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1218 DE “RAPAZ FOLGADO” A “MALANDRO-SAMBISTA-PROFISSIONAL”: A APROPRIAÇÃO DA MALANDRAGEM EM SAMBAS DE WILSON BATISTA E NOEL ROSA 1 Lucas André Gasparotto Uergs [email protected] Resumo O objetivo do presente do trabalho é abordar os elementos culturais que caracterizaram a identidade do malandro em dois contextos históricos distintos: a Belle Époque brasileira e os primeiros anos da década de 1930. Para tal, pretende-se analisar as composições Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, e Rapaz Folgado, de Noel Rosa, ambas de 1933, à luz do conceito de apropriação tomado de Chartier. Dessa forma, filiando-se aos contornos estabelecidos pela Nova História Cultural, busca-se apontar que as características do malandro presentes nos dois contextos históricos em questão são apropriadas de maneiras distintas por dois compositores contemporâneos inseridos em mesmo universo social. Palavras Chave: História Cultural, Música, Apropriação. Abstract The aim of this work is to address the cultural elements that characterize the identity of the malandro in two distinct historical contexts: the Brazilian Belle Époque and the first years of the 1930s. To this end, we intend to analyze the compositions Lenço no Pescoço, from Wilson Batista, and Rapaz Folgado, from Noel Rosa, both of 1933, in light of the concept of apropriation taken from Chartier. Thus, associating to the contours established by the New Cultural History, seeks to point out that the characteristics of the malandro in these two historical contexts in question are appropriate in different ways by two contemporary composers inserted in the same social universe. Keywords: Cultural History, Music, Appropriation. 1 O presente texto foi elaborado a partir de fontes primárias e ideias extraídas do trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado junto ao Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de licenciado em História (GASPAROTTO, 2011).

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DE “RAPAZ FOLGADO” A “MALANDRO-SAMBISTA-PROFISSIONAL”: A APROPRIAÇÃO DA MALANDRAGEM EM SAMBAS DE WILSON BATISTA E

NOEL ROSA1

Lucas André GasparottoUergs

[email protected]

Resumo

O objetivo do presente do trabalho é abordar os elementos culturais que caracterizaram a identidade do malandro em dois contextos históricos distintos: a Belle Époque brasileira e os primeiros anos da década de 1930. Para tal, pretende-se analisar as composições Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, e Rapaz Folgado, de Noel Rosa, ambas de 1933, à luz do conceito de apropriação tomado de Chartier. Dessa forma, filiando-se aos contornos estabelecidos pela Nova História Cultural, busca-se apontar que as características do malandro presentes nos dois contextos históricos em questão são apropriadas de maneiras distintas por dois compositores contemporâneos inseridos em mesmo universo social.

Palavras Chave: História Cultural, Música, Apropriação.

AbstractThe aim of this work is to address the cultural elements that characterize the

identity of the malandro in two distinct historical contexts: the Brazilian Belle Époque and the first years of the 1930s. To this end, we intend to analyze the compositions Lenço no Pescoço, from Wilson Batista, and Rapaz Folgado, from Noel Rosa, both of 1933, in light of the concept of apropriation taken from Chartier. Thus, associating to the contours established by the New Cultural History, seeks to point out that the characteristics of the malandro in these two historical contexts in question are appropriate in different ways by two contemporary composers inserted in the same social universe.

Keywords: Cultural History, Music, Appropriation.

1 O presente texto foi elaborado a partir de fontes primárias e ideias extraídas do trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado junto ao Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de licenciado em História (GASPAROTTO, 2011).

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1. Introdução

Desde o final do século XIX, os ventos da modernidade já sopram no Brasil. As novidades introduzidas pela tecnologia transformaram o cenário urbano carioca, tornando-o território heterogêneo de convívio social capaz de refletir novas formas de utilização dos espaços e novas visões de mundo experimentadas pelos citadinos. Durante toda a primeira metade do século XX, como conseqüência de tais transformações, a nação brasileira busca uma identidade: no início absorvendo ideais europeus; ao entrarmos na década de 1930, buscando interpretar a complexidade da sociedade.

