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DAYANI CRIS DE AQUINO
OS DESDOBRAMENTOS DAS CONTRADIES DO PROCESSO DEREPRODUO DO CAPITAL: ELEMENTOS PARA O
ENTENDIMENTO DAS CRISES
Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em DesenvolvimentoEconmico, Universidade Federal doParan, Setor de Cincias SociaisAplicadas, para obteno do ttulo deMestre em Desenvolvimento Econmico.
Orientador: Prof. Dr. Francisco PauloCipolla
CURITIBA2007
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TERMO DE APROVAO
DAYANI CRIS DE AQUINO
OS DESDOBRAMENTOS DAS CONTRADIES DO PROCESSO DEREPRODUO DO CAPITAL: ELEMENTOS PARA O ENTENDIMENTO DASCRISES
Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no cursode Mestrado em Desenvolvimento Econmico da Universidade Federal do Paran,pela seguinte banca examinadora:
____________________________________________Orientador: Prof. Dr. Francisco Paulo Cipolla
Setor de Cincias Sociais AplicadasUniversidade Federal do Paran UFPR
____________________________________________
Prof. Dr. Clus Magno GermerSetor de Cincias Sociais Aplicadas
Universidade Federal do Paran UFPR
____________________________________________Prof. Dr. Marcelo Dias CarcanholoFaculdade de EconomiaUniversidade Federal Fluminense UFF
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AGRADECIMENTOS
Chega ao fim mais uma etapa na longa jornada da construo do saber. O
caminho percorrido foi tortuoso e o xito da chegada mrito que deve ser
compartilhado com todos os que dele participaram. Aos meus pais quero agradecer por
toda compreenso que tiveram da minha ausncia, necessria quando se escreve uma
dissertao; por toda a confiana depositada em mim; por todo incentivo oferecido nas
horas mais difceis. Sem o apoio deles eu certamente no chegaria at aqui.Tambm quero agradecer aos amigos por compreenderem a importncia desta
etapa para minha vida pessoal e profissional relevando minha ausncia nos eventos
mais importantes. Carla merece agradecimentos especiais por ter sido, em certa
medida, ouvinte da argumentao aqui desenvolvida. Quero tambm agradecer com
carinho especial Ruth e ao Marcelo por terem sido, ainda que apenas nos ltimos
meses e divergindo na maior parte das idias, os nicos interlocutores tericos que tive
entre os colegas do mestrado.
Finalmente quero agradecer aos mestres que participaram da minha formao
durante o mestrado. Ao professor Victor Pelaez agradeo por todas as coisas que
pacientemente me ensinou e pela valiosa experincia proporcionada no campo da
pesquisa. Ao meu orientador, professor Franciso Cipolla, agradeo eternamente por ter
sido ele quem me iniciou no marxismo, ainda nas aulas de Economia Poltica da
graduao, me orientou na monografia de concluso de curso e acompanhou todo meu
amadurecimento terico durante o mestrado. Ao professor Claus Germer sou tambm
muito grata por ter sido um excelente interlocutor diluindo atenciosamente todas as
dvidas a ele colocadas. Agradeo sobretudo s sugestes feitas a esse trabalho
enquanto membro da banca examinadora, embora muitas delas no possam ter sido
implementadas em face da necessidade de amadurecimento terico da minha parte.
Gostaria de registrar aqui algumas dessas sugestes que sero seriamente consideradas
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num estudo posterior. Primeiro a de localizar o conceito de contradio num contexto
mais aprofundado da dialtica; segundo, repensar o papel atribudo ao crdito
enquanto elemento que viabiliza o progresso tcnico no capitalismo; terceiro, repensara contradio entre valor e preo; quarto, desenvolver as contradies do dinheiro de
crdito; e, por ltimo, pensar sobre a diferena entre crises de origem monetria e
crises de origem produtiva. Finalmente, quero agradecer ao professor Marcelo
Carcanholo por ter aceitado prontamente o convite para participar da banca
examinadora e por ter feito sugestes muito valiosas que igualmente ser levadas em
conta futuramente. Vale citar aqui duas delas: discutir a relao entre a produo sociale o a apropriao privada enquanto contradio que contm as demais; pensar se o
desdobramento das contradies do modo de produo capitalista pode ser
empreendido no sentido de apontar uma causa para as crises ou vrias causas.
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SUMRIO
LISTA DE ILUSTRAES........................................................................................IIRESUMO.....................................................................................................................IIIINTRODUO .............................................................................................................11 CONTRADIO E CRISE.......................................................................................41.1 O DEBATE MARXISTA SOBRE A CONTRADIO.........................................51.1.1 O Anti-Hegelianismo e o Conceito de Contradio .............................................61.1.2 O Conceito de Contradio e a Influncia Hegeliana ........................................131.1.3 Contra Hegel e Contra a Contradio.................................................................241.2 O SENTIDO DO TERMO CONTRADIO NAS OBRAS DE MARX.............291.2.1 Contradies No-Dialticas ..............................................................................301.2.2 Contradies Dialticas ......................................................................................332 A POSSIBILIDADE DA CRISE.............................................................................422.1 A METAMORFOSE DA MERCADORIA............................................................462.1.1 A Contradio Contida na Mercadoria e seus Desdobramentos ........................472.1.2 A Contradio Contida na Metamorfose da Mercadoria....................................512.2 A METAMORFOSE DO CAPITAL......................................................................542.2.1 A Possibilidade da Crise no Circuito do Capital ................................................56
2.2.2 A Possibilidade da Crise no Encadeamento dos Capitais Individuais ...............582.2.3 A Possibilidade da Crise nos Esquemas de Reproduo....................................633 CONCRETIZANDO A POSSIBILIDADE DA CRISE........................................833.1 CONCORRNCIA E CONTRADIO ...............................................................843.1.1 A Noo de Concorrncia em Marx ...................................................................843.1.2 A Dinmica da Concorrncia Intra e Intersetorial..............................................893.1.3 As Contradies da Concorrncia ......................................................................963.2 CRDITO E CONTRADIO............................................................................100
3.2.1 Crdito Comercial e Crdito Bancrio .............................................................1013.2.2 O Papel do Crdito no Processo de Reproduo do Capital ............................1043.2.3 A Contradio entre Capital Produtivo e Capital de Emprstimo....................1103.3 DAS FORMAS ABSTRATAS S FORMAS CONCRETAS DA CRISE.........114CONCLUSO............................................................................................................118REFERNCIAS ........................................................................................................123
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LISTA DE ILUSTRAES
FIGURA 1 NVEIS DE ANLISE PARA O ESTUDO DAS CRISES.............................................42FIGURA 2 FMULA DO CAPITAL EXPANDIDA........................................................................55
FIGURA 3 O CIRCUITO DO CAPITAL...........................................................................................56
FIGURA 4 O ENCADEAMENTO DOS CAPITAIS INDIVIDUAIS...............................................59
FIGURA 5 ENCADEAMENTOS DE DVIDAS RECPROCAS .....................................................62
FIGURA 6 ESQUEMA DA REPRODUO SIMPLES ..................................................................64
FIGURA 7 ESQUEMA DA REPRODUO AMPLIADA..............................................................65
FIGURA 8 CONTRADIO NA REPOSIO DO CAPITAL FIXO............................................79
FIGURA 9 O CIRCUITO DO CAPITAL COM O CAPITAL PORTADOR DE JURO .................105
FIGURA 10 DESDOBRAMENTO DA CONTRADIO ENTRE A PRODUO E A
REALIZAO DO VALOR NO PROCESSO DE REPRODUO DO CAPITAL........................115
TABELA 1 TAXA MDIA DE LUCRO E PREO DE PRODUO.............................................94
TABELA 2 VALOR INDIVIDUAL, VALOR DE MERCADO E PREO DE PRODUO .........97
TABELA 3 TAXA DE LUCRO DO EMPRESRIO COM E SEM CAPITAL EMPRESTADO...108
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RESUMO
As crises econmicas so concebidas como as solues temporrias das contradiesdo processo de reproduo do capital. O conceito de contradio quando associado scrises econmicas contempla tanto a unidade de elementos opostos que constituemconexes entre a produo e a circulao de mercadorias como a ruptura destaunidade. Portanto, o entendimento das crises exige a identificao de todas ascontradies contidas no processo de reproduo do capital e a anlise de como estascontradies interagem formando a crise. Entretanto, a anlise de todas as contradiesno pode ser empreendida em um nico trabalho, pelo fato de que isto exige o estudode elementos mais complexos do processo de reproduo do capital, como o papel doEstado, do comrcio internacional e do mercado mundial. Contudo, nesta perspectiva,o objetivo do presente trabalho analisar o desdobramento da contradio maiselementar da sociedade capitalista contida na unidade da mercadoria enquanto valore valor de uso at as contradies mais complexas decorrentes da concorrncia e dosistema de crdito, ficando de fora a anlise do Estado, do comrcio internacional e domercado mundial.
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INTRODUO
A crise econmica tema recorrente na pesquisa acadmica, sobretudo na
tradio marxista. H, por isso, uma ampla e heterognea literatura dedicada a
desvendar os mecanismos de seu funcionamento e identificar as relaes causais
subjacentes. O tema permite, portanto, diversos desdobramentos. Por um lado, pode-se
estud-lo na perspectiva de crises gerais, ou tambm, enquanto teoria do colapso do
capitalismo ou, ainda, como o caso do presente trabalho possvel estud-lo
tomando como delimitao as crises cclicas. Por outro lado, o estudo pode ter um
carter de reviso acerca da literatura existente, ou tentar desenvolver uma teoria nova
para explicar uma caracterstica especfica do fenmeno ou, ainda, fazer um estudo
emprico de uma crise especfica. Contudo, a natureza do presente trabalho se afasta
destas trs possibilidades e adentra numa abordagem metodolgica acerca do tema.
Com base nisto, o objeto de pesquisa do presente trabalho analisar o
desdobramento das contradies da reproduo do capital, partindo de uma
perspectiva metodolgica indicada pelo prprio Marx, mas que nunca foi levada a
cabo. Marx j havia concebido as crises enquanto solues temporrias das
contradies do modo de produo capitalista. A partir dessa concepo, a abordagem
metodolgica aqui desenvolvida compe-se de duas partes. A primeira explicar qual
o sentido do termo contradio quando Marx refere-se s crises. A segunda aplicar
este conceito para entender como a crise se desdobra.
