13620-16595-1-pb
TRANSCRIPT
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
1/12
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
2/12
CARLOS FREDERICO
MARTINS MENCKe ARMANDO
MORAIS VENTURAso professores doDepartamento deMicrobiologia do Institutode Cincias Biomdicasda USP.
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
3/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 200752
ALTOS E BAIXOS
DA TERAPIA GNICA
m 1990, foi realizado nos
Estados Unidos o primeiro
Protocolo Clnico de Terapia
Gnica em humanos, em duas
crianas portadoras da imuno-
deficincia combinada severa.
O sucesso parcial desse pro-
tocolo levou a uma exploso
no desenvolvimento de vrios
estudos com perspectivas de
uso teraputico dos genes. O
frenesi causado pelos resul-
tados iniciais levou, durante
a dcada de 1990, a se comparar a terapia
gnica com outras tecnologias que revo-
lucionaram a medicina moderna, como o
desenvolvimento de vacinas, anestesias
e a descoberta de antibiticos. A relativa
facilidade de manipulao dos vetores
genticos derivados de vrus e o aumento
na capacidade de se isolar genes humanos
geraram expectativas de avano rpido
nesse tipo de terapia e muita excitao
na mdia e mesmo nas pesquisas na rea.
Esse entusiasmo inicial, no entanto, no foi
confirmado, e vrios problemas foram en-
contrados em protocolos clnicos de terapia
gnica realizados em seres humanos, o que
deixou claro que ainda temos uma longa
estrada a percorrer antes que o emprego
dessa tecnologia possa ser incorporado
de forma mais genrica ao dia-a-dia dos
hospitais. No entanto, avanos claros tm
sido conseguidos, e novas abordagens tm
ampliado o espectro de ao da terapia g-
nica, abrindo novos horizontes de uso.
O aumento na quantidade de protocolos
clnicos reflete o fato de que h grandes es-
peranas de sucesso da terapia gnica para
combater doenas que afligem a sociedade
h muito tempo, com poucas perspectivas namedicina clssica. Entre as grandes mudan-
as recentes, destacamos o uso de molculas
de RNA dupla-fita que agem como silen-
ciadores gnicos atravs de mecanismos de
RNA interferncia (RNAi). Esses mecanis-
mos eram praticamente desconhecidos at
poucos anos atrs, e sua descoberta resultou
na premiao do Nobel em Medicina de
2006 aos americanos Andrew Z. Fire e
Craig C. Mello. As expectativas dessas
novas abordagens empregando RNAi so
descritas no final deste artigo. Em relao
a nosso pas, cabe a ns optar por assistir
a esses avanos como espectadores, para
posteriormente pagar pelos medicamentos
que sero criados, ou investir para tambm
contribuir com propostas nossas, criando
alternativas, e tambm considerar o combate
a doenas que afligem principalmente os
pases menos desenvolvidos.
HISTRICO
O trabalho pioneiro descrito por Oswald
T. Avery e seus colaboradores em 1944 j
mostrou que possvel transferir genes de
uma cepa bacteriana patognica para outra
no-patognica, identificando o DNA como
portador da informao gentica. Essa des-
coberta fundamental foi logo seguida pela
proposta da estrutura dupla-hlice do DNA,
por James Watson e Francis Crick em 1953.
Estavam lanadas bases para a busca de uma
forma de inserir genes saudveis em indi-
vduos que deles necessitassem, hiptese
que foi aventada em 1964 por trs prmios
Nobel: Edward L. Tatum, Joshua Lederberg
e Arthur Kornberg. O isolamento do primei-
ro gene, por Jon Beckwith e colaboradores
em Harvard (1969), levou a declaraes
reforando essa possibilidade. No entanto,
teve incio tambm uma polmica sobre a
segurana da engenharia gentica e possi-
bilidades de sua utilizao para propsitos
de eugenia. Esse debate estendeu-se durante
toda a dcada de 1970 e culminou na criao
de legislaes adequadas de segurana em
diversos pases.
Em 1977, os pesquisadores MichaelWigler e Richard Axel conseguiram a pri-
meira correo gentica propriamente dita
em clulas de mamfero cultivadas in vitro.
Esses pesquisadores inseriram o gene que
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
4/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 2007 53
codifica a enzima timidina quinase em c-
lulas portadoras de deficincia nesse gene.
