1.1 mercados públicos, galerias e lojas de departamento · o declínio do homem público. as...

43
Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers 13 1.1 Mercados públicos, galerias e lojas de departamento A constituição de lugares de troca e comércio é algo inerente à própria natureza da cidade. De acordo com Richard Nelson, várias cidades se desenvolveram a partir de primitivos postos de comércio e troca de mercadorias, antecedendo nesses casos aos edifícios religiosos e governamentais como elemento regulador do traçado urbano 1 . Embora, na maioria dos casos, o centro da cidade fosse configurado pelo conjunto desses edifícios, a atividade comercial progressivamente foi se tornando determinante no cenário das localidades centrais urbanas. Na Idade Média, em grande parte das cidades européias, o centro era demarcado pela chamada “praça do mercado”, que além da feira concentrava, muitas vezes, edifícios como a catedral e os prédios governamentais. Foi, entretanto, o poder de atração do mercado que fez consagrar sua denominação. Ao longo da história os edifícios comerciais adotaram diversas tipologias, que variavam de acordo com as condições econômicas, tecnológicas e sociais do local. No oriente, por exemplo, floresceram os bazares, que em alguns casos eram constituídos por grandes tendas onde se vendia e trocava toda a sorte de mercadorias. Os bazares legaram ao mundo ocidental o hábito de realizar espetáculos cênicos nos espaços comerciais, criando uma atmosfera de entretenimento e de movimento constante, que viria a ser incorporada aos shopping centers atuais 2 . 1 NELSON, Richard L. The selection of retail location. New York, F.W. Dodge Corporation, 1985, p.4. 2 Id.

Upload: lamdiep

Post on 07-Feb-2019

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

13

1.1 Mercados públicos, galerias e lojas de departamento

A constituição de lugares de troca e comércio é algo

inerente à própria natureza da cidade. De acordo com Richard

Nelson, várias cidades se desenvolveram a partir de primitivos postos

de comércio e troca de mercadorias, antecedendo nesses casos aos

edifícios religiosos e governamentais como elemento regulador do

traçado urbano1. Embora, na maioria dos casos, o centro da cidade

fosse configurado pelo conjunto desses edifícios, a atividade

comercial progressivamente foi se tornando determinante no cenário

das localidades centrais urbanas. Na Idade Média, em grande parte

das cidades européias, o centro era demarcado pela chamada

“praça do mercado”, que além da feira concentrava, muitas vezes,

edifícios como a catedral e os prédios governamentais. Foi, entretanto,

o poder de atração do mercado que fez consagrar sua

denominação.

Ao longo da história os edifícios comerciais adotaram diversas

tipologias, que variavam de acordo com as condições econômicas,

tecnológicas e sociais do local. No oriente, por exemplo, floresceram

os bazares, que em alguns casos eram constituídos por grandes tendas

onde se vendia e trocava toda a sorte de mercadorias. Os bazares

legaram ao mundo ocidental o hábito de realizar espetáculos cênicos

nos espaços comerciais, criando uma atmosfera de entretenimento e

de movimento constante, que viria a ser incorporada aos shopping

centers atuais2.

1 NELSON, Richard L. The selection of retail location. New York, F.W. Dodge Corporation, 1985, p.4. 2 Id.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

14

Na Europa, durante a Idade

Média difundiram-se tipologias

monumentais, que quase sempre

misturavam entretenimento e

comércio. Este é o caso do mercado

de Bruges, importante porto

comercial da época. O mercado ali

existente desenvolve-se em um

grande edifício de dois pavimentos,

abrigando bancas de mercadorias

diversas e um salão para celebrações

festivas, além de um tribunal e uma

prisão3. Durante o Renascimento,

surgiram na Itália, as “Loggia dei

mercati”, galerias em arcadas, cuja

forma remete ao antigo Forum de

Trajano. Deste último, herdarm alguns

espaços complementares aos de

compra, tais como a Casa di venere

(prostíbulo), a Casa di Bacco

(taberna) e a Casa d’usura (banco)4.

A intensificação do comércio, correlata ao mercantilismo,

haveria de provocar grandes alterações nas transações comerciais e

nos espaços de compra a elas destinadas. Paolo Sicca escreve que ”

3 PEVSNER,Nikolaus. Historia de las tipologias arquitetônicas. Barcelona, Gustavo Gilli, 1979, p. 285. 4 Id.

2. A loggia dei mercati, na Itália.

Fonte: Pevsner, 1979.

1. O mercado monumental de

Bruges. Fonte: Pevsner, 1979.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

15

(...) quando as maiores cidades da Europa, com o fenômeno do

mercantilistmo e a aceitação do comércio com as colônias, se

convertem em centros de distribuição e comércio de produtos raros,

seu aparato distributivo se transforma, tornando superado o tipo de

mercado tradicional onde se resolvia a relação recíproca de

produção-consumo entre cidade e campo”5.

Geist observa que apesar das inúmeras tipologias de edifícios

comerciais surgidas ao longo da história, foi à partir do século XIX que

se revolucionou a atividade comercial, tanto em função de novas

tipologias emergentes, quanto do surgimento de novas técnicas de

comercialização, circulação e transporte. O autor argumenta, que

embora já houvesse na antigüidade, tipologias parecidas com as

surgidas no século XIX - como o caso dos mercados públicos -, seria

difícil concluir que as últimas sejam fruto de uma evolução natural das

primeiras, dado o conjunto de circunstâncias diferentes que se

apresentaram naquele século6.

As mudanças que atingiram a atividade comercial no século

XIX, começaram a se gestar no século anterior, tendo como alavanca

o acentuado processo de industrialização iniciado na Inglaterra e as

transformações político-sociais advindas da ascensão da burguesia. A

Revolução Industrial, possibilitou uma mudança nos padrões de

comercialização dos séculos anteriores. De um lado, colocou em

circulação uma quantidade e variedade de mercadorias

manufaturadas nunca antes observadas. De outro, disponibilizou novos

materiais de construção - como o ferro fundido -, que permitiram a

5 SICCA, Paolo. História do urbanismo: el siglo XIX. Madrid, Estudio de Administracion Local, 1981. p. 1035. 6 GEIST, Johann Friedrich. Arcades: the history of a building type. Cambridge, The MIT Press, 1975, p.13.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

16

composição de espaços de compra mais amplos. Além disso, a

população urbana européia no século XIX, sofreu um acréscimo

acentuado, motivado, entre outras coisas, pela mecanização da

agricultura e pela demanda por mão de obra nas fábricas7.

Simultaneamente, verificou-se uma ampliação do mercado de

consumo, ao qual se integram trabalhadores, que embora em sua

maioria vivessem em condições miseráveis, podiam receber seus

salários em dinheiro. A combinação do avanço industrial com o

aumento da aglomeração urbana, segundo Richard Sennett, fez com

que o comércio se tornasse uma atividade altamente lucrativa, pois

havia cada vez mais mercadorias disponíveis, bem como cada vez

mais pessoas aptas a comprá-las8.

Daniels salienta que, no século XIX, o aumento na produção de

mercadorias associa-se à necessidade de desenvolvimento dos meios

de transporte para o seu deslocamento, tanto intra-urbano quanto

interurbano, buscando garantir maior agilidade nos fluxos. Esses novos

métodos de deslocamento permitiram vantagens de acessibilidade a

várias zonas urbanas e estimularam a segregação social e a divisão

funcional dos usos do solo” 9. Por outro lado, o constante avanço

tecnológico e econômico possibilitou a criação de extensa malha

ferroviária que responderia à demanda pelo transporte de

mercadorias e, também, de pessoas. A França, na segunda metade

7 Paris, por exemplo, vê sua população aumentar de cerca de 500 mil, em 1801, para 2,5 milhões de habitantes em 1896. Londres, por sua vez, no mesmo período, tem sua população aumentada de 900 mil para 4,2 milhões. (SENNETT, Richard 1998: 167). 8 SENNETT, Richard. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1998, p. 168. 9 DANIELS, P. W. e WARNE, A. M. Movimiento en ciudads – transporte y trafego urbanos. Nuevo Urbanismo, n. 37, 1983, p.25.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

17

do século XIX, vê sua malha ferroviária saltar, em pouco tempo, de

3500, para 9000 quilômetros de extensão10.