Durante o contexto histórico em questão, a figura do malandro salta aos olhos como personificação máxima das transformações em curso, capaz de torná-la símbolo de uma suposta identidade brasileira. Assim, este trabalho tem por objetivo analisar as composições Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, e Rapaz Folgado, de Noel Rosa, ambas de 1933, apontando características do malandro observadas em dois contextos históricos distintos: o do final do século XIX e início do XX, período definido como Belle Époque brasileira, e o dos primeiros anos da década de 1930.

Contudo mais do que pontuar tais características, este trabalho pretende demonstrar, segundo os pressupostos da Nova História Cultural, à luz do conceito de apropriação tomado de Roger Chartier (1990), que Wilson e Noel vestem seus malandros com a roupagem de dois contextos históricos distintos, embora sejam os compositores, e as composições, contemporâneos e circulem pelos mesmos meios da boemia carioca da época.

O presente artigo divide-se em quatro partes: nas duas primeiras apresentam-se os contextos históricos da Belle Époque brasileira e dos primeiros anos da década de 1930, buscando pontuar as características do período concernentes à figura do malandro; na terceira apresenta-se a discussão teórica, expondo os conceitos utilizados; na quarta e última, são apontadas, a partir da análise das composições, as características do malandro cantadas por Wilson Batista e Noel Rosa.

2. A Belle Époque brasileira

Durante as duas primeiras décadas do século XX, período definido por Nicolau Sevcenko (2004) como a Belle Époque brasileira, foram introduzidas modificações urbanísticas no centro da cidade do Rio de Janeiro em consonância aos modernos padrões mundiais. A abertura da Avenida Central, em 1904, construída segundo o modelo

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urbanístico francês implementado pelo prefeito Haussmann na cidade de Paris, dá a tônica do pensamento cosmopolita evidenciado pelas elites e setores médios da sociedade: “Vive la France!”, cumprimentavam-se as pessoas ao cruzarem-se no grande bulevar carioca às vésperas da primeira Grande Guerra.

Espécie de Paris tropical, o Rio de Janeiro da Belle Époque torna-se, então, modelo de metrópole em termos modernos, capaz de representar as transformações em curso pelo mundo e exercer influência em todo o território nacional. Para Sevcenko, a cidade passa a ser experimentada não somente como cultura visual, mas também como espaço psíquico, considerando que “a experiência de viver nas grandes cidades modernas, planejadas em função dos novos fluxos energéticos e marcadas pela onipresença das novas técnicas, influencia e altera drasticamente a sensibilidade e os estados de disposição dos seus habitantes” (2004: 522). Segundo o autor, tal imaginário conformaria padrões de comportamento apropriados a esse novo espaço urbano: o passo desprendido à inglês ou à americana, a utilização de sapatos mais elaborados, como os de verniz, que mais tarde integrariam a indumentária do malandro, ou o uso de trajes que aludiam à forma de vestir do cidadão letrado integrado à sociedade da época. Trata-se, com efeito, das características observadas no capadócio Firmo, personagem d’O Cortiço de Aluísio de Azevedo, tipo social que ilustra uma das representações do malandro discutida a seguir neste trabalho.

Dessa forma, essa moderna cena urbana formada por um elenco diversificado,

pôs em contato gentes estranhas entre si, vindas de diferentes partes do país ou de diferentes regiões do mundo. A passagem do século, por conta dos reajustamentos populacionais forçados pela revolução Científico-Tecnológica, assinalou “o maior movimento migratório da história” (SEVCENKO, 2004: 554).

