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Página | 50 Coluna: NO ESCURO DO CINEMA:REFLEXユES SOBRE AS RELAヌユES ENTRE CINEMA E HISTモRIA Por: Fernando Gralha “Um filme diz tanto quanto for questionado”, com esta frase o historiador francês Marc Ferro em seu emblemático artigo “O Filme: Uma contra-análise da sociedade” inaugurou a relação entre historiadores e a tela grande, na qual dentro do processo de renovação historiográfica da Nova História, o filme surge em sua dimensão de documento/monumento. Ferro estabelece que qualquer reflexão sobre a relação cinema-história toma como verdadeira a premissa de que todo filme é um documento, desde que corresponda a um vestígio de um acontecimento que teve existência no passado, seja ele imediato ou remoto. O historiador inova ao contrapor-se à análise anterior feita por Samaran em 1961, na qual o filme teria um caráter de “veracidade do real”, para Ferro, a análise fílmica se dá através do que chama de uma “contra-análise da sociedade”, nela o filme transcende ao seu papel de mero recurso imagético revestido de uma realidade e vai além, mostra não só o que evidencia, mas também o involuntário, o imaginário, os valores, os silêncios, alcançando desta forma uma realidade além da representada, chega às “zonas ideológicas não-visíveis”, lugar onde o cinema se apresenta como agente da História, portador de uma peculiar potência social e política. Assim, o cinema entrava no jogo iniciado pelos historiadores dos Annales Jacques Le Goff e Pierre Nora, que ao organizarem sua famosa trilogia alargam os horizontes da pesquisa historiográfica com a elevação de toda a produção humana ao status de fonte histórica, do mesmo modo que a festa, a cozinha, o clima, o inconsciente, o corpo, entre outros temas, o filme representado na obra pelo texto inovador de Marc Ferro é alçado ao status de fonte histórica.

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Coluna:

NO ESCURO DO CINEMA: REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES

ENTRE CINEMA E HISTÓRIA

Por: Fernando Gralha

“Um filme diz tanto quanto for questionado”, comesta frase o historiador francês Marc Ferro em seuemblemático artigo “O Filme: Uma contra-análise dasociedade” inaugurou a relação entre historiadores e atela grande, na qual dentro do processo de renovaçãohistoriográfica da Nova História, o filme surge em suadimensão de documento/monumento. Ferroestabelece que qualquer reflexão sobre a relaçãocinema-história toma como verdadeira a premissa deque todo filme é um documento, desde quecorresponda a um vestígio de um acontecimento queteve existência no passado, seja ele imediato ouremoto. O historiador inova ao contrapor-se à análiseanterior feita por Samaran em 1961, na qual o filmeteria um caráter de “veracidade do real”, para Ferro, aanálise fílmica se dá através do que chama de uma“contra-análise da sociedade”, nela o filme transcendeao seu papel de mero recurso imagético revestido deuma realidade e vai além, mostra não só o queevidencia, mas também o involuntário, o imaginário, osvalores, os silêncios, alcançando desta forma umarealidade além da representada, chega às “zonasideológicas não-visíveis”, lugar onde o cinema seapresenta como agente da História, portador de umapeculiar potência social e política.

Assim, o cinema entrava no jogo iniciado peloshistoriadores dos Annales Jacques Le Goff e PierreNora, que ao organizarem sua famosa trilogia alargamos horizontes da pesquisa historiográfica com aelevação de toda a produção humana ao status defonte histórica, do mesmo modo que a festa, a cozinha,o clima, o inconsciente, o corpo, entre outros temas, ofilme representado na obra pelo texto inovador deMarc Ferro é alçado ao status de fonte histórica.