Se por um lado a Revolução Industrial iniciada na Inglaterra, foi

responsável pelo avanço da industrialização no continente europeu,

com impactos significativos na estrutura urbana, nos modos de

produção e comercialização de mercadorias, por outro, a Revolução

Francesa em 1789, através de uma burguesia triunfante, contribuiu

para uma mudança nos modos de vida, consubstanciada pelo

surgimento da indústria de mercadorias de luxo e dos ateliers da alta

costura. O clima surgido com a Revolução era supostamente liberal,

principalmente após a edição da lei de 17 de março de 1791, que

reconhecia a todas as pessoas o direito de “faire tel negoce ou

d’exercer telle profession, art ou mètier quélle trouvera bom”11. Assim

foram lançados os fundamentos do exercício da atividade econômica

dentro do quadro do liberalismo: a liberdade de instalação e a livre

concorrência12.

Neste quadro, surgiu em Paris, o Grand Palais, o primeiro

equipamento voltado para o comércio e o lazer isolado do intenso

fluxo das ruas. Tratava-se de um equipamento de uso público,

controlado por um investidor privado. Edificado pelo Duc d’Orléans, o

Grand Palais foi descrito por Balzac como um mundo auto suficiente

com suas galerias sem fim, pátios, jardins, cafés, teatros e

apartamentos. Em seus espaços, conviviam pessoas de todas as

classes sociais, embora nem todos pudessem efetuar compras nas

10 BOUILLON, J. et. al. 1848 –1914. Paris, Bordas, 1978, p. 154. Citado por: TRAMONTANO, M. Novos Modos de Vida, Novos Espaços de Morar: Uma reflexão sobre a habitação contemporânea. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1998, p. 69. 11 VARGAS, Heliana Comin. Comércio: Localização estratégica ou estratégia da localização? Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1992. P. 207. 12 Id.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

18

luxuosas lojas ali existentes13. Posteriormente, a magnificência dos

ambientes do Grand Palais e seu modelo inovador iria inspirar

tipologias como as galerias e o Grand Magasin. Se de um lado, novos

espaços de comércio surgiam, de outro, inovações importantes foram

introduzidas nos mercados públicos.

Sem dúvida, foi o uso do ferro como material de construção,

que proporcionou as maiores mudanças no padrão construtivo dos

mercados públicos no século XIX. A emergência da grande indústria,

favoreceu a criação de elementos de ferro pré-fabricados para a

construção civil, os quais foram mobilizados na edificação de

mercados mais limpos, ventilados e iluminados. O uso do ferro pareceu

ideal para suprir essas demandas, pois propiciava espaços mais

amplos, com grandes vãos. Tais vãos podiam ser amplamente

ventilados e iluminados pelos vidros e venezianas, elementos cujo uso

também estava em ascensão.

O mais notável exemplo de mercado em ferro, foi o mercado

de Les Halles, em Paris. Construído sob o império de Napoleão III, e sob

a égide do “embelezamento estratégico” de Haussman, Les Halles foi

erguido tendo em vista a construção de uma imagem moderna de

cidade idealizada pelo Imperador francês e, rapidamente, se impôs

como um gosto em moda. O mercado serviu como modelo para

edifícios em diferentes países. Seu projeto em módulos tornava a

adaptação de seu sistema construtivo possível às mais variadas

necessidades e escalas. Sua construção foi curiosa. Encarregado por

Haussman do projeto de um novo mercado para Paris, o arquiteto

13 GEIST, Johann Friedrich. Op. Cit., p. 62.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

19

Victor Baltard - descrito por Michel Ragon14 como um restaurador de

igrejas católicas e membro do movimento antimoderno liderado por

Ingres – não hesitou em fazer à sua maneira, ou seja, em alvenaria de

pedra. “O primeiro pavilhão construído era tão pesado, que logo

passou a ser conhecido como Fort de la Halle e Napoleão III, vendo-o,

não hesitou em ordenar sua demolição imediata”15. Em seguida,

Baltard teve nova chance de se reabilitar perante o Imperador, mas

desta vez, com ordens do próprio para que o mercado fosse

construído em ferro e vidro.

O projeto consistia de 14 pavilhões, interligados por ruas

cobertas por arcos de meio ponto. Cada pavilhão era destinado a um

tipo de produto diverso, principalmente gêneros alimentícios. Houve

um cuidado especial com a ventilação do recinto, liberando-se o ar

quente por meio de lanternins existentes nos pavilhões e nas ruas

cobertas. Embora se propagandeasse a eficiência do ferro, sua

construção percorreu longos anos até estar completa: se iniciou em

1853 e foi inaugurada parcialmente em 1858. Até 1870, apenas dez

pavilhões estavam completos. Pevsner afirma que tal tipologia se

derivou principalmente das exposições da indústria, citando como

exemplos o Palácio de Cristal londrino, de Joseph Paxton, de 1850, o

projeto de Hector Horeau para a exposição de Paris, de 1849 e o

mercado de peixe projetado por Charles Fowler em 1835, constituído

apenas por uma curiosa cobertura em forma de maripousa e aberto

por todos os lados16.

14 RAGON, Michel. Citado por SILVA, Geraldo Gomes. Arquitetura do ferro no Brasil, São Paulo, Nobel, 1986. p. 37. 15 SILVA, Geraldo Gomes. op. cit., p. 37. 16 PEVSNER, Nikolaus. op. cit., p. 290. 17 Citados por PEVSNER, Nikolaus. Op. Cit., p. 292.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

20

Pevsner descreve o furor

provocado pelo Les Halles: “Uns trinta

anos mais tarde , Huysmans chamou

Les Halles de uma das glórias da

moderna Paris. Zola era da mesma

opinião, alegando que o futuro, se

embasa em cristal e ferro. Claude

Lantier vai ainda mais

longe: “... o ferro acabará com a pedra, está próximo o momento,

sendo Les Halles, com a sua elegância e sua potência de motor

mecânico, um revelação do século XX”17.

Surgidas na década de 1830, as passages francesas e as

arcades inglesas, situavam-se entre as novas formas de

comercialização de produtos oriundas do capitalismo industrial. A

grande vantagem desses novos aparatos - os quais eram constituídos

principalmente por sequências de lojas, cobertas por galerias de vidro

- , era sua capacidade de proteção contra as intempéries. As galerias

3. O mercado de Les Halles, em Paris. Fonte: Pevsner, 1979.

4. Vista interna do mercado de Les Halles.Fonte: Pevsner, 1979.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

21

foram cenário das primeiras iluminações a gás, que permitiam seu

funcionamento durante à noite. Rapidamente, algumas se tornaram

ponto de encontro da sociedade burguesa, onde se poderia comprar

com “estilo”18.

Walter Benjamin em sua leitura sobre Paris no século XIX , vincula

o sucesso das galerias ao incremento do setor têxtil e as coloca como

precursoras das grandes casas comerciais. “As galerias são centros

comerciais de mercadorias de luxo. Em sua decoração , a arte põem-

se a serviço do comerciante. Os contemporâneos não se cansam de

admirá-las”19. Cita um Guia Ilustrado de Paris acrescentando: “Estas

galerias são uma nova invenção do luxo industrial, são vias cobertas

por vidro e com piso de mármore, passando por blocos de prédios,

cujos proprietários se reuniram para tais especulações. Dos dois lados

dessa rua, cuja iluminação vem do alto, exibem-se as lojas mais

elegantes, de modo tal que cada uma dessas passagens é uma

cidade em miniatura, até mesmo um mundo em miniatura”20. E esse

mundo em miniatura, também apareceu em outras cidades da

Europa e nos EUA. Na Itália, o exemplo mais notável foi a Galeria

Vittorio Emanuelle II, em Milão. Construída em 1865, era composta por

duas “ruas” perpendiculares que se cruzam, tendo ao centro, uma

grande cúpula de vidro. Segundo Pevsner, sua construção formal

lembra o cinquecento na Lombardia. Seus caminhos acomodavam

18 BENJAMIN, Walter. Paris, Capital do Século XIX. in: KOTHE, Flávio R. (org.) Sociologia. São Paulo, Ática, 1962, p. 34. 19 Id.

20 Citado por BENJAMIN, Walter. Op. Cit., p. 31.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

22

“carros” e pedestres, mas os primeiros só podiam circular depois das

nove da noite21.

Em Cleveland, nos EUA,

havia uma tipologia diferente de

galeria. Inaugurada em 1890,

possuía 5 andares com

corredores cuja estrutura

metálica se projetava sobre a

passagem. Tais corredores eram

acessíveis através de uma

escadaria monumental situada

no centro do passeio.

Os EUA assistiram ainda

no século XIX, à implantação de

muitas galerias. Em Paris, havia

em 1880, cerca de 80 centros

comerciais em forma de galeria,

alguns dos quais ofereciam

atividades como cafés,

restaurantes e antiquários22.

