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INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS ÁLVARO FERREIRA DA SILVA Nota: Estes apontamentos são um instrumento de apoio à actividade lectiva na disciplina. Estão muito longe de constituir um texto acabado. Agradecem-se críticas e comentários.

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INTRODUÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS

ÁLVARO FERREIRA DA SILVA

Nota: Estes apontamentos são um instrumento de apoio à actividade lectiva na disciplina. Estão muito longe de constituir um texto acabado. Agradecem-se críticas e comentários.

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1. INTRODUÇÃO: A IDENTIDADE DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

O ideal de uma ciência social unificada e o positivismo de Auguste Comte Gostaria de tomar como ponto de partida desta aula e deste curso sobre as

ciências sociais a reivindicação por Auguste Comte nos anos 40 do século passado de uma ciência social unificada.

Teremos oportunidade de ver um pouco melhor numa das próximas aulas em que consistiu esta reivindicação e as características do positivismo (designação por que passou a ser conhecida a postura epistemológica de Comte), mas vejamos desde já alguns dos aspectos mais marcantes do pensamento de Auguste Comte.

Viveu entre 1798 e 1857. Auguste Comte foi aluno da École Polytechnique de Paris entre 1814 e 1816, tendo sido expulso por participar numa revolta estudantil. Seguidamente foi secretário do Conde de Saint-Simon (1760-1825), uma das figuras cimeiras da filosofia política na primeira metade do século XIX, procurando estabelecer uma síntese entre a necessidade de uma sociedade mais justa e os progressos da ciência e tecnologia. As suas ideias tiveram uma grande aceitação nos círculos políticos e intelectuais do continente europeu, nomeadamente entre as novas profissões do século, como os engenheiros.

Os trabalhos de Auguste Comte procuram responder à seguinte questão: como proceder a uma reorganização da ordem social que incorporasse os avanços científicos, tecnológicos e políticos operados simultaneamente pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa? Para esta tarefa era inadequada a postura filosófica ou teológica de abordagem da realidade social. Esta tinha de ser sujeita ao mesmo método de análise que as ciências naturais, tomando por base o método da que tinha um maior relevo na primeira metade do século XIX: a física. Assim, existiria simultaneamente uma única ciência social – que Comte apelidou de sociologia ou física social (ou moral) – e um único método científico, baseado no experimentalismo. Qual a regra para definir o que era ciência relativamente ao que não era? Teorias que não pudessem ser verificadas empiricamente não pertenciam ao domínio da ciência; eram consideradas metafísicas.

A teoria positivista de Auguste Comte, muitas vezes acusada de se basear num empirismo radical, foi no entanto muito importante e continua a influenciar a produção científica nas ciências sociais. Tomá-la como ponto de partida destas aulas permite salientar três aspectos essenciais. Em primeiro lugar, a importância da análise histórica do modo como se formaram a(s) ciência(s) do social. É isto que vai ser sublinhado ao longo de grande parte deste curso.

Em segundo lugar, este ponto de partida serve para destacar um momento histórico em que se pretende dotar o campo do social dum objecto e dum método, a exemplo do que tinha acontecido com as ciências naturais – a física, a química, a astronomia, a biologia, por ex. Reivindicava-se em meados do século passado o estatuto científico para a análise dos homens em sociedade, em nome duma postura utilitária, a exemplo dos propósitos utilitários que existiam relativamente a outras ciências. Este utilitarismo baseava-se na ambição de procurar criar uma organização social mais harmoniosa. O positivismo tem, pois, este papel fundamental de reivindicar a cientificidade do estudo da realidade social. Assim, uma primeira palavra-chave que pode surgir desta reivindicação assumida pelo positivismo é a da exigência de

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explicação dos fenómenos sociais no mesmo pé de igualdade e com a mesma postura metodológica exigida para os fenómenos naturais.

Repare-se como é importante esta posição. Defende uma concepção unitária de ciência, sujeita ao mesmo tipo de regras, que podem ser enunciadas da seguinte forma: uma teoria científica deve poder ser traduzível de maneira a que apenas contenha enunciados empíricos, isto é, enunciados que possam ser confrontados directamente com a observação, que possam ser validados pelo seu confronto com o real e que, por isso mesmo, possam ser falsificáveis. Assim, se eliminavam as causas ocultas – fruto do pensamento teológico ou metafísico. O estudioso do social não podia, por exemplo, fazer apelo à natureza humana como fonte de explicação das acções humanas ou das instituições sociais. Trata-se de um conceito metafísico, no sentido comtiano. A finalidade da ciência é explicar, e explicar em ciências sociais é começar por determinar as causas da acção humana recorrendo à sua observação empírica.

Todos os elementos que não podem ser testados através de métodos empíricos são retirados dos enunciados. É a função da chamada black box, termo que muitas vezes surge em modelos económicos e que tem uma dupla função: afastar postulados que não podem ser sujeitos a validação (o postulado da escolha racional em economia, por exemplo) ou manter constantes variáveis que não podem ser introduzidas num modelo.

