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- 65- Ética e prática profissional em saúde Texto Contexto Enferm 2005 Jan-Mar; 14(1):65-74. RESUMO: Há várias teorias éticas e modelos de análise teórica que podem orientar a nossa forma de ser e agir profissionalmente. Mesmo levando em consideração que referências filosóficas e teóricas nos ajudam a pensar criticamente, é sempre bom ter em mente que a aplicação rotineira de métodos nunca é um substituto satisfatório para a inteligência crítica. Porém, não é nada simples responder as questões: como devem ser os enfermeiros e enfermeiras na sua prática profissional? Como devem agir os enfermei- ros e enfermeiras em relação aos outros e a si mesmo? Neste sentido, o propósito deste texto é contribuir com fundamentos éticos que possibilitem a reflexão sobre a forma como temos agido e como temos sido enquanto profissionais de saúde. O objetivo é problematizar a relação cliente - profissional de saúde, uma vez que é nessa prática cotidiana que se integram os elementos próprios da conduta moral profis- sional. PALAVRAS-CHAVE: Ética. Prática profissional. Saúde. KEYWORDS: Ethics. Professional practice. Health. ABSTRACT: There are many ethical theories and theoretical analysis models that can guide our professional behavior and existence. Even considering that philosophical and theoretical references can help us to critically think, it is always good to keep in mind that the usual application of a methodical reference is never a satisfactory substitute for critical intelligence. However, it is never simple to answer the questions: how should the nursing professionals be in their professional practice? How should nursing professionals act towards others and towards themselves? With this in mind, the proposal is to contribute with ethical foundations that make it possible to reflect about the way we have been acting and being as health professionals. The intention is to discuss the client - health professional relationship since it is in this daily practice that the moral elements of conduct are integrated. PALABRAS CLAVE: Ética. Práctica profesional. Salud. RESUMEN: Existen varias teorías éticas y modelos de análisis teórico que pueden orientar nuestra forma de ser y actuar. Mismo considerándose que las referencias filosóficas y teóricas ayudan a racioci- nar críticamente, siempre es importante tener en cuenta que la aplicación rutinaria de los métodos nunca es un substituto satisfactorio para la inteligencia crítica. Sin embargo, no es nada simple contestar las siguientes cuestiones: ¿Cómo deben ser los enfermeros(as) en su práctica profesional? ¿Cómo deben actuar los enfermeros(as) en relación con los otros y a si mismo? En este sentido, el propósito es contribuir con fundamentos éticos que posibiliten la reflexión sobre la forma como hemos actuado y como hemos sido en cuanto profesionales de la salud. El propósito es problematizar la relación cliente- profesional de la salud, dado que en esta práctica cotidiana se integran los elementos propios de la conducta moral profesional. Endereço: Maria Bettina Camargo Bub Rua Caminho dos Açores, 390 88050-300 - Santo Antônio de Lisboa, Florianópolis, SC E-mail: [email protected] Artigo original: Reflexão Recebido em: 15 de agosto de 2004 Aprovação final: 06 de dezembro de 2004 ÉTICA E PRÁTICA PROFISSIONAL EM SAÚDE ETHICS AND HEALTH PROFESSIONAL PRACTICE LA ÉTICA Y LA PRÁCTICA PROFESIONAL EN LA SALUD Maria Bettina Camargo Bub 1 1 Enfermeira. Doutora. Professora do Departamento e Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Ética.

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- 65-Ética e prática profissional em saúde

Texto Contexto Enferm 2005 Jan-Mar; 14(1):65-74.

RESUMO: Há várias teorias éticas e modelos de análise teórica que podem orientar a nossa forma deser e agir profissionalmente. Mesmo levando em consideração que referências filosóficas e teóricas nosajudam a pensar criticamente, é sempre bom ter em mente que a aplicação rotineira de métodos nuncaé um substituto satisfatório para a inteligência crítica. Porém, não é nada simples responder as questões:como devem ser os enfermeiros e enfermeiras na sua prática profissional? Como devem agir os enfermei-ros e enfermeiras em relação aos outros e a si mesmo? Neste sentido, o propósito deste texto é contribuircom fundamentos éticos que possibilitem a reflexão sobre a forma como temos agido e como temos sidoenquanto profissionais de saúde. O objetivo é problematizar a relação cliente - profissional de saúde,uma vez que é nessa prática cotidiana que se integram os elementos próprios da conduta moral profis-sional.

PALAVRAS-CHAVE:Ética. Prática profissional.Saúde.

KEYWORDS:Ethics. Professional practice.Health.

ABSTRACT: There are many ethical theories and theoretical analysis models that can guide ourprofessional behavior and existence. Even considering that philosophical and theoretical references canhelp us to critically think, it is always good to keep in mind that the usual application of a methodicalreference is never a satisfactory substitute for critical intelligence. However, it is never simple to answerthe questions: how should the nursing professionals be in their professional practice? How shouldnursing professionals act towards others and towards themselves? With this in mind, the proposal is tocontribute with ethical foundations that make it possible to reflect about the way we have been actingand being as health professionals. The intention is to discuss the client - health professional relationshipsince it is in this daily practice that the moral elements of conduct are integrated.

PALABRAS CLAVE:Ética. Práctica profesional.Salud.

RESUMEN: Existen varias teorías éticas y modelos de análisis teórico que pueden orientar nuestraforma de ser y actuar. Mismo considerándose que las referencias filosóficas y teóricas ayudan a racioci-nar críticamente, siempre es importante tener en cuenta que la aplicación rutinaria de los métodosnunca es un substituto satisfactorio para la inteligencia crítica. Sin embargo, no es nada simple contestarlas siguientes cuestiones: ¿Cómo deben ser los enfermeros(as) en su práctica profesional? ¿Cómo debenactuar los enfermeros(as) en relación con los otros y a si mismo? En este sentido, el propósito escontribuir con fundamentos éticos que posibiliten la reflexión sobre la forma como hemos actuado ycomo hemos sido en cuanto profesionales de la salud. El propósito es problematizar la relación cliente-profesional de la salud, dado que en esta práctica cotidiana se integran los elementos propios de laconducta moral profesional.