Em Londres, entre os diversos estabelecimentos desse tipo, destaca-se

um projeto inovador. Tratava-se de uma galeria interligada a linhas de

trem, chamada Passeio de Cristal, cujo desenho foi desenvolvido por

Willian Moseley. O projeto previa uma galeria de dois andares, com o

pavimento inferior destinado às linhas de trem e o superior - coberto

por arcos envidraçados - aos pedestres e às lojas. Tal projeto parece

21 PEVSNER, Nikolaus. op. cit., p.290. 22 SICCA, Paolo. Op. Cit., p. 1035.

5. A galeria Vittorio Emanuelle II, em Milão.Fonte: Companhia Italiana de Turismo.

6. Galeria Providence, em Cleveland. Fonte: Pevsner, 1979.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

23

ter nascido de uma reflexão do autor sobre a importância que os

transportes passaram a ter, à partir das décadas finais do século XIX,

para a atividade comercial. Uma rede de transportes, onde milhares

de passageiros circulariam diariamente, se configuraria como um

ótimo local para exibição e venda de mercadorias. A idéia de

Moseley, considerava a importância que o tempo tomaria na vida das

pessoas, antecipando demandas que se acentuaram somente no

desenrolar do século XX.

Ainda no século XIX, “o aumento

em número e diversidade de produtos

exigia maior concentração do

comércio, que passou a ocupar as

áreas centrais da cidade, dividindo seu

espaço com entidades representativas

e governamentais. Por outro lado, o

público consumidor também se

modificou na medida em que deixou

derepresentar uma clientela estável,

típica do comércio pré-industrial,

ganhando características heterogênias

flutuantes. Nasceu daí a necessidade

de publicidade e exposição dos

produtos em vitrines”23. Estas últimas

haveriam de se tornar um dos componentes arquitetônicos básicos de

grandes e luxuosas lojas que se expandiram a partir do século XIX.

23 MASANO, Francisco Tadeu. Shopping centers: aspectos físico-territoriais e socio-negociais em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1993, p. 21.

O Passeio de Cristal, de Willian Moseley.

Fonte: Pevsner, 1979.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

24

O grand magasin, surgido em Paris ainda no século XIX, foi

considerado o mais completo aparato comercial daquele século,

posteriormente se difundindo em outros centros como a Bélgica, a

Inglaterra e os EUA, onde passou a ser chamado de “Departament

Store”. O embrião do grand magasin, foi um equipamento

denominado magasin de noveauté, que surgiu em Paris já na segunda

década do século XIX. Tais equipamentos se destacavam por vincular

a manufatura de produtos de consumo em grande escala a uma

organização empresarial concentrada. La Belle Jardiniere em Paris, foi

um dos primeiros equipamentos desse tipo, inaugurado em 1824.

Apesar do sucesso imediato desses aparatos, seus edifícios ainda eram

adaptados e não possuíam as dimensões e equipamentos que

surgiriam pouco tempo depois no grand magasin.

Para Hillberseimer, o

grand magasin requeria a

maior iluminação possível

nos espaços de venda e

trabalho, a possibilidade de

poder trocar

constantemente sua forma e

dimensão, além de uma

circulação sem entraves e

um máximo aproveitamento

da área construída.

8. La Belle Jardinière, o magasin de noveauté de Paris.Fonte: Pevsner, 1979.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

25

A organização desses requisitos, gerou um tipo de construção onde as

habituais paredes portantes se viram reduzidas a pilares e o edifício de

muro de cargas perimetrais a um esqueleto portante 24.

Pevsner classifica o grand

magasin, como uma grande loja,

formada por múltiplas seções, onde se

vende de tudo, “desde uma agulha

até um elefante”25. O primeiro

equipamento deste porte, foi o Bon

Marché, inaugurado em 1852 em Paris.

O estabelecimento, ocupava um

enorme edifício de 3 pavimentos, feito

exclusivamente para ele, e que

ostentava uma estrutura de ferro,

escondida por pesadas colunas de

pedra. A loja apresentava algumas

novidades que logo caíram no gosto

do consumidor, como o preço exposto

e a possibilidade de troca das

mercadorias.

Richard Sennet escreve que: “Num mercado onde os preços do

varejo flutuam, vendedores e compradores fazem todo o tipo de

encenação para aumentarem ou diminuírem os preços.(...) Nas feiras

de alimentos parisienses do século XVIII, poder-se-ia perder horas

fazendo manobras para baixar o preço de uma fatia de bife em

24 HILLBERSEIMER, Ludwig. La arquitectura de la grand ciudad. Barcelona, Gustavo Gilli, 1999, p. 58. 25 PEVSNER, Nikolaus. op. cit., p.319.

9. O Bom Marché, em Paris.

Fonte: Pevsner, 1979.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

26

alguns centavos” 26. Essa barganha requeria uma arte de negociação,

além de uma certa disponibilidade de tempo. Entretanto, não fazer

parte deste jogo significava perder dinheiro na hora das compras. O

preço exposto junto ao produto desmontou esse jogo e habilitou muita

gente que se sentia constrangida em ir às compras por não ter

habilidade de negociação. Por outro lado, nas grandes casas

comerciais, como fazer com que um funcionário exercesse o papel de

negociador atribuído ao dono? O sistema de preço afixado acabava

também com esse problema, pois tornava desnecessária a presença

do comerciante nas negociações e ampliava bastante o número de

clientes atendidos. Além disso, o sistema de preço exposto e pré-

determinado ainda tinha a vantagem de oferecer uma compra mais

rápida, dispensando demoradas negociações.

O famoso magazine

Printemps, abriu suas portas algum

tempo depois do Bon Marché,

ganhando fama pelo seu ambiente

sofisticado. Nesse período, em Paris,

os grand magasins difundiram-se,

conciliando uma estética eclética

com uma estrutura moderna,

propiciada pelo uso do ferro e do

concreto armado. A ambientação

variava de acordo com os estilos

históricos, afinal a tecnologia assim o

permitia e o ferro ainda era

considerado um material “mais

26 SENNET, Richard. O Declínio do homem público. São Paulo, Companhia das letras, 1998. p.180.

10. O Magasin Printemps, em Paris. Fonte: Pevsner, 1979.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

27

adequado à indústria, com seu ar

um tanto despojado 27.

Mas houve aqueles que ousaram,

como Adolf Loos em seu projeto para a

casa comercial Goldman & Salatch em

Viena, com suas grelhas de concreto,

despojadas de outros ornamentos. Erich

Mendelsohn também projetou uma

casa comercial, as lojas Schocken, em

Nuremberg, dotada de volumes

prismáticos e de um tratamento formal

inovador. Tanto interiores, quanto

exteriores eram despojados de

ornamentos, o que a diferenciava dos

rebuscados interiores dos magazines

franceses. Hillberseimer em sua leitura

dos projetos de diversos magazines,

colocou como ponto em comum, a

ordenação horizontal dos elementos

arquitetônicos, reconhecendo,

entretanto, particularidades na

concepção romântica dos magazines

franceses 28.

Nos EUA, a idéia do grand magasin foi aprimorada com a

combinação de técnicas comeriais – especialização por setores,

27 HILLBERSEIMER, Ludwig. Op. Cit., p.56.

A casa comercial Goldman & Salatch, de

Aldof Loos. Fonte: Frampton, 1997.

O Magazine Shocken de Érich Mendelson, em

Nuremberg. Fonte: Hillberseimer,

1999.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

28

oferta de serviços variados e publicidade – que transformaram os

grandes armazéns nas Departament Store 29.

Apesar de eliminarem a possibilidade de um atendimento mais

personalizado, as lojas de departamento introduziram técnicas de

venda que obtiveram grande aceitação entre os consumidores. O

grande trunfo das lojas de departamento foi perceber o novo papel

da mulher na sociedade, e preparar seus estabelecimentos a recebê-

las. Como esclarece Fieden: “Departament stores prospered by

recognizing the changing place of women in society. By the mid-

nineteenth century women were takinging greater responsability for

managing family budgets and deciding on mayors purchases.

Departament store owners treated women as their major costumers

and tried to make them confortable. They kept their stores clean,

orderly, and hospitable. They offered special services designed for

women, such as lounges, restaurants, reading and writing roons,

nurseries, and even club rooms. And they hired women for most sale

jobs.”30

As lojas de departamento também tiveram sucesso na busca

por associar os hábitos de compra a divertimento e magnificência.