Assim, ser mostrado que o termo contradio assume diversos sentidos aolongo das obras de Marx e, inclusive, numa mesma obra. Contudo, ele assume uma
definio bastante particular quando associado s crises, pois significa a unidade e a
ruptura de elementos que conectam a produo e a circulao das mercadorias e que
permitem, portanto, que o valor produzido seja realizado. Com base nesta concepo,
o desafio identificar todas as contradies do processo de reproduo do capital e
como elas interagem para formar as crises. A identificao de todas as contradies do
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processo de reproduo do capital uma tarefa que no pode ser realizada em um
nico trabalho. Isto porque, de acordo com o mtodo de Marx a anlise deve ser
conduzida a partir dos elementos mais abstratos (e que Marx chamou de possibilidadeda crise) at s relaes mais complexas do modo de produo capitalista (e que Marx
chamou de concretizao da crise).
O prprio Marx indicou, na introduo da Contribuio para Crtica da
Economia Poltica, que a investigao das crises deveria ser a ltima tarefa a ser
empreendida. Isto porque, dado seu alto nvel de complexidade, antes dela era preciso
estudar: (i) o capital, o trabalho assalariado, a propriedade agrria e as suas relaesrecprocas; (ii) a cidade e o campo; (iii) as trs grandes classes sociais e a troca entre
estas; (iv) a circulao; (v) o crdito (privado); (vi) a sntese da sociedade burguesa,
sob a forma de Estado; (vii) as classes "improdutivas"; (viii) os impostos; (ix) a dvida
pblica; (x) o crdito pblico; (xi)a populao; (xii)a emigrao; (xiii) as relaes
internacionais da produo; (xiv) a exportao e a importao; (xv) o cmbio; (xvi) o
mercado mundial e, finalmente, as crises. Por este motivo, as contradies a serem
analisadas neste trabalho so aquelas contidas na: (i) mercadoria; (ii) metamorfose da
mercadoria; (iii) metamorfose do capital; (iv) reproduo do capital social; (v)
concorrncia; e (vi) parte do sistema de crdito, especificamente o crdito privado.
Sendo assim, delimitou-se o escopo das contradies a serem analisadas,
partindo-se do elemento mais abstrato da sociedade capitalista a mercadoria e a
partir disso desdobrando a contradio nela contida at chegar metamorfose do
capital. At este ponto as contradies identificadas configuram a possibilidade da
crise. A partir da introduo das contradies contidas na concorrncia e no sistema de
crdito parte-se em direo concretizao da crise. Contudo, a configurao mais
complexa e concreta da crise s possvel ao analisar-se outros elementos mais
concretos do processo de reproduo do capital, como o papel do Estado e do
comrcio internacional, cuja investigao no est contemplada nos objetivos do
presente estudo.
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Assim, para contemplar os objetivos acima descritos o contedo do trabalho
est distribudo da seguinte forma. O captulo 1 discute o conceito de contradio
apresentando, na parte 1.1, uma reviso da literatura acerca do tema e, na parte 1.2,uma anlise do conceito com base nas obras do prprio Marx. O captulo 2 apresenta a
possibilidade da crise, isto , suas formas mais abstratas e sem contedo, onde a parte
2.1 apresenta as contradies contidas na metamorfose da mercadoria e a parte 2.2
apresenta as contradies contidas na metamorfose do capital. Finalmente, o captulo 3
incorpora elementos mais concretos do processo de reproduo do capital a
concorrncia e o crdito dando origem concretizao da crise. Desta forma, naparte 3.1, aborda-se a questo da concorrncia em trs etapas. A primeira discute o
conceito de concorrncia, com o intuito de deixar clara a natureza deste conceito na
teoria marxista; a segunda analisa a dinmica concorrencial e seus resultados gerais; e
a terceira discute as contradies da concorrncia no processo de reproduo do
capital. A parte 3.2 discute o sistema de crdito e a contradio entre capital produtivo
e capital de emprstimo. Por fim, a parte 3.3, analisa como as contradies mais
abstratas desdobram-se nas contradies mais concretas decorrentes da concorrncia e
do crdito.
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1 CONTRADIO E CRISE
Explicar os mecanismos causais das crises econmicas uma das tarefas mais
difceis e complexas de toda a Economia Poltica. Durante os momentos de crise as
mais variadas correntes de pensamento econmico se voltam para tentar explicar este
fenmeno; entretanto, nos perodos de prosperidade a maioria dos economistas parece
esquecer dele. A dificuldade em explicar as crises do capitalismo reside
principalmente no fato de que para entend-las preciso compreender todo o processo
de reproduo do capital, dentro do qual a crise desenvolve-se.
As teorias de crises marxistas, em geral, partem da anlise deste processo de
reproduo do capital, embora no apresentem consenso no que se refere aos
mecanismos causais da crise. 1 Apesar das divergncias, os tericos marxistas mostram
consenso, ainda que de forma implcita, em conceber as crises como solues
temporrias para as contradies do modo de produo capitalista, tal como Marx
freqentemente as define nas Teorias da Mais-Valia e nO Capital.
No obstante, curioso verificar que os tericos marxistas que se ocuparam, e
que ainda se ocupam, com a investigao das crises econmicas em geral, estudiosos
pertencentes ao campo das Cincias Econmicas nunca se preocuparam com a
discusso do conceito de contradio. Esta falta de preocupao fica evidente em face
da completa ausncia de debate, neste campo do conhecimento, associando as noes
de contradio problemtica das crises econmicas. Embora a maioria dos estudiosos
1 O Estado da arte das teorias de crise j foi exaustivamente explorado na literatura marxista. Uma classificaopossvel destas teorias apresentada por ITOH (1980) dividindo-as em dois grupos: (i) Teorias de excesso demercadoria, que inclui as vertentes subconsumistas e da desproporo dos ramos industriais (autoresfreqentemente considerados subconsumistas so BARAN e SWEEZY (1964) e LUXEMBURG (1985), emboraesta ltima no seja considerada por BLEANEY (1976) como subconsumista, pois, segundo o autor, ela no seocupa especificamente da deficincia na demanda de bens de consumo; um autor considerado terico dadesproporo HILFERDING (1985), embora ZONINSEIN (1985) destaque duas concepes contraditriassobre a causa da crise na obra de Hilferding: as despropores e uma outra baseada na lei da queda tendencial dataxa de lucro); e (ii) Teorias de excesso de capital, que inclui a hiptese de aumento da composio orgnica docapital e da escassez de fora de trabalho (um autor que explica a crise por meio do aumento da composioorgnica do capital SHAIKH (1978) e a explicao da crise por meio da escassez de fora de trabalho dadapor ITOH (1980), entre outros).
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refira-se s crises como as manifestaes das contradies do processo de reproduo
do capital, no h reflexo sobre o que significa a contradio pensada por Marx, quais
os elementos que a constitui, quais so as contradies envolvidas na determinao emanifestao das crises etc. Esta discusso esteve sempre restrita aos tericos do
campo da Filosofia, cujos objetos de pesquisa no so, em geral, as crises econmicas.
Em face disto, parece haver a necessidade de resgatar o conceito de
contradio juntamente com a investigao dos mecanismos causais das crises
tentando resolver esse descompasso metodolgico. com este objetivo que o presente
captulo pretende mostrar a importncia de utilizar, dentre as inmeras concepesexistentes, o conceito de contradio mais adequado investigao das crises. Assim,
a seo 1.1 apresenta uma reviso da literatura que evidencia a falta de consenso no
que se refere ao conceito de contradio dentro do marxismo. Em vista deste
desacordo, a seo 1.2 procura resgatar o entendimento de contradio do prprio
Marx, com base na anlise de alguns textos principais.
1.1O DEBATE MARXISTA SOBRE A CONTRADIOA relao entre as contradies do processo de reproduo do capital e as
crises expressa por Marx em vrias passagens como, por exemplo: As crises so
sempre apenas solues momentneas violentas das contradies, irrupes violentas
que restabelecem momentaneamente o equilbrio perturbado. [grifos meus] (MARX,
1986c, IV, p.188). Assim, se as crises esto relacionadas s contradies do
capitalismo, ento preciso entender qual o significado da palavra contradio dentro
do mtodo de Marx para, em seguida, entender o que so e como se formam as crises.
O problema que Marx no escreveu um texto que explicasse seus conceitos
metodolgicos e a relao deles com o mtodo dialtico de Hegel. A falta deste texto
d margem a diversas interpretaes sobre o mtodo utilizado, dividindo a tradio
marxista, conforme assinala SMITH (1993, p.16), em trs posies a respeito dessa
influncia: (i) aqueles que radicalmente rejeitam o hegelianismo in toto, como o caso
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de ALTHUSSER (1967), GODELIER (1982), COLLETTI (1975) etc.; (ii) aqueles
que, como CARCHEDI (1993), admitem um legado hegeliano no marxismo, embora
argumentem que ele envolve apenas questes superficiais relacionadas ao mtodo deapresentao dos resultados; e (iii) aqueles que sustentam que o mtodo hegeliano
crucial para o entendimento da teoria de Marx, como acreditam LNIN (1961 e 1972),
MAO TSE-TUNG (1937), ARTHUR (1993), o prprio SMITH (1993), entre outros.
Como o tema Hegel-Marx j foi exaustivamente discutido na literatura
marxista no se pretende voltar a analis-lo em detalhes aqui, mas apenas resgatar o
debate a respeito do conceito de contradio. Assim, esta seo divide-se em trspartes. O item 1.1.1 apresenta o conceito de contradio sob o ponto de vista de
autores que rejeitam a herana hegeliana na obra de Marx. O item 1.1.2 apresenta o
conceito de contradio sob o ponto de vista de autores que reconhecem a importncia
da influncia de Hegel sobre o mtodo de Marx. E, finalmente, o item 1.1.3 apresenta
uma concepo que no s rejeita a influncia de Hegel sobre Marx, mas tambm
repudia a prpria contradio dialtica como elemento importante da prtica cientfica.