Endereço:Maria Bettina Camargo BubRua Caminho dos Açores, 39088050-300 - Santo Antônio de Lisboa, Florianópolis, SCE-mail: [email protected]

Artigo original: ReflexãoRecebido em: 15 de agosto de 2004Aprovação final: 06 de dezembro de 2004

ÉTICA E PRÁTICA PROFISSIONAL EM SAÚDEETHICS AND HEALTH PROFESSIONAL PRACTICE

LA ÉTICA Y LA PRÁCTICA PROFESIONAL EN LA SALUD

Maria Bettina Camargo Bub1

1 Enfermeira. Doutora. Professora do Departamento e Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina.Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Ética.

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INTRODUÇÃO

A tolerância é a conseqüência necessária do reconheci-mento de que somos falíveis; errar é humano, e todos nós

cometemos erros permanentemente. Então, perdoemo-nos unsaos outros as nossas loucuras. Este é o fundamento do direito

natural (Voltaire).Embora existam várias teorias éticas e modelos

de análise teórica, não pretendo fazer uma revisão so-bre os diversos modelos existentes, nem tampoucoentrar em definições, caracterizações e comparaçõesentre os diversos termos utilizados na ética aplicada àsaúde – bioética; ética biomédica; ética da saúde eoutros. Minha proposta é oferecer fundamentos paraa reflexão sobre a forma como temos agido e comotemos sido enquanto profissionais de saúde, indepen-dente do tipo de prática exercida – assistência, pesqui-sa, educação.

Meu ponto de partida é a compreensão da éticacomo um ramo da filosofia prática que tem comopropósito refletir sobre o agir humano e suas finalida-des; o estudo dos conflitos entre aquilo que podemosconsiderar como moralmente justificável e aquilo quenão pode ser assim considerado. Neste sentido, inicioapresentando um conceito mínimo de moralidade,após, destaco alguns aspectos históricos da ética vin-culada a saúde e, a seguir, apresento uma noção daética principialista. Finalmente, apresento três modosgerais de relação cliente/profissional de saúde, deten-do-me no modo de abertura para o outro.

Embora a abordagem dos problemas de saúdeimplique em intervenções em fatores sociais e políti-cos, comportamento humano e institucional, tradiçõese tecnologias, é no dia-a-dia da prática em saúde queexercemos nossa moralidade e nos deparamos com afinalidade e o sentido da vida humana, obrigações edeveres, e nos posicionamos acerca do bem e do mal.É nessa prática que, cotidianamente, nos é impostodecidir como devemos viver nossa vida, em relação anós mesmos e em relação aos outros; e, como deve-mos ser enquanto profissionais de saúde.

UM CONCEITO MÍNIMO DE MORALI-DADE E A CONSTITUIÇÃO DO AGEN-TE MORAL

É difícil definir o que é moralidade. A ética éuma tentativa de compreender sistematicamente a na-

tureza da moralidade e o que ela exige de nós. Amoralidade é, antes de tudo, uma questão de consultaà razão. Uma atitude moralmente aceitável é determi-nada pelas melhores razões para realizá-la.1

Portanto, não é tão simples compreender o quesignifica viver moralmente. Por este motivo, existemvárias teorias fornecendo-nos fundamentos para en-contrar as melhores razões para tomar uma ou outraatitude. De qualquer maneira, mesmo levando emconsideração que referências filosóficas e teóricas nosajudam a pensar criticamente, é sempre bom ter emmente que a aplicação rotineira de métodos nunca éum substituto satisfatório para a inteligência crítica.Neste sentido, o conceito mínimo de moralidade pro-posto no livro The Elements of Moral Philosophy é umadessas referências1.

Neste livro seu autor fez uma análise descritivada situação de três crianças*, na qual expôs os possí-veis aspectos benéficos de cada situação e discutiu ar-gumentos, como por exemplo o uso das pessoas comomeio para atingir um determinado fim; a sacralidadeda vida humana; e, a discriminação contra as pessoasem desvantagem - deficientes e incapacitados. Apóstal análise, ele conceituou moralidade como “[...] umesforço para guiar a conduta das pessoas pela razão,isto é, fazer aquilo para o qual existe a melhor razãopara fazê-lo pesando, ao mesmo tempo, os interessesde cada indivíduo que será afetado pela conduta to-mada”1:19. “Um agente moral consciencioso é alguémque considera imparcialmente os interesses de todosafetados por aquilo que ele ou ela faz; aquele que ana-lisa cuidadosamente os fatos e examina suas implica-ções; aquele que aceita princípios de conduta somentedepois de ter certeza de que eles são sólidos; aqueleque está disposto para ‘escutar as razões’ mesmo quan-do suas convicções prévias podem ser revisadas; e,aquele que, finalmente, está disposto a agir de acordocom os resultados desta deliberação”.1:19

A partir do conceito de moralidade, podemosentão questionar: quando sabemos que estamos dian-te de um dilema moral?1 Um dilema moral ocorre deduas maneiras.2 Na primeira, diante de um fato, algu-mas evidências indicam que uma atitude é moralmen-te aceitável, enquanto outras indicam que tal atitude éinaceitável. Porém, afirmam os autores, nenhuma dasduas é conclusiva. Na segunda, uma pessoa acreditaque, de acordo com determinado fundamento ela ou