Seus edifícios eram ricamente ornamentados, com ênfase na higiene,

na iluminação e na exposição de grande quantidade de produtos

que as fazia parecer uma exposição, onde tudo estava à venda.

Tiveram êxito também na tentativa de captar as demandas de uma

classe média ascendente, ansiosa em assmilar o gosto das elites.

Como escreve Frieden: “For people just climbing into the midle class,

29 MASANO, Tadeu Francisco. Op. Cit., p. 23. 30 FRIEDEN, Bernard & SAGALYN, Lyne. Down Town inc. How America rebuilds cities. Cambridge, The MIT. Press, 1992, p. 235.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

29

shopping was a problem. Clothing and home furnishing were important

for status , yet it was hard to know what to buy”31.

Outra mudança trazida por estes equipamentos nas técnicas de

comercialização de produtos foi a especialização por setores e o

preço previamente estabelecido. O cliente escolhia o produto na

seção especializada, onde o preço ficava claramente exposto; em

seguida

recebia a nota do vendedor e passava no caixa para pagar; de posse

da nota, o vendedor entregava a mercadoria. Com a expansão

destes empreendimentos e a consequente concorrência entre eles, se

intensificaram os artifícios de atração do consumidor. A loja A. T.

Stewart de Nova York, por exemplo, entretinha seus fregueses com a

música de um órgão e shows de moda. A Marshall Field, de Chicago,

construiu uma enorme árvore de natal em seus interiores. A Jordan

Marsh, de Boston,

montou uma grande máquina

de vento em uma plataforma

com um tanque aquático,

para demonstrações de seus

barcos à vela. Esses

estabelecimentos se tornaram

grandes empregadores. A

Macy’s, em Nova York,

empregava 3.000 pessoas, a

Jordan Marsh, em Boston, era o

quarto maior empregador do

estado, a Marshall Field em

31 Id.

Lojas Marshall Field, em Chicago.

Fonte: Hillberseimer, 1999.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

30

Chicago, contava com 8.000

funcionários 32.

1.2 Os novos equipamentos comerciais:

Supermercados e Shopping Centers

No início do século XX, o centro das grandes cidades era um

grande complexo comercial, onde floresciam as lojas de

departamento, de especialidades, restaurantes e locais de

entretenimento. Ao longo deste século, entretanto, muitas cidades

haveriam de assistir a uma descentralização comercial, que envolveu

inclusive a migração de lojas voltadas às elites da área. Tal migração

inseriu-se em um processo de eleição dos subúrbios como áreas

preferenciais de moradia, inclusive pela população de renda mais

alta, havendo se mostrado particularmente profundo em países como

os Estados Unidos e o Brasil. O centro da cidade tal como se

configurava no início do século XX concentrava equipamentos

comerciais e de serviços e, além disso, estava investido de um forte

caráter simbólico. A partir do século XIX, com a configuração da rua

comercial como local de encontro e footing, o centro da cidade

32 Id., p. 236.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

31

abrigou novas formas de sociabilidade. Era local de fácil

acessibilidade, configurado pela confluência de transportes coletivos

e individuais.

Durante o século XX, essa confluência de veículos em direção

ao centro gerou graves problemas, pois na maioria dos casos, a

estrutura viária não estava preparada para o grande número de

automóveis e atividades simultâneas oriundas das operações de

carga e descarga de mercadorias, estacionamento e circulação de

pedestres e carros. Simultaneamente, espaços alternativos foram

buscados por lojistas e prestadores de serviço. Entre esses espaços

estão os eixos principais de ligação bairro-centro, que se converteram

progressivamente em corredores comerciais. Esses corredores

comerciais muitas vezes eram constituídos por atividades comerciais

que se agrupavam por setor, aumentando seu poder de atração de

consumidores. Entretanto, também foram afetados por problemas

advindos da circulação simultânea de carros e pedestres. Alguns

arquitetos ligados ao Movimento Moderno criticaram duramente essa

disposição, entre os quais Le Corbusier que decretou o fim da “rua

corredor” e propôs um sistema viário que separasse pedestres e

automóveis e os diversos tipos de tráfego33.

O movimento de descentralização comercial foi favorecido

pelo processo simultâneo de expansão de subúrbios. Durante o século

XIX, a resistência de setores das elites ao ambiente das grandes

cidades se acentuou. Problemas sanitários, congestionamentos,

poluição e concentração de pobres, eram algumas das

características das grandes aglomerações, que levaram estes setores

33 LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 1992.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

32

a concebê-las como ambientes desfavoráveis a uma existência

saudável. A busca de uma vida em maior contato com a natureza –

recomendada por vários médicos e celebrada em romances –

conduziria a um progressivo deslocamento da residência das elites das

áreas centrais das cidades para os subúrbios. Possuir renda suficiente

para fugir à cidade era marca de êxito, como salienta Lewis Munford:

“Muito antes que a cidade industrial houvesse tomado forma, a idéia

de se deixarem para trás as complexidades da civilização tinha se

tornado atraente...” 34.

O desenvolvimento suburbano foi correlato à difusão de novas

técnicas de produção e comercialização de mercadorias, novos

aparatos comerciais, bem como novas maneiras de consumo e

apropriação dos espaços públicos. No século XX, as mudanças

avançaram rapidamente. Primeiro veio a geladeira, onde podia-se

estocar comida, reduzindo a necessidade de idas diárias às

tradicionais feiras e mercados públicos. Depois o automóvel, que

permitiu transportar grandes volumes de compras por longas

distâncias. Com isso, ampliavam-se as possibilidades de escolha de

mercadorias. Não era mais necessário fazer as compras em locais

próximos de casa. Podia-se ir em busca de alternativas em locais mais

distantes. Por outro lado, havia uma crescente população habitando

os subúrbios, nos quais se criava uma grande demanda por

equipamentos comerciais. Havia ainda havia todo um sistema de vias

que ligavam os subúrbios às cidades, ao longo dos quais, abriram-se

diversos estabelecimentos voltados à população motorizada e a

usuários de transportes coletivos35. A difusão do comércio suburbano

34 MUNFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e perspectivas. São Paulo, Martins Fontes, 1982, p. 615.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

33

foi correlata à transformação do setor nas áreas centrais. Além da

concorrência com o emergente comércio suburbano, os centros de

cidade sofreram com o acúmulo de carros em suas vias, as quais

muitas vezes não estavam preparadas para o grande fluxo de

automóveis. Os congestionamentos limitavam a comodidade do

transporte ponto a ponto atribuída ao automóvel. Os centros

persistiam como lugares de compras e lazer da população, mas

dificilmente podiam suportar a grande massa de automóveis em suas -

muitas vezes estreitas e tortuosas - vias.

No segundo pós-guerra, algumas atividades e empregos

começaram a se deslocar dos centros tradicionais de muitas cidades

americanas36. Os comerciantes não demoraram a sentir a tendência

descentralizante e a demanda por vagas de estacionamento junto a

seus estabelecimentos. Muitas lojas de departamento, magazines e

outros estabelecimentos comerciais começaram a marcha em

direção ao subúrbio. Para elas, como mostram Frieden e Sagalyn, o

subúrbio propiciava ainda preço da terra mais barato, legislação de

uso do solo mais branda e opção de acesso rápido através das novas

rodovias.

Na Europa, o fenômeno de suburbanização foi bem mais

brando e tardio que nos Estados Unidos. Segundo Bruna, em alguns

países europeus, como a Inglaterra, a descentralização se inseriu em

um processo planejado que visava organizar a expansão urbana face

à reconstrução de cidades destruídas pela guerra37. Tal processo se

36 “In the top forty metropolitan areas central cities lost an average of 26.000 manufacturing jobs between 1954 and 1963, and the central city share of manufacturing work slipped from two thirds in the early 1950s to less than half by 1963”. (FRIEDEN, Bernard & SAGALYN, Lyne. Op. Cit., p.122). 37 BRUNA, Gilda Collet. A problemática do dimensionamento de áreas comerciais para uso no planejamento territorial. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1972.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

34

diferenciara do ocorrido entre os americanos, onde a suburbanização

inseria-se em um contexto que envolvia, por um lado a demanda

habitacional de uma emergente classe média e por outro,

especuladores imobiliários ávidos por contemplar tais demandas.