É que o grande bulevar carioca, ao tornar-se lócus de comportamento modelado segundo um paradigma aristocrático europeu de inspiração franco-inglesa, pretendia impedir que tivesse espaço, no centro da cidade, manifestações culturais incompatíveis com aquele padrão. Representadas, sobretudo, por população negra remanescente de escravos e migrante das decadentes fazendas de café do Vale do Paraíba, tratam-se tais manifestações, segundo Mônica Velloso (1988: 9), do “candomblé, capoeira, bumba-meu-boi, romarias religiosas, maxixe, violão, serestas, cordões carnavalescos”, ou seja, manifestações consideradas representantes de uma “tradição popular” fortemente influenciada pela religião de inspiração africana, afastada do moderno mundo do trabalho e que precisavam esconder-se por detrás das fachadas de prédios localizados nos arredores da zona central. Em desenvolvimento neste universo sociocultural marginal, expressões culturais ditas populares serão reformuladas de forma a exigir de seus executores novos padrões de

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comportamento.

2.1 Desde Pelo Telefone: surgimento e transformação do samba

Pelo Telefone é considerada a primeira canção batizada com o nome de samba. Registrada na Seção de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1916 (TINHORÃO, 1998), é lugar comum na historiografia acerca da Música Popular Brasileira que a canção teria surgido na casa da Tia Ciata. Em função das recorrentes reprimendas do poder público, as manifestações populares buscavam criar espaços alternativos àquele representado pelo bulevar. Espécie de comunidade popular estruturada a partir de centros religiosos e festas, àquela casa atribuem-se não só o nascimento do “embrião da cultura popular carioca” (VELLOSO, 1988: 16), mas a “função de válvula comunicante entre um ‘inconsciente negro-africano’ e a ‘civilização branca’” (SANDRONI, 2001: 110). Trata-se, portanto, de um espaço social que se localiza na fronteira da cidade formal representada pelo bulevar e um outro universo sociocultural.

Contudo a música produzida na referida casa ainda não era o samba propriamente dito que viria a ser produzido pelos sambistas da geração de 1930, entre os quais Noel Rosa e Wilson Batista. Conta Sérgio Cabral que nem mesmo os freqüentadores da casa da Tia Ciata entravam em acordo quando se tratava da definição de samba. O jornalista

teria proposto a “clássica” pergunta: qual é o verdadeiro samba?, e os sambistas assim responderam:DONGA – Ué, o samba é isso há muito tempo: ‘O chefe da polícia/pelo telefone/mandou me avisar/que na Carioca tem uma roleta para se brincar’.ISMAEL SILVA – Isto é maxixe.DONGA – Então o que é samba?ISMAEL SILVA – ‘Se você jurar/que me tem amor/eu posso me regenerar/Mas seé/para fingir mulher/A orgia assim não vou deixar’:DONGA – Isso não é samba, é marcha (CABRAL APUD FENERICK, 2005: 225).

O musicólogo Carlos Sandroni afirma que “o acompanhamento rítmico mais comum do samba folclórico até o início do século XX”, aquele produzido na casa da Tia Ciata, “parece ter sido pandeiro, prato-e-efaca e palmas” (2001: 179), em clara aproximação com o partido alto, espécie de trova que ocorria em forma de desafio e era dançado por uma única pessoa. O autor coleta entrevista concedida por Noel Rosa no início dos anos 1930, na qual o compositor elenca a utilização de instrumentos responsáveis por dar nova cadência ao ritmo: “aparecem agora, não se achando ainda popularizados. A cuíca que ronca. O tamborim repicando em torno do centro que faz a barrica” (APUD SANDRONI, 2001: 179). Explica ainda o musicólogo que barrica era o termo utilizado para denominar o tambor grave hoje conhecido como surdo e que não há, no início do século XX, “sombra

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de menção a cuíca e surdo, e raras a tamborim (2001: 179)”. Por nova cadência deve-se entender o que o autor chama de paradigma do Estácio2; um tipo de samba que surgia nos anos 1920 e que, segundo Fenerick era “praticamente um sinônimo do samba feito e gravado com acompanhamento dos instrumentos de percussão fabricados pelos sambistas do morro, como os surdos e tamborins” (2005: 230), o que teria conferido ao gênero uma modificação rítmica e timbrística capaz de acompanhar os desfiles carnavalescos. Sandroni atribui “a estes três instrumentos o papel de signos identitários, dando a cuíca, surdo e tamborim o lugar de equivalentes sintáticos de farofa, vela e vintém e de chapéu, tamanco e lenço” (2001: 181), alguns dos objetos mencionados nas composições objeto de estudo deste trabalho.