*O autor descreve e analisa três casos distintos. O primeiro é o caso de Baby Thereza, uma menina nascida em 1992, com anencefalia.1 Como não havia mais esperanças paraThereza, seus pais resolveram, voluntariamente, doar seus órgãos para transplante. No entanto, foram impedidos porque a lei da Flórida não permitia a doação até que a pessoafosse considerada em morte cerebral. Mas como declarar morte cerebral em um bebê sem cérebro? O segundo é o caso de Baby Jane Doe. Uma menina nascida no estado de NovaIorque, com múltiplos defeitos, incluindo espinha bífida, motivo pelo qual seu prognóstico era bastante incerto. O terceiro, é o caso de Tracy Latimer, uma garota de 12 anos deidade, com paralisia cerebral, que foi morta por seu pai em 1993. Na época de sua morte ela pesava menos do que 40 libras e tinha a idade mental de um bebê de três meses.

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ele pode agir de uma forma e, de acordo com outro,pode agir de maneira distinta; o fato é que ela ou elenão pode agir das duas maneiras, pois nenhuma dasduas é suficientemente dominante. Independente da ati-tude escolhida, a pessoa vai estar sempre contrariandoum fundamento ou outro. No entanto, é bom lembrarque conflitos entre exigências morais e interesses pesso-ais não são morais e, sim, conflitos práticos; julgamen-tos morais são diferentes de preferências pessoais.

Os conceitos de moralidade e de agente moralque foram apresentados podem fundamentar nossacompreensão tanto dos conflitos cotidianos em saúdecomo a análise de fatos ocorridos na recente históriada humanidade, mais particularmente da pesquisamédica.

DAS BARBÁRIES NA PESQUISA AO NAS-CIMENTO DA BIOÉTICA

A crescente preocupação com os conflitos mo-rais vinculados a prática e a pesquisa na área da saúdetem seu marco fundamental no Julgamento deNüremberg – agosto de 1945 a outubro de 1946 –no qual foram condenados junto com oficiais nazis-tas, médicos que tinham desrespeitado cruelmente osdireitos humanos de prisioneiros nos campos de con-centração nazistas. A partir do julgamento das atroci-dades cometidas durante a II Guerra, muitas delas emnome da pesquisa científica, foi promulgado o Códi-go de Nüremberg em 20 de agosto de1947. NesseCódigo foram apresentados dez itens que regulam apesquisa em seres humanos. Foi o primeiro documen-to a apresentar o consentimento informado como ex-pressão da autonomia das pessoas e a considerá-locomo “[...] absolutamente essencial”. 3:265

Um professor de anestesiologia da HarvardMedical School, em 1966 - suspeitava que a enormequantidade de fundos destinados à pesquisa, associa-da a grande pressão sobre os médicos professorespara produzir conhecimento a fim de serem promo-vidos, poderia levar a dissociação entre os interessesdos cientistas e das pessoas.4 Movido por sua suspeita,o autor4 compilou 50 artigos originais, publicados en-tre 1948 e 1965 em jornais de grande prestígio inter-nacional, como por exemplo New England Journal of

Medicine; Circulation; Journal of American MedicalAssociation - e escreveu o artigo Ethics in ClinicalResearch, no qual ele apresentou 22 relatos de pesqui-sas realizadas com recursos governamentais e de em-presas de farmacêuticas, nas quais os sujeitos da inves-tigação – considerados “cidadãos de segunda classe”ou “sub-humanos” - eram “[...] internos em hospitaisde caridade, adultos com deficiências mentais, criançascom retardos mentais, idosos, pacientes psiquiátricos,recém-nascidos, presidiários, enfim pessoas incapazesde assumir uma postura moralmente ativa diante dopesquisador e do experimento”.5:15

Nessas pesquisas ele encontrou vários casos demaus tratos e violações éticas. Foi por meio deste arti-go que o autor “[...] trouxe o horror da imoralidadeda ciência, dos confins dos campos de concentraçãopara o meio científico, acadêmico e hegemônico”, de-monstrando que “[...] a imoralidade não era exclusivados médicos nazistas” .6:60

No livro Bioethics: bridge to the future., escrito em1971, foi utlizado pela primeira vez, o termo bioéticaO autor propunha uma democratização contínua doconhecimento científico como forma de difundir o“olhar zeloso da ética”.6 Na opinião do autor, nós nãopodemos deixar nosso destino nas mãos daqueles que“[...] esqueceram ou nunca souberam essas verdadeselementares. Em nosso mundo moderno, nós temosbotânicos que estudam plantas ou zoólogos que estu-dam animais, no entanto a maioria deles é especialistaque não lida com as ramificações de seu conhecimen-to limitado [...]”.6:58-59

Apesar dos horrores da segunda grande guer-ra, da promulgação do Código de Nüremberg e doimpacto do artigo citado acima,6 as barbaridades napesquisa com seres humanos continuaram ocorrendo.Foi preciso a mobilização da opinião pública norte-americana contra estes escândalos**, para que o go-verno constituísse a Comissão Nacional para a Prote-ção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica eComportamental, com o propósito principal de iden-tificar os princípios éticos básicos que deveriam orien-tar a experimentação em seres humanos nas ciênciasdo comportamento e na biomedicina.

