during the

Círio of Nazareth in Belem and the many angles and dialogues produced in search of his concern that

seek to build reference to the current understanding of religious material culture. Key-words: Círio of

Our Lady of Nazareth, ex-votos, body, performance, religious material culture.

1. APRESENTAÇÃO

Esta breve comunicação segue os artefatos votivos no Círio de Nossa Senhora de

Nazaré em Belém do Grão Pará, considerando-os como parte e etapa de um processo, a

1 Trabalho apresentado no GT 56 - “Materialidades do sagrado” da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, da

29ª, realizada entre os dias 04 e 06 de agosto, em Natal-RN. 2 Doutor em Ciências Sociais-Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais –

PPGCS/UFPA, pesquisador-antropólogo do Sistema Integrado de Museus e Memoriais do Pará (SIM/Secult-PA)

e docente na Faculdade de Belém (PA).

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circulação de votos e ex-votos se dá no espaço urbano de Belém durante as procissões e festas

devotas do Círio, no qual se destaca como “principal” a procissão chamada especificamente

de Círio, porém o número de procissões e homenagens está sempre requisitando novos

olhares, pois se multiplicam ano a ano.

A grande multidão que se reúne diante da Catedral da Sé para o início da caminhada

que levará a imagem da Santa e seus fiéis até a Basílica de Nazaré, agora Santuário, no bairro

de Nazaré. Desde 1793 acontece em Belém do Pará (Brasil) um dos eventos religiosos

católicos mais significativos do catolicismo brasileiro, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré,

cuja procissão principal que ocorre no segundo domingo de outubro, percorre as ruas da

cidade, em várias romarias, missas e procissões no período de 15 dias. Em destaque a

Trasladação e o Círio que recontam a lenda e milagre da Santa cuja imagem insistia em

retornar ao local da descoberta, nos arredores de núcleo mais antigo da cidade.

Estes artefatos durante a performance ritual e “paisagem devocional” (PAES, 2013) da

procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará. Durante a principal

procissão, os ex-votos são levados por devotos como pagamento de “promessas” (promissum,

voto) visando à superação do adoecimento, obtenção e recuperação de bens, agradecimento e

proteção, dentre outras perspectivas existenciais.

Este evento muda o “clima” da cidade. Podemos, assumindo esta direção, considerando

os diálogos teóricos empreendidos neste artigo, considerar aspectos da materialidade do

sagrado no complexo ritual do Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Grão Pará, em

destaque o aspecto dos chamados ex-votos. Proponho, para que possamos seguir os ex-votos,

refletir com auxílio de diálogos teóricos que apresentem abordagens que permitam a

superação de dicotomias como sujeito-objeto, material-imaterial, individuo-paisagem de

forma a integrar as coisas nos fluxos da vida.

Nesta perspectiva e antecipando algumas reflexões, remeto a imagem instigante do

“rizoma” (DELUZE & GUATTARI, 2011), como inspiração e apresentação do projeto

dialógico que segue em busca dos ex-votos em sua plenitude:

“Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre

as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma

tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’. Há nesta conjunção força

suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você¿ Aonde

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quer chegar¿ São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir de

zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção

da viagem e do movimento” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 48-49).

2. VOTOS, EX-VOTOS E CÍRIO DE NAZARÉ

Câmara Cascudo (2004) refere-se aos ex-votos sob a denominação “promessa”, o que já

nos traz a concepção poderosa de que o artefato confunde-se com o próprio ato de prometer,

seria, pois um “artefato-ação”. Assim, nos traz verbete: “Promessa. O mesmo que ex-voto,

objeto doado aos santos, em satisfação de uma súplica atendida. A “promessa” pode constar

de obrigação de praticar ou não determinados atos, abster-se de usar certas cores, servir-se de

alimentos indicados” (CASCUDO, 2004, p. 582).

Há, porém, digamos, as marcas deixadas pela promessa, como o mesmo atesta, sob o

verbete “milagre”: “(...) representação do órgão ou parte do corpo humano curado pela

intervenção divina e oferecido ao santuário em testemunho material de gratidão” (Idem, p.

450).

Por sua vez, Maria Augusta Machado da Silva (1981) nos apresenta obra de referência

de uma leitura de base museológica dos ex-votos ou promessas (“Ex-votos e orantes no

Brasil”). Para esta pesquisadora os objetos votivos apresentam características de

sobrevivência, ação mágica e aspecto testemunhal, o que justifica suas caraterísticas mais

marcantes. Considerando voto e ex-voto, quanto ao primeiro afirma caracteriza-se por ser “ato

propiciatório anterior à graça ou mercê desejada ou, simplesmente, dirigido à divindade (ou

seus agentes), como tributo de fé, ou de reverência ou vassalagem” (SILVA, 1981, p. 17). O

ex-voto por sua vez, como etapa ritual posterior é: a prática desobrigatória posterior à graça

ou mercê alcançada, como testemunho público, contemporâneo, não só da força milagreira da

divindade (ou de seus agentes), mas também da gratidão do milagrado” (idem, p. 17).