Surgia, dessa forma, um ritmo novo denominado samba, considerado genuinamente carioca e brasileiro. De quebra, surgia o seu executor: o sambista, que mais tarde receberá a alcunha de malandro. Com efeito, signatárias do novo estilo musical, as composições de Noel Rosa e Wilson Batista, se entendidas segundo a concepção de samba-canção, ou seja, a partir do binômio melodia-texto, oferecem subsídios para sustentar a abordagem do conceito de culturas populares, discutido em seguida.

3. O início dos anos 1930

A ascensão de Vargas ao poder representou uma nova maneira de enxergar a nação, diferente daquela observada durante a Belle Époque. E o samba, que vem a ser considerado Música Popular Brasileira, torna-se, neste aspecto, sua maior expressão. Abandona-se, então, aquele paradigma aristocrático europeu de inspiração franco-inglesa para eleger um novo modelo que se pretendia brasileiro. Utilizando o rádio como veículo de difusão, a política cultural varguista o delineia em duas frentes: a valorização do trabalho dos artistas através do pagamento de cachês e de direitos autorais e a construção de um discurso que atribuía ao samba status de música tipicamente brasileira.

Embora adquira contornos mais definidos durante o período do Estado Novo (1937-1945), a política cultural varguista começa a ser gestada já nos primeiros anos após o golpe de outubro de 19303. Conforme Oliveira (2007), os Decretos nº 20.047,

2 A tese de Sandroni (2001) procura identificar como se deu a mudança de paradigma com a utilização dos novos instrumentos.3 Neste aspecto, torna-se imprescindível a visão do período, segundo a qual o “Estado Novo não signifi-caria uma ruptura em relação à experiência liberal da fase precedente, na medida em que a centralização político-administrativa, bem como os alicerces do corporativismo imposto às estruturas de articulação e representação de interesse já estavam contidos no regime híbrido implantado após a vitória da Revolução de 30 (...). Dessa forma, o Estado Novo não pode ser analisado como um momento à parte, dissociado do

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de 27/5/1931 e nº 21.111 de 1/3/1932 regulamentaram o funcionamento das emissoras, profissionalizando o rádio brasileiro. O primeiro criava uma Comissão Técnica de Rádio, com membros nomeados pelo presidente da República, garantindo ao governo a exclusividade na concessão de canais de rádio. No entanto, o elemento central para a mudança de características do modelo de radiodifusão, e que tem relação com a música popular, foi a autorização oficial para veiculação de anúncios, exarada através do Decreto-lei 21.111. Segundo Fenerick (2005), a partir deste momento, ao adotar o modelo de radiodifusão norte-americano de distribuição de concessões de canais a particulares, o país introduzia o pagamento de cachês pelas apresentações de músicos, cantores e humoristas em sua programação. Já no início da década de 1930, a música popular ganha, então, espaço na programação do rádio, sendo projetada a todo o país graças às facilidades de acesso ao aparelho de rádio oferecidas pela venda a crédito (CABRAL, 1996).

