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Desventuras em Série Livro décimo O ESCORREGADOR DE GELO de LEMONY SNICKET Ilustrações de Brett Helquist Tradução de Ricardo Gouveia - reimpressão

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� Desventuras em Série �

Livro décimo

O ESCORREGADORDE GELO

de LEMONY SNICKET

Ilustrações de Brett Helquist

Tradução de Ricardo Gouveia

9ª- reimpressão

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Copyright do texto © 2003 by Lemony SnicketCopyright das ilustrações © 2003 by Brett Helquist

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Publicado mediante acordo comHarperCollins Children’s Books,

divisão da HarperCollins Publishers, Inc.

Título original:The Slippery Slope

Preparação:Beatriz Antunes

Revisão:Beatriz de Freitas Moreira

Carmen S. da Costa

2014

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ S.A.

Rua Bandeira Paulista, 702 cj. 3204532-002 — São Paulo — SP

Telefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501

www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Snicket, LemonyO escorregador de gelo / Lemony Snicket ; ilustrações de

Brett Helquist ; tradução de Ricardo Gouveia. — São Paulo :Companhia das Letras, 2004.

Título original: The Slippery Slope.ISBN 978-85-359-0575-5

1. Literatura infanto-juvenil I. Helquist, Brett. II. Título.

04-7024 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:1. Literatura infanto-juvenil 028.52. Literatura juvenil 028.5

Os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo da ficção;não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opinião.

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C A P Í T U L O

Um

Um conhecido meu escreveu um poema chamado“O caminho menos percorrido”, que descreve umaviagem através dos bosques por um caminho pra-ticamente desconhecido da maioria dos viajantes.O poeta descobriu que o caminho menos percorri-do era tranqüilo porém solitário, e deve ter ficadoum pouco nervoso durante a viagem, pois se algu-ma coisa lhe acontecesse os viajantes do caminhomais percorrido não ouviriam seu grito de socorro.Esse poeta acabou morrendo, como era de esperar.Assim como ele, este livro viaja pelo caminho

menos percorrido, porque começa com as três crian-ças Baudelaire atravessando as Montanhas de Mão-

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Morta, que não são lá um destino muito popularentre os viajantes, e termina nas águas agitadas doArroio Enamorado, um lugar de onde poucos seaproximam. Ao contrário da maioria dos livros quea maioria das pessoas prefere, que oferecem narra-tivas divertidas de pessoas encantadoras e animaisfalantes, esta narrativa é aflitiva e enervante. As pes-soas que por desventura fazem parte dela são mui-to mais desesperadas que encantadoras, e quantoaos animais, prefiro nem falar. Por essas razões, nãoposso sugerir a leitura deste livro deplorável, assimcomo não recomendaria que você perambulasse pe-lo bosque sozinho, pois da mesma forma que o ca-minho menos percorrido, este livro o fará se sentirsolitário, miserável e necessitado.Mas os órfãos Baudelaire não tinham outra es-

colha senão seguir pelo caminho menos percorri-do. Violet e Klaus, os Baudelaire mais velhos, via-javam num trailer a toda a velocidade rumo ao topodas montanhas. NemViolet, que tinha catorze anos,nem Klaus, que recentemente fizera treze, podiamsupor que um dia percorreriam a estrada das Mon-tanhas de Mão-Morta, a não ser que estivessem nu-ma viagem de férias acompanhados de seus pais.Mas os pais dos Baudelaire estavam desaparecidosdesde o terrível incêndio em sua casa — ainda que