1.1.1 O Anti-Hegelianismo e o Conceito de ContradioUm dos maiores opositores afirmao de que a dialtica marxista possui
heranas hegelianas Louis Althusser. Em sua principal obra sobre o tema
Contradio e Sobredeterminao o autor argumenta contra essa herana a partir de
uma famosa citao de Marx do posfcio segunda edio do livro I dO Capital:
Em seu princpio (der Grundlage nach), meu mtodo dialtico no somente distinto domtodo hegeliano, como tambm seu contrrio direto. (...) O lado mistificador(mystifirende) da dialtica hegeliana, critiquei-o h trinta anos atrs, quando ela aindaestava na moda (...) A mistificao que a dialtica sofre entre as mos de Hegel noimpede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor-lhe ( darstellen) comamplitude e conscincia as formas gerais de movimento. Ela nele est de cabea parabaixo. preciso invert-la para descobrir na ganga mstica (mystiche Hlle) o ndulo(kern) racional. Na sua forma mistificada, a dialtica foi uma moda alem, pois pareciatransfigurar o dado (das Bestehende). Na sua figura (Gestalt) racional, ela um escndaloe objeto de horror para os burgueses (...) (MARX, apudALTHUSSER, 1967, p.76).
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A tese de Althusser baseia-se principalmente na penltima frase da citao
acima: Ela (a dialtica) nele (em Hegel) est de cabea para baixo. preciso invert-
la para descobrir na ganga mstica o ndulo racional. Para argumentar contra aherana hegeliana sobre o mtodo de Marx, o autor critica a metfora da inverso
afirmando que ela trouxe tantos problemas quanto resolveu. Primeiro, argumenta o
autor, se a ganga mstica fosse a filosofia especulativa de Hegel e o ndulo
racional a dialtica, como se poderia pensar primeira vista, ento no se trataria de
uma inverso, mas sim de uma extrao. Isto , extrair da filosofia especulativa a
dialtica hegeliana para transform-la em dialtica marxista.Segundo, indo mais alm, o autor questiona o que deveria ser invertido nesta
extrao para transformar a dialtica hegeliana na dialtica marxista. Se essa
inverso significar aplicar ao mundo real a mesma dialtica que antes era aplicada
ao mundo sublimado, ou aplic-la vida ao invs de aplic-la Idia, ento se
trata apenas de uma inverso de sentido da dialtica mantendo-a intacta em sua
essncia. E sendo inconcebvel que a ideologia hegeliana no tenha contaminado a
essncia da dialtica no prprio Hegel ento no possvel que a dialtica hegeliana
possa deixar de ser hegeliana e tornar-se marxista pelo simples milagre de uma
extrao (ALTHUSSER, 1967, p.77).
Todavia, Althusser no cr que a ganga mstica a qual Marx se referiu fosse
a filosofia especulativa de Hegel, mas sim a prpria dialtica hegeliana. A base para tal
concluso o autor retira da mesma citao, na qual Marx se refere ao lado
mistificador da dialtica hegeliana, mistificao que a dialtica sofre entre as mos
de Hegel e que na sua forma mistificada, a dialtica foi uma moda alem. (MARX,
apud ALTHUSSER, 1967, p.76). Assim, Althusser conclui a discusso sobre a
influncia de Hegel em Marx argumentando que se a dialtica marxista em seu
prprio princpio o oposto da dialtica hegeliana, se ela racional e no mstica-
mistificada-mistificadora, essa diferena radical deve manifestar-se na sua essncia,
isto , nas suas determinaes e nas suas prprias estruturas. Por isso, as estruturas
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fundamentais da dialtica hegeliana, tais como a negao, a negao da negao, a
identidade dos contrrios, a superao, a transformao da qualidade em quantidade,
a contradio etc. ..., possuem em Marx (na medida em que as retoma: o que no sempre o caso!) uma estrutura diferente da que possuem em Hegel. (ALTHUSSER,
1967, p.79-80).
a partir disso que Althusser guiado pelo objetivo de demonstrar as
diferenas na estrutura de Marx versus de Hegel aborda o conceito de contradio. O
autor parte da anlise de um fato histrico, a revoluo Russa de 1917, para
demonstrar a natureza sobredeterminada da contradio marxista em face danatureza simples da contradio hegeliana. Para explicar aquela revoluo Althusser
relembra Lnin quando argumenta que a revoluo s ocorreu na Rssia por ser ela o
elo mais dbil da cadeia dos Estados imperialistas: visto que acumulava a maior
soma decontradies histricas ento possvel. [grifos meus] (ALTHUSSER, 19767,
p.83). nesse sentido de acumulao de contradies que o autor define a natureza
sobredeterminada da contradio marxista em contraposio essncia interior,
em si da contradio hegeliana.
No entanto, Althusser no define o que a contradio marxista (mas apenas
como ela , ou seja, sobredeterminada), no define os termos ou os elementos que a
compem. Talvez ele tenha tomado de emprstimo e como subentendido os conceitos
apresentados por Mao Tse-Tung2, embora este se situe no campo de aceitao da
influncia hegeliana sobre Marx. Mesmo assim, sua noo de sobredeterminao deve
ser considerada no caso da investigao sobre as crises econmicas j que, em face da
complexidade do fenmeno crise, sua causa no deixa de ser sobredeterminada,
combinando neste sentido com a definio utilizada pelo prprio Marx de que a crise
a convergncia real e o ajuste fora de todas as contradies da economia burguesa
2 Em nota de rodap ALTHUSSER (1967, p. 80) refere-se anlise de Mao Tse-Tung sobre a contradio comocontendo conceitos novos e fecundos apesar de ainda descritivos e abstratos. Esta apreciao curiosa, jque a obra de Mao baseada quase que inteiramente nas contribuies filosficas de Lnin e, portanto,indiretamente em Hegel. A anlise do texto de Mao feita no item seguinte.
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[grifo meu] (MARX, 1980a, p.945).
Outro autor que tambm rejeita a influncia hegeliana sobre Marx Maurice
Godelier. Em seu artigo Estrutura e Contradio no Capital o autor desenvolve umaanlise estruturalista do conceito de contradio. Ele argumenta que o mtodo de Marx
prioriza o estudo e a identificao das estruturas existentes dentro de um sistema e os
elementos internos que as compe para somente depois estudar a gnese e a evoluo
histrica destas estruturas. Com isso, o autor pretende mostrar que a obra de Marx no
padece de qualquer historicismo ou dependncia de acontecimentos (GODELIER,
1982, p.316). Assim, a gnese de um sistema (o capitalista, por exemplo) deve serdescrita simultaneamente dissoluo de outro sistema (o feudal), sendo que estes
dois acontecimentos dependem de um mesmo processo: o desenvolvimento das
contradies internas dentro do velho sistema [grifo meu] (GODELIER, 1982,
p.317).
Entretanto, ao analisar o mtodo de Marx nesta perspectiva Godelier se depara
com a seguinte questo: como possvel reconciliar a hiptese do aparecimento das
contradies internas dentro de um sistema com a tese de que o funcionamento do
sistema reproduz necessariamente suas condies de funcionamento? (GODELIER,
1982, p.317). Ou seja, Godelier est preocupado em explicar a coexistncia de
contradies que nascem desde o incio do sistema e que permitem a sua reproduo
com contradies que nascem a partir de certo estgio de evoluo do sistema e que
exigem sua transformao, mais especificamente sua substituio. Para resolver este
problema Godelier subordina o conceito de contradio a um limite estrutural (entre e
dentro das estruturas) e, portanto, torna a contradio dialtica dispensvel ao
processo discursivo, conforme bem observa GORENDER (1986, p.xxvi).
Para entender melhor essa subordinao do conceito de contradio a um
limite estrutural pode-se analisar as duas noes de contradio que Godelier identifica
nO Capital. A primeira a contradio entre capital e trabalho e a segunda a
contradio entre o desenvolvimento e a socializao das foras produtivas e a
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propriedade dos meios de produo.
A primeira contradio entre capital e trabalho aquela existente entre a
classe capitalista e a classe trabalhadora. Uma possui o capital, a outra excluda dapossesso dele. O lucro de um o trabalho no pago do outro. (GODELIER, 1982, p.
321). Dois elementos essenciais caracterizam esta contradio: (i) ela localiza-se
dentro de uma estrutura, isto , dentro da estrutura relaes de produo; (ii) ela
existe desde o incio do sistema capitalista, isto significa que o funcionamento do
sistema reproduz esta contradio e, portanto, ela s pode ser superada com a
superao do sistema.A segunda contradio analisada por Godelier aquela entre o
desenvolvimento e a socializao das foras produtivas, de um lado, e a propriedade
privada dos meios de produo, de outro. Aqui, trs caractersticas podem ser
ressaltadas: (i) esta contradio no existe dentro de uma estrutura, mas, ao contrrio,
existe entre as estruturas foras produtivas e relaes de produo; (ii) esta ,
segundo o autor, a contradio fundamental do modo de produo capitalista, pois
explica a evoluo do capitalismo e seu inevitvel desaparecimento; (iii) esta
contradio no original no sentido de que no existe desde o incio do sistema
capitalista, mas aparece em um certo estgio da evoluo, em um certo estgio de
maturidade do sistema (GODELIER, 1982, p.322).
Ento, o aparecimento da contradio fundamental em certo estgio de
maturidade do sistema explicado por meio do conceito de limite compatibilidade
funcional das diferentes estruturas. Ou seja, a segunda contradio, diferentemente da
primeira que existe desde o incio do sistema, origina-se nos limites objetivos das
relaes de produo que se mantm constantes, enquanto que as foras produtivas
variam em certas propores. (GODELIER, 1982, p.326). Assim, em ltima anlise,
a contradio se reduz a uma incompatibilidade estrutural que no decorrer do
desenvolvimento do sistema seria responsvel pelas transformaes do capitalismo.
Esta interpretao de Godelier a respeito das duas contradies existentes nO
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Capital pode parecer adequada quando no se define exatamente os sentidos atribudos
por Marx ao termo contradio. Analisando-se com mais rigor a argumentao do
autor, vrios problemas surgem sem que as respostas possam ser encontradas norestante do texto. Por exemplo, Godelier argumenta que a segunda contradio
visvel utilizando uma citao do prprio Marx: Esta coliso aparece em parte nas
crises peridicas (MARX, apudGODELIER, 1982, p.322). Uma pergunta que surge
: como possvel queuma contradio que supostamente explica a evoluo e o
desaparecimento do sistema capitalista possa se manifestar nas crises cclicas, na
medida em que estas no eliminam o capitalismo, mas ao contrrio, restabelecemsempre novas condies para um nvel maior de acumulao?