Mesmo antes da promulgação dos decretos citados, quando ainda deputado federal pelo Rio Grande do Sul, Vargas foi autor do Decreto Legislativo 5.492, de 16 de julho de 1928, que viria a se transformar na chamada Lei Getúlio Vargas, nº 18.527, de 10 de dezembro do mesmo ano, a qual estabelecia o pagamento de direitos autorais aos compositores sempre que as músicas fossem veiculadas comercialmente. Segundo Cabral (1996), a questão dos direitos autorais era ainda nebulosa nos anos 1920, caracterizados pela falta de noção comercial da música enquanto composição. O compositor Cartola – Angenor de Oliveira (1908-1980), em entrevista ao autor, teria respondido a uma proposta: “Comprar um samba meu? Pra quê?” (CARTOLA APUD CABRAL, 1996: 30). Comprar um samba, acrescenta o autor, “era como comprar o vento, a chuva, qualquer coisa, enfim, que jamais seria comercializada” (1996: 30). Rompendo com essa lógica, iniciava, a partir dos primeiros anos da década de 1930, um processo de conscientização profissional dos compositores, que tem em Noel Rosa seu maior representante.

Paralelamente à legislação, o governo buscou aproximar-se das classes artísticas de forma a criar um novo padrão cultural que se pretendia brasileiro. Segundo Cabral (1975), o presidente mantinha laços com cantores populares como Mario Reis e Aloísio de Oliveira, oferecendo recepções no Palácio do Catete ao som de conjuntos como o Bando da Lua, que mais tarde acompanharia Carmen Miranda aos Estados Unidos. Conforme o mesmo autor, em 1933, Mário Reis compareceu ao Catete para expor a sugestão de Orestes Barbosa da criação de uma Orquestra Típica Brasileira. O governo não só aceitou

conjunto das mudanças ocorridas ao longo do período 1930-1945. Entre as várias fases em que se pode dividir a chamada Era Vargas – O Governo Provisório de 1930 a 1934, o Governo Constitucional de 1934 a 1937 e o Autoritarismo Corporativista de 1937 a 1945 -, existe uma continuidade básica, na medida em que esses três momentos representam o desdobramento de um processo político que se inicia com a ascensão ao poder da coligação representada pela Aliança Liberal” (FAUSTO, 2007a: 104).

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como promoveu a apresentação, sob a regência de Pixinguinha, na Rádio Clube. O então ministro da Fazenda Oswaldo Aranha, presente na ocasião, declarou:

Só posso ter palavras de elogio para o que acabo de ver e ouvir: gente do meu país, música do meu país. Sou dos que sempre acreditaram na verdadeira música nacional. Não creio na influência estrangeira sobre a nossa melodia. Nós somos um povo novo. E a praxe é que os povos novos vençam os antigos. O Brasil, com a sua música, há de vencer (APUD CABRAL, 1975: 38)...

O discurso do ministro evidencia assim, a intenção do governo em tornar o samba expressão da nacionalidade.

4. Para uma história cultural do social: o conceito de apropriação

Os elementos culturais que evidenciam características da identidade do malandro existente nos contextos históricos abordados, o da Belle Époque brasileira e o dos primeiros anos da década de 1930, serão apontados nas composições de Noel Rosa e Wilson Batista, objetos de análise deste trabalho. Primeiro, contudo, é preciso pontuar algumas considerações acerca dos conceitos que se pretende utilizar.

Antes mesmo de a Nova História Cultural ampliar a noção de cultura para as “ações ou noções subjacentes à vida cotidiana” (BURKE, 2010: 22), a música, juntamente com a arte e a literatura, já era considerada objeto da história cultural tradicional. Ante sua permanência como objeto de estudo, frente à proposta deste trabalho de abordar a música no âmbito da chamada história sociocultural, torna-se necessária uma definição do conceito de cultura e, em última análise, de cultura popular, considerando que o samba, enquanto estilo musical, tornou-se expressão da Música Popular Brasileira4.