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as crianças acreditassem que um deles pudesse es-tar vivo —; e o trailer não estava subindo as Mon-tanhas de Mão-Morta rumo à base de operações se-cretas de que tinham ouvido falar e que tinhamesperanças de encontrar. O trailer despencava mon-tanha abaixo, sem que os órfãos pudessem contro-lar ou interromper a queda, e por isso Violet e Klausnão se sentiam exatamente viajantes em férias, massim peixes ao sabor das ondas em um mar tempes-tuoso.Mas Sunny Baudelaire estava numa situação que

era ainda mais desesperadora. A mais jovem dos ór-fãos ainda não tinha aprendido a falar de um modoque todos pudessem entender, portanto não tinhapalavras para descrever o quanto estava assustada.Sunny viajavamontanha acima, rumo à base de ope-rações nas Montanhas de Mão-Morta, e o automó-vel em que estava não tinha nenhum problema defuncionamento, mas ainda que tudo parecesse cor-rer bem, o homem que conduzia o veículo era ra-zão suficiente para deixá-la aterrorizada. Algumaspessoas chamavam esse homem de malvado; algu-mas o chamavam de facínora, que é uma palavra di-fícil para “malvado”.Mas todas o chamavam de con-de Olaf, a não ser quando ele usava um dos seusridículos disfarces e forçava as pessoas a chamá-lo

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por um nome falso. Conde Olaf era um ator, masabandonara sua carreira teatral para tentar roubar aherança milionária dos Baudelaire. Os planos deOlaf para pôr as mãos na fortuna eram ignóbeis ecomplicados, mas apesar disso ele conseguira atrairpara sua trupe uma mulher vil e elegante chamadaEsmé Squalor, sua namorada, que estava agora sen-tada ao lado dele no carro, tagarelando de um jeitoantipático, com Sunny no colo. Também estavamno carro os empregados de Olaf: um homem comganchos no lugar de mãos, duas mulheres que gos-tavam de empoar a cara de branco e três novos ca-pangas, recrutados há pouco no Parque Caligari. Ascrianças Baudelaire também tinham estado no par-que, disfarçadas, fingindo participar da armação deOlaf. Mas o vilão as desmascarou, uma expressãoque aqui significa “descobriu quem elas eram e porisso cortou o nó que ligava o trailer ao carro, dei-xando Sunny nas garras de Olaf e seus irmãos emqueda livre”. Sunny, no colo de Esmé, sentia asunhas compridas da vilã arranharem seus ombrosenquanto se perguntava o que iria acontecer comela e com os irmãos, cujos gritos ficavam cada vezmais fracos e distantes conforme o carro se distan-ciava do trailer em queda.“Temos de parar este trailer!”, gritou Klaus, e co-

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locou os óculos apressado, como se enxergar bempudesse melhorar a situação. No entanto, mesmoem foco, a situação era bastante desesperadora. Otrailer que agora descia montanha abaixo e tinha setransformado no lar sacolejante dos Baudelaire maisvelhos, já tinha servido de lar para vários artistas daCasa dos Monstros, mas isso foi antes de eles deser-tarem, uma palavra que aqui significa “juntarem-seao bando revoltante de comparsas do conde Olaf”.Klaus agachou-se para se esquivar de uma panelaque Hugo, o corcunda, usara para preparar refei-ções e que por causa da trepidação despencara deuma prateleira. E quando o jogo de dominó de Co-lette, a contorcionista, passou deslizando pelo chão,Klaus teve de erguer seus pés para não pisar nele.Foi preciso desviar também de uma rede de dormir,que com os olhos apertados o Baudelaire do meioflagrou oscilando com violência em sua direção. Hápouco tempo, antes de se juntar com os amigos Ke-vin e Colette à trupe de Olaf, Kevin, o ambidestro,dormia naquela rede, que agora ameaçava cair so-bre as cabeças dos Baudelaire.A única coisa reconfortante que Klaus podia ver

era sua irmã, que percorria o carroção com uma ex-pressão intensa e pensativa, enquanto desabotoava

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a camisa do disfarce que os dois irmãos comparti-lhavam.“Ajude-me a tirar nossas calças”, disse Violet.