Em 1978 esta Comissão publicou o RelatórioBelmont, a partir do qual se originaram as primeiras

**O primeiro, aconteceu em 1963, no Hospital Israelita de doenças crônicas em Nova Iorque, onde foram injetadas células cancerosas vivas em pessoasidosas doentes. O segundo, ocorreu entre 1950 a 1970, no hospital estatal de Willowbrook (NY), onde injetaram o vírus da hepatite em crianças comretardamento mental. E, finalmente, o terceiro, divulgado apenas em 1972, embora viesse ocorrendo desde 1930, foi o caso do Tuskegee study, noAlabama. Neste caso, 400 negros com sífilis foram deixados sem tratamento para uma pesquisa sobre a história natural da sífilis, e, embora durante esteperíodo a penicilina houvesse sido descoberta, a pesquisa prosseguiu e os negros não foram tratados. Somente em 1996, o governo americano pediu desculpaspúblicas à comunidade negra.7

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noções sobre o que viria a ser a ética principialista7. Ostrês princípios básicos publicados no Relatório Belmontforam autonomia, beneficência e justiça***. Após apublicação do Relatório a abordagem dos problemasenvolvidos na pesquisa em seres humanos deixou deser analisada a partir dos códigos, mas de acordo comestes três princípios.

A ÉTICA PRINCIPIALISTA DE BEAU-CHAMP E CHILDRESS

Apenas um ano após a publicação do RelatórioBelmont****, em 1979, foi publicado o livro Principlesof Biomedical Ethics.2 Ao contrário do Relatório Belmont,que foi escrito com a preocupação voltada para asquestões vinculadas ao desenvolvimento da pesquisabiomédica, os autores têm como seu foco a preocu-pação com a prática médica, ao mesmo tempo emque procuram separá-la do enfoque próprio dos có-digos e juramentos.

Em Principles of Biomedical Ethics,2 desdobram ostrês princípios do Relatório Belmont em quatro – auto-nomia, não-maleficência, beneficência e justiça. Essesprincípios não são absolutos e não obedecem a qual-quer disposição hierárquica, mas são válidos prima facie.Em caso de conflito entre si, a situação em questão eas suas circunstâncias indicarão aquele que deve ga-nhar precedência sobre os demais7. Um exemplo:como enfermeiros e enfermeiras nós sabemos queprecisamos mudar o decúbito de pessoas acamadasque estão impossibilitadas de fazê-lo por si mesmas,pelo menos a cada duas horas, para evitar úlceras depressão – o princípio que rege este tipo de condutaprofissional é o de beneficência. No entanto, em umapessoa com dificuldade de obter uma boa saturaçãode oxigênio no sangue, a mudança de decúbito podeser ainda pior se a saturação cair para níveis críticos.Nesta circunstância o princípio de não maleficênciaganharia precedência sobre o de beneficência.

Princípio de respeito à autonomia assegura odireito das pessoas de terem pontos de vista próprios,fazer escolhas e tomar atitudes baseadas em valores ecrenças pessoais. Tal respeito envolve uma ação res-

peitosa, e não somente uma atitude de respeito. Istoinclui a obrigação de manter a capacidade para a es-colha autônoma do outro, afastar medo e outras con-dições freqüentes no cotidiano da saúde, que impe-dem as ações autônomas.2

No entanto, há situações que justificam algumasintervenções, porque outros princípios ganham pre-cedência em relação ao respeito à autonomia, comopor exemplo no caso de incapacidade para expressarou comunicar preferências e escolhas pessoais; paracompreender a situação pessoal e suas conseqüências;para compreender informação relevante; para argu-mentar; para calcular riscos e benefícios; e, para tomardecisões razoáveis em tempo hábil. Esta última situa-ção, geralmente, é o caso do atendimento de emer-gência, durante o qual manter a precedência do princí-pio de respeito à autonomia, pode significar a mortedesnecessária ou a incapacidade temporária ou per-manente da pessoa que está necessitando esta modali-dade de cuidado. Nesta situação os princípios de nãomaleficência e beneficência ganhariam precedênciasobre o de respeito à autonomia. De qualquer manei-ra, não sendo este o caso, o consentimento livre e es-clarecido é exigido ao exercício do respeito à autono-mia.

Respeitar a autonomia significa prover toda ainformação necessária para que a pessoa possa tomara melhor decisão de acordo com seu interesse. Du-rante o diálogo, as pessoas tentam influenciar o com-portamento umas das outras. Clientes, profissionais efamiliares tentam influenciar uns aos outros, exercen-do seu poder. Poder este entendido como um fenô-meno social, sem o qual não se poderia conversarquase nada.8 Todas as pessoas têm um certo poder e éna multiplicidade das relações de poder que se evita asrelações unilaterais de dominação.

A persuasão é uma das formas mais aceitáveisde influenciar, pois uns convencem aos outros pelouso da razão; como um jogo de poder. No entanto,existem formas menos aceitáveis como a manipula-ção e a coerção. Estas formas de influência se aproxi-mam mais de formas de dominação, pois se expres-sam em relações unilaterais, fixas e difíceis de rever-

*** De acordo o Relatório, um indivíduo autônomo é capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir sob a orientação desta deliberação. A autonomiaé entendida como a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem coação externa. Deste princípio derivam dois procedimentos práticos: um é aexigência do consentimento informado e, o outro é o de como tomar decisões de substituição, quando uma pessoa é incompetente ou incapaz de decidir. Noprincípio da beneficência, o Relatório rechaça claramente a idéia clássica da beneficência como caridade. Consideraram a beneficência como a obrigaçãoprofissional de não causar dano; maximizar os benefícios; e, minimizar os possíveis riscos. No princípio de justiça foi entendido como imparcialidade nadistribuição dos riscos e benefícios.7:83-4

****Tom Beauchamp foi um dos membros da Comissão que elaborou o Relatório Belmont.

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ter.8 A manipulação implica em prover a informaçãode tal maneira que motive a pessoa a fazer o que EUQUERO que seja feito, independente desta ser a me-lhor maneira de fazê-lo, enquanto a coerção é uso in-tencional de uma ameaça crível e severa de dano oumesmo a FORÇA para controlar alguém.