A descentralização das atividades comerciais, foi correlata à

deterioração de antigos centros urbanos, principalmente nos Estados

Unidos. O declínio de centros tradicionais de muitas cidades

americanas revelou-se irreversível após o final da Segunda Guerra. Dal

Co associa esse declínio também à descentralização gerada pelos

esforços industrializantes do New Deal38. Nas décadas seguintes esta

tendência se acentuaria. Rybczynski assim descreve o centro de

Plattsburgh, sua terra natal, na década de 1980. “Não há lugares

vistosos ou elegantes, os letreiros das lojas parecem artesanais, as

vitrines não mudam, empoeiradas. Merkel´s é uma loja de

departamentos que descende de uma tabacaria inaugurada há mais

de um século por Isaac Merkel. A loja mal parece se aguentar em pé.

Uma lanchonete do outro lado da rua continua mudando de donos e

de cardápios, agora, se transformou em uma sorveteria, mas daqui a

um ano, quem sabe?”39. Neste movimento de descentralização,

muitas lojas de departamento localizadas em áreas centrais,

acabaram fechando suas portas e se transferindo para shopping

centers suburbanos40.

38 DAL CO et alii. La ciudad americana: De la Guerra civil al New Deal. Barcelona, Gustavo Gili, 1989. 39 RYBCZYNSKI, Witold. Vida nas cidades: expectativas urbanas no novo mundo. Rio de Janeiro, Record,1996. p.179. 40 “Retail executives with stores in the largest cities saw the results and begun to act, opening branches in the suburbs and cutting their downtown operation . wanamaker’s, a fixture on lower Broadway for fifty years , close its downtown store in the mid-1950 to go to the suburbs. Sears moved from New Haven into a suburban shopping center about the same time. By the early 1960s departament stores across the country were closing their doors downtown” .(FRIEDEN & SAGALYN. Op. Cit., p.121).

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

35

Na Europa, os centros de cidade tenderam a preservar seu

prestígio e a criação de centros periféricos tendeu a ser mais

controlada e regulada pelo Estado. Na Inglaterra, graças às ações do

Gretater London Council, desde 1969, a implantação de centros

comerciais periféricos ficou condicionada à aprovação por aquele

órgão, que vinculava a atividade varejista à política de planejamento

territorial. Estudos realizados por esse Conselho, concluíram que “a

ascenção do uso do automóvel na Grande Londres tornara os centros

localizados no “outer London” mais acessíveis, levando a um

desinteresse pelas áreas tradicionais, suscitando pressões para

modernização e renovação de alguns pontos focais de Londres”41. As

exigências impostas pelo Greater London Council dificultaram a

implantação de centros comerciais periféricos. Um exemplo nesse

sentido é o caso de um shopping center localizado no subúrbio

londrino de Brent Cross, que foi aberto em 1976, depois de quase dez

anos de discussões para a sua aprovação.

Na França, no segundo pós guerra, o impacto decorrente da

implantação de novos centros periféricos e da crescente motorização

da população, fez emergir a noção da necessidade de se planificar a

implantação de novos centros comerciais periféricos e de amenizar

seus impactos nos centros tradicionais. Vargas escreve que este

processo só conseguiu ser implementado na década de 1980, quando

conforme Johan Borchert “... a política do governo para o

desenvolvimento varejista em grande escala, enfatizava a

necessidade das autoridades locais serem criteriosas no fornecimento

de licenças para operações varejistas de grande porte. Estas

41 VARGAS, Heliana Comin. Op. Cit., p. 210.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

36

permissões tinham caráter seletivo devendo limitar-se apenas às

mercadorias não desejáveis no interior das áreas mais densas”42.

Apesar dessa relativa descentralização comercial, os centros das

grandes cidades européias preservam um dinamismo funcional,

favorecido, entre outras coisas, pela atividade do turismo.

Os supermercados foram uma das primeiras tipologias

comerciais decorrentes do modo de vida e da descentralização

advinda do processo de suburbanização americanos. O modelo de

armazéns do tipo “self-service” que caracterizaram os supermercados,

surgiu antes do uso disseminado do carro particular e emergiu em

áreas centrais de cidade. Entretanto, tal modelo teve grande difusão

junto aos subúrbios. Trata-se de um modelo essencialmente suburbano,

pois necessita de grandes espaços, tanto para alojar todo o programa

em um só pavimento, quanto para acomodar os automóveis da

clientela motorizada. No centro, este modelo encontrou dificuldades

na terra cara e escassa.

No início do século XX, três fatores foram preponderantes para o

surgimento dos supermercados: as novas técnicas de comercialização

- desenvolvidas a partir das lojas de departamento e ampliadas nos

supermercados; a demanda crescente da população suburbana por

locais de compra facilmente acessíveis aos carros; e a crescente

industrialização – criando novos produtos e substituindo hábitos.

As técnicas de comercialização empregadas pelos

supermercados surgiram do aprimoramento das utilizadas pelas lojas

42 BORCHERT, Johan G. Planning for retail changing in the Netherlands. Built environment, v. 14, n.1, 22-37, 1988. Citado por: VARGAS, Heliana Comin. Op. Cit., p. 300.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

37

de departamento, como preço pré-estabelecido, espaços de compra

limpos, bem iluminados e ordenados. Também surgiram novidades,

como o método de compras “self-service”, que reduzia custos

operacionais, propiciava a venda de mercadorias a um custo menor e

favorecia a venda de bens duráveis e não duráveis numa quantidade

sem precedentes.

Os supermercados adotaram uma tipologia que privilegiava o

isolamento em relação ao exterior, aos quais se ligavam, geralmente

por minúsculas portas de entrada. Fidela Frutos e Jaume Valor incluem

essa tipologia entre as que definem como “containers”, construções

amplas e dotadas de grande autonomia em relação ao exterior,

muitas vezes configuradas como “caixas”43. Nos seus interiores uma

paisagem autônoma emerge com espaços geralmente climatizados e

uso de iluminação artificial. Nesse ambiente, a atenção do consumidor

estaria submetida a técnicas de comercialização votadas para deter

o consumidor e estimular o consumo. Tais técnicas envolvem desde a

localização de artigos essenciais em locais distanciados - obrigando o

consumidor a circular pela loja - até artifícios psicológicos, como a

adoção de determinadas cores e números nas etiquetas de preço.

Como observam Fidela Frutos e Jaume Valor: “En la definición de los

estímulos que recibe el visitante hay pocos aspectos casuales. Se sabe

que el crepúsculo o una tormenta precipitan la salida de los

compradores, por ello, la luz artificial, por ejemplo, está pensada para

compensar las variaciones de la luz natural manteniendo nun nivel

constante. (...) Al mismo tiempo, la entrada obligada por lo extremo

derecho del patio de ventas y la distribuición de las estranerías están

pensadas para forzar un recorrido hacia la izquierda que obliga a

43 FRUTOS, Fidela & VALOR, Jaume. Contenedores. In: Revista Quaderns D´arquitecture y urbanisme, n. 214, Barcelona, 1995, p. 157.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

38

recorrer la totalidad del estabelecimiento. (...)En el campo visual, las

etiquetas escritas a mano dan la sensación de más barato que las

impresas y aumentan las ventas. Lo mismo sucede com las cifras

acabadas en cinco o siete y com el uso de determinadas colores (azul

celeste y rosa en higiene corporal y confitería, rojo y amarillo en

novedades)” 44.

Os supermercados também primam pela liberdade que

oferecem aos consumidores, que podem escolher livremente suas

mercadorias, sem a interferência de vendedores. Essa fantasia do

consumo sem restrições surge em fábula de Ítalo Calvino, onde o

protagonista passa uma tarde de domingo com a família dentro de

um supermercado, enchendo carrinhos de compras para em seguida

abandoná-las, uma vez que não dispõem de dinheiro45. Os

supermercados também se adequam às necessidades de uma

crescente população motorizada, que necessita de espaços de

compra rapidamente acessíveis aos carros. E essa comodidade é

ampliada devido ao amplo número de produtos à disposição do

cliente. A cada ano, novos produtos são introduzidas pela indústria e

os supermercados passaram a ser um local privilegiado para comprá-

los numa atmosfera de conforto.

Nos EUA, o supermercado Piggly Wiggly, que foi inaugurado em

Menphis em 1916, integrou a primeira rede de armazéns “self service”,

prestando-se de modelo para outros supermercados46. Entretanto, era

localizado numa área central, o que o diferenciava dos

supermercados fundados posteriormente em áreas suburbanas como

44 Id., p. 159. 45 CALVINO, Ítalo. Marcovaldo ou as estações na cidade. São Paulo, Cia das Letras, 1994. 46 RYBCZYNSKI, Witold. Op. Cit., p. 159.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

39

o King Kullen, que abriu suas portas em Queens em 1930 e possuía

vasta área de estacionamento.