Vinculando-se aos estudos da Nova História Cultural, este trabalho entende o conceito de cultura no sentido atribuído por Burke: “um sistema de significados, atitudes e valores partilhados e as formas simbólicas (apresentações, objetos artesanais) em que eles são expressos ou encarnados. A cultura, segundo essa acepção, faz parte de todo um modo de vida, mas não é idêntica a ele” (2010: 11). Com efeito, o conceito de cultura popular, conforme define o autor, deve ser entendido no plural. Sua constatação baseia-se nos estudos publicados em Cultura Popular na Idade Moderna, período durante o qual a elite francesa vai, gradativamente, abandonando uma cultura popular ligada ao folclore dos camponeses e artesãos, da qual estavam então separados por profundas diferenças em relação à visão de mundo. Segundo esta perspectiva, a cultura popular foi então celebrada de diversas maneiras, por diferentes grupos sociais, de acordo com as concepções correntes

4 O presente estudo não pretende uma revisão das diferentes abordagens dos conceitos de cultura e cultu-ra popular. Utilizar-se-á, aqui, somente aqueles que sirvam para a discussão acerca da temática da música produzida por Noel Rosa e Wilson Batista.

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em contexto histórico específico. Da mesma forma, a música produzida por Noel e Wilson no início dos anos

1930 é ilustrativa do que se pretende demonstrar. Neste caso, é possível constatar que as manifestações populares que estão no embrião do samba, durante o contexto da Belle Époque, foram modificadas e elevadas a ritmo nacional através da política cultural dos anos 1930. E mais, as características da identidade do sambista/malandro existentes nos contextos em questão foram cantadas de maneira distinta pelos dois compositores, embora inseridos em mesmo contexto histórico e universo social, ou seja, em espaços como o representado pelo Café Nice, local de intenso convívio de músicos nos anos 1930-405. Sendo assim, as culturas populares, “que ao mesmo tempo se transformam e/ou permanecem em espaços e tempos definidos” (MORAES, 2000), ao estabelecerem relações entre si, constituem-se a partir de trocas contínuas e permanentes, utilizando-se das diferentes manifestações culturais existentes num dado momento.

Aqui cabe inserir o conceito de Roger Chartier que deve sustentar este trabalho. Para o autor, a apropriação “visa uma história social dos usos e das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que os produzem” (2002: 68).

Prestar, assim, atenção às condições e aos processos que muito concretamente são portadores das operações de produção de sentido, significa reconhecer, em oposição à antiga história intelectual, que nem as idéias nem as interpretações são desencarnadas, e que, contrariamente ao que colocam os pensamentos universalizantes, as categorias dadas como invariantes, sejam elas fenomenológicas ou filosóficas, devem ser pensadas em função da descontinuidade das trajetórias históricas (1995: 184).

A partir desta idéia, é possível, então, desvincular as manifestações culturais das hierarquias do mundo social. Mais importante que o lócus social onde têm espaço as manifestações culturais, é a forma como os personagens se apropriam dos elementos que vinculam como seus, reivindicando-os para si. Trata-se de “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990: 16-17). Em última análise, trata-se do que o autor denomina de o mundo como representação, tal como os atores pensam que ele é, ou como gostariam que fosse. Neste aspecto, a construção de sentido, atribuindo significado ao mundo real através das práticas sociais que articulam as esferas políticas, sociais e discursivas, também configura a realidade de forma concreta.

5 No filme Noel, Poeta da Vila (1996), o diretor Ricardo Van Steen recriou diversas cenas nas quais se pode ter uma idéia da forma como as músicas eram compostas e executadas e do comportamento dos músi-cos no “Café Nice – lugar de intensa freqüência de músicos nos anos 30-40” (VIANNA, 1998: 110).

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5. A apropriação das características do malandro nas composições Lenço no Pescoço e Rapaz Folgado

Rapaz Folgado, de Noel, foi composta em resposta a Lenço no Pescoço de Wilson Batista, ambas em 1933. Através do diálogo entre si, os compositores evidenciam, cada um a sua maneira, características da identidade do malandro existente nos contextos históricos da Belle Époque brasileira e dos primeiros anos da década de 1930.