Alm disso, a falta de uma conceituao explcita do que contradio faz o
autor ignorar a existncia de outras contradies importantes como aquela entre o
valor e valor de uso, fundamental para explicar a possibilidade das crises, ou seja, para
explicar as formas mais abstratas das crises peridicas. O esclarecimento destas
questes s pode ser obtido com a adequada conceituao do que ou do que so as
contradies citadas nas obras de Marx. E, ainda, preciso esclarecer como (ou se)
algumas contradies podem existir desde o incio e outras apenas a partir de certo
estgio do processo de reproduo do capital. Portanto, assim como Althusser,
Godelier no define explicitamente o que a contradio em Marx, limitando-se
apenas a diferenci-la da contradio de Hegel.
Para Godelier a dialtica de Marx nada tem a ver com a de Hegel, porque no
dependem da mesma noo de contradio, sobretudo, e neste ponto o autor parece
estar correto, por no compartilharem do princpio da identidade dos opostos
(GODELIER, 1982, p.308). Para Godelier, a diferena fundamental da natureza da
contradio marxista e da hegeliana manifesta-se na soluo dada por cada autor para
a sua superao. Em Marx, segundo Godelier, a soluo da contradio fundamental
est fora da prpria contradio e no pode ser reduzida ao seu contedo. A soluo da
contradio fundamental uma mudana na estrutura das relaes de produo para
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fazer com que correspondam s estruturas das foras produtivas. Esta mudana
implica na excluso da propriedade privada dos meios de produo e, portanto, implica
em modificaes ao nvel das superestruturas polticas e culturais.Por isso, Godelier afirma ser impossvel que Marx tenha utilizado a teoria da
identidade dos opostos, j que esta hiptese foi inventada por Hegel para mostrar
que h uma soluo interna para as contradies internas de uma estrutura.
(GODELIER, 1982, p.327). Entretanto, o fato de Marx no ter usado o princpio da
identidade dos opostos no exclui a possibilidade de que a soluo da contradio
seja interna. No caso das crises, parece que elas podem ser concebidas como exemplosde solues internas para as contradies do processo de reproduo do capital, ainda
que sejam temporrias ou momentneas. Podem ser entendidas como solues internas
no sentido de que surgem do prprio processo de reproduo do capital, como forma
de destruio de capital (seja pela sua manuteno ociosa, seja pela depreciao de
valores) e resoluo do problema da superacumulao de capital restabelecendo as
condies para uma nova acumulao. (MARX, 1986c, IV, p.931-932).
Contudo, embora Godelier afirme a independncia entre o mtodo de Marx e o
de Hegel, ao mesmo tempo, reconhece as ilhas positivas no mar especulativo do
discurso de Hegel uma vez que o princpio da identidade dos opostos, a fortiori
estabelece o princpio da sua unidade. Assim, segundo Godelier, a metfora colocada
por Marx de ncleo e inverso pode ser entendida como uma forma de quitar sua
dvida terica com Hegel pela absoro do conceito de unidade dos opostos e o grupo
de propriedades a ele ligadas3 (GODELIER, 1982, p. 329).
Mesmo Godelier no tendo investigado rigorosamente o que a contradio
em Marx, a questo levantada por ele de como entender o surgimento de novas
contradies dentro do sistema capitalista tambm um ponto importante para o
3 interessante notar que para Godelier Marx amputou o princpio da identidade dos opostos do ncleo dadialtica hegeliana absorvendo apenas alguns fragmentos deste ncleo como a unidade dos opostos. Todavia,Godelier no cr que apenas a substituio do princpio da identidade pelo da unidade dos opostos torne omtodo dialtico cientfico. com essa preocupao que o autor desenvolve o conceito de limite estrutural.
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estudo das crises, na medida em que traz tona outra questo: poderiam surgir novas
contradies em diferentes estgios de desenvolvimento do capitalismo dando novas
formas de manifestao crise? Ou, invertendo a questo: ser que as diversas formasde manifestao da crise podem ser atribudas a diferentes contradies que surgem no
decorrer dos estgios de desenvolvimento do sistema capitalista? Ou, na verdade, o
capitalismo contm certas contradies estruturais que vm, desde o seu incio,
manifestando-se nos diversos tipos de crises j conhecidos?
1.1.2 O Conceito de Contradio e a Influncia HegelianaDiferentemente dos autores discutidos no item anterior, LNIN (1961 e 1972)
e MAO TSE-TUNG (1937), entre outros, consideram significativa a influncia de
Hegel sobre Marx e, por isso desenvolvem o conceito de contradio de forma diversa.
Lnin ao estudar a Cincia da Lgica de Hegel afirmou ser impossvel entender O
Capital, especialmente seu primeiro captulo, sem antes estudar e entender a Lgica
hegeliana.
4
Esse estudo de Lnin resultou em anotaes postumamente publicadascomo Conspectus of Hegels the Science of Logic e On the Question of Dialectics,
escritas entre 1914 e 1916. Estas anotaes parecem ter sido elaboradas no com a
inteno de publicao, mas apenas com o objetivo de aprender com Hegel sobre a
dialtica e sobre as razes filosficas de Marx. Por isso, essas anotaes, alm de terem
um aspecto inacabado, situam-se no campo dos conceitos filosficos puros sem
contrapartida desses conceitos com os objetos de interesse da Poltica, como fez Mao,
ou mesmo da Economia Poltica, sobretudo as crises, como interessa ao presente
trabalho.
Por essa razo, o mais importante a ser retido dessas duas obras o
entendimento de Lnin acerca das duas vises de mundo sobre o Conhecimento e
4 It is impossible completely to understand Marx's Capital, and especially its first Chapter, without havingthoroughly studied and understood the whole of Hegel's Logic. Consequently, half a century later none of theMarxists understood Marx!! (LNIN, 1961, p.180).
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sobre a prpria Dialtica. Para Lnin, assim como para Mao que apenas o retoma,
existem duas vises bsicas de desenvolvimento do Universo: (i) o desenvolvimento
como acrscimo e decrscimo quantitativo, como simples repetio; (ii) e odesenvolvimento como unidade dos opostos (LNIN, 1972, p.360).
Segundo o autor, a primeira viso equivale concepo metafsica e a segunda
concepo dialtica do desenvolvimento das coisas existentes no mundo. A
concepo metafsica percebe as coisas isoladas, de forma esttica e parcial, atribuindo
a causa das mudanas na quantidade a elementos externos e no internos s coisas.
Contrria a essa viso est a concepo dialtica na qual a causa do desenvolvimentoencontra-se na contradio interna coisa, enquanto a interao com outros fenmenos
deve ser considerada como causa secundria do desenvolvimento. Isto no significa
que, para Lnin e Mao, o materialismo dialtico exclua as causas externas. Estas so,
segundo Mao, as condies de mudana e as causas internas so as bases para a
mudana. Mao exemplifica esta relao da seguinte forma: Numa temperatura
adequada um ovo se transforma num pintainho, mas nenhuma temperatura pode
transformar uma pedra num pintainho, pois esta tem uma base diferente.5 (TSE-
TUNG, 1937, p.314).
A partir desta segunda viso de mundo, Lnin define a essncia da Dialtica
como sendo o conhecimento ou o estudo das partes contraditrias que formam o todo.
A dialtica entendida neste sentido, ou seja, entendida como uma totalidade composta
por elementos contraditrios , para Lnin, uma lei do conhecimento, uma lei do
mundo objetivo e, por isso, pode ser aplicada a todos os campos do conhecimento
cientfico. Portanto, fica claro da leitura dos textos filosficos de Lnin, e tambm de
Mao, que para eles a lei da contradio pode ser definida como a lei da unidade dos
opostos e coincide com o materialismo dialtico: a Dialtica, em seu sentido prprio,
5 In a suitable temperature an egg changes into a chicken, but no temperature can change a stone into a chicken,because each has a different basis. (TSE-TUNG, 1937, p.314).
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o estudo da contradio na essncia das coisas (LNIN6, apudTS-TUNG, 1937,
p. 311).
Entretanto, este no um ponto de consenso na literatura marxista.GODELIER (1982, p.328), por exemplo, se contrape dizendo que quando Lnin
afirma que a dialtica a teoria da identidade dos opostos, ou o estudo da
contradio na prpria essncia das coisas, sugiro que est propondo uma falsa
equivalncia entre estas duas definies. Neste caso, a objeo de Godelier parece
estar na utilizao do termo identidade dos opostos, j que para ele Marx amputou
este princpio de sua dialtica substituindo-o pela unidade dos opostos. Mas, almdesta objeo, pode-se colocar outra: ser que o estudo da dialtica coincide com o
estudo da contradio (unidade dos opostos) ou esta ltima apenas um aspecto do
chamado mtodo dialtico?
Alm de Lnin propor a coincidncia entre a dialtica e a contradio, ele
retoma integralmente os conceitos hegelianos atribuindo-os a Marx sem levar em
conta as transformaes que estes conceitos sofreram nas mos do prprio Marx. Estas
transformaes podem ser entendidas por meio da investigao e esclarecimento de
dois pontos: (i) a confuso entre as noes de identidade e unidade dos opostos; (ii) a
afirmao incorreta de que os termos da contradio marxista so mutuamente
exclusivos. Estes dois pontos podem ser apreciados em Lnin na seguinte passagem:
A identidade dos opostos (talvez fosse mais correto dizer sua unidade, embora adiferena entre os termos identidade e unidade no seja aqui particularmente importante.Em certo sentido ambos so corretos) o reconhecimento (descobrimento) das tendncias
opostas, mutuamente exclusivas, contraditrias em todos os fenmenos e processos danatureza (incluindo esprito e sociedade).7 [grifos meus] (LNIN, 1972, p.359-60).
Marx demonstrou, j em 1859, sua rejeio noo de identidade e sua
6 Dialectics in the proper sense is the study of contradiction in the very essence of objects. LNIN, V. I.(1958). Conspectus of Hegels Lectures on the History of Philosophy. Collected Works, Russ. ed., Moscow, v.38, p.249.7 The identity of opposites (it would be more correct, perhaps, to say their "unity," although the differencebetween the terms identity and unity is not particularly important here. In a certain sense both are correct) is therecognition (discovery) of the contradictory, mutually exclusive, opposite tendencies in all phenomena andprocesses of nature (including mind and society). (LNIN, 1972, p.359-60).