A metodologia utilizada, com DNA purifi-
cado, apesar de fornecer dados inequvocos,
ainda era pouco eficiente. Ganhou fora,
ento, a proposta aventada anteriormente de
utilizar vrus no-patognicos como vetores
transportadores de genes. Essa idia gerou
intensas pesquisas e j nos anos de 1983 e
1984 foram propostos os primeiros sistemas
de vetores derivados de trs espcies virais:
retrovrus, adenovrus e vrus adenoassocia-
dos (AAV). Uma ilustrao desses vrus
mostrada na Figura 1.
A idia de usar os prprios vrus como
veculos para transportar e introduzir
genes em um paciente, promovendo a
cura de doenas, de uma simplicidade
extraordinria e abre enormes perspecti-
vas para a sade humana. Basicamente,
essa proposta pretende utilizar estratgias
dos vrus, que puderam aperfeioar essa
entrega gentica atravs de evoluo
por milhes de anos. A conseqncia
do domnio da manipulao dos genes
trouxe possibilidades que extrapolam a
experimentao em bancada, podendo
ento ser propostas aplicaes clnicas
em seres humanos, como as implcitas na
definio de terapia gnica, qual seja: a
Vrus
Retrovrus Adenovrus adenoassociado
FIGURA 1
Principais vrus que servem de vetores para protocolos de terapia gnica
transferncia de material gentico novo
para clulas de um indivduo resultando
em benefcio teraputico.
No incio do sculo XXI, com o seqen-
ciamento do genoma humano e o desenvol-
vimento das ferramentas de comparao de
genes baseada na informtica, foi desvendado
um universo jamais imaginado anteriormente.
Essas ferramentas foram um apoio fundamen-
tal na medida em que vrias doenas humanas
eram, custa de muito trabalho, relacionadas
a defeitos em genes especficos. Os dados do
genoma humano foram anunciados vrias
vezes com pompa e euforia. As manchetes
identificavam que, com a revelao do Livro
da Vida, estaramos prximos de resolver
problemas seculares. De fato, com esses
dados foi possvel identificar pelo menos
70.000 defeitos genticos em seres humanos
(http://www.ornl.gov/sci/techresources/Hu-
man_Genome/posters/chromosome/). A ca-
pacidade de interferir na constituio gentica
de um indivduo, por meio da terapia gnica,
surge ento como uma espcie de tbua de
salvao para resolver problemas relaciona-
dos sade humana, pela cura de doenas
genticas herdadas dos pais, ou mesmo de
doenas que podem ser adquiridas durante
a vida, como o cncer, doenas do corao
e infeces virais.
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
5/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 200754
VETORES GENTICOS E OS
PROCESSOS DE TERAPIA GNICA
O desenvolvimento de novos vetores
genticos tem buscado superar os problemas
encontrados nos trabalhos iniciais de terapia
gnica. O vetor ideal deve ser de fcil pro-
duo, no deve gerar resposta imunolgica
ao vrus ou ao transgene pelo paciente, deve
promover a expresso do transgene de modo
eficiente e por longo tempo, alm de, se pos-
svel, ter especificidade no tecido alvo. Os
principais vetores testados at o momento
tm sido os derivados de adenovrus e retro-
vrus, sendo que ambos apresentam vrias
limitaes. Embora vetores adenovirais
apresentem alta eficincia, estes induzem
uma elevada resposta imunolgica que re-
duz o tempo de expresso do transgene e
praticamente impede a reaplicao em um
mesmo paciente.
Pelo menos em um caso o resultado foi
dramtico: em 1999, a aplicao de grandes
quantidades de adenovrus recombinantes
provocou a morte de um jovem paciente,
gerando enorme controvrsia sobre o uso de
terapia gnica em seres humanos. Vetores
retrovirais, por outro lado, permitem a in-
tegrao do transgene no genoma da clula
hospedeira, restaurando a deficincia celular
de um modo que pode ser permanente. No
entanto, a eficincia na produo de retro-
vrus recombinantes baixa, o que limita
a possibilidade de seu uso, e a insero no
genoma no impede o silenciamento poste-
rior da expresso do transgene. Alm disso,
recentemente foi reportada a inativao de
um proto-oncogene em linfcitos, induzin-
do a proliferao tumoral (leucemia) em
pacientes submetidos ao tratamento com
esse tipo de vrus durante trs anos. Vetores
derivados de vrus adenoassociados (AAV)
parecem resolver alguns desses problemas,
pois esses pequenos vrus no esto ligados a
nenhuma doena humana, so relativamentefceis de se obter, e pouco estimulam o
sistema imunolgico do paciente, aumen-
tando o tempo de expresso do transgene.