“Não adianta mais fingir que somos uma aberraçãode duas cabeças. Precisamos estar preparados parao que der e vier.”Em pouco tempo os dois Baudelaire estavam li-

vres das enormes roupas apanhadas do kit de dis-farces do conde Olaf e se equilibravam de pé notrailer trepidante, já com suas roupas normais. Klausesquivou-se de um vaso de planta que caía, e nãopôde deixar de sorrir quando olhou para a irmã.Violet prendia o cabelo com uma fita, sinal de queplanejava alguma invenção. As habilidades mecâni-cas de Violet já tinham salvado as vidas dos Baude-laire mais vezes do que fora possível contar, e porisso Klaus tinha certeza de que a irmã inventaria al-guma coisa para deter a jornada do trailer.“Você vai construir um freio?”, perguntou Klaus.“Ainda não”, disse Violet. “Um freio obrigaria as

rodas a parar de modo brusco, e as rodas deste trai-ler estão girando rápido demais. Vou desengancharessas redes e usá-las como drag chutes.”“Drag chutes?”, disse Klaus.“Drag chutes se parecem um pouco com pára-

quedas, mas são pedaços de lona presos na traseira

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de um carro para reduzir sua velocidade”, explicouViolet apressada, enquanto uma arara de casacoschacoalhava ao seu redor. Sem titubear, desengan-chou a rede onde ela e Klaus tinham dormido. “Nofinal das corridas de velocidade, os drag chutes sãousados para desacelerar os carros e ajudá-los a pa-rar. Se eu pendurar as redes do lado de fora do trai-ler, vamos reduzir bastante a velocidade.”“O que eu faço?”, perguntou Klaus.“Você pode dar uma olhada na despensa de Hu-

go”, disse Violet, “e ver se encontra algo pegajoso.”Quando alguém pede que você faça alguma coi-

sa inusitada e sem explicação, é muito difícil nãoperguntar por quê, mas há muito tempo Klausaprendera a confiar nas idéias da irmã, então semquestionar se dirigiu até o grande armário em queHugo guardava os alimentos. A porta do armáriobatia de um lado para o outro como se lutasse con-tra um fantasma, mas por sorte a maior parte dascoisas ainda se mantinha ali dentro. Klaus se lem-brou da irmãzinha bebê, que se afastava cada vezmais deles. Ainda que Sunny fosse muito jovem, vi-nha demonstrando interesse por cozinha, e Klauslembrou-se de que ela desenvolvera uma receita dechocolate quente e ajudara a preparar uma sopa de-liciosa que todos saborearam. Klaus manteve a por-

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ta do armário aberta e, enquanto o examinava, de-sejou que a irmãzinha sobrevivesse para dar prosse-guimento a seus talentos culinários.“Klaus”, disseViolet com firmeza, desenganchan-

do uma segunda rede e amarrando-a à primeira.“Não quero apressá-lo, mas precisamos deter o trai-ler o mais depressa possível. Já encontrou algumacoisa pegajosa?”Klaus piscou e retomou a tarefa. Um jarro de ce-

râmica rolou em volta de seus pés enquanto ele exa-minava as garrafas e potes do armário.“Há uma porção de coisas pegajosas aqui den-

tro”, disse ele. “Tem melaço de cana, mel de trevosilvestre, xarope de milho, vinagre balsâmico enve-lhecido, manteiga de maçã, geléia de morango, mo-lho de caramelo, xarope de bordo, cobertura de ca-ramelo, licor marasquino, azeite de oliva virgem eextravirgem, creme inglês de limão, damascos se-cos, chutney de manga, crema di noci, pasta de ta-marindo, mostarda forte, marshmallows, creme demilho, manteiga de amendoim, uvas em conserva,puxa-puxa, leite condensado, recheio de torta deabóbora e cola. Não sei por que Hugo guarda colana despensa, mas não importa. O que você quer?”“Tudo”, disse Violet, resoluta. “Encontre um jei-