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substituio pela idia de unidade. Isto pode ser confirmado pela seguinte passagem
encontrada na Contribuio crtica da Economia Poltica: Nada mais simples nesse
caso, para um hegeliano, que admitir a identidade da produo e do consumo (...) Nochegamos concluso de que a produo, a distribuio, a troca e o consumo so
idnticos, mas que so antes elementos de uma totalidade, diferenciaes no interior
de uma unidade. [grifos meus] (MARX, 1983, p.211 e 217).
Assim, distinguir o que uma identidade do que uma unidade
importante na medida em que esta diferenciao evita a armadilha, na qual caram Mill
e Say, de supor que a oferta cria sua prpria procura. Esta correspondncia imediataentre oferta e demanda no existe justamente porque estes elementos no formam uma
identidade no sentido de que um implique seguramente o outro , mas, ao contrrio,
formam uma unidade que pode ser rompida a qualquer momento e que, na verdade, no
capitalismo, dificilmente coincidem dada a falta de planejamento do sistema
produtivo.
O segundo ponto, a afirmao de que os termos da contradio marxista so
mutuamente exclusivos no correta, pois seus termos ou plos pressupem-se
mutuamente, de modo a constituir uma oposio inclusiva e no exclusiva
(BHASKAR, 1988, p.80). Por exemplo, a contradio existente entre a compra e a
venda: a compra pressupe e no exclui a venda, embora esse dois elementos formem
uma unidade essencial que se manifesta na metamorfose da mercadoria, tal unidade
pode ser, e frequentemente , rompida, como ser visto adiante, pela atuao do
dinheiro como meio circulao e meio de pagamento.
Ainda dentro da tradio hegeliana, o segundo autor importante a ser discutido
Mao Ts-Tung com a obra On Contradiction. Embora, por um lado, ele absorva
integralmente as contribuies de Lnin no campo filosfico, e por isso se faz
necessrio uma anlise crtica de sua obra, por outro, avana significativamente na
definio e caracterizao do conceito de contradio. Um dos avanos de MAO TSE-
TUNG (1937) frente a Lnin , alm da anlise profunda do conceito, a tentativa de
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aplic-lo s questes da prtica poltica, principalmente como crtica s dissonncias
dentro do Partido Comunista Chins. O autor explora o conceito considerando cinco
caractersticas principais: (i) a universalidade da contradio; (ii) a particularidade dacontradio; (iii) a contradio principal e o aspecto principal de uma contradio; (iv)
a identidade e a luta dos aspectos de uma contradio; (v) o lugar do antagonismo
numa contradio8.
A primeira caracterstica destacada por Mao, a universalidade da contradio,
deve ser entendida no seu duplo sentido. Por um lado, a contradio existe no processo
de desenvolvimento de todas as coisas, por isso atribuir-lhe o adjetivo de universal,absoluta. Mao usa uma citao de Lnin para ilustrar este sentido da universalidade da
contradio: na Matemtica existe a unidade essencial de elementos opostos como a
soma e a subtrao; na Mecnica: a ao e a reao; na Fsica: o plo positivo e o
negativo; na Qumica: a combinao e a dissociao dos tomos; na Cincia Social: a
luta de classes (LNIN, 1972, p. 358). Mao acrescenta, ainda, o exemplo da guerra: a
ofensiva e a defensiva, o avano e o recuo, a vitria e a derrota.
A esse respeito, Colletti observa o seguinte: Lnin lista vrios exemplos da
dialtica, os quais so todos oposies reais, isto , oposies no-contraditrias9.
(COLLETTI, 1975, p.10). Neste ponto Colletti parece ter razo em pelo menos um
aspecto de sua crtica: o fato de que as duplas de elementos opostos listados por Lnin
8 Alguns autores como DOOLIN e GOLAS (1964), entre outros, tentaram demonstrar a tese de que a obra OnContradiction de Mao Ts-tung no original e no passa da cpia das teses de Stalin e Zhdanov. Os autores
baseiam-se no argumento de que a obra no pode ter sido escrita em 1937, mas deve ter sido redigida muito maistarde, pois: (i) no h referncias desta obra na edio de 1945 do Selected Work de Mao, sendo a primeirareferncia encontrada apenas na edio de 1952; (ii) a obra de Mao Dialectical Materialsm, escrita em 1940,apresenta, segundo os autores, uma tentativa de discurso filosfico vago e errado o que no deveria ocorrerse, de fato, On Contradiction tivesse sido escrito em 1937, j que esta obra contm desenvolvimentos filosficosbastante ricos. Todavia, esses argumentos no parecem suficientes para sustentar a tese de que a obra de Maono seja original, mesmo se ela no tivesse sido escrita em 1937. O fato que no se encontram, pelo menos emSTALIN (1938), desenvolvimentos tericos sobre o conceito de contradio, semelhantes aos apresentados porMao em On Contradiction.9 Lenin thereafter lists a number of instances of the dialectic which are all real oppositions, i.e. non-contradictory oppositions, and so have nothing to do with the dialectic. In mathematics: +and-; differential andintegral. In mechanics: action and reaction. In physics: positive and negative electricity. In chemistry: thecombination and dissociation of atoms. (COLLETTI, 1975, p.10). Os argumentos de Colletti a respeito dadiferena entre as oposies reais e as oposies dialticas sero tratados no item 1.1.3.
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so mutuamente exclusivas10 e isto no caracterstico das oposies dialticas
marxistas que so mutuamente inclusivas. Isto coloca o seguinte problema: ser que a
contradio, no sentido como foi pensado e trabalhado por Marx, algo que existe defato em todas as coisas? Aqui, mais uma vez, surge a necessidade de estudar o termo
com base nas obras do prprio Marx.
Por outro lado, a contradio, para Mao, existe do incio ao fim de cada
processo. Por isso, nesse sentido tambm universal, pois a relao entre os elementos
opostos s acaba quando esta contradio superada, isto , resolvida. Aqui a
abordagem de Godelier pode ser contraposta de Mao. Para GODELIER (1982)existem contradies que nascem desde o incio do sistema (ou do processo nos termos
de Mao) e outras que se desenvolvem a partir de certo momento, graas
incompatibilidade estrutural ou ao limite compatibilidade funcional das
estruturas. J para Mao a contradio existe do incio ao fim de um processo.
Muito antes de Godelier expor sua concepo, Mao criticou a idia da Escola
de Deborin11 de que as contradies no aparecem desde o incio do processo, mas em
certo estgio de desenvolvimento deste processo. Se assim fosse, argumenta Mao,
ento, os desenvolvimentos do processo anteriores a esse estgio s podem ser
explicados por causas externas e no internas como prope a dialtica materialista.
Para Mao, a questo a existncia de diferentes tipos de contradio e no uma
questo de presena ou ausncia de contradio. A contradio universal e absoluta,
est presente no processo de desenvolvimento de todas as coisas e permeia todos os
processos do incio ao fim.12 (TS-TUNG, 1937, p. 318). Embora Mao seja enftico
10 Por exemplo, a soma simplesmente o inverso da subtrao, no coexistem juntas, ou se opera com um sinalou com outro; a vitria exclui a derrota, so, tambm, relaes inversas. Isto diferente da contradio existenteentre compra e venda, onde a compra o lado oposto da venda, mas ambas dependem uma da outra, se incluem,e somente unidas completam a metamorfose da mercadoria.11 A Escola de Deborin foi uma corrente filosfica russa da dcada de 1920, liderada por Abram MoiseevichDeborin (1881-1963). Deborin se tornou conhecido, na Rssia, por ser discpulo de Plekhanov e o lider dosdialecticians na disputa filosfica contra os mechanists liderados por L. I. Akselrod. (CHOATE, 2005).12 The question is one of different kinds of contradiction, not of the presence or absence of contradiction.Contradiction is universal and absolute, it is present in the process of development of all things and permeatesevery process from beginning to end. (TS-TUNG, 1937, p. 318).
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quanto existncia da contradio do incio ao fim do processo, isto parece valer
apenas para a contradio que ele chama de fundamental:
A contradio fundamental do processo de desenvolvimento de uma coisa e a essncia doprocesso determinada por essa contradio fundamental no desaparecero at que oprocesso esteja completo; mas num processo prolongado as condies geralmente diferemem cada estgio. (...) Alm disso, entre numerosas contradies maiores e menores, asquais so determinadas ou influenciadas pela contradio fundamental, algumas seintensificam, algumas so temporariamente ou parcialmente resolvidas ou mitigadas, e
outras novas emergem; portanto, o processo marcado por estgios.13 (TS-TUNG, 1937,p. 325).
Por um lado, interessante lembrar que para Godelier a contradio
fundamental que surge em determinado estgio do processo, enquanto que para Mao
a contradio fundamental deve existir do incio ao fim do processo, podendo surgir
outras contradies secundrias quando o processo se torna muito prolongado. Por
outro lado, importante ressaltar que Mao no explica como surgem novas
contradies, ao passo que Godelier d uma explicao para isso por meio da tese da
incompatibilidade funcional das estruturas.
A segunda caracterstica da contradio apontada por Mao a suaparticularidade. Embora a contradio seja universal, nos dois sentidos discutidos
acima, cada processo de desenvolvimento (ou forma de movimento) contm sua
contradio particular. Isto significa dizer que os processos de desenvolvimento ou de
movimento das coisas diferem entre si porque cada um possui uma contradio
particular que constitui sua essncia particular. Assim, a diferena existente entre as
diversas Cincias reside na base da contradio particular inerente aos seus respectivosobjetos de estudo.
Para Mao o entendimento destas duas caractersticas da contradio (a
13 The fundamental contradiction in the process of development of a thing and the essence of the processdetermined by this fundamental contradiction will not disappear until the process is completed; but in a lengthyprocess the conditions usually differ at each stage. () In addition, among the numerous major and minorcontradictions which are determined or influenced by the fundamental contradiction, some become intensified,some are temporarily or partially resolved or mitigated, and some new ones emerge; hence the process is markedby stages. (TS-TUNG, 1937, p. 325).