Sua produo em larga escala, no entanto,
consiste em um problema cuja soluo ainda
no simples.
Sistemas de transferncia gnica inde-
pendentes de vrus tm sido desenvolvidos
como alternativas aos problemas causados
pelos vrus recombinantes. Em uma dessas
abordagens, o transgene, na forma de DNA
livre, aplicado diretamente no paciente.
Essas vacinas de DNA so compostas pela
clonagem do gene de um antgeno prove-
niente de um patgeno, em um plasmdeo
bacteriano. Isso possibilita obter esse
plasmdeo em grande quantidade a partir
do cultivo de bactrias e purific-lo (DNA
apenas). Ao ser injetado num tecido, a parte
eucaritica desse plasmdeo expressa a pro-
tena antignica e gera uma resposta imune,
de forma similar a uma vacina normal com-
posta por antgenos proticos. No caso das
vacinas de DNA, no entanto, descobriu-se
que algumas delas, alm de despertar uma
resposta imune que protege o indivduo
contra uma infeco futura (preveno),
podem tambm atenuar a sintomatologia
de uma infeco em andamento, atuando
como uma vacina teraputica. Um exemplo
a ao que uma vacina de DNA, composta
por um antgeno da bactria que causa a
tuberculose, tem ao combater a infeco
ativa em camundongos. Como se trata da
transferncia de um gene novo para um
tecido causando benefcio teraputico,
mais uma estratgia de terapia gnica que
est prestes a ser testada em seres humanos,
e com grande possibilidade de sucesso.
Os lipossomos catinicos constituem
uma categoria parte em termos de m-
todos de transferncia gnica, sendo at
chamados de vetores no-virais. Estes
so compostos por lipdeos com cabea
polar positiva e formam complexos com o
DNA neutralizando a sua carga negativa,
o que permite seu transporte atravs da
membrana citoplasmtica. Complexos de
lipossomos e plasmdeos expressando ge-
nes que medeiam a resposta imune celular
foram injetados diretamente em clulastumorais de melanomas. Como resultado,
observou-se inibio do crescimento do
tumor e remisso parcial em parte dos
pacientes. A tendncia de um aperfeio-
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
6/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 2007 55
amento cada vez maior da eficincia dessa
metodologia.
De uma forma genrica, as etapas envol-
vidas em um experimento de terapia gnica
so: o isolamento do gene, a construo
de um vetor, a transferncia para clulas
no tecido-alvo, e a produo da protena
codificada e expressa pelo gene teraputico
nessas clulas. A transferncia do gene para
clulas est mostrada na Figura 2.
Para introduo de genes em organismos
atravs de terapia gnica, duas estratgias
bsicas podem ser utilizadas: in vivo e
ex vivo(Figura 3). Na estratgia in vivo,
vetores eficientes (como os adenovrus)
podem levar o transgene diretamente ao
rgo-alvo adequado (como o fgado) por
aplicao direta no organismo (como a
injeo endovenosa), levando eficiente
expresso do transgene. A estratgia ex vivo
baseia-se na modificao de clulas (como
pela infeco por um vetor retroviral) de um
tecido-alvo (como os linfcitos), retiradas
de um paciente e cultivadas in vitro. Essas
clulas selecionadas, em geral atravs de
uma marca de resistncia a antibiticos,
que so expandidas e reintroduzidas no
paciente, iro expressar o gene exgeno
desejado. A possibilidade de realizar pro-
tocolos ex vivotem assumido perspectivas
novas na associao de protocolos de terapia
gnica e uso de terapia celular, atravs da
modificao gentica de clulas-tronco,
que apresentam diferenciao em vrios
tecidos potenciais.