O princípio de não-maleficência assegura aobrigação de não causar dano intencionalmente. Estáestreitamente vinculado com a máxima hipocrática*****

“Primum non nocere”. Embora muitos autores nãofaçam distinção entre o princípio de beneficência e ode não-maleficência, a obrigação de não causar dano,como por exemplo incapacitar ou lesar, é claramentedistinta da obrigação de ajudar os outros, seja pro-movendo bem-estar ou protegendo interesses2.

O princípio de beneficência implica em agirpara o bem do cliente, em todos os níveis da assistên-cia de saúde. Um profissional de saúde tem o com-promisso público de agir sempre para o bem do cli-ente. Neste sentido, ele ou ela agem eticamente se obem estar do cliente for a finalidade da sua ação.9 Emtermos gerais, este princípio pode ser formulado daseguinte maneira: “aja de tal maneira que as conseqü-ências da suas intervenções serão para o bem do cli-ente”.9:289 Agir para o bem de alguém é prevenir malou dano; remover mal ou dano, e fazer ou promovero bem2. Este princípio é um exercício contínuo demaximizar benefícios e minimizar riscos, e vincula-secom a solidariedade e com a responsabilidade.

O princípio de justiça refere-se à distribuiçãoadequada do ônus e dos benefícios sociais; é o princí-pio que representa e articula as necessidades da socie-dade. No âmbito da saúde, é o direito de todos areceber assistência de saúde. Uma vez que os profissi-onais da saúde não podem simplesmente desconsiderara importância dos aspectos econômicos na assistênciaà saúde, elas ou eles devem fazê-lo sem violar sua inte-gridade moral e sem comprometer as finalidadesconstitutivas da prática profissional.9 Este princípiopode ser formulado nos seguintes termos: “naalocação de recursos de saúde aja de tal maneiraque privilégios e encargos sejam distribuídos semdiscriminação no tratamento das pessoas, a menosque isto seja necessário e justificado em favor dosmais necessitados”.9:290 A contribuição específica daética para o problema da alocação é assegurar umaefetiva administração dos recursos comunitários.9 Esteprincípio desafia os profissionais de saúde na renova-ção de seu contrato com a sociedade, além de vincu-

lar-se com as exigências de eqüidade. Ou seja, a ado-ção de medidas desiguais para compensar as diferen-ças injustas - iniqüidades.

Embora muitas críticas tenham sido feitas à éti-ca principialista,6,7,9 esses princípios auxiliam a constru-ção e a compreensão do que é um agente moral. Elespodem ser tomados como um ponto de partida parainiciar o questionamento dos próprios preconceitosou convicções prévias, sejam elas religiosas, culturaisou de outra natureza qualquer. Neste sentido, os prin-cípios podem se constituir numa das estratégias váli-das para aproximação e descoberta individual de umconceito mínimo de moralidade, modificando o modusoperandi predominante da biomedicina o qual, na ânsiade corrigir desvios do normal, freqüentementedesconsidera os direitos do outro.

Ademais, quando o assunto é a normatizaçãoda pesquisa em seres humanos, os autores da Resolu-ção no. 196 de 10 de outubro de 1996 do ConselhoNacional de Saúde10 recorreram ao principialismo parafundamentar os itens III e V, os quais tratam dos as-pectos éticos na pesquisa envolvendo seres humanos edos riscos e benefícios, respectivamente. No item IIIsão destacados explicitamente os princípios de respei-to à autonomia, não maleficência e justiça entendidacomo equidade. Já, no item V – sobre riscos e benefí-cios – são enfatizados implicitamente os princípios denão maleficência e beneficência. A influência da éticaprincipialista na Resolução no.196/96 contribuiu, nomínimo, para a noção de responsabilidade moral dospesquisadores brasileiros.

PARA ALÉM DO PRINCIPIALISMO

Outras perspectivas éticas podem e devem serexploradas quando o assunto é a prática cotidiana emsaúde, pois a saúde e a doença são um campo univer-sal de experiência, de reflexão, e de escolhas morais.11

A saúde como experiência humana reflexiva ten-de a servir como base para as decisões acerca daalocação dos escassos recursos disponíveis para assis-tência à saúde ou para as situações extremas, como oinício e término da vida - nascimentos artificiais e des-tino dos embriões, aborto, transplantes de órgãos,condições de sobrevivência terminal, entre tantos ou-tros. Ao invés de pensar em alternativas para melho-rar e estender a assistência à saúde das pessoas e foca-lizar a relação entre cliente e profissional, nós somosconduzidos a justificar escolhas de políticas restritivas

***** Embora considerado como um princípio fundamental da tradição da medicina hipocrática, esta máxima não foi encontrada no “corpus” hipocrático.

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de exclusão na assistência de saúde.11

Uma prática reflexiva implica em problematizarsituações cotidianas com as quais nos deparamos quan-do assistimos pessoas, seja promovendo a saúde; pre-venindo má-saúde; ou, cuidando de pessoas em má-saúde. Significa tomar em consideração as dúvidas donosso dia-a-dia, as quais nos forçam a refletir constan-temente sobre qual a melhor forma de aplicar umainjeção, contar a uma pessoa que a cirurgia não teve oêxito esperado, banhar alguém mesmo sem ter o ma-terial necessário, a melhor maneira de desenvolver açõeseducativas em saúde, e assim por diante.

Nenhum modelo esgota a problemática da éti-ca da saúde. Existem outros conceitos-chave que de-vem ser considerados numa situação de conflito. Den-tre eles, destaco os conceitos de tolerância, eqüidade,solidariedade e responsabilidade, como imprescindí-veis para avaliar questões relativas aos conflitos mo-rais do cotidiano da saúde.