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Nada mais justo que a História se utilize docinema, pois desde muito tempo, a História vemservindo de fonte de inspiração para muitas formas derepresentação, sejam elas lendárias, teatrais, literárias,plásticas e várias outras. Com o surgimento do cinema esua rápida popularização, essa característica teve umgrande aumento de suas possibilidades, podemosobservar isto ao percebermos o elevado número defilmes com referencial histórico na produção mundial. Eé aí que entra a necessidade do historiador em buscarno filme respostas para algumas de suas questões, aprodução cinematográfica, seja ela a dos pequenosestúdios, seja do grandiloquente universohollywoodiano, se constitui em um dos discursos etestemunhos do mundo dos homens, espaço einstrumento de reflexão epistemológica não só daHistória, mas também, para nós historiadores, dasciências auxiliares como a antropologia, a filosofia e asociologia e a psicologia, para ficarmos apenas nashumanas.

Sim o filme é documento/monumento, porém ovalor documental de cada película está intimamenteligado com a competência do olhar e a perspectivaadotados pelo “analista”. Para Alfredo Bosi , dentro deuma perspectiva sobre uma fenomenologia do olhar,olhar, ver e pensar são ações inseparáveis. Perceber arelação entre signo e as imagens em movimento docinema, decompor as características e aspectos que aimagem fílmica constrói, nos faz chegar àquilo que nãofoi mostrado de imediato pelo cineasta. Posicionar odiretor, o produtor e todo o staff da obracinematográfica em seus campos culturais também éde fundamental importância, ou seja, compreender ofilme como opção resultante de uma definida visão demundo, profusa de elementos ideológicos e mentais -dos quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles queproduziram essas películas têm consciência -harmonizados pela forma de ler, visualizar e exibir omundo no momento em que o cineasta com seuequipamento e equipe montam com imagens e sons oseu discurso.

Destarte, as possibilidades de leitura de cada filmesão múltiplas. Algumas obras, por exemplo, podem serde grande utilidade na reconstrução do gestual, dovestuário, do vocabulário, da arquitetura e doscostumes do período retratado. Mas, para além darepresentação desses elementos audiovisuais, elas“refletem” a mentalidade da sociedade, incluindo aíseus valores, através da presença de elementos dos

quais, muitas vezes, nem mesmo aqueles queproduziram essas películas têm consciência. Portanto, ofilme é inevitavelmente fruto e imagem da sociedadeque o produziu, constituindo-se desta forma fonteprimária de alta qualidade e potencialidades, desdeque bem perscrutadas por um historiador com plenodomínio de seu ofício.

Ampliando a questão, Marc Ferro, ao elaborar suateoria definiu dois dos métodos de leitura do filmeacessíveis ao historiador: a leitura histórica do filme, jáexplicitada aqui, e a leitura cinematográfica daHistória. A primeira, como já dissemos, corresponde àleitura do filme à luz do período em que foi produzido,fonte primária, ou seja, o filme lido através da História,e a segunda, à leitura do filme enquanto discurso sobreo passado, fonte secundária, isto é, a História lidaatravés do cinema e, em particular, dos “filmeshistóricos”. Seguindo por este viés, o “filme histórico”,como detentor de um discurso sobre o passado, afina-se com a História no que se refere à sua condiçãodiscursiva. Portanto, não seria um exagero considerarque o autor cinematográfico, quando produz um ‘filmehistórico’, ganha contornos de historiador, mesmo nãocarregando consigo o rigor metodológico do trabalhohistoriográfico.

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O trabalho do historiador, nesse caso, está entreoutras obrigações, perceber que enquanto algunscineastas têm, por exemplo, uma preocupaçãoexacerbada com a fidelidade dos cenários – caso deJean Jacques Annaud em “O nome da rosa” (1986), quecontou com a ajuda de ninguém menos que Jacques LeGoff para orientar desde a construção do mobiliáriomedieval até a iluminação dos mosteiros – outrospreferem dar vazão a uma licença poética – caso deMel Gibson, que em seu filme “Coração Valente”(1995), inventou armas para as cenas de batalhas,misturando-as com armas verdadeiras da época. Namaioria das vezes trata-se de representaçõesideológicas da História. Como outro exemplo,podemos citar filmes que têm uma função objetiva(mas muitas vezes subjetiva) patriótica, de fazer comque a plateia ame sua pátria, ou de legitimarem asinstituições governistas – “Independência ou morte!”(1972), “A batalha de Guararapes” (1978), “Osinconfidentes” (1972), “Fomos heróis” (2003), “Opatriota” (2000), “O resgate do soldado Ryan” (1998).Já algumas obras possuem esse conteúdo ideológicovoltado para questões de crítica ou conflitos internos eexternos, de maneira menos óbvia que a média dasproduções – “As bruxas de Salem” (1996), “El Cid”