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to demisturar todos os ingredientes enquanto amar-ro as redes uma na outra.”Klaus pegou o jarro no chão e começou a despe-

jar os conteúdos dos potes dentro dele. Enquantoisso, Violet, sentada no chão para se equilibrar me-lhor, entrelaçava os cordões das redes para formarum nó. A cada solavanco do trailer os Baudelaireficavam um pouco mais enjoados, como se estives-sem de volta ao Lago Lacrimoso, atravessando águastempestuosas para tentar salvar um dos seus mui-tos e desventurados tutores. Mas a despeito da de-sordem à sua volta, Violet se ergueu do chão comas redes entrelaçadas nos braços. Klaus olhou paraela e mostrou o jarro, cheio até a boca de uma pas-ta grudenta e colorida.“Quando eu disser já ”, disse Violet, “vou abrir

a porta e jogar as redes para fora. Você fica do ou-tro lado do trailer, Klaus. Abra aquela janelinha edespeje a mistura por cima das rodas. Se as redesfuncionarem como drag chutes e a substância fizeras rodas brecarem pelo menos um pouco, a veloci-dade do trailer será reduzida, e nós estaremos sal-vos. Só preciso amarrar as redes à maçaneta.”“Você está usando o nó Língua do Diabo?”, per-

guntou Klaus.“O Língua do Diabo não tem nos trazido muita

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sorte”, disse Violet, referindo-se às diversas fugasem que precisaram de cordas. “Estou usando o Su-mac, um nó que eu mesma inventei. É uma home-nagem a uma cantora que eu admiro. Pronto. Pa-rece firme. Você está pronto para despejar a misturanas rodas?”Klaus abriu a janela. O ruído chacoalhante das

rodas do trailer se tornou mais audível, e os Baude-laire ficaram olhando por um momento a paisagemque passava em alta velocidade. O caminho era aci-dentado e cheio de curvas, parecia que a qualquermomento o trailer podia cair num buraco ou des-pencar dos picos da montanha.“Acho que estou pronto”, disse Klaus, hesitante.

“Mas antes de testarmos a sua invenção quero lhedizer uma coisa.”“Se não andarmos logo”, disse ela, amarga, “vo-

cê não terá nem chance de me dizer alguma coisa.”Ela deu mais um puxão no nó e voltou-se de novopara Klaus. “Já!”, comandou, e abriu a porta do trai-ler num tranco.Costuma-se dizer que ter a janela do quarto vi-

rada para uma bela paisagem é o suficiente para fa-zer com que nos sintamos em paz e relaxados; noentanto, se esse quarto for um trailer em vertigino-sa queda por uma estrada íngreme e sinuosa, e a pai-

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sagem uma sinistra cadeia de montanhas sendo dei-xada para trás em alta velocidade, e se ainda por ci-ma os ventos gélidos das montanhas fustigam nos-so rosto e enchem nossos olhos de poeira, é provávelque não nos sintamos em paz nem relaxados. Emvez disso, sentiremos o horror e o pânico que osBaudelaire sentiram quando Violet abriu a porta.Por um momento eles ficaram parados, apenas ba-lançando ao sabor do trailer desenfreado e obser-vando os estranhos picos quadrados das Montanhasde Mão-Morta, enquanto as rodas do trailer ran-giam ao se chocar contra as pedras e os tocos de ár-vores no chão. Mas então Violet gritou “Já!” outravez, e imediatamente eles começaram a botar o pla-no em prática. Klaus se debruçou para fora da ja-nela e começou a despejar a mistura de melaço decana, mel de trevo silvestre, xarope de milho, vina-gre balsâmico envelhecido, manteiga de maçã, ge-léia de morango, molho de caramelo, xarope de bor-do, cobertura de caramelo, licor marasquino, azeitede oliva virgem e extravirgem, creme inglês de li-mão, damascos secos, chutney de manga, crema dinoci, pasta de tamarindo,mostarda forte,marshmal-lows, creme de milho, manteiga de amendoim, uvasem conserva, puxa-puxa, leite condensado, recheiode torta de abóbora e cola nas rodas mais próximas,