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universalidade e a particularidade) fundamental para o entendimento da teoria do
conhecimento do ponto de vista marxista. Para ele, existem dois processos do
conhecimento: (i) do particular para o geral e (ii) do geral para o particular. precisoprimeiro estudar a particularidade da contradio e conhecer a essncia individual das
coisas para depois estudar adequadamente a universalidade da contradio e a essncia
comum s coisas. Em seguida preciso ir alm e estudar as coisas concretas, ou seja,
partir do geral em direo ao particular novamente. Mao acusa os dogmatistas do
Partido Comunista Chins daquela poca de no entendem a interconexo destes dois
processos do conhecimento do particular para o geral e, ento, do geral para oparticular.14 (TS-TUNG, 1937, p. 321).
A terceira caracterstica da contradio, segundo Mao, a existncia de uma
contradio principal e a existncia de um aspecto principal dentro de cada
contradio. Para Mao, o processo de desenvolvimento de uma coisa complexa
envolve muitas contradies e uma delas deve ser a contradio principal (ou
fundamental) cuja existncia e desenvolvimento determina ou influencia a existncia e
o desenvolvimento das demais contradies. Neste sentido, para Mao, a contradio
principal da sociedade capitalista a oposio entre burgueses e proletrios:
(...) na sociedade capitalista as duas foras contraditrias, o proletariado e a burguesia,formam a contradio principal. As outras contradies, como aquelas entre a classe feudalremanescente e a burguesia, a classe pequeno-burguesa e a burguesia, os proletariados e ospequeno-burgueses, os capitalistas no-monopolistas e os monopolistas, a democraciaburguesa e a democracia fascista, entre os pases capitalistas e entre o imperialismo e ascolnias, todas so determinadas ou influenciadas por essa contradio principal.15 (TS-
TUNG, 1937, p.331).
Mas, dependendo das circunstncias, a contradio principal pode tornar-se
14 Our dogmatists () Nor do they understand the interconnection of the two processes in cognition from theparticular to the general and then from the general to the particular. They understand nothing of the Marxisttheory of knowledge. (TS-TUNG, 1937, p.321).15 For instance, in capitalist society the two forces in contradiction, the proletariat and the bourgeoisie, form theprincipal contradiction. The other contradictions, such as those between the remnant feudal class and thebourgeoisie, between the peasant petty bourgeoisie and the bourgeoisie, between the proletariat and the peasantpetty bourgeoisie, between the non-monopoly capitalists and the monopoly capitalists, between bourgeoisdemocracy and bourgeois fascism, among the capitalist countries and between imperialism and the colonies, areall determined or influenced by this principal contradiction. (TS-TUNG, 1937, p.331).
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secundria e outra contradio emergir como principal. Mao ilustra esta situao com
o caso chins. Na China semi-colonial a contradio entre o sistema feudal e a
grande massa da populao deixa de ser principal e torna-se secundria para dar lugar contradio entre este pas (com a unio temporria entre as diversas classes, exceto
os traidores) e a fora imperialista externa. O ponto importante que em qualquer
processo h sempre uma contradio principal que influencia, determina ou lidera as
demais e, segundo Mao, a identificao e compreenso desta contradio principal
estabelecem as condies para sua superao.
Da mesma forma que entre vrias contradies uma ocupa o papel principal eas demais so secundrias, podendo ocorrer mudanas nestas posies, os dois
aspectos de uma contradio (seja ela principal ou secundria) tambm so desiguais
e, portanto, um deles assume o papel principal e o outro o secundrio. O aspecto
principal de uma contradio lidera a contradio determinando sua natureza.
Entretanto, isso se d de forma dinmica, ou seja, aquele que era principal pode tornar-
se secundrio e vice-versa. O exemplo dado por Mao o da contradio entre as foras
produtivas e as relaes de produo. Em geral, o desenvolvimento das foras
produtivas confere a elas o papel de aspecto principal da contradio liderando e
conduzindo o desenvolvimento do processo. Entretanto, quando impossvel para as
foras produtivas se desenvolver sem uma mudana nas relaes de produo, ento a
mudana nas relaes de produo joga um papel principal e decisivo.16 (TS-TUNG,
1937, p.336).
A quarta caracterstica da contradio e, talvez, a mais problemtica a
identidade e a luta dos aspectos de uma contradio. Para Mao os aspectos opostos de
uma contradio mantm uma identidade. O problema reside justamente na definio
do que esta identidade:
Identidade, unidade, coincidncia, interpenetrao, interpermeao, interdependncia (ou
16 When it is impossible for the productive forces to develop without a change in the relations of production,then the change in the relations of production plays the principal and decisive role. (TS-TUNG, 1937, p.336).
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dependncia mtua para existncia), interconexo ou cooperao mtua todos essestermos diferentes significam a mesma coisa e referem-se aos dois pontos seguintes:primeiro, a existncia de um aspecto de uma contradio no processo de desenvolvimentode uma coisa pressupe a existncia do outro aspecto e os dois coexistem em uma entidade
nica; segundo, em dadas condies, cada aspecto contraditrio se transforma em seuoposto. Isso o significado da identidade.17 [grifos meus] (TS-TUNG, 1937, p.337).
Ou seja, a identidade possui um duplo significado. Primeiro, a dependncia
mtua dos aspectos de uma contradio, ou seja, um no pode existir sem o outro. Por
exemplo, a oferta no pode existir sem a demanda, sem que isto no traga
conseqncias para o sistema. Isto no quer dizer que elas sejam idnticas, mas apenas
que mantm uma unidade essencial. Segundo, a transformao de um aspecto em seu
oposto, ou seja, um dos elementos da oposio muda de lugar com o outro elemento.
Por exemplo, por meio de uma revoluo o proletariado, antes classe governada,
mudaria de lugar com seu oposto, a burguesia, tornando-se a classe governante.
Entretanto o problema no est neste duplo significado, mas na confuso,
herdada de Lnin, entre os termos identidade e unidade. O argumento a respeito
disso j foi exposto na anlise da obra de Lnin e pode ser apenas relembrado pela
observao de ZELEN (1974) de que Marx rejeitou a identidade hegeliana dos
contrrios distinguindo-a de sua concepo materialista de unidade dos contrrios.
Assim, tanto Lnin quanto Mao, no distinguiram devidamente o conceito
marxista de unidade dos opostos e a noo hegeliana de identidade dos opostos.
curioso que ALTHUSSER (1967, p.80) considere a obra de Mao como uma srie de
anlises onde a concepo marxista de contradio aparece sob uma luz estranha
perspectiva hegeliana. Por um lado, verdade que buscar-se-iam em vo, em Hegel,
os conceitos essenciais deste texto: contradio principal e contradio secundria;
aspecto principal e aspecto secundrio da contradio; contradies antagnicas e no
17 Identity, unity, coincidence, interpenetration, interpermeation, interdependence (or mutual dependence forexistence), interconnection or mutual co-operation -- all these different terms mean the same thing and refer tothe following two points: first, the existence of each of the two aspects of a contradiction in the process of thedevelopment of a thing presupposes the existence of the other aspect, and both aspects coexist in a single entity;second, in given conditions, each of the two contradictory aspects transforms itself into its opposite. This is themeaning of identity. (TS-TUNG, 1937, p.337).
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antagnicas (ALTHUSSER, 1967, p.80). Mas, por outro lado, verdade tambm que
a noo de identidade dos opostos s pode ser atribuda a Hegel e no a Marx.
Dando continuidade ao raciocnio, Mao se pergunta: qual a relao entre aidentidade (ou unidade, j que Mao utiliza indistintamente os termos) e a luta dos
aspectos de uma contradio? A explicao dada por Mao para esta relao no
completamente clara, mas talvez possa ser entendida por meio da anlise dos dois
estados de movimento que existem em todas as coisas, segundo Mao.
O primeiro estado de movimento aquele de repouso relativo (relative rest),
no qual s h mudanas quantitativas e, portanto, h uma aparncia de relativo repousomanifestado na unidade dos opostos. O segundo estado aquele de mudana visvel
(conspicuous change), no qual ocorrem mudanas qualitativas e a unidade d lugar
dissoluo dos elementos opostos. Ambos os estados de movimento so causados pela
luta entre os elementos contraditrios de uma coisa. Portanto, a unidade de elementos
opostos a aparncia ou a manifestao do estado de mudana quantitativa e a
dissoluo desta unidade d lugar ao estado de mudana qualitativa, ambos permeados
pela luta dos elementos opostos. Assim, essa quarta caracterstica descrita por Mao
deixa claro que para ele a contradio no apenas a unidade de elementos opostos,
mas tambm a dissoluo, o rompimento desses elementos por meio da luta que
permeia este processo do incio ao fim.
Finalmente, a ltima caracterstica da contradio descrita por Mao o
antagonismo. Este uma manifestao particular, especfica da luta entre os aspectos
opostos de uma contradio. Isto significa dizer que em toda contradio existe a luta
entre os elementos opostos, entretanto essa luta, em face de certas condies,
intensifica-se e transforma-se num antagonismo aberto, cuja superao resolve a
antiga contradio e produz novas situaes.
Algumas contradies so caracteristicamente antagnicas, como o caso da
contradio entre a classe explorada e a classe exploradora, enquanto que em outras
contradies coexiste apenas a luta ente os aspectos contraditrios, nunca se
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transformando numa contradio antagnica. Assim, antagonismo e contradio no
so a mesma coisa. No socialismo, a primeira desaparecer e a segunda permanecer.
(LNIN18, apudTS-TUNG, 1937, p.345).A explanao feita sobre os desenvolvimentos tericos de Mao no que
concerne ao conceito de contradio confirma o avano efetuado pelo autor neste
campo do conhecimento, a despeito da confuso entre os termos identidade e unidade
e a falta de clareza em algumas passagens. Assim, como poder ser observado adiante,
o conceito de contradio trabalhado por Mao conta com muitas semelhanas
relativamente quele trabalhado por Marx. Dando continuidade reviso da literatura,ser apresentada a ltima, e mais agressiva, controvrsia sobre a contradio na
literatura marxista.
1.1.3 Contra Hegel e Contra a ContradioForam discutidos nos dois itens precedentes autores que, embora no
compartilhem da mesma opinio a respeito da influncia de Hegel sobre Marx, aomenos reconhecem a Dialtica, em sentido mais amplo, e a contradio
particularmente, como elementos importantes no s da Teoria do Conhecimento, mas
tambm da prpria contribuio de Marx para anlise dos fenmenos reais.