(1956), “Erik, o Viking” (1989), entre outros. Mesmofilmes pueris como os musicais norte-americanos dadécada de 1950 (enaltecendo a sociedade dos EUA nomundo pós-guerra como próspera, feliz e perfeita)possuem conteúdo ideológico latente: o desenlace daobra tenta conduzir a uma situação que cria umreferencial de comportamento ou de pensamentoentre o público em geral: A de que viver e morar nosEstados Unidos é a melhor opção que existe.

Outra forma de análise é comparar os conteúdosdo filme com o conhecimento histórico e sociológicoda sociedade em que a película foi produzida com otema histórico que ela retrata e com outras produçõesque retratam a mesma temática – um filme sobre aRevolução Russa produzido na U.R.S.S. de 1927 como“Outubro” de Serguei Eisenstein, não tem a mesmaabordagem e visão sobre a revolução como um filmeEstadunidense de 1965 como “Doutor Jivago” de DavidLean. Todo filme histórico é uma representação dopassado e, portanto, um discurso sobre o mesmo e,como tal, está imbuído de sua historicidade.

Os estudos e pesquisas sobre as relações entrecinema e História apresentam as possibilidades de

Poster de “O Encouraçado de Potemkin

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leituras teóricas de conteúdos que, aparentemente,apenas centrados no passado, revelam muitas conexõescom o momento em que o filme foi realizado, emboraseu discurso esteja, visualmente, exclusivamentecentrado no passado. Mesmo assim, eles desempenhamum papel significativo na divulgação e na polemizaçãodo conhecimento histórico.

Gostaríamos de chamar a atenção a uma “licençapoética” em especial, talvez a mais comum em todaprodução cinematográfica: os diálogos. Quase todas asproduções são realizadas em uma linguagemcontemporânea à realização do filme. O que é umanacronismo plenamente justificável, já que para ogrande público seria extremamente difícil assistir a umapelícula passada em épocas antigas ou medievais.Portanto, a linguagem é o quesito mais difícil deadaptar ao passado. Apesar de existirem experiênciasinteressantes em que o texto é fiel ao períodorepresentado. O cineasta Irlandês Kenneth Branagh,por exemplo, já lançou vários filmes com estacaracterística, todos com textos originais das obras deShakespeare como “Henrique V” (1989), “MuitoBarulho Por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996). No Brasiltivemos uma experiência com “Desmundo” (2003) deAlain Fresnot, que trata de algumas órfãs, enviadas pelarainha de Portugal ao Brasil por volta de 1570, com oobjetivo de desposarem os primeiros colonizadores. Ofilme é todo falado em português arcaico, da época emque os acontecimentos mostrados ocorrem, e por contadisto o filme possui legendas em português atual.

Fazendo uma analogia numa perspectiva decomparação histórica, podemos dizer que o cinemaestá para o mundo contemporâneo como a religiãoestá para o mundo medieval, conquistando corações ementes. Trabalhar com o objeto fílmico e,principalmente aproveitar as suas possibilidades nafunção de estudioso e pesquisador, são encargos dohistoriador atual; não só como um simples instrumento,mas também no intuito de transcendê-lo para umfundamento do processo epistemológico. Refletir afunção do historiador e pensar a relação cinema-história são passos indispensáveis de um trabalho aindapioneiro, mas que vem se expandindo, pois um filme,seja ele qual for, sempre vai além do seu conteúdo,escapando mesmo a quem faz a filmagem. A relaçãoentre História e arte é singularmente indissolúvel.

Fernando Gralha é Mestre em História pelaUniversidade Federal de Juiz de Fora e Professor dasFaculdades Integradas Simonsen, Prof. TutorUAB/UNIRIO. Editor fundador da Gnarus Revista deHistória. Coordenador de pesquisa do Centro deMemória de Realengo e Padre Miguel.

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