APLICAES DA TERAPIA GNICA
Como discutido anteriormente, os pa-
cientes portadores de doenas genticas
so vistos como potenciais beneficirios
da terapia gnica, pois a introduo de
um gene normal poderia reverter o quadro
clnico. Um exemplo fcil de entender a
hemofilia, em que os indivduos tm umamutao em um dos genes responsveis
pela sntese de um dos fatores de coagula-
o. Caso esse fator seja reintroduzido no
sangue, o tempo de coagulao volta ao
FIGURA 3
Estratgias de terapia gnica in vivoe ex vivo
FIGURA 2
Etapas envolvidas em um experimento de terapia
gnica, exemplificado com um vetor viral
1. Isolamentodo gene
2. Construodo vetor
3. Transduo
4. Liberao daprotena teraputica
Clula-alvo
mRNA
Protena
Ex vivo:1. coleta e cultivo in vitrodas clulas do paciente;
2. transduo com vetor carregando o gene teraputico;3. seleo e expanso das clulas com gene teraputico;4. reintroduo das clulas modificadas no paciente.
In vivo:1. formulao apropriada do vetor que carrega o gene teraputico;2. injeo direta do vetor no tecido-alvo do paciente.
12
3
4
1
2
Ex vivo In vivo
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
7/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 200756
normal, evitando hemorragias que podem
ser fatais. Os genes que codificam para os
fatores VIII e IX (hemofilias A e B) foram
clonados em diferentes vetores. Para que
haja o benefcio teraputico necessrio
que o gene seja expresso nas clulas de
um tecido do indivduo que possibilite
a liberao do fator de coagulao no
sangue. Nesse caso, as clulas do fgado
mostraram-se apropriadas, pois esse rgo
intensamente irrigado.
Doenas genticas adquiridas durante a
vida, como o cncer, doenas do corao
e infeces virais (Aids, por exemplo),
no entanto, tambm so alvos para pro-
tocolos de terapia gnica. A idia nesses
casos basicamente introduzir genes que
possam interferir no metabolismo da clula
cancerosa, bloquear a replicao viral ou
simplesmente estimular o sistema de defesa
imunolgico, propiciando um benefcio
teraputico ao paciente. Esses protocolos
de terapia gnica para doenas genticas
adquiridas tm sido muito estudados dada
a clara relevncia que sucessos podem ter
em sade humana.
Mais de 1.300 protocolos clnicos
aplicados diretamente em seres humanos
(apenas em 2006, foram iniciados 97 novos
protocolos), envolvendo terapia gnica, es-
to sendo aplicados no mundo atualmente,
e podemos utilizar esse nmero como um
parmetro do avano de cada estratgia
desse tipo de terapia. A revista cientfica The
Journal of Gene Medicinemantm uma re-
lao atualizada dos protocolos clnicos em
humanos para consulta no site http://www.
wiley.co.uk/genetherapy/clinical/, sendo a
maior parte (61,2%) desses protocolos ainda
correspondente a testes de fase I (objeti-
vando apenas verificao de segurana do
tratamento em poucos pacientes), enquanto
apenas 32 protocolos esto em fase III, mas
com chances reais de serem utilizados em
sade humana.
Esses dados, quando organizados por
tipo de doena (Figura 4), indicam que
atualmente temos uma predominncia de
protocolos clnicos voltados a tratamento
de cncer, com cerca de dois teros de to-
dos os testes (66,5%), seguido das doenas
cardiovasculares, doenas monognicas
e doenas infecciosas. Ao contrrio das
doenas monognicas recessivas como a
hemofilia, que requerem apenas a expres-
so do gene funcional para a correo do
estado patolgico, no cncer o objetivo
a eliminao do tecido tumoral. O gene
teraputico, nesse caso, tem um carter
diferente. Ele deve levar eliminao das
clulas tumorais, basicamente por duas vias.
Em uma dessas vias o gene txico (ou
gera produto txico) apenas para o tumor,
e, em outra via, o gene busca despertar a
resposta imune contra o tumor eliminan-
do-o. Aqui temos as maiores possibilidades
de aplicao da terapia gnica na clnica
em curto prazo. Um bom exemplo o gene
supressor de tumores p53, que, transportado
por vetores adenovirais, mostra-se efetivo,
isoladamente ou em combinao com outros
tratamentos como a radioterapia, para tratar
diferentes tumores.