Segundo Almirante, era moda nos meios musicais da época o tema da malandragem, ainda que a imprensa apontasse-o como inconveniente, ligado “à delícia do não trabalhar, às atrações dos desocupados” (1963: 140). Os jornais atacavam o malandro que Wilson exaltava em Lenço no Pescoço:

Meu chapéu de ladotamanco arrastando lenço no pescoço navalha no bolso, eu passo gingando provoco e desafio, eu tenho orgulhoem ser tão vadio.Sei que eles falamdeste meu proceder eu vejo quem trabalha andar no miserêEu sou vadioporque tive inclinação,eu lembro era criança tirava samba-canção (GOMES, 1985: 55).

A figura cantada por Wilson reflete aqueles padrões de comportamento assinalados por Sevcenko (2004) para o início do século XX. Naquele contexto,

a figura popular do “malandro” compensa suas carências realçando atributos pessoais como o porte, a atitude, a extravagância, os maneirismos, a gestualidade, o humor, a malícia, a audácia, o ritmo e a linguagem arredia, por meio dos quais congrega e passa a irradiar muitos dos valores mais representativos dos comportamentos e vivências estimuladas pela cidade moderna (2004: 44).

Para Sandroni, o malandro de Wilson “é visto em sua indumentária e atitude corporal típicas [...] e corresponde fielmente à descrição do capadócio Firmo” (2001: 169), personagem de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, publicado em 1890. Com seu “chapéu de palha”, “lenço alvo e perfumado” no pescoço, “paletó de lustrina preta já bastante usado”, “todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira” (AZEVEDO, 2000: 62), o personagem literário, ainda assim, não é caracterizado como malandro.

Talvez o único traço que faltava para caracterizar o capadócio como malandro fosse efetivamente o emblema sonoro irrecusavelmente carioca que lhe será

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dado com a mudança estilística [...]. Assim, a qualificação do malandro como personagem distinto na cultura carioca vai passar por uma nova qualificação do próprio samba: a criação do novo estilo, identificado num primeiro momento no bairro do Estácio de Sá” (SANDRONI, 2001: 170).

A resposta de Noel ao malandro de Wilson, em Rapaz Folgado, permite esmiuçar a comparação do musicólogo:

Deixa de arrastar o teu tamancoPois tamanco nunca foi sandáliaE tira do pescoço o lenço brancoCompra sapato e gravataJoga fora essa navalhaQue te atrapalha.Com chapéu do lado deste rataDa polícia quero que escapesFazendo samba-cançãoJá te dei papel e lápisArranja um amor e um violão

Malandro é palavra derrotistaQue só serve pra tirarTodo o valor do sambistaProponho ao povo civilizado Não te chamar malandroE sim de rapaz folgado (Noel, 2000, v. 11).

Segundo Fenerick Rapaz Folgado deve ser entendida num contexto em que se vislumbrava a possibilidade de viver do samba:

Noel, que sempre optou por uma estratégia diferente para abordar o malandro, “desmonta” a personagem de Wilson Batista, tanto no seu aspecto físico (da indumentária) como no seu modo de se relacionar com o samba, e a recoloca, por meio de “propostas”, num plano regido por novas possibilidades de atuação (2005: 245).

Ao oferecer papel e lápis, a arma branca evidenciada por Vianna (1998) quer valorizar o sambista ante o povo civilizado. Esta última afirmação justifica o comentário de Almirante de que Noel teria produzido “Rapaz Folgado movido por louvável interesse pela regeneração dos temas poéticos da música popular” (1963: 140-141). Noel é homem do seu tempo e, ao lançar mão de uma aproximação do malandro com o músico profissional, malandro regenerado, o insere no contexto nacional dos anos 1930, o da valorização do mundo do trabalho, desejando que o malandro de Wilson escape da polícia, trabalhando com samba-canção. Para Vianna,

Noel critica a identificação do sambista com a malandragem, entendida como limiar com o mundo marginal/criminoso. Noel sugere ao sambista permanecer na fronteira entre trabalho e lazer, mas abandonar a proximidade com o crime, viver de maneira menos bárbara e mais integrada à civilidade burguesa, de modo a não ser perseguido e sim prestigiado (1998: 111).