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enquanto sua irmã lançava as redes porta afora. Sevocê já leu alguma coisa a respeito das vidas dos ór-fãos Baudelaire — e eu espero que não — não fi-cará surpreso ao saber que a invenção de Violet fun-cionou. As redes se encheram de ar como enormesbalões de pano atrás do trailer, e de fato a velocida-de diminuiu bastante, o que aconteceria tambémcom você, caso corresse com uma mochila ou umxerife nas costas. A mistura pegajosa que Klaus pre-parara caiu sobre as rodas, que imediatamente re-duziram a velocidade, o que aconteceria tambémcom você, caso corresse sobre areia movediça ouuma lasanha. As rodas passaram a girar mais deva-gar, e em pouco tempo os Baudelaire viajavam numritmo bem mais tranqüilo.“Funcionou!”, gritou Klaus.“Ainda não acabamos”, disse Violet, e foi até uma

mesinha que tinha tombado na confusão. Quandoos Baudelaire moraram no Parque Caligari, essa me-sa foi fundamental para fazer planos, mas agora, nasMontanhas de Mão-Morta, seria fundamental poruma razão diferente. Violet a arrastou até a portaaberta. “Agora que as rodas estão com a velocidadereduzida”, disse ela, “vamos usar a mesa como freio.”Klaus despejou o resto da mistura nas rodas e

perguntou: “Como?”. Mas Violet já estava mostran-

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do como. Deitou-se no chão e segurou a mesa pe-las pernas para fora do trailer, arrastando o tampocontra a terra. Um ruído áspero soou, e a mesa co-meçou a trepidar nas mãos de Violet. Mas ela segu-rou firme, e a mesa começou a raspar a terra pedre-gosa até reduzir a velocidade do veículo. O trailerfoi parando de chacoalhar, os objetos dos antigosempregados do parque pararam de colidir uns comos outros e então, com um último rangido, as ro-das pararam de vez e tudo ficou em silêncio. Violetinclinou-se para fora da porta e escorou uma dasrodas com a mesa, para impedir que continuasse agirar, só então se levantou e olhou para Klaus.“Conseguimos”, disse Violet.“Você conseguiu”, disse Klaus. “O plano foi idéia

sua.” Ele pôs o jarro no chão e enxugou as mãos nu-ma toalha caída.“Não deixe o jarro no chão”, disse Violet, cor-

rendo os olhos pelos destroços caídos no trailer.“Precisamos juntar o máximo de coisas úteis parainvenções. Se queremos resgatar Sunny, vamos pre-cisar fazer este trailer subir toda a montanha.”“E chegar à base de operações”, acrescentou Klaus.

“O conde Olaf está com o mapa, mas eu me lembroque a base de operações fica no Vale das Correntezas

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que Sopram Constantes, perto da nascente do Ar-roio Enamorado. Deve fazer muito frio por lá.”“Bem, aqui tem roupas à vontade”, disse Violet,

olhando em volta. “Vamos pegar tudo o que der eorganizar lá fora.”Klaus concordou e recolheu o jarro, junto com

diversos itens de vestuário que tinham caído sobreum espelho de mão que pertencera a Colette. Comandar cambaleante por conta do peso que carrega-va, ele saiu do trailer atrás de Violet, que recolherauma faca de pão, três casacos pesados e um uquele-le, uma espécie de guitarra havaiana que Hugo to-cava em algumas tardes de lazer. O piso do trailerrangeu sob os passos dos Baudelaire, que saíram pa-ra a paisagem enevoada e vazia enquanto se davamconta da sorte que tiveram.O trailer tinha parado na beirada de um dos pi-

cos quadrados da cadeia de montanhas. As Monta-nhas de Mão-Morta pareciam uma escadaria quelevava às nuvens ou, descendo, para um véu de né-voa espessa e cinzenta. Se o trailer tivesse continua-do um pouco mais, os dois Baudelaire teriam des-pencado através da névoa até o degrau seguinte, queficava muito, muito abaixo. Mas ao lado do traileras crianças podiam ver o Arroio Enamorado, cujaságuas preto-acinzentadas corriam preguiçosamente