Ser tolerante, é ser complacente, compreensi-vo, condescendente, flexível e não o contrário – into-lerante, duro, implacável, incompreensivo ou inflexí-vel. A tolerância está vinculada ao nosso modo de serprofissional e, por este motivo, pode ser consideradauma virtude. Ao final do texto intitulado “Tolerânciae Responsabilidade Intelectual”,12 são apresentadas al-gumas proposições que apontam para uma “nova éticaprofissional”. Destas proposições, extraí alguns frag-mentos que me pareceram muito úteis para a reflexãocotidiana.

De acordo com esse autor12:181-182 “[...] é precisotolerar, mas não tolerar a violência e a crueldade. Éimpossível evitar todos os erros, embora seja nossatarefa continuar a evitá-los e aprender precisamentecom eles. A autocrítica é a melhor crítica, mas a críticaatravés dos outros é uma necessidade. [...] Há, pois,que modificar a nossa atitude face aos nossos erros. Éaqui que deve começar a nossa reforma ético – práti-ca. Pois que a antiga atitude ético-profissional leva aque se dissimulem, a que se encubram os erros e aesquecê-los tão rapidamente quanto possível”. A vir-tude da tolerância deve permear nosso exercício pro-fissional e nossas relações com os outros, desde que olimite com a violência e da crueldade não seja ultra-passado. Isto implica em assumir uma atitude de aber-tura e de aprendizado em relação aos nossos próprioserros e aos erros dos outros pois, freqüentemente, aintolerância com os outros esconde uma tolerânciademasiada para consigo mesmo. Assim que nossa in-tolerância com os outros pode ser um alerta para re-

fletirmos sobre nossos agir e ser como pessoa e pro-fissional de saúde.

A eqüidade não é o mesmo que igualdade, par-ticularmente no campo da saúde. Neste caso, a socie-dade deveria intervir, não para as pessoas serem iguais,mas para adotar medidas desiguais para compensaras diferenças injustas.11 Todavia, na saúde, nem todasas desigualdades são iníquas. Por exemplo, não sãodesigualdades iníquas aquelas que têm uma base gené-tica. Porém, elas podem tornar-se como tais, em ca-sos em que há meios preventivos ou terapêuticos eestes não forem distribuídos igualmente.11 Não seri-am também desigualdades iníquas aquelas que resul-tam de estilos de vida escolhidos livremente, comopor exemplo, o caso de um corredor de F1 que sofretraumatismo cranioencefálico num acidente duranteuma prova.

São iníquas as desigualdades que resultam defatores como por exemplo: moradia sem higiene, nu-trição e educação insuficientes, condições de trabalhoinseguras e aquelas que dependem da dificuldade deacesso aos serviços de saúde, qualidade ou atençãoinadequada. Resumindo, eqüidade é o resultado de jus-tiça aliada a igualdade. Sua finalidade é evitar desigual-dades injustas.

A solidariedade, como virtude, permite que oprofissional estabeleça deliberadamente e desapaixo-nadamente uma comunidade de interesses, não só comos clientes necessitados e sofredores e suas famílias,mas também com aqueles que não estão em necessi-dade – clientes em boa saúde e colegas de trabalho. Ocompromisso da pessoa solidária é com as idéias ecom a dignidade humana.13 Embora muitos reclamema compaixão como virtude, afirma-se que “a pessoasujeita a uma necessidade não reclama ser protegida.Não quer nem o olhar piedoso, nem o isolamento: elaexige poder inserir-se em uma rede de vínculos emque seja reconhecida como um igual em orgulho edignidade”.14:95

A responsabilidade, como exigência moral,implica em assumir, reconhecer e responder pelas con-seqüências dos próprios atos. A noção de responsabi-lidade é vinculada a liberdade. Alguém só pode serresponsável por seus atos se é livre e tem consciênciadeles. Ser responsável é estar constantemente restabe-lecendo uma relação equilibrada entre direitos e deve-res. Se enfocarmos a responsabilidade como um doscomponentes da relação interpessoal entre cliente eprofissional, o grande desafio passa a ser compatibilizardireitos e deveres de ambas as partes, para que clien-

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tes, familiares e profissionais possam reconhecer-secomo iguais em dignidade e criar vínculos apoiadosna solidariedade.15-16

Embora este tipo de atitude seja explicitamentedefendido como moralmente desejável, somos traí-dos por nossa condição humana, e o nosso agir e serprofissional nos denuncia. Nosso comportamentoprofissional demonstra que implicitamente tendemosmuito mais para o cancelamento “benevolente” da li-berdade dos cidadãos, caracterizando o paternalismo- o imperium paternale criticado por Kant17, ou parauma atitude de respeito incondicional pela “autono-mia” das pessoas, do que para uma atitude que tenhacomo foco o relacionamento entre dois parceiros.Assim, paternalismo e respeito incondicional a auto-nomia padecem de um mal similar - a transferênciade responsabilidade. O fato é que tendendo para umaou para outra atitude, a relação entre clientes e profis-sionais parece desequilibrar-se, quebrando condiçõesfundamentais para a relação dialógica e para respon-sabilidade – a simetria e a liberdade.

A RELAÇÃO ENTRE CLIENTE E PRO-FISSIONAL

Como já havia mencionado no início desse ar-tigo, é na prática cotidiana em saúde que se integramos elementos próprios da conduta moral profissional;é onde nos deparamos com a finalidade e o sentidoda vida humana, obrigações e deveres; e nosposicionamos acerca do bem e do mal. E mais, é nes-sa prática que, cotidianamente, nos é imposto decidircomo devemos viver nossa vida, em relação a nósmesmos e em relação aos outros; e como devemosser enquanto profissionais de saúde. Por este motivo,não posso finalizar este artigo sem descrever algunselementos acerca dessa relação.