A caraterística testemunhal refere-se à perspectiva de demonstrar publicamente que a

dívida foi paga, assim como engrandecer e agradar o agente do milagre, que vê seu prestígio e

esplendor aumentado. Por isso a estética de acúmulo nas salas de milagres em centros de

peregrinação. Haveria tantos milagres concedidos que as salas sempre cheias de seus tesouros.

Quanto maior o acúmulo maior o prestígio, em comparação a outros agentes.

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Sem desconsiderar relatos mais antigos, a presença dos ex-votos é apontada como parte

da devoção a Nossa Senhora de Nazaré desde seus primeiros registros, como já o descreve

Arthur Vianna ao apresentar relato sobre a história da festa maior paraense. Assim nos diz no

artigo “O Círio” (Jornal “O Pará”, 9 de outubro de 1898):

“Não tardou que os milagres da santa a tornassem popular e entrasse a

concorrer ao seu humilde albergue grande número de devotos, uns que iam

implorar-lhe a proteção, aflitos por sentimentos próprios ou de pessoas caras,

outros que iam levar-lhe ofertas de cera por pedidos já satisfeitos (...).

(...) inúmeras promessas, então feitas de madeira, pés a escorrerem

sangue, mãos mutiladas, muletas, braços cobertos de chagas, objetos em

geral mal trabalhados a demonstrarem os conhecimentos rudimentares de

escultores não profissionais e a demonstrarem também os benefícios da

desvelada protetora dos pobres” (MONTARROYOS, s/d., p. 238-239, grifos

nossos).

Na procissão veem-se os promesseiros carregando ex-votos representando casas, barcos,

animais, materiais de construção, e em destaque neste trabalho, os corpos e partes do corpo

(esculpidas em cera, miriti, gesso ou em madeira) mostrando ao mesmo tempo os males e as

alternativas encontradas para a resolução de seus problemas.

Os artefatos votivos apresentam, como indica Silva (1981), tipologia muito variada.

Junto ao espaço do Museu do Círio, no qual inicia a pesquisa aqui desenvolvida, os ex-votos

compõem a coleção mais numerosa e variada. Efetivamente qualquer objeto pode tornar-se

um ex-voto, somente precisa estar ligada ao ato de promessa e entrar no círculo da dádiva

(dar, receber, retribuir), cuja linguagem é frequentemente a do pagamento, da dívida, não

sendo incomum que o devoto pague a promessa antecipadamente, pois não só demonstra sua

confiança na graça divina, como deixa o agente divino mais comprometido em urgentemente

conceber a graça.

3. O estudo da cultura material religiosa e a perspectiva fenomenológica

O objetivo do estudo da cultura material religiosa, a conjunção de estudos da religião e

sobre cultura material, é incluir a materialidade no campo estudos sobre a crença e o sagrado.

Apesar do importante trabalho nos últimos anos, a Sociologia e Antropologia das Religiões

continuam a ser dominadas por abordagens que presumem abstrata a "crença", categoria

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central da religião, muitas vezes reduzindo a religião a um corpo de asserções que exigem

parecer favorável. Práticas, sensações, emoções, espaços e coisas, quando eles são

examinados, são vistos como meras manifestações secundárias ou passivas de crenças

anteriores, internas e mais fundamentais.

Morgan (2010a) nos afirma a necessidade de ampliar o campo da crença, incluindo o

mediador que é o corpo na compreensão dos estudos religiosos sobre a cultura material. Este

nos afirma que a crença é “(...) the felt expectation that the world works in a particular way (p.

8). Assim, propõe “(...)an approach to religion that attends to belief as an embodied

epistemology, the sensuous and material routines that produce an integrated (and culturally

particular) sense of self, community, and cosmos (...) the forms of materiality which organize

the world” (MORGAN, 2010b, p. 8-9).

A corporeidade é um eixo analítico. O corpo é o sujeito da cultura, base fundante da

existência cultural. Não mais objeto do estudo da cultura, mas paradigma para seu estudo,

Morgan (2010) em consonância com Csordas (2008) e Merleau-Ponty (2011), requisita a ação

metodológica de que se reconheça no estudo da materialidade da cultura material (ou

imaterial) e religião: “(...) the body and its engagement in spaces and things as integrally

engaged in the production of experience, we are urged to recast the understanding of matter.