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Conforme Fausto (2007b), a intensificação da vida urbana no Brasil, em curso desde o final do século XIX, atinge certa flexibilidade social nos anos 1930. Recorre o autor a um texto clássico de Antônio Cândido, Dialética da Malandragem, no qual analisa o folhetim Memórias de um Sargento de Milícias, publicado por Manuel Antônio de Almeida em meados do século XIX, a fim trazer à cena a personagem que melhor representa aquela flexibilidade social. Obra considerada introdutória da temática da malandragem na literatura nacional, nela é apresentada a personagem picaresca de Leonardinho, gênese do malandro, destacando-a como figura do intermediário entre a dialética da ordem e da desordem: a primeira típica do sistema escravista, caracterizada pelo mando; a segunda, representada por uma “sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao deus-dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte e do roubo miúdo” (CÂNDIDO APUD FAUSTO, 2007b: 615). A dialética da ordem e da desordem possibilitara, assim, o surgimento de novos tipos sociais, entre os quais, especificamente para este trabalho, a figura do malandro.

Está em discussão na letra de Noel a transformação deste intermediário, desde um papel de malandro-marginal até o que se definiu aqui como malandro-sambista-profissional, apropriando-se de novas formas de trabalho oferecidas pela flexibilidade do cenário urbano. Contudo, alijado do espaço do bulevar, esse novo indivíduo “trabalhador”, embora cantado por um compositor branco, não poderia prescindir dos valores da cultura popular que, ao longo das primeiras décadas do século XX, estão amalgamados com elementos africanos. Tal fato é ilustrado pelo registro de Pelo Telefone, por Donga, freqüentador da casa da Tia Ciata, na Cidade Baixa, lócus da população negra oriunda da Bahia. Assim,

o florescimento do ambiente urbano permitiu o ponto de mistura criativa entre os sons cindidos pela Casa Grande e a Senzala, criando o espaço de uma síntese original entre influências musicais africanas, européias e, em menor grau, do índio da terra (FAUSTO, 2007b: 613).

Ao despir o rapaz folgado que procurava diferenciar-se ao circular gingando pelo bulevar, vestido com tamanco, lenço branco, chapéu de lado e navalha, tal e qual Firmo, Noel aproxima o malandro do músico profissional que usa sapato e gravata e utiliza-se de papel e lápis. Introduz, portanto, atento às transformações culturais, sociais e políticas do contexto do início dos anos 1930, o tipo que se denominou aqui de malandro-sambista-profissional.

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6. Considerações finais

Da análise das composições, observam-se, então, características identitárias distintas da figura do malandro, cunhadas com elementos da Belle Époque brasileira e dos primeiros anos da década de 1930. Enquanto o malandro de Wilson aproxima-se do mundo da contravenção, fazendo gracejo ao afirmar: “eu vejo quem trabalha / andar no misere”, o malandro de Noel insere-se na lógica do mundo do trabalho ao se considerar compositor, na medida em que propõe a utilização de papel e lápis para fazer samba-canção.

Tais características são evocadas, no entanto, por dois compositores contemporâneos inseridos num mesmo universo social representado, sobretudo, pelo Café Nice, conforme salientado anteriormente.

Partindo de tal constatação, aponta-se que a diferença abissal observada nas características dos malandros cantados por Wilson Batista e Noel Rosa só pode ser compreendida ao se considerar uma história cultural do social, tal qual definido por Chartier (1990). Através da utilização do conceito de apropriação é possível relegar-se atenção à concepção de mundo e à construção de sentido produzidas pelos atores sociais. Dessa forma, entende-se que o sujeito considera como sua identidade a aparência da representação da realidade que evidencia através de fatores como a classificação e delimitação de configurações intelectuais, a maneira de estar e de se sentir no mundo e o entendimento do lugar ocupado por seu suposto grupo social (CHARTIER, 1990).

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