Com o sucesso alcançado,

os supermercados foram

ampliando seu rol de produtos.

Incluíram os eletrodomésticos, as

peças de vestuário, os utensílios

domésticos, entre outras coisas.

Nos EUA, por volta de 1940, muitos

supermercados já haviam

diversificado bastante as

mercadorias vendidas,

constituindo-se em

hipermercados, que começavam

a competir com as lojas de

departamento47. Na Europa, o

primeiro hipermercado foi aberto

na Bélgica, em 1961, e foi seguido

pelo Carrefour, inaugurado na

França, em 1963, e pelo

Westbridgeford na Inglaterra, em

196448.

Muitos supermercados e lojas de departamento haveriam de ser

absorvidos por estruturas comerciais maiores – os shopping centers – as

quais também recuperaram alguns de seus componentes espaciais.

47 PEGLER, Martin M. (org.) Market, Supermarket & Hypermarket Design. New York, Retail Reporting Corporation, 1990, p.106. 48 JEFFERS, James B. Prospective commerciale en Léurope 1970-1980. Urbanisme, v. 108-109, p.84-89, 1988.

14. Vista interna do supermercado Luky Stores, na Califórnia, instalado no início da década de 1950. Fonte: Hierl, 1968.

15. Vista externa de um supermercado localizado em Zurich, Suíça. Também no início da década de 1950. Fonte: Hierl, 1968.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

40

Os supermercados e hipermercados integraram-se nestas estruturas

comerciais maiores, convertendo-se muitas vezes em suas “âncoras”49.

Nos shopping centers, algumas lojas de grande porte –

supermercados, lojas de departamento e magazines – vão conviver

com lojas e serviços mais especializados, com as quais estabelecem

uma relação de complementaridade ou concorrência limitada.

De acordo com Richard Nelson, o shopping center é um

estabelecimento típico do segundo pós guerra, caracterizado por um

edifício ou um conjunto bem coordenado de edifícios sob um único

dono ou controlador, contendo variado número de lojas, de forma

que se maximize o efeito atrativo do empreendimento como um todo.

Possui, na maioria das vezes, locação suburbana, fácil acesso –

normalmente são implantados junto aos eixos viários - e grande

número de vagas de estacionamento50.

Embora seja considerado um aparato típico das cidades

americanas do segundo pós guerra, o surgimento dos shopping

centers se confunde com a própria marcha em direção aos subúrbios,

iniciada ainda no século XIX. Em Pullman, um subúrbio de Chicago

edificado pela Pullman Palace Car Company em 1886, foi construído o

que pode ser considerado o precursor dos shopping centes. The

Arcade, como foi chamado, era constituído por diversas lojas,

ancoradas por equipamentos como teatro, livraria, sala de reuniões e

49 A palavra âncora é utilizada entre pesquisadores, planejadores e administradores de shopping centers para designar lojas de grande poder de atração, as quais são elementos centrais na composição dos espaços dos shopping centers. Normalmente, em um shopping center, o papel da loja âncora é desempenhado pelas lojas de departamento e hipermercados. Todavia, na década de 1990, emergiram outros tipos de âncoras: os equipamentos voltados ao lazer, entretenimento e alimentação. 50 NELSON, Richard L. Op. Cit., p.174.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

41

bancos, reunidos sob o mesmo edifício51. A diferença básica entre The

Arcade e seus sucessores é a ausência das enormes áreas de

estacionamento, características dos empreendimentos da “era

automobilística”.

Os primeiros shopping

centers - como passaram a ser

chamados no final da década

de 1940 - , tentavam incorporar

aspectos das ruas tradicionais

de comércio. Este é o caso de

Northgate, um shopping

construído nos arredores de

Seattle. Seus corredores de

compra eram descobertos,

como numa rua tradicional. Era

facilmente acessível e possuía

quatro mil vagas de

estacionamento. Da mesma

época, podem ser citados

também o Mashpee

Commons, em Mashpee,

Massachusetts, e o Heights

Plaza Shopping center em

Pitsburgh, Pennsylvania, ambos

com a mesma tipologia do

Northgate.

51 LILLIBRIDGE, Robert M. Pullman: Town development in the era of eclecticism. In: Journal of the society of architectural historians. v12, n3, 1953, p. 18.

16. Esquema de implantação de Northland: “mall” descoberto. Fonte: Hierl, 1968.

17. Vista do “mall” de Northland. Fonte: Hierl, 1968.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

42

Estes primeiros shopping centers procuravam imitar os centros

tradicionais de cidade, dispondo ruas descobertas como as dos

centros e vitrines abertas para essas ruas. Dispunham ainda, bancos,

jardins e fontes, como nas praças tradicionais. Como observaram

Baker e Funaro, um dos

fatores que levou a esse

modelo, pode ser visto na

desconfiança dos comerciantes

em relação à abertura de suas

vitrines voltadas para ambientes

fechados52. Todavia, a diferença

entre esses shopping centers

pioneiros e os centros

tradicionais - além da

diversidade de mercadorias e

serviços, que continuava sendo

muito maior nestes últimos –

estava no fato das ruas de

compra dos shopping centers

serem espaços reservados

somente ao pedestre.

Neste primeiro momento começou a se delinear a divisão dos

shopping centers em classes, de acordo com a localização e o poder

de atração do empreendimento. Uma das classificações possíveis, os

divide em três categorias: centros de vizinhança, centros comunitários

e centros regionais, conforme seu porte e área de influência. De

52 BAKER, Geoffrey & FUNARO. Shopping centers: design and operation. New York, Reinhold Publish Corporation, 1963, p. 219

18. Masshpee Commons: exemplo de shopping

center com “mal” descoberto.

Fonte: Rathbun: 1990.

19. Heights Plaza, outro exemplo de shopping

center com “mal” aberto.

Fonte: Rathbun: 1990.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

43

acordo com esse tipo de hierarquia funcional, era fixada a área e o

“mix” do empreendimento. Podiam ter 15 ha., no caso dos grandes

shopping centers regionais, ou entre 4 a 10 ha., no caso dos shoppings

de centro de bairros ou comunitários. Nos shopping centers criados no

período de 1940 a 1950, o “mix” era composto quase sempre por uma

única loja de departamento de pequeno porte, além de um

supermercado e pequenas lojas de artigos variados. Os

estacionamentos geralmente possuíam entre 1.000 e 3.000 vagas no

caso dos centros comunitários e até 10.000 no caso dos regionais53.

Apesar de serem implantados em locais de fácil acesso, tais centros

comerciais não tinham ainda adotado a prática de realizar estudos de

mercado que norteassem essa implantação.

Na década de 1950, houve significativo avanço no número de

shoppings centers instalados nos Estados Unidos, que saltou de 100 no

início da década, para 3700 dez anos depois54. Além da ampliação no

número de empreendimentos, os shoppings se tornavam cada vez

maiores. Possuíam, em média, duas grandes lojas de departamento e

imensos estacionamentos. Normalmente, o acesso até eles era feito

por auto-estradas55.

Em 1957, foi inaugurado o Shopping Center Southdale, em um

subúrbio de Minneapolis. Neste shopping center, Victor Gruen, autor

do projeto, optou por um modelo de shopping totalmente fechado e

climatizado artificialmente. O conforto propiciado pela possibilidade

de um espaço protegido das intempéries, se tornaria, dali por diante,

53 A análise da evolução dos shoppings centers nos EUA, foi baseada em BRUNA, Gilda Collet. Setor comercial da grande São Paulo. São Paulo, FAU-USP, 1975. 54 GRUEN, Victor and SMITH, Larry. Shopping Towns USA: The planning of shopping centers. New York, Reinhold, 1960, p. 123. 55 BRUNA, Gilda Collet. Op. Cit.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

44

um dos trunfos principais destes equipamentos. Para Rybczynski, ” Os

shoppings fechados são agradáveis em qualquer lugar onde o clima

seja de verões quentes e úmidos e invernos rigorosos, ou onde chova

muito, daí os shoppings terem surgido tanto no frio Meio-Oeste e

Nordeste quanto no Sul e Sudoeste, no quente sul da Califórnia e no

chuvoso Nordeste – ou seja, em toda parte”56. Southdale se tornou um

modelo para os shopping centers edificados posteriormente.