Numa situação ideal, a relação cliente/profissi-onal deve ser compreendida já como um modo deintervenção ou tratamento e não como um mero ins-trumento de coleta de informações necessárias a umdiagnóstico X. Enquanto conversam, cliente, familia-res e profissional, expõem suas perspectivas acerca deuma situação, concordam, discordam, enfrentam con-flitos e aliviam tensões, num esforço para a fusão dehorizontes, a compreensão mútua e a decisão com-partilhada. No entanto, entre o real e o ideal o cami-nho é no mínimo longo, senão infinito.

Uma caracterização de três modos de relaçãoprofissional em saúde, denominado de “experiênciahermenêutica”, foi encontrada por um dos autores18

ao estudar a obra “Verdade e Método”.19 São eles:objetificação do outro; compreensão precipitada dooutro e abertura para o outro.

Objetificação do outro

Neste modo de relação profissional, o outro –Thou – é compreendido de maneira semelhante a even-tos ou objetos, às custas da fé ingênua no método –como recurso neutro; e, na objetividade – verdadeobjetiva – que pode ser adquirida.19 O fato é que, in-dependente do quão sofisticado possa ser um méto-do, ele sempre trará um determinado tema à luz desua limitada perspectiva, não importando se este mé-todo é ou não científico. No entanto, uma característi-ca geral da compreensão humana é depender das pres-suposições que trazemos conosco quando tentamoscompreender qualquer coisa. Estas pressuposiçõesculturais, pessoais - moldadas pela história individualde cada um; e, teóricas - alimentadas pela comunida-de científica, constituem o horizonte no qual nossacompreensão é adquirida e sem o qual não podería-mos compreender coisa alguma. Em outras palavras,nossas limitadas perspectivas são as condições paranossa compreensão.19

São estas pressuposições que carregamosconosco que nos fazem ter certas antecipações e pré-julgamentos sobre diferentes aspectos da realidade. Senão estivermos conscientes disto e agirmos irrefleti-damente, nós estaremos sendo preconceituosos, noexato sentido do termo. O perigo das pressuposiçõesteóricas ou metodológicas,18 quando comparadas àsculturais e pessoais, é que elas não são tão prontamen-te reconhecidas como tendenciosas ou limitantes. Pelocontrário, há a crença de que um método verdadeira-mente científico não é afetado por preconceitos. Istoé agravado no caso das ciências humanas, onde a ex-clusão dos aspectos subjetivos distorce a experiênciahermenêutica, não havendo compreensão dialógica efusão de horizontes.

Além disso, esse modo de experiência conduzmais facilmente à manipulação das pessoas.19 Isto sig-nifica que o comportamento dos clientes pode ser fa-cilmente considerado apenas um meio como qualqueroutro para atingir determinados fins. O conhecimen-to objetivo é mais uma forma de observação do queinteração e comunicação.16 Um dos autores afirma queé provável que seja este o motivo pelo qual os clientescomumente se queixam: “o médico não me escuta”.18:18 E complementa, “o médico está tão preocupa-do em fazer predições sobre a pessoa e sua condiçãode saúde - mais doença do que saúde - que o cliente

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como pessoa não é levado a sério”.

A compreensão precipitada do outro

A diferença desse modo de experiência em re-lação ao anterior é que o outro - thou - é compreendi-do como uma pessoa. Neste modo eu reconheço ooutro como um semelhante, e a importância decompreendê-lo como um sujeito com necessidades epreferências que podem ser levadas em consideraçãoe serem respeitadas.18

O problema como este modo de experiência éque eu procuro absorver o outro de uma forma apa-rentemente empática, a tal ponto, que eu imagino ex-pressar pelo outro melhor que ele mesmo. Estasobreposição e envolvimento com outro com o pro-pósito de defender os interesses dele ou dela, não éuma forma adequada de conseguir uma compreen-são mútua. Muito pelo contrário, ao invés de condu-zir à decisão pode constituir-se em uma forma dedominação, denominada de paternalismo benevolen-te.

Esta atitude é considerada mais perigosa doque a indiferença.18 A manipulação do observadorcientífico pode ser facilmente evitada porque ele ouela não tem interesse nenhum na subjetividade do ou-tro. Ao contrário, o profissional que seduz e tenta pre-maturamente compreender, procura estabelecer umaforma diferente de autoridade que pode fazer comque o outro se torne mais dependente do relaciona-mento. Isto implica numa interpretação das necessida-des e interesses que “são para o bem”; naturalmenteconforme a compreensão do profissional. Do pontode vista hermenêutico, tanto a compreensão profissio-nal metodológica quanto a precipitada sofrem de limi-tações semelhantes, pois em ambas o profissional ima-gina que está livre de preconceitos. Nos dois modos deexperiência, os profissionais são inconscientemente do-minados por seus preconceitos, o que os impede de seabrir para si e para a outra pessoa. Não há uma refle-xão que conduza a compreensão de que todos nós per-tencemos a tradições culturais que moldam e alimen-tam nossas percepções e a compreensão do outro, detal forma que sua subjetividade é ocultada. A única so-lução é estar consciente do papel que estes fatores têmsobre nossos julgamentos e percepções.18

Abertura para o outro

A experiência hermenêutica de abertura para ooutro é a chave para o bom relacionamento19 e se

desdobra em quatro aspectos de abertura: aberturapara si mesmo; abertura para o outro; abertura para aquestão-problema; e abertura para a tradição.