As doenas cardiovasculares, como
doenas cardacas isqumicas, isquemia
de membros, neuropatia isqumica ou
diabtica, podem ser tratadas pelo estmulo
neovascularizao, que leva normali-
zao da circulao sangunea local. Uma
estratgia de terapia gnica em especial,em que o gene do fator de crescimento de
endotlio vascular aplicado localmente,
teve efeitos clnicos positivos. Da o grande
nmero de protocolos em andamento, cada
FIGURA 4
Distribuio da aplicao de protocolos clnicos
por tipo de doena
Cncer Doenasmonognicas
Doenasinfecciosas
Doenascardiovasculares
Outras doenasGenesmarcadores
Pessoas sadias
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
8/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 2007 57
vez mais aperfeioados, e uma expectativa
de aplicao mais ampla tambm em futuro
prximo.
As doenas infecciosas, dependendo do
agente patognico, podem ser vistas como
doenas genticas adquiridas, conceito mais
fcil de ser entendido quando se trata de
infeces virais. Esses microorganismos
desenvolveram a habilidade de inserir seus
genomas no interior de clulas do organismo
hospedeiro, e nelas multiplicarem-se. Nesse
processo ocorrem patologias devido des-
truio dos tecidos e reao do organismo.
O desenvolvimento de genes anti-HIV,
por exemplo, possibilitou o desenho de es-
tratgias promissoras de terapia gnica para
tratar a Aids, sendo contra esse vrus o maior
nmero de protocolos clnicos para doenas
infecciosas em andamento. A expectativa
de que em breve haja a possibilidade de
inserir genes anti-HIV em clulas-tronco
da medula ssea in vivo. Essas clulas do
origem s clulas do sangue, e j foram
obtidos dados de que linfcitos originrios
de clulas-tronco com genes anti-HIV tor-
nam-se resistentes multiplicao do HIV,
trazendo uma perspectiva promissora para
pacientes com Aids.
Na Figura 5, apresentada a distri-
buio de tipos de vetores que tm sido
empregados em protocolos clnicos. Como
pode ser observado, os vetores derivados
de adenovrus e retrovrus continuam como
os principais veculos para ensaios em seres
humanos, perfazendo quase metade de todos
os testes. Outros vrus bastante empregados
so os derivados de vrus adenoassociados
(AAV), vrus no-patognicos, que, apesar
de muito limitados no espao disponvel
para o transgene, permitem a sua expresso
durante bastante tempo, no induzindo res-
posta imunolgica, e os derivados de vrus
da famlia poxviridae (como o vaccinia,
empregado em seres humanos durante mais
de dois sculos em processos de imunizao
contra a varola).
Vetores no-virais tambm esto setornando populares, atravs de uso direto
de DNA plasmidial livre ou em lipossomos.
Um destaque o uso de transferncia di-
reta de molculas de RNA em pouco mais
de 1% dos ensaios clnicos (1,3%, Figura
5). Esse valor ainda bastante pequeno,
mas h expectativas de aumento signifi-
cativo nos prximos anos medida que
se apresentarem novas propostas com o
emprego de RNAi. De fato, o processo
celular de interferncia de RNA, ou RNAi,
tem provocado uma verdadeira corrida de
empresas farmacuticas para estudar suas
propriedades farmacolgicas. Esse fato foi
impulsionado pela facilidade de fabricao
dessas molculas, aliado s possibilidades
de uso in vivo, e discutido em detalhes
a seguir.
RNAi: A NOVA FACE DA TERAPIA
GNICA
O fenmeno de silenciamento gnico a
partir de molculas de RNA dupla-fita teve
seu mecanismo revelado em 1998, atravs
de experimentos com um verme nematide
(Caenorhabditis elegans). Poucos anos mais
tarde (2001) foi comprovada sua existncia
tambm em clulas de mamferos, o que
abriu enormes perspectivas tecnolgicas.
Basicamente, pequenas molculas de RNA
so sintetizadas nas clulas, a partir do seu
genoma, de modo a produzir estruturas
similares a grampos, formando molculas
FIGURA 5Distribuio dos protocolos clnicos por tipo de vetor
Retrovrus
Vrusadenoassociado
Lipossomos
Poxvrus
Transfernciade RNA livre
Outrossistemas
Transfernciade DNA livreAdenovrus
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
9/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 200758
de RNA dupla-fita (ou duplexes de RNA,
tambm conhecidos como microRNA, ou
miRNA) que controlam a expresso de
genes celulares, seja a partir da degradao
do RNA mensageiro, seja a partir de um
bloqueio da sntese protica. Esse sistema
interfere na expresso gnica das clulas,e por isso recebeu o nome de RNA inter-
ferncia (RNAi).