Body, mind, and thing are not as discrete as classical philosophy often portrait to be”

(MORGAN, 2010, p. 70).

A todo o momento afirma-se a corporeidade do “ser-no-mundo”, mesmo diante da

tentativa de atrofiar a experiência do corpo e buscar romper as relações físicas e sensoriais

com o mundo, pois na vida diária o corpo sempre volta a demandar sua atenção, mesmo que

na forma de adoecimento e sintoma, conforme nos propõe Merleau-Ponty (2006) e Csordas

(2008), e nos propõe Morgan (2010) no que se refere à sua proposta de estudo da cultura

material religiosa.

Nesta forma o estudo da cultura material religiosa e da materialidade do sagrado,

considera que “[m]ateriality is salso the push-back of physical regimes that culture must

grapple within in its world-making activity (...)”, portanto, “(...) [r]eligious material culture

consists of the objects, spaces, practices, and ideas in which belief takes place” (Idem, p. 73).

O esforço de busca da materialidade do sagrado não se resume aos objetos, mas ao universo

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amplo de técnicas, performances, sons, cheiros, paisagens, um mundo vivido, praticado com

engajamento pleno.

O resultado de seus esforços em consonância com as necessidades que encontramos no

estudo dos artefatos votivos nos indica a orientação de perceber e desenvolver o círculo

hermenêutico que desafia o dualismo entre corpo e mente, cultura e natureza, sujeito e objeto.

Para pensar os ex-votos devemos seguir seus movimentos, efetivamente incorporá-los, pensar

paisagens efêmeras construídas pela performance do voto, reconhecer fluxos e dissolver as

fronteiras do artefato, retirando-o de seu isolamento aparente e reconhecendo-os integrados a

amplos processos vitais.

4. CAMINHOS, FLUXOS E ASSEMBLAGE: A VIDA SOCIAL DAS COISAS

Como indico no título desta comunicação, os ex-votos devem ser seguidos. Por que¿

Porque os ex-votos não estão estáticos, as coisas como veremos estão em fluxo e compõem

agenciamentos múltiplos em várias esferas de ação e sentido. Se os encontro em minha

primeira aproximação como pesquisador no espaço musealizado do Museu do Círio, logo me

levam a trilhar os caminhos das cidades, traçando corpografias (JACQUES, 2009) dos ex-

votos no Círio, eles remetem às instâncias de meu engajamento no mundo. Devemos nos

movimentar assim como estão em movimento as coisas no mundo.

As classificações dos ex-votos irão variar de mercadoria a objeto único, de ter preço a

ser de valor incalculável, de valores monetários a valores sentimentais, de esferas sublimes à

matéria anônima, e vice-versa. O estudo empreendido por Kapytoff (2011) mostra através de

uma metodologia centrada nos artefatos a constante reclassificação das coisas. Essa

metodologia pede que exercitemos a possibilidade de traçar uma “biografia social” das coisas.

E, neste sentido, considera-se que:

In the homogenized world of commodities, an eventful biography of a thing

becomes the story of the various singularizations of it, of classifications is

um uncertain world of categories whose importance shifts with every minor

change in context. As with persons, the drama here lies in the uncertainties

of valuation and of identity” (KAPYTOFF, 2011, p. 90)

Como já indicado é o “rizoma” que inspira a aproximação com o artefato-coisa-mundo.

Deleuze & Guattari (2011) argumentam que “(...) qualquer ponto de um rizoma pode ser

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conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 22), o modelo

do rizoma, assim se contrapõe ao da árvore ou raiz que indicam ordem e hierarquia. O rizoma

é uma “antigenealogia”, sua imagem é exatamente proposta para confrontar a perspectiva dos

“sistemas arborescentes”:

“Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. A orquídea não reproduz o

decalque da vespa, ela compõe o mapa de uma vespa no seio de um rizoma.

Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma

experimentação ancorada no real, pois o mapa é aberto, é conectável em

todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber

modificações constantemente” (Idem, p. 30).

Participando da perspectiva de ampliar e dissolver os invólucros que impedem que a

vida participe da vida, busca Ingold (2012) concepção ontológica enfatiza os processos de

formação em oposição do objeto (produto final, fato consumado), logo o mundo é composto

por coisas (processo).