Diferentemente desses autores, neste item ser apresentado, para efeito de
conhecimento, o ponto de vista de Lucio Colletti sobre a relao de Hegel e Marx e
sua crtica validade do conceito de contradio e, portanto, tambm da Dialtica,
para o materialismo e para o conhecimento cientfico.
Colletti nega a influncia do mtodo de Hegel sobre o de Marx afirmando que
aquele mtodo no tem conexo alguma com o contedo exposto nO Capital. Para o
autor, o conflito apresentado por Marx entre o capital e o trabalho simplesmente uma
18 "Antagonism and contradiction are not at all one and the same. Under socialism, the first will disappear, thesecond will remain." LNIN, V. I. Remarks on N. I. Bukharin's Economics of the Transitional Period, SelectedWorks, Russ. ed., Moscow-Leningrad, 1931, Vol. XI, p. 357.
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oposio real e no uma oposio dialtica. V-se a partir da, que a rejeio de
Colletti com relao a Hegel gira em torno da negao da Dialtica como princpio
explicativo. extensa a lista de autores, marxistas e no-marxistas, que rejeitam aDialtica como princpio cientfico. Entretanto, no se pretende fazer aqui uma reviso
desta literatura, mas apenas focalizar os argumentos de Colletti contra a contradio
dialtica e avaliar sua legitimidade do ponto de vista do contedo da obra marxiana.
Colletti resume sua crtica num artigo intitulado Marxism and the Dialectic,
cuja argumentao demonstra trs principais objetivos: (i) mostrar a diferena entre os
conceitos de oposio real (tambm conhecida na literatura especializada comoRealopposition ou Realrepugnanz de Kant) e contradio dialtica; (ii) argumentar
que a contradio dialtica exclui o materialismo e, portanto, impede o conhecimento
cientfico; e, finalmente, (iii) mostrar que em Marx, desde o tempo da Critica
Filosofia do Direito de Hegel, no h oposio dialtica, mas sim oposio real,
demonstrando, ainda, como compatibilizar essa idia com as passagens dO Capital e
das Teorias da Mais-Valia nas quais Marx apresenta a questo das crises de uma
perspectiva claramente dialtica. Ser visto, ento, cada objetivo separadamente, de
modo que possam ser apontados os equvocos de Colletti e, consequentemente,
concluses opostas a do autor.
Quanto ao primeiro objetivo possvel resumir os argumentos de COLLETTI
(1975) como segue. A oposio real, a contrariedade ou, ainda, a inconsistncia
de opostos incompatveis uma oposio que no contm contradio, isto , ela no
viola os princpios da identidade e da no-contradio, portanto, compatvel com os
princpios da lgica formal. A frmula que expressa a oposio real A e B, ou
seja, cada um dos opostos so reais e positivos e subsistem por si mesmos. Por isso, a
existncia de um no pressupe a do outro, mas ao contrrio a relao que se
estabelece de repulso mtua. Portanto, trata-se de uma oposio exclusiva.
J a contradio dialtica, segundo o autor, uma oposio contraditria
que d origem a oposio dialtica e, portanto, torna-se incompatvel com a lgica
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formal e, tambm, com o conhecimento cientfico. A oposio dialtica geralmente
expressa pela frmula A e A, ou seja, significa que um oposto no existe sem o
outro e vice-versa. Entretanto, conforme Colletti, A sendo a negao de A significaque ele no tem sentido prprio, por si mesmo, mas apenas relativamente a A. E, por
outro lado, A podendo ser entendido como a negao de A, tambm no tem
significao prpria. Ou seja, para Colletti, nenhum dos plos nesta oposio algo
por si mesmo, ambos so negativos. Ento, para saber o que um extremo significa
preciso saber ao mesmo tempo o que o outro significa. Isto resulta na unidade dos
opostos e, sendo assim, apenas dentro da unidade que cada termo a negao dooutro, portanto, trata-se de uma oposio inclusiva.
Embora Colletti esteja correto em dizer que a contradio dialtica uma
oposio inclusiva, um equvoco dizer que na tradio marxista os elementos da
oposio no possuem significao em si mesmos. Conforme j observou Bhaskar as
contradies dialticas se tm caracterizado em contraste com (...) as oposies lgicas
formais, pois as relaes envolvidas so dependentes de significado (ou contedo), e
no puramente formais, de modo que a negao de A no leve ao seu cancelamento
abstrato, mas criao de um contedo mais abrangente, novo e superior.
(BHASKAR, 1988, p.80). Este ponto importante, pois, como ser visto, toda a crtica
de Colletti em relao falta de cientificidade da Dialtica baseia-se na afirmao de
que a oposio dialtica no possui significao prpria.
Por outro lado, LEFEBVRE (1991), demonstrou que h sim compatibilidade
entre a lgica formal e a lgica dialtica. A esse respeito WILDE (1991) argumenta
que a contradio lgica e a contradio dialtica so coisas distintas, sendo que a
ltima no exclui a primeira, mas ao contrrio, engloba-a. Por exemplo, numa
demonstrao matemtica ou na deduo de um argumento a contradio torna tal
argumento invlido. Neste sentido, a lgica formal aceita entre os dialticos. Mas,
por outro lado, a contradio no sentido da lgica formal fixa suas categorias
temporariamente e isto se torna freqentemente inadequado para apreender o mundo
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real, o mundo em constante movimento, o qual no pode e no deve ser reduzido a
categorias congeladas no tempo.19 (WILDE, 1991, p.283).
Cumprido o objetivo de diferenciar a oposio real da oposio dialticaColletti passa tarefa de demonstrar que a contradio dialtica e, portanto tambm a
Dialtica em geral, incompatvel com o conhecimento cientfico. A concluso do
autor que o princpio fundamental do materialismo e, portanto, da Cincia, o
princpio da no-contradio, pois a realidade no contm contradies dialticas,
mas sim oposies reais. Colletti s pode demonstrar isso pela argumentao de que
na contradio dialtica os elementos em oposio no possuem significaoprpria, ou seja, so negativos em si mesmos. Enquanto que no mundo real as coisas,
os objetos, os fatos so todos positivos, isto , possuem existncia real. Entretanto,
como j discutido a contradio dialtica em Marx no abstrata, mas possui
contedo prprio, os elementos em oposio possuem existncia real, portanto, a
crtica de Colletti perde todo o significado.
Finalmente, o ltimo objetivo encontrado na obra de Colletti apresenta os
argumentos a respeito da existncia de oposio real em Marx e no oposio
dialtica. Na Critica Filosofia do Direito de Hegel Marx afirma: Extremos reais
no podem ser mediados um pelo outro, precisamente porque so extremos reais. Mas
eles no precisam, tambm, de qualquer mediao, pois eles so seres opostos. No
tm nada em comum entre si, no demandam um ao outro, no se completam. Um no
tem em seu seio a nostalgia, a necessidade, a antecipao do outro. (MARX, 2005, p.
105). Com esta passagem Colletti pretende concluir que para Marx extremos reais
no mediam um ao outro e, portanto, uma perda de tempo (...) falar de uma
dialtica das coisas.20 (COLLETTI, 1975, p.06).
19 Dialecticians insists that contradictions in the formal logic sense fix their categories temporally, which isoften inadequate to apprehend the real world, a world in constant motion that cannot and should not be reducedto categories frozen in time. (WILDE, 1991, p.283).20 Hence real extremes do not mediate each other. It is a waste of time (indeed it is positively damaging) tospeak of a dialectic of things. (COLLETTI, 1975, p.06).
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Todavia, conforme observa WILDE (1991), naquela passagem Marx queria
apontar o engano de Hegel em considerar todas as contradies existentes no mundo
dos fenmenos como unidades na essncia, isto , na Idia. Enquanto na verdadeexiste uma profunda realidade envolvida nestas contradies, ou seja, elas so
contradies essenciais, cuja mediao, e superao, no podem ser facilmente
empreendidas.
Entretanto, o engano de Hegel em no reconhecer a existncia de contradies
irreconciliveis no justifica a completa rejeio da Dialtica, como pretende Colletti.
Wilde argumenta que mesmo quando Marx, na Critica Filosofia do Direito deHegel, alega que o procedimento idealista hegeliano transforma as relaes reais em
conceitos fortemente abstratos conduzindo-os a uma unidade de opostos que no se
adapta realidade social, Marx deixa, ao mesmo tempo, aberta a possibilidade de
existncia de uma Dialtica cujos conceitos podem se adequar realidade. E neste
aspecto que a Dialtica de Marx difere da de Hegel.
Ainda resta analisar qual a sada encontrada por Colletti para justificar as
passagens explcitas nO Capital e nas Teorias da Mais-Valia, que sugerem a
existncia de contradies dialticas. Diante de exemplos como: o (...) movimento da
metamorfose da mercadoria configura a unidade de dois processos, ou antes o
decurso de um processo por meio de duas fases opostas, sendo na essncia portanto a
unidade de ambas as fases, esse movimento tambm na essncia a separao delas e
a afirmao recproca de independncia (MARX, 1980a, p. 936), Colletti reconhece
que de fato Marx utiliza uma oposio do tipo dialtica quando ele aborda a questo
das crises do capitalismo.
Entretanto, segundo o autor, isso no justifica a reabilitao do Diamat21, pois
para Marx o capitalismo contraditrio no porque uma realidade e toda realidade
contraditria, mas por que ele (o capitalismo) est de cabea-para-baixo, uma
21 Diamat a abreviao para o termo Dialectical Materialism cunhado por Plekhanov e utilizado paradiferenciar este tipo especfico de materialismo (MORA, 1979).
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realidade invertida (alienao, fetichismo).22 (COLLETTI, 1975, p.29). Ou seja,
Colletti se agarra aos conceitos de alienao e fetichismo para sustentar sua tese de que
no h oposio dialtica ou contradio dialtica em todas as coisas, mas s nocapitalismo, pois ele uma realidade invertida. Para WILDE (1991), embora Colletti
esteja correto em destacar a importncia do tema alienao na obra de Marx, suas
concluses so incorretas, pois transformam o capitalismo da anlise marxista num
mundo irreal, enquanto que o prprio Marx sempre insistiu que o sistema alienado era
real e, de modo algum, imaginrio.