A descoberta do mecanismo de RNAi
mudou completamente a forma como
entendemos o metabolismo de controle
gentico na clula humana, e tambm
propiciou uma ferramenta poderosa para
inibir genes especficos e assim determinar
sua funo na clula. Isso pode ser obtido
pela introduo de uma pequena molculaduplex de RNA (19 a 30 pares de base)
diretamente nas clulas em cultura, visando
ao silenciamento especfico do gene-alvo
a ser estudado. Essas molculas, conheci-
das como siRNA (small interfering RNA),
devem ser complementares seqncia
do gene-alvo e podem reduzir a expresso
deste em at 80%. Alternativamente, ve-
tores (em geral derivados de vrus, como
adenovrus, retrovrus ou vrus adenoas-sociados) podem tambm ser usados para
entregar, no interior das clulas, genes
que expressam uma molcula de RNA
palindrmica, que pode gerar uma duplex
de RNA na forma de grampo, conhecida
como shRNA (do ingls short hairpin
RNA). Como o siRNA, o shRNA tem como
objetivo o silenciamento do gene-alvo em
estudo, apresentando a possibilidade de um
silenciamento permanente nas clulas, nocaso de uso de retrovrus. O mecanismo de
silenciamento gnico por RNAi ilustrado
na Figura 6.
FIGURA 6
Esquema de silenciamento gnico atravs do mecanismo de RNAi, seja atravs
de vetores virais recombinantes, seja atravs de molculas duplexes de siRNA. DICER e
RISC so as principais enzimas envolvidas no processo que leva degradao do RNAm
Vrusrecombinante siRNA exgeno
siRNA
siRNA
siRNA e RISC
degradaodo mRNA
shRNA
transcrio
Genoma do vrus
DICER
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
10/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 2007 59
Apesar de a descoberta do mecanismo
de RNAi datar de pouco mais de 6 anos,
rapidamente se demonstrou que vetores
virais ou pequenas molculas de siRNA
podem atuar in vivo. Atualmente j foram
publicados mais de 100 artigos cientficos
relatando o funcionamento de RNAi dire-tamente com experimentos em animais,
alguns cujo gene-alvo do silenciamento
pode trazer benefcios teraputicos. Mais
recentemente, foram iniciados protocolos
clnicos em fase I (de segurana no uso em
humanos), e alguns j foram concludos,
sem que se verificasse nenhum efeito
txico. possvel que em mais alguns
poucos anos seja lanado o primeiro
produto farmacolgico formado apenaspor pequenas duplexes de RNA, que atue
silenciando a expresso de um gene. Essa
velocidade no desenvolvimento de um
produto baseado em siRNA espantosa
e deve-se a vrios fatores, incluindo os
extensos trabalhos anteriores para terapia
gnica e a alta eficincia dessas molculas
na modulao da expresso gnica.
Defato, vrios so os problemas de sa-
de que resultam de expresso aumentadade um ou mais genes, entre eles, tumores,
hipercolesterolemia e infeces virais.
E esses alvos tm sido extensivamente
investigados em trabalhos com clulas e
em animais. As estratgias variam pelo
uso direto de duplexes de RNA (siRNA)
ou vetores virais (shRNA), e pela forma
de aplicao nos animais, dependendo do
objetivo do trabalho. Molculas pequenas
e artificiais de siRNA esto se tornandocada vez mais populares pela versatilidade
e facilidade na sua produo e introduo
em clulas ou in vivo. Alm disso, so
consideradas como drogas pequenas e
assim podero ser usadas em pouco tempo
como produtos farmacuticos comuns,
podem ser introduzidas diretamente ou
atravs de lipossomos, sem as questes
de biossegurana normalmente levantadas
para vetores virais.Essas molculas esto sendo testadas
a partir de aplicaes que podem ser
intravenosas (sistmicas), mas tambm
podem ser direcionadas a tecidos espec-
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
11/12REVISTA USP, So Paulo, n.75, p. 50-61, setembro/novembro 200760
ficos. Aplicaes intra-oculares tm tido
bastante interesse, visando obteno de
terapia a doenas genticas associadas no
olho. Destacam-se estudos de inibio do
gene VEGF (vascular endothelial growth
factor), que pode promover vasculariza-
o prxima retina, o que est associado
doena de degenerao macular relacio-
nada idade (AMD, do ingls age-related
macular degeneration), causando perda
de viso em milhes de idosos no mundo
inteiro. Vrias empresas farmacuticas j
iniciaram protocolos clnicos de fase I com
humanos, sendo que pelo menos alguns
desses j esto recrutando pacientes para
iniciar os de fase II. Os resultados tm
sido animadores.