Esta abordagem sobre as coisas está atenta para os processos de formação, aos fluxos e

suas transformações. Coisas têm vida, percepção que é trabalhada enquanto “(...) capacidade

geradora do campo englobante de relações dentro do qual as formas surgem e são mantidas no

lugar” (INGOLD, 2012, p. 27). Seu alerta é quanto à redução das “coisas” aos “objetos” e de

sua correspondente retirada dos processos vitais, ou seja, não a materialidade, mas o fluxo de

materiais. Seguir estes fluxos, trilhar os caminhos geradores, nos quais uma coisa é uma

concentração destes fluxos, de linhas em uma malha que não conecta, mas aproxima-se e

encontra outros fluxos vitais, estes emaranhados são, assim, momentos em fluxos.

Por isso me aproximo da imagem instrumental da assemblage (traduzida como

“agenciamentos”, porém mantenho a expressão na língua nativa para marcar sua utilização

como categoria analítica), considerada como número de coisas ou partes de coisas, linhas e

velocidades entrelaçadas em um único contexto, tessitura (DELEUZE & GATTARI, 2011, p.

22) que pode trazer um número de efeitos: sejam estéticos, produtivos, econômicos, etc.,

assim para alcançar as coisas, como os ex-votos em sua potencialidade, deve-se acessar essa

assemblage a partir de ângulos e linhas diversas considerando nossa incapacidade de impor

fronteiras, limites e distinções. Um ex-voto pode, como temos visto, participar de uma

assemblage de vitalidades, pois seu status instrumental não o esgota ou o previne de conter ou

participar de outras assemblage.

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Em contraste com os "objetos", as "coisas" não são uma “(...) entidade fechada para o

exterior, que se situa no e contra o mundo, mas de um nó cujos fios constituintes, longe de

estarem neles contidos, deixam rastros e são capturados por outros fios noutros

nós" (INGOLD, 2012, p. 29) e é esta perspectiva que instrui o esforço de compreensão, do

qual surge o método: seguir os processos (fluxos). Ao evitar a distinção entre coisas e pessoas

como fundamento analítico, a concepção de que ao invés de atentarmos para a “matéria”

devemos pensar em um “mundo de materiais”, assim sugere que trazer objetos (de volta) à

vida, indica que inserindo-nos em um mundo em formação, mundo animado em constante

fluxo gerativo, considerando que "(...) as coisas vazam sempre transbordando pelas

superfícies que se formam temporariamente em torno delas” (Idem, p. 29).

5. O mundo praticado

Para nos aproximarmos da paisagem devocional do Círio, registro, produção ou seleção

de imagens não é somente instrumentalização, mas atos de reflexão contínuos às demais

formas textuais. Ainda neste raciocínio, a concepção de paisagem (landscape) apresentada por

Tim Ingold (2000) igualmente rejeita a divisão entre mundo “interior” (subjetividade pura) e

mundo “exterior” (objetividade pura), assim: “The landscape, I hold, is not a picture in the

imagination, surveyed by the mind’s eye; nor however is it an alien and formless substrate

awaiting the imposition of human order” (INGOLD, 2000, p. 191).

Quando Ingold (2000) refere-se a uma paisagem (landscape) ele a contrapõe, apenas

para reconsiderá-la à perspectiva da taskscape (“tarefagem”), pois adota o termo em “task” -

“tarefa”, “(…) defined as any practical operation, carried out by a skilled agent in an

environment, as part of his or her normal business of life. In other words, tasks are the

constitutive acts of dwelling” (Idem, p. 195).

E ainda, dando sequência ao seu argumento e reflexão:

“It is to the entire ensemble of tasks, in their mutual interlocking, that I refer by the concept of

taskscape. Just as the landscape is an array of related features, so – by analogy – the taskscape is

an array of related activities. And as with the landscape, it is qualitative and heterogeneous: we

can ask of a taskscape, as of a landscape, what it is like, but not how much of it there is. In

short, the taskscape is to labour what the landscape is to land, and indeed what an ensemble of

use-values is to value in general” (INGOLD, 2000, p. 195).

Uma paisagem devocional aprecia e amplia a percepção da paisagem cultural sob

prisma fenomênico, considerando a paisagem fluída e efêmera do movimento processional e

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devoto que constrói e transforma o espaço, o sacraliza, o dessacraliza, contrapõe tempos

diversos, sobrepõem vivências espaciais, temporais e imagéticas.