Com tudo isso, v-se que tanto as crticas de Colletti que se referem nocientificidade da Dialtica quanto quelas que se referem contradio dialtica, so
incompatveis com a viso do prprio Marx sobre a realidade capitalista. A anlise do
conceito de contradio, com base nas obras do prprio Marx, ser til no s para
demonstrar a existncia da Dialtica no desenvolvimento terico de Marx, mas,
sobretudo para sublinhar a importncia da contradio dialtica para o entendimento
das crises econmicas.
1.2O SENTIDO DO TERMO CONTRADIO NAS OBRAS DE MARXNa seo anterior observou-se que vrios autores se ocuparam, de uma forma
ou de outra, com a anlise da contradio tentando, s vezes, uma definio do que
seria a contradio em Marx. Todavia, as divergncias filosficas no permitiram que
esses esforos evolussem para um corpo terico consensuado a respeito do termo.
Esta falta de consenso impede a evoluo terica do marxismo no campo de
investigao das crises, uma vez que estas devem ser concebidas como a manifestao
das contradies do sistema capitalista. Assim, para circundar essas controvrsias
buscando um entendimento claro e preciso do termo, um caminho possvel estud-lo
22 For Marx, capitalism is contradictory not because it is a reality and all realities are contradictory, but becauseit is an upside-down, inverted reality (alienation, fetishism). (COLLETTI, 1975, p.29).
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por meio das obras do prprio Marx. Esta estratgia traz, ao mesmo tempo, o
entendimento do conceito e de sua relao com as crises econmicas.
ZELEN (1974) e BHASKAR (1988) observaram que a palavra contradiofoi utilizada por Marx, em suas principais obras, com significaes diversas de acordo
com os vrios contextos possveis. Para BHASKAR (1993) os termos contradio
(Widerspruch), antagonismo (Gegensatz) e conflito (Konflikt) so frequentemente
utilizados como sinnimos, de forma alternada, mas em vrios sentidos diferentes.
Assim, para facilitar a anlise dos significados assumidos pelo termo contradio nas
obras de Marx partir-se- da classificao do conceito em duas categorias, conformesugerido por Bhaskar: contradies no-dialticas e contradies dialticas. Com base
nesta classificao sero analisadas algumas passagens das obras Ideologia Alem,
Grundrisse, Teorias da Mais-Valia e dO Capital, procurando-se identificar qual o
sentido do termo contradio quando Marx se refere s crises econmicas, tentando a
partir disso uma definio da contradio envolvida nas crises.
1.2.1 Contradies No-DialticasPara ZELEN (1974), Marx freqentemente utiliza a palavra contradio sem
distinguir quando se trata da contradio dialtica e quando se trata da contradio
tradicional, que para o autor significa inconseqncia, incongruncia. Assim, os
seguintes sentidos podem ser destacados quando se trata da contradio tradicional.
Contradies como Inconseqncia no Pensamento
Algumas vezes essa inconseqncia deriva de contradies dialticas no
compreendidas por algum autor. Este o caso da contradio dialtica existente na
troca entre o capital e o trabalho, por meio da qual se origina a mais-valia. Essa
contradio no foi compreendida nem por Ricardo nem por seus sucessores fazendo-
os incorrer em inconsistncias tericas:
Para um ricardiano radical no estilo de Mill, que v como coisas idnticas compra e venda,
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oferta e procura, e para quem o dinheiro mera formalidade, o melhor mesmo que naconverso da mercadoria em dinheiro (...) se inclua que o vendedor tem de vender amercadoria abaixo do valor e o comprador, com seu dinheiro, tem de comprar acima dovalor. Acaba-se portanto chegando a este absurdo: naquela transao o comprador adquire
a mercadoria para revend-la com lucro e por isso o vendedor tem de vender a mercadoriaabaixo do valor dela; com isso desaba a teoria toda do valor. Essa segunda tentativa de Millde resolver umacontradioricardiana destri a base inteira do sistema e em particularsua superioridade por definir a relao entre capital e trabalho como troca direta entretrabalho acumulado e trabalho imediato, isto , em conceb-la em sua especificidade. [grifomeu] (MARX, 1980b, p.1146).
Note que na citao a expresso uma contradio ricardiana pode ser
substituda por uma inconseqncia no pensamento ricardiano revelando, portanto o
primeiro sentido no qual o termo contradio utilizado por Marx. Em outros casos, otermo indica apenas situaes absurdas, sem sentido como na seguinte passagem,
onde Marx disserta sobre a renda dos terrenos destinados construo:
A relao entre parte da mais-valia, a renda em dinheiro (...) e o solo em si absurda eirracional, pois so grandezas incomensurveis que aqui se medem entre si: por um lado,determinado valor de uso, um terreno com tantos ps quadrados, e, por outro, valor,especialmente mais-valia. Isso expressa, de fato, apenas que, sob as condies dadas, apropriedade desses ps quadrados de solo habilita o proprietrio a apoderar-se dedeterminado quantum de trabalho no pago (...) Prima facie a expresso , porm, amesma, como se quisesse falar da relao entre uma nota de 5 libras e o dimetro da Terra.As mediaes das formas irracionais em que determinadas condies econmicasaparecem e praticamente se acoplam no importam nem um pouco aos portadores prticosdessas condies econmicas em sua ao econmica diuturna; e j que eles estoacostumados a se movimentar no meio delas, no ficam nem um pouco chocados com isso.Uma perfeita contradio no tem nada de misterioso para eles. [grifos meus] (MARX,1986c, V, p.241).
A perfeita contradio neste caso refere-se relao absurda e irracional
entre a parte da mais-valia que cabe ao proprietrio de terra e o pedao de solo, cujapropriedade origina o direito sobre parte da mais-valia produzida. Aqui, portanto,
encontra-se o segundo sentido assumido pelo termo contradio.
Contradies Lgicas
Para BHASKAR (1993), o termo contradio pode, ainda, assumir o sentido
de inconsistncias lgicas ou anomalias tericas intra-discursivas, as quais podem ser
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reduzidas ao conceito de contradies lgicas. Segundo Bhaskar, a contradio lgica
formal acarreta a indeterminao axiolgica do sujeito: A e -A deixa o curso da ao
indeterminado. Assim sendo, parece que um bom exemplo da utilizao do termocontradio nesta perspectiva a conhecida contradio da frmula geral do capital.
Marx refere-se formula D M D como uma contradio (ainda que apenas
aparente) na medida em que o valor acrescido de D, dada a necessidade de manter
vlida a hiptese de que na circulao as mercadorias so trocadas pelo seu valor,
torna-se indeterminvel, isto , sua verdadeira origem fica encoberta:
A forma de circulao, pela qual o dinheiro se revela como capital, contradiz todas as leisanteriormente desenvolvidas sobre a natureza da mercadoria, do valor, do dinheiro e daprpria circulao. O que a distingue da circulao simples de mercadorias a seqnciainversa dos mesmos dois processos contrapostos, venda e compra. E como poderia taldiferena puramente formal mudar por encanto a natureza desses processos? (MARX,1986a, I, p.131).
Todavia, esta contradio da frmula geral do capital desvendada to logo a
fora de trabalho apresentada como fonte geradora do valor.
Contradies como Choques entre Foras Contrapostas e Antagonismos Mecnicos
Para Zelen, um exemplo desses antagonismos mecnicos pode ser observado
quando Marx refere-se contradio entre oferta e procura:
Procura e oferta de fato jamais coincidem, ou, se alguma vez coincidirem, por meracasualidade; (...) Mas, na Economia Poltica, supe-se que elas coincidem. Por qu? Paraobservar os fenmenos na figura que corresponde a sua lei, a seu conceito, isto paraobserv-los independentemente da aparncia provocada pelo movimento de procura e
oferta. Por outro lado, para descobrir e, de certo modo, fixar a tendncia real de seumovimento. Pois as desigualdades so de natureza antagnica, e uma vez que se sucedemcontinuamente, elas se compensam mutuamente devido a seus sentidos opostos, a suacontradio. [grifos meus] (MARX, 1986c, IV, p.146).
Bhaskar apresenta o mesmo exemplo, mas denomina-o de oposies extra-
discursisvas: Por exemplo, a oferta e a procura que envolve foras ou tendncias de
origens (relativamente independente) que interagem de tal modo que seus efeitos
tendem a se anular mutuamente, em momentneo ou semipermanente equilbrio.
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(BHASKAR, 1988, p.80). Embora a contradio entre oferta e demanda se assemelhe
definio de contradio dialtica, que ser apresentada adiante, ela no pode ser
considerada como tal, pois os elementos opostos desta unidade se anulamdescaracterizando-a como contradio dialtica.
importante notar que a identificao desses diversos significados para o
termo contradio no se reduz a uma simples questo semntica, mas demonstra a
existncia de diferentes contedos associados ao termo de acordo com o contexto no
qual empregado. Como ser visto, isto particularmente importante quando se trata
do significado da contradio que explica a crise do ponto de vista terico emetodolgico.
1.2.2 Contradies DialticasDiferentemente dos significados discutidos no item anterior, Marx tambm
utiliza o termo contradio para expressar contradies dialticas. Conforme Bhaskar,
dois aspectos so importantes para caracterizar as contradies dialticas marxistas:(i) constituem oposies inclusivas reais, j que seus termos pressupem
existencialmente seu oposto; (ii) so sistemtica ou internamente relacionadas com
uma forma de aparncia mistificadora. (BHASKAR, 1988, p.80). Tambm para
Zelen, o termo contradio foi utilizado por Marx como contradio dialtica.
Segundo o autor, este tipo de contradio encontrado logo nos dois primeiros
captulos dOCapital significando uma contradio interna cuja expresso pode se dar
numa contradio externa. Entretanto, BHASKAR (1988) que traz uma tipologia
interessante das contradies dialticas dividindo-as em: (i) contradies dialticas
histricas; e (ii) contradies dialticas estruturais.
Contradies Dialticas Histricas
As contradies dialticas histricas ou temporais so definidas por Bhaskar
da seguinte forma: (Elas) envolvem foras de origens no independentes operando de
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forma que a fora F tenda a produzir, ou seja, ela mesma o produto de condies que,
simultaneamente ou subsequentemente, produzam uma F contrria