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ladeira abaixo, como um rio de óleo. E, nesse caso,se o trailer tivesse guinado para o lado, as criançasteriam mergulhado em águas escuras e imundas.“Parece que o freio funcionou na hora certa”, dis-

se Violet. “Se o trailer se movesse para qualquer la-do estaríamos liquidados.”Klaus concordou e correu os olhos pela vastidão

deserta que os cercava. “Vai ser difícil manobrar otrailer aqui”, disse ele. “Você terá de inventar algumdispositivo de direção.”“E algum tipo de motor”, disse Violet. “Isso vai

tomar algum tempo.”“Não temos tempo”, disse Klaus. “Se não nos

apressarmos, o condeOlaf se afastará demais, e nun-ca encontraremos Sunny.”“Vamos encontrá-la”, disse Violet decidida, e pôs

no chão os objetos que carregava. “Vamos voltarpara o trailer e procurar...”Mas antes que Violet terminasse a frase, um es-

tralejar a interrompeu. O trailer parecia gemer, eentão, pouco a pouco, começou a se movimentarem direção ao abismo. Os Baudelaire olharam parabaixo e viram que as rodas tinham esmagado a me-sinha, portanto não havia mais o que impedisse otrailer de se movimentar. Lento e desconjuntado,ele foi para a frente arrastando os drag chutes, se

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aproximando da beira do pico. Klaus ainda tentouagarrar uma rede, mas Violet o impediu.“É pesado demais”, disse ela. “Não podemos

detê-lo.”“Mas ele não pode cair no abismo!”, gritou Klaus.“Se tentarmos segurá-lo também cairemos”, dis-

se Violet.Klaus sabia que a irmã tinha razão, mas ainda as-

sim queria agarrar o drag chute que Violet construí-ra. Quando você se defronta com uma situação queé incapaz de controlar, é difícil admitir que não po-de fazer nada, e foi difícil para os Baudelaire assis-tir parados à queda do trailer para além da beiradado pico. Um último rangido soou quando as rodasde trás atingiram um montículo de terra, mas de-pois foi em silêncio absoluto que o trailer desapa-receu montanha abaixo. Os Baudelaire chegaramaté a beirada do pico e espiaram, mas a névoa eratanta que o trailer não passava de um retângulo fan-tasmagórico que foi ficando cada vez menor, até de-saparecer completamente de vista.“Por que não ouvimos um estrondo?”, pergun-

tou Klaus.“O drag chute está segurando”, disse Violet. “Es-

pere um pouco.”Os irmãos esperaram, e ummomento depois ou-

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viram um bum! abafado lá embaixo, quando o trai-ler cumpriu sua sina. As crianças não puderam vernada no meio da neblina, mas sabiam que o trailere tudo o que estava dentro dele se fora para sempre.E, de fato, eu nunca consegui encontrar os destro-ços, mesmo depois de vasculhar a área por meses,tendo por companhia apenas uma lanterna e umdicionário de rimas. Parece que mesmo após noitesincontáveis lutando contra mosquitos da neve e re-zando para que as pilhas da lanterna não se esgo-tassem, meu destino era mesmo deixar algumas dasminhas perguntas sem resposta.O destino é como um estranho e impopular res-

taurante, cheio de garçons esquisitos trazendo coisasque você nunca pediu e de que nem sempre gosta.Quando os Baudelaire eram mais jovens, é prová-vel que tenham acreditado que o destino deles eracrescer felizes e contentes junto aos pais na mansãoBaudelaire, mas agora tanto a mansão como os paisjá não existiam. Assim como quando freqüentavama Escola Preparatória Prufrock, quando deviam pen-sar que estavam destinados a terminar os estudosao lado dos amigos Quagmire, mas agora tanto aacademia quanto os dois trigêmeos tinham sumidodas vistas dos Baudelaire há um bocado de tempo.E há apenas alguns minutos, parecia que era o des-

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tino de Violet e Klaus despencar num abismo ounum arroio, porém eles estavam vivos e bem, em-bora muito longe da irmãzinha e sem veículo queos ajudasse a encontrá-la.Violet e Klaus chegaram mais perto um do ou-

tro e sentiram os ventos gélidos das Montanhas deMão-Morta soprarem no caminho menos percorri-do, o que os deixou arrepiados. Eles olharam paraas águas escuras e revoltas do Arroio Enamorado,olharam para a névoa abaixo da beira do pico, e de-pois se entreolharam estremecidos, não apenas porcausa dos destinos que evitaram, mas por imaginartodos os destinos misteriosos que ainda os aguar-davam.

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