O exemplo de assemblage desenvolvido por Deleuze & Guattari (2011) recai sobre o

livro. Este é um conjunto deste tipo, uma assemblage. Uma multiplicidade, que apresenta

estratos, que sem dúvida, tornam-no um tipo de organismo, ou significando totalidade, ou

determinações atribuíveis. O livro é um misturado de peças discretas ou peças que são

capazes de produzir efeitos em quaisquer números, uma vez que é um bem organizado e

coerente. Assim, a beleza de sua montagem é que, uma vez que lhe falta organização, pode

dispor em seu corpo qualquer número de elementos díspares. O livro em si pode ser uma

montagem, mas seu status como uma assemblage não o impede de contendo assemblage

dentro de si mesmo ou entrando em novas assemblage com os leitores, bibliotecas, fogueiras,

livrarias, etc.

Retornando a perspectiva rizomática, os ex-votos, as coisas no mundo estão em

constante “desterritorialização” e “reterritorialização”, afirmam: “(...) [c]omo é possível que

os movimentos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem

relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns nos outros?” (DELEUZE &

GUATTARI, 2011, p. 26).

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Imagens 01. Desterritorialização, reterritorialização, assemblage. @Anselmo Paes, 2012-2013.

Momentos nos fluxos, como afirmam desenvolvendo a relação de agenciamento mútuo

questiona, para em seguida responder:

“A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de

vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se

desterritorializa, no entanto, devindo ela mesma uma peça no aparelho de

reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o

pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade” (Idem,

p. 26).

O ex-voto não participa, enfim, da paisagem, mas é a paisagem, esta enquanto

assemblage de fluxos e performances constitutivas. Nestes termos paisagem se refere a

cheiros, música, texturas, corpos. Nenhum destes elementos auto-contidos, corpos entre

corpos objetos entre outros objetos, mas constituindo uma experiência de fluxos materiais,

constituintes de um cosmos.

6. SEGUINDO (LITERALMENTE), VOTOS E EX-VOTOS

Os variados votos nos apresentam quais são as situações limite da vida dos brasileiros:

são casas (ou partes destas, como tijolos) (que denotam a necessidade de moradia), livros,

apostilas, monografias (que denunciam as dificuldades em ingressar no ensino superior

brasileiro), barcos, ônibus, caminhões, taxis e outros veículos (instrumentos de trabalho e

busca de autonomia financeira), partes de corpos representados em parafina, muletas,

próteses, bonecas, peças de vestuário (o corpo, primeiro instrumento do homem), que

traduzem o desejo de saúde, bem nem sempre disponível a todas as classes sociais,

igualmente como, em uma tipologia sempre em crescimento, cruzes, mantos decorados,

terços, fitas, pedras, bilhas de água em cerâmica, que conformam e conformam-se ao corpo no

lento movimento e tempo da procissão. Ao falar de ex-voto estamos falando de relações, de

memórias, de escolhas, de ações, de um processo ritual e performático de transformação, ou

seja, estamos mergulhando em um fluxo de vitalidades que aproxima em tessitura homens e

artefatos, corpos e lugares, memórias. O ex-voto, enfim não pode ser visto como um mero

“objeto”.

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Coisas são mais que coisas nos diz Morgan (2010). Ingold (2000, 2011) nos mostra

como os invólucros são vazados e as coisas incontinentes. Deleuze e Guattari (2011) nos

apresentam os fluxos incansáveis, que constituem o próprio mundo. Qualquer tentativa de

isolar ou procurar um ponto de começo tende a falhar ou se demonstrar arbitrária na

assemblage do mundo, pois “(...) existem somente linhas” (DELEUZE; GUATTARI, p. 24).

Assim a reflexão sobre o campo dos artefatos pretende quebrar as distinções duras entre

campos da objetividade e da subjetividade, nos oferecendo a perspectiva de que as coisas

devem ser percebidas como compondo uma assemblage (agenciamentos) (Idem, p. 18).

Os ex-votos são processo, uma etapa em um processo contínuo de transformações nos

fluxos da matéria e materiais. Sua “biografia” (KAPYTOFF, 2011) nos revelam os caminhos

e fluxos da vida, mapeiam a cidade, a constroem, produzem paisagens, entrelaçam. Há

múltiplas camadas de sentidos em cada uma de suas assemblage, porém os ex-votos não

podem ser pensados como invólucros fechados, suas fronteiras reforçadas, pois eles são

produzidos por vários fluxos e constituem novos fluxos. Por isso, neste caso a perspectiva de

uma paisagem devocional contribui para seu desvelamento a nossos olhos.

Não é possível falar de ex-voto sem falar de voto, não é possível ignorar os caminhos

traçados e as marcas na cidade e da cidade, assim como de seus participantes. A jornada em

torno destes artefatos, das coisas que compõem o Museu do Círio, levam para fora do espaço

sacralizado do patrimônio museal, não excluindo, mas incluindo-o. Os ex-votos, as coisas

pedem para serem literalmente seguidas.

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