Entre as décadas de 1960 a 1970, alguns shopping centers foram

classificados, como “centros periféricos regionais”. Tais centros

definem-se pelo grande poder de atração que exercem. Podiam

reunir prestadores de serviços como agências de bancos, imobiliárias e

consultórios médicos. Muitas vezes, incluíam um hipermercado. Eram

de grandes dimensões e dispunham de reservas de áreas para futuras

expansões. Suas lojas de departamento geralmente ocupavam em

média 50% de sua área total. Costumavam possuir estacionamentos

em diferentes níveis com circulação vertical para pedestre. Sua

localização era baseada em acurada análise de mercado, zonas de

atração, possibilidades de concorrência e existência de infra-estrutura.

Nessa época, se difunde também a prática de funcionamento

comercial durante as primeiras horas da noite 57.

A partir da década de 1980, os shoppings norte-americanos

ampliaram progressivamente seu tamanho. Ribczynski observa que

enquanto os shoppings das décadas de 1960 e 1970 tinham em média

150 mil metros quadrados, entre 1980 e 1990 eles extrapolaram todas

as previsões, chegando, como no caso do shopping center West

56 RYBCZYNSKI, Witold. Op. Cit., p. 188. 57 BRUNA, Gilda Collet. Op. Cit.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

45

Edmonton . localizado em Alberta, no Canadá, a 1,5 milhão de metros

quadrados58.

Nesse período, as lojas de departamento continuaram

funcionando como “âncoras” de shopping centers, mas cederam

gradativamente espaço a outros tipos de “âncoras”, como

prestadores de serviços e aparatos de lazer e entretenimento, entre os

quais, academias de ginástica, escolas, bancos e centros médicos.

A concorrência entre os shoppings se acirrou após a década de

1980. Se anteriormente, para a implantação de um shopping center se

levava em conta a proximidade de outros shoppings e as

possibilidades de concorrência futura, nos anos 80 tais fatores

passaram a ser secundários. A localização estratégica cede lugar à

estratégia dos negócios59. Os shopping centers passam a se

especializar por setor e a oferecer aos consumidores, além de um

número grande produtos, uma grande variedade de serviços.

Com relação à forma, adotam forte apelo visual, sendo

ricamente ornamentados interna e às vezes, em casos mais recentes,

também externamente. Muitas vezes, se distribuem em vários níveis,

acessíveis por uma circulação vertical marcada por escadas rolantes

e elevadores panorâmicos. Utilizam intensivamente iluminação zenital,

frequentemente por meio de grandes cúpulas envidraçadas.

Koolhaas, referindo-se a Atlanta interpreta esta recriação do atrium

como uma invenção pós-moderna60. Entretanto, em galerias do século

58 RYBCZYNSKI, Witold. Op. Cit., p. 188. 59 Sobre o assunto ver: VARGAS, Heliana Comin. Comercio: localização estratégica ou estratégia da localização. Tese de doutorado. São Paulo, FAU-USP, 1992. 60 KOOLHAAS, Rem. Atlanta. in: KOOLHAAS, Rem & MAU, Bruce. S,M,L,XL, Small, Medium, Large, Extra-Large. New York, Monacelli Press, 1995. pp: 1239-1264.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

46

XIX, como a galeria Victório Emanuelle em Milão, o atrium foi

amplamente utilizado. Os shoppings da década de 1990 se apropriam

de marcos visuais urbanos como fontes, chafarizes, bancos de praça e

vendedores de pipoca. A relação com o entorno, entretanto,

continuou limitada nos anos 90, embora os “containers” definidos por

cegas empenas venham a ceder lugar, em muitos projetos, a peles de

vidro. Nestes casos, a transparência visual, está longe de significar uma

fluidez entre interior e exterior.

Nesta década se intensificaram as reformas e ampliações nos

shopping centers americanos que haviam se implantado nas décadas

anteriores. Este é o caso do South Valley em Virginia, do Montgmery

Mall, em Alabama e do Miller Hill Mall em Indiana, entre muitos outros.

Difundiram-

se também os shopping centers

voltados às classes sociais mais baixas

como o Arsenal Shopping Center, em

Boston.

Uma outra tendência observada

à partir da década de 1980, foi a

implantação de shopping centers nos

centros de cidades e em áreas

urbanas previamente adensadas,

normalmente vinculados a projetos de

revitalização daquelas áreas. Este é o

caso do Rivercenter, localizado no

centro de San Antonio, do New

20. Praça central do Miller Hill Mall,

antes e depois da reforma de 1988. Fonte: Rathbun,

1990.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

47

Orleans Centre, em New Orleans e o

Arcade Shopps em Pitsburgh.

Na Europa, os shopping centers tenderam a se proliferar nos

centros de cidade, principalmente devido às restrições impostas por

países como a França e a Inglaterra à implantação de centros

comerciais periféricos. Ao contrário do ocorrido nos EUA, onde na

maioria dos casos, a relação com o meio urbano é desprezada pelos

empreendedores, nos centros comerciais implantados em países

europeus, houve, com maior frequência, uma

preocupação com a inserção urbana

destes equipamentos. Um exemplo

desta preocupação foi a execução

do Forum de Les Halles, um complexo

comercial erguido no início da

década de 1980, no local onde antes

existira o antigo Mercado Municipal

de Paris. Sua implantação, revela o

extremo cuidado com seu denso

entorno. Ao contrário dos típicos

caixotes norte-americanos, o que se

22. À esquerda, Rivercenter:

implantação em meio a área previamente

adensada. Fonte: Rathbun,

1990.

. À direita, Arcade Shopps, localizado no centro de Pittsburgh.

Fonte: Rathbun, 1990.

23. Forum de Les Halles: preocupação com a inserção urbana. Fonte: Ferré, 1993.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

48

vê no local é uma praça, a partir da

qual se integra o edifício. As cotas de

nível utilizadas seguem quase sempre

abaixo do nível da rua, liberando a

vista da paisagem urbana. Outro

exemplo neste sentido é o shopping

center The Glades em Bromley, na

Inglaterra, cujo gabarito e a tipologia

arquitetônica empreendida se

integram ao entorno, constituído por

edifícios de tijolo à vista. Seu “mall”

de compras se integra a uma praça

previamente existente.

Uma outra tendência observada nos shopping centers europeus

é a busca na integração dos espaços de compra com estações de

tranportes coletivos. Um exemplo nesse sentido é o Euralille, em Lille, na

França, projetado pelo arquiteto Jean Nouvel. Seu edifício faz

conexão com duas importantes estações de transportes coletivos: a

Gare SNCF Lile-Flandres e a Gare TGV, Lile Europe. Seu programa inclui

além de equipamentos comerciais, edifícios de escritório, hotel e um

edifício do World Trade Center. Outro exemplo neste sentido, é o

Victoria Island, um centro comercial implantado dentro da estação

oitocentista Victoria Station, no setor oeste de Londres.

A proliferação de shopping

centers por várias partes do mundo

culminou, na metade década de

1990, com a discussão sobre a

25. Euralille: projeto de Jean Nouvel.

Fonte: Muto, 1994.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

49

artificialidade dos interiores destes

equipamentos e a repetição das

mesmas formas e padrões de

acabamento que contribuíam, de

uma certa forma, para o

esgotamento do modelo até então

empregado.

O jornal Financial Times, vinculou o declínio de vários shopping centers

norte-americanos ao “cansaço” do público em relação aos ambientes

artificiais e à mesmice dos shopping centers naquele país61. Alguns

críticos como Michael Sorkin, alertavam para a artificialidade do modo

de vida que consagrava os shopping centers e o subúrbio62. A resposta

à essas críticas e ao que parecia indicar uma saturação do modelo de

shopping centers, surgiu em alguns projetos recentes de shopping

centers, os quais têm buscado novos modelos espaciais.

61 GRIFFITH, Victoria. Americanos abandonam Shoppings. Gazeta Mercantil, 3/11/1999, p. 2. 62 SORKIN, Michael. Variations on a park theme. The american city and the public space. New York, Noonday Press, 1992.

Victoria Island: centro de compras implantado no interior de uma estação de

trem em Londres. Fonte: Muto, 1994.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

50

Este é o caso do britânico Bluwater Park, um shopping center

construído no final da década de 1990 junto a Londres, reunindo 320

lojas, creche com capacidade para 200 crianças, restaurantes, bares,

cinemas, capela, posto policial, jardins externos com lago e 13 mil

vagas de estacionamento. Quando inaugurado era o maior shopping

center da Europa. Uma inovação do empreendimento é o empenho

em buscar superar a imagem do shopping como espaço fechado e

artificial, simulando luz e ventilação naturais, através de mecanismo

eletrônicos que filtram e transformam a luminosidade externa e de

ventiladores gigantes instalados no teto. No mesmo sentido, algumas

áreas são dotadas de grandes superfícies envidraçadas, pelas quais se

vislumbra árvores e lago. “Estes recursos são coerentes com a

crescente valorização do ambiente natural pelos consumidores. Os

limites desta nova relação com o exterior são restritos, mantendo-se o

esquema básico de lojas dispostas em “ruas” fechadas e climatizadas

artificialmente”63.