Resultados promissores, e surpreen-
dentes, tambm tm sido obtidos com a
aplicao de molculas de siRNA atravs
de inalao com administrao intranasal,
tendo como alvo doenas respiratrias.
Esses estudos tm se mostrado eficientes
na inibio de vrus que agridem o sistema
respiratrio, tais como o vrus respiratrio
sincicial (RSV, que j est sendo testado
em protocolo clnico em fase I) e mesmo
o vrus influenza H5N1, que provoca a
temida gripe aviria.
Outros alvos para testes com RNAi
incluem a reduo da apoliprotena B
(APOB) no fgado, o que em macacos
resultou em reduo de colesterol no
sangue. Vrios vrus mortais, como
hepatite B, hepatite C, rotavrus e HIV
(Aids), tambm tm sido alvos para
terapia com siRNA, tambm com re-
sultados promissores. Silenciamento
gnico atravs do mecanismo de RNAi
tambm tem sido proposto como poss-
vel terapia para vrios tipos diferentes
de tumores. Os alvos para combate ao
cncer envolvem uma grande quantidade
de vias: oncogenes, mediadores de ciclo
celular e apoptose, genes envolvidos
em degradao e estabilidade protica,
angiognese, molculas relacionadas invaso metasttica e adeso celular.
Alm disso, siRNA tambm pode auxiliar
no tratamento com radiao ionizante e
agentes quimioterpicos.
-
7/23/2019 13620-16595-1-PB
12/1261
ser teis de acordo com o objetivo terapu-
tico a ser alcanado, sendo que em alguns
casos a terapia gnica deve ser usada em
combinao com protocolos mais clssicos,
de modo a garantir, se no a cura, pelo
menos uma melhoria de qualidade de vida
de pacientes que hoje padecem de doenasgenticas herdadas ou adquiridas.
Os avanos recentes esto sem dvida
fazendo renascer as perspectivas que eram
esperadas anteriormente, mas os sucessos
devem ser observados com otimismo cau-
teloso, e ainda requerem intenso trabalho
de pesquisa. Temos convico de que o
empenho da comunidade acadmica, que
estamos testemunhando, trar mais apli-
caes bem-sucedidas da terapia gnica eque esta deve se firmar como importante
ferramenta na prtica clnica de um futuro
relativamente prximo. Esperamos que o
Brasil possa atuar como participante ativo
nessas pesquisas, pois tem condies de rea-
lizar contribuies significativas, e ampliar
seu impacto na medicina experimental.
BIBLIOGRAFIA
MIR, Luis (org.). Genmica: Cincias da Vida. So Paulo, Atheneu, 2004.
MORALES, Marcelo M. (ed.). Terapias Avanadas: Clulas-tronco, Terapia Gnica e Nanotecnologia Aplicada Sade. So
Paulo, Atheneu, 2007.
VENTURA, A. M. Terapia Gnica Utilizando Vetores Virais, in Luiz Rachid Trabulsi e Flvio Alterthum (eds.). Microbiologia.
4aed. So Paulo, Atheneu, pp. 573-9.
Site
http://www.wiley.co.uk/genetherapy/clinical/.
MUITAS ESPERANAS PARA A
TERAPIA GNICA
Durante as dcadas de 1980 e 1990,
artigos sobre terapia gnica anunciavamuma nova revoluo da medicina. Apesar
de alguns resultados positivos terem sido
alcanados, as dificuldades encontradas
e os problemas criados, sobretudo pela
introduo de vrus recombinantes em
organismos, infelizmente, no permitiram
que essa revoluo ocorresse como previsto.
Essa frustrao, no entanto, tem dado lugar
a um trabalho cada vez mais consistente,
com protocolos clnicos sendo realizadosde modo cada vez mais direcionado, e com
boas perspectivas. Alm disso, o conheci-
mento acumulado com os experimentos de
terapia gnica tem servido de base para no-
vas estratgias e uso de novas ferramentas,
como o caso de protocolos com RNAi.
provvel que as vrias estratgias possam