Abertura para si mesmo

Esse modo é pré-condição para todos os ou-tros tipos de abertura. É preciso que a pessoa afrouxeos vínculos com seus preconceitos a fim de estar livrepara a experiência, caso contrário, a pessoa percebesomente aquilo que confirma suas expectativas e pre-conceitos. Quando uma pessoa reconhece sua finitudee o fato de que ele ou ela é dominado por preconcei-tos, então é alguém que, pelas muitas experiências quejá teve e o conhecimento que adquiriu delas, está bempreparado para ter novas experiências e aprender comelas.19 A experiência é um processo dialético de cons-trução e desconstrução de expectativas. Quando nos-sas expectativas são frustradas provavelmente nós ad-quirimos mais experiência, do que quando elas sãoconfirmadas, pois, neste caso nossas experiências nosremetem às nossas limitações. O diálogo confronta-nos com nossos preconceitos e nos dá uma chance deescapar das concessões dogmáticas. E, mais, somenteaqueles que são abertos para si mesmos podem genu-inamente “escutar outras pessoas”.

Aqui o desafio é conseguir uma abertura sufici-ente para aceitar coisas que são contra as próprias cren-ças e convicções. Não é possível ter uma aceitável com-preensão do outro desconsiderando o próprio emara-nhado de crenças, nem transcender o próprio horizon-te e, muito menos se projetar por inteiro no horizontedo outro. Só é possível escutar genuinamente o outroquando conseguimos reconhece-lo na sua diferença.

Esta experiência pode ser conseguida por meiodo diálogo aberto com o outro e pode, na melhordas hipóteses, favorecer um novo exame das própriascrenças e horizonte particular. É impossível compre-ender totalmente o outro, porque a compreensão ésempre um processo em movimento. Compreendero outro é reconhecer a irredutibilidade de sua indivi-dualidade, e isto é mais um requerimento moral doque uma questão de conhecimento. Numa relação cli-ente, familiares e profissional de saúde, o que deve sercompreendido com o outro é a questão ou o proble-ma que temos nas mãos, como por exemplo: decidirse uma determinada cirurgia terá mais benefícios doque malefícios; decidir com o cliente se é melhor man-ter uma veia puncionada ou se deveríamos realizar duaspunções ao dia para administrar um certo medica-mento, e assim por diante. O que realmente conta não

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é o que o profissional tenta projetar na mente do cli-ente, mas o que profissional e cliente focalizam juntossobre a questão-problema.

Abertura para a questão-problema

A chave da experiência desse modo de aberturaé deixar-se conduzir, por meio da conversação, pelaquestão-problema para a qual cliente e profissional estãoempenhados em obter uma decisão compartilhada.. Estefenômeno combina e dá a direção concreta para a aber-tura para si e para o outro. Se cliente e profissional estive-rem genuinamente voltados para a questão-problema,ambos se renderão ao diálogo, num movimento dialéticode perguntas e respostas, com a intenção de definir o queé mesmo que incomoda o cliente, quais as conseqüênciaspara a saúde e para a vida dele ou dela e quais as decisõesque podem ser compartilhadas. O sucesso de tal diálogoé atingir um julgamento comum ou um consenso sobrea questão-problema.

Abertura à tradição

“A tradição é essencialmente conservação[...]”,19:18 pois dada a limitação das nossas perspecti-vas, nós só conseguimos realizar bons julgamentosescutando a voz da tradição cultural. A tradição pre-serva a sabedoria das gerações. Abrir-se à tradiçãoimplica na modulação da questão-problema pelos sig-nificados culturais e históricos, e, nesse sentido, nóssomos radicalmente dependentes da nossa cultura, umavez que é ela que nos permite decifrar nossas raízes.

Mesmo quando há mudanças radicais na vida deuma pessoa, como por exemplo aquelas conseqüentesa um acidente grave ou uma doença como o InfartoAgudo do Miocárdio, as pessoas conservam muito maisdo seu modo de vida anterior ao problema de saúdedo que o profissional pode imaginar. Portanto, abrir-seà tradição é fundamental para que o profissional de saúdecompreenda o comportamento dos clientes numa situ-ação de má-saúde à luz da história e da cultura de cadaum, e considere isto como ponto de partida na abor-dagem da questão-problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre nosso modo de agir e ser profis-sional de saúde requer, por um lado, conhecimentodo que precisa ser feito como técnica e como arte, e,por outro, conhecer as perspectivas éticas que podemfundamentar a moralidade profissional.

Neste sentido, a compreensão da moralidadecomo uma questão de consulta a razão, pesando osinteresses de cada um que será afetado pela condutatomada é fundamental. Porém, é preciso evitar cairna ingenuidade acerca do papel da percepção, dos sen-timentos e da tradição na modulação da conduta moral.

Também, é preciso considerar a importante fun-ção exercida pela ética principialista na história recenteda pesquisa envolvendo seres humanos e da práticaassistencial de saúde, sem esquecer que ela não éabrangente o suficiente para dar conta da complexi-dade da moralidade do cotidiano profissional em saú-de, nem mesmo quando agregamos outros conceitoscomo tolerância, equidade, solidariedade e responsa-bilidade, pois sabemos que um aparato conceitual nosajuda a agir de acordo com o pensamento crítico, mastambém temos consciência de que ele por si só nãosubstitui a inteligência crítica e a ação virtuosa.

Finalmente, gostaria de reforçar a valiosa con-tribuição da experiência hermenêutica de abertura parao outro como possibilidade de melhoramento da con-duta moral nos relacionamentos profissionais, consi-derando igualmente todos os modos de abertura.Porém, não posso deixar de destacar a abertura parasi mesmo como um imperativo para oautoconhecimento e a inclusão do profissional comoum igual - ao outro - em dignidade, assegurando si-metria a conversação e ao diálogo que uma relação deinteração exige.

REFERÊNCIAS

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