Embora os shoppings centers tenham adotado recursos

projetuais visando superar sua imagem de ambientes fechados e

artificiais, a negação do meio urbano persiste como uma das

características básicas destes equipamentos. “Atores sociais

indesejáveis como marreteiros, mendigos, trombadinhas, prostitutas,

travestis, gangs rebeldes, loucos e mesmo tipos exóticos são banidos

através de um rígido esquema de segurança” 64. Neste movimento,

toda a complexidade do espaço público é desfeita, substituída por

um simulacro de cidade, inteiramente pensado para favorecer a

63 CORREIA, Telma de Barros. A intensificação do consumo e o ambiente urbano. A construção e o desmonte de modernos centros comerciais. São Carlos, EESC-USP, 2000. P.12. 64 FRÚGOLI, Heitor Jr. Os shopping de São Paulo e a trama do urbano: um olhar antropológico. In: PINTAUDI, S.M. & FRÚGOLI, HEITOR Jr. (org.). Shopping centers: espaço, cultura e modernidade nas cidades brasileiras. São Paulo, UNESP, 1992, p. 74.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

51

atividade das compras. Condições de conforto e segurança atuam no

sentido de aumentar tempo de permanência do comprador no

interior e, em conseqüência, as vendas. A inexorável passagem do

tempo é mascarada: o fechamento e a luz artificial evitam que se

perceba mudanças no tempo externo - uma tempestade ou o

anoitecer - que podem apressar o término das compras. No seu interior

o tempo parece parar: os relógios de parede são abolidos e a luz e

temperatura são constantes.

Os shopping centers são espaços solidários com a embriagues

das compras, pensada como terapia - fonte de prazer e realização

pessoal - e como esporte - corrida e disputa pelas ofertas e pela posse

de novidades exclusivas. “Félix Guatarri mostra como os shopping

centers são empreendimentos condicionados pela busca de

segurança e de fabricação de subjetividades. Um dos traços

essenciais dessa subjetividade consiste, segundo o autor, na

infantilização do usuário pela idéia de proteção contra todos os

perigos e ameaças que o ambiente sugere. Outro componente

sugerido por Guatarri é o sentimento de grande diversidade, produzido

pela profusão de luzes, ação e movimento e pela impressão de se

estar vivendo intensamente. Um terceiro elemento é localizado em um

sentimento de onipotência, associado à infantilização, pela ilusão de

que tudo ali encontra-se ao alcance do comprado”65. Longe de

configurar-se como espaços públicos, suas “ruas”e “praças” são

modelos de espaços privados coletivos, onde seguranças atentos

interferem ao menor sinal de comportamento “desviante”, desde o

uso de uma máquina fotográfica a uma pequena concentração de

adolescentes. Heitor Frúgoli acrescenta: “Chegamos portanto à 65 CORREIA, Telma de Barros. Op. Cit., p.12. 77 FRÚGOLI, Heitor Jr. Op. Cit., p. 77.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

52

interpretação de que simbolicamente, os shopping centers aspiram a

traduzir, num espaço fechado, a utopia que o capitalismo não realizou

para o conjunto da sociedade: uma cidade ideal, repleta apenas de

cidadãos consumidores, sem vestígio de pobreza e deterioração...”66.

Ribczynski argumenta que: “Os proprietários dos shoppings não

estavam muito interessados que grupos a favor ou contra o aborto

fizessem passeata em suas praças de alimentação, ou de ter seus

consumidores presenciando uma violenta discussão entre membros do

Ku Klux Klan e seus adversários (...) Por outro lado, se os grandes

shoppings queriam fazer parte da comunidade e atrair grande

parcela da população, era do interesse deles permitir a entrada do

maior número possível de pessoas, inclusive os diversos grupos de

comunidade “67.

Nos EUA, essa discussão está em pauta desde 1976, quando a

Suprema Corte decretou não haver direito de liberdade de expressão

nos shoppings, cedendo ao argumento dos proprietários de que

aqueles eram apenas espaços comerciais e, acima de tudo, privados.

Entretanto, nas décadas de 1980 e 1990, diversos tribunais começaram

a dar ganho de causa à associações como a União das Liberdades

Civis Americanas, que se opunham às restrições de uso das áreas

coletivas destes equipamentos. Cedendo parcialmente aos anseios

destes grupos, alguns shopping centers acabaram permitindo que

manifestações como panfletagens e campanhas políticas fossem

feitas em seus corredores, desde que não perturbassem a atividade

comercial. “À parte os aspectos legais, é pouco hábil da parte dos

investidores de shoppings argumentar que eles são apenas

67 RYBCZYNSKI, Witold. Op. Cit., p. 190.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

53

comerciantes. Eles são os construtores de novas cidades, e por isso

deveriam estar preparados para enfrentar o lado ruim – ou pelo

menos, desagradável – tanto quanto o bom” 68.

Entre as críticas feitas aos shopping centers, situam-se seus

impactos sobre os centros tradicionais das cidades. Com seu grande

poder de atração, os enormes shoppings centers periféricos, desviam

parte das atividades, dos usuários e dos investimentos das áreas

centrais, contribuindo para a deterioração destas. Esse efeito

devastador sobre os centros tradicionais, foi notado nos EUA entre as

décadas de 1960 e 1970, quando se iniciaram diversas tentativas de se

revitalizar tais áreas. As propostas normalmente se centraram na

implantação de calçadões, já que um dos problemas detectados

situava-se no automóvel, que roubava espaço ao pedestre e gerava

congestionamentos e acidentes. Nas críticas aos shopping centers,

“salienta-se seu papel na intensificação da dependência do homem

urbano em relação ao automóvel particular, com conseqüências

danosas à vida urbana em termos de poluição, de obstrução do

sistema viário e de acidentes. Enfatiza-se o aspecto segregador de seu

ambiente, do qual busca-se afastar os não consumidores através de

estratégias várias de intimidação, que incluem vigilância ostensiva aos

mal vestidos e desinteresse em ligar o equipamento a bairros populares

via transporte coletivo”69.

Diante destas críticas, pode-se estranhar o fato dos shoppings

terem se proliferado em todo o mundo. A força do modelo reside

basicamente no padrão de conforto que estabeleceu. Contrapondo-

68 Id. 69 CORREIA, Telma de Barros. Op. Cit., p.13.

C a p í t u l o 1 Shopping center: gênese e consolidação

54

se à noção do shopping como espaço que impõe restrições à

liberdade individual, Rybczinski defende a idéia de que “(...) o que

atrai as pessoas para o shopping é que eles são espaços públicos

onde a liberdade individual é respeitada. Em outras palavras, são

como eram as ruas antes que a indiferença da polícia e os

superzelosos defensores de direitos individuais permitissem que

qualquer comportamento, mesmo que anti-social, seja permitido. É isso

que os shoppings oferecem: um lugar (para a maioria das pessoas)

com um nível razoável de ordem ,com a garantia de que o

consumidor não será importunado por atos bizarros de

comportamento”70.

Número de shopping centers em alguns países do mundo em 2000.

PAÍS Número de Shopping centers

Estados Unidos 43.350

Brasil 200

Austrália 1.425

Canadá 4.520

França 674

Japão 2.480 Fontes: Estados Unidos e Canadá: International Council of Shopping Centers - www.icsc.org ; Brasil e Austrália: Abrasce (Associação Brasileira de Shopping Centers) – www.abrasce.com.br ; França: Conseil National des Centres Commerciaux – www.cncc.com ; Japão: Japan Council of Shopping Centers – www.jcsc.com .

Embora polêmicos, os shopping centers são um inquestionável

sucesso comercial. Firmaram-se como referências espaciais de muitas

cidades. Introduziram e assimilaram alterações nas formas de consumo

e de uso do tempo livre de camadas da população. Tal sucesso,

associa-se ao dinamismo desses equipamentos em constantes 70

RYBCZYNSKI, Witold. Op. Cit., p. 191.

Arquitetura do comércio varejista em Ribeirão Preto a emergência e expansão dos shopping centers

55

mudanças, seja nas estratégias de mercado, ou na constante

renovação de seus ambientes.