Finalmente o positivismo de Auguste Comte influencia o contributo teórico-metodológico de variadas disciplinas no interior das ciências sociais: a sociologia de Durkheim, a antropologia funcionalista de Malinowski, o estruturalismo de Lévi-Strauss em antropologia, a psicologia social behaviourista, o positivismo de Friedman em economia.

Esta concepção unitária de ciência, baseada num método indutivo com marcada influência da metodologia experimental da física, na explicação baseada na procura de relações de causalidade para as acções humanas, não deixou de provocar críticas. Estas surgem associadas a uma grande querela que abalou o campo das ciências sociais no início do século actual e que se reacendeu na década de 80 em torno da chamada postura pós-moderna em termos epistemológicos. Esta discussão prende-se com a concepção de que existiria um único campo científico, com diferenças metodológicas derivadas das disciplinas estudadas, mas com um fundo metodológico comum, baseado na afirmação de que a procura de explicações, a procura de causas/leis deve ser realizada através da formulação de enunciados validáveis pela sua adequação ao real. A esta concepção contrapor-se-ia uma outra: enquanto as ciências da natureza procuravam a explicação e as causas de fenómenos, as ciências sociais buscariam a interpretação e o sentido dos comportamentos humanos. Nesta discussão discutia-se no fundo a natureza das ciências sociais. Nestas colocam-se frequentemente questões que não pertencem ao domínio da explicação, mas ao domínio da interpretação: a Revolução francesa foi positiva ou não? O modelo social europeu está em declínio? A pintura moderna traduz a morte da arte? É por isso que há temas recorrentes nas ciências sociais e que estas estão sistematicamente em construção, já que se colocam quer problemas de explicação, quer problemas de interpretação.

Em terceiro lugar, serve para chamar a atenção para a existência de uma única realidade social. É importante destacar este aspecto e tê-lo como omnipresente já que o trabalho disciplinar no interior das ciências sociais tende a destacar aspectos muito parcelares da realidade: vejam o que acontece com o estudo que fazem da economia na Faculdade, como etapa da vossa formação como economistas; o mesmo se pode se

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aplicar a qualquer outro campo das chamadas ciências sociais, numa das suas várias licenciaturas; o mesmo acontece em trabalhos de investigação especializados.

Há uma concepção persistente, mas errada, segundo a qual as ciências sociais estudariam realidades distintas, ou sectores distintos, compartimentados da realidade – as diferenças analíticas proviriam de diferenças entre objectos reais. Tal concepção é colocada frontalmente em causa pela aproximação que Comte tem do estudo da realidade social: uma abordagem unificada, sob a designação de sociologia (ou física social), que aqui não designa ainda a vertente disciplinar que hoje conhecemos.

Mais tarde, nos anos 20-30 Marcel Mauss salientou o mesmo sob o conceito de fenómeno social total. Com ele foram estabelecidos dois princípios:

a) Qualquer facto, quer ocorra em sociedades arcaicas, quer se situe em sociedades modernas, é sempre complexo e pluridimensional. Pode ser apreendido de ângulos distintos, mas que acentuam apenas algumas das suas dimensões.

b) Todo o comportamento remete para e só se torna compreensível dentro de uma totalidade. Isto é, recursos disponíveis, representações e instituições sociais intervêm nas mais elementares relações entre pessoas. Chama-se a esta atitude holismo e deve separar-se da que é designada por individualismo. Aqui se introduz uma separação que tem sido tão fértil em debates quanto a que separa explicação de interpretação. Para o holismo, as acções humanas só são compreensíveis quando integradas numa teia de relações que visam reconstituir a totalidade social. Quase que se pode considerar que o comportamento individual é incompreensível fora de referentes sociais, só assim ele se torna compreensível para o sociólogo, o antropólogo ou o historiador. Para o individualismo metodológico, apenas os comportamentos racionais são possíveis de ser compreendidos e explicados. A estrutura social é o resultado da acção e da interacção dos indivíduos. O objecto vê-se melhor «de baixo para cima», enquanto na perspectiva holista se via melhor «de cima para baixo».

Em síntese, partindo da ruptura positivista, procurou estabelecer-se uma espécie de mapa, de guia de viagem deste curso.

1) A importância da compreensão da história da formação das ciências sociais, visível pelo exemplo de Comte.

2) A unicidade da realidade social face à pluralidade das disciplinas que o estudam – postura com uma profunda história e que tem dado lugar a recorrentes movimentos de interdisciplinaridade.

3) A identificação das principais querelas e posturas metodológicas, a propósito do estudo científico em ciências sociais:

a) o estatuto científico das ciências sociais

b) a dicotomia holismo - individualismo

c) a dicotomia explicação/causa/lei - interpretação/sentido

d) a existência de juízos de valor no objecto de estudo das diferentes ciências sociais

O próximo passo será o de procurar estabelecer os diferentes marcos na criação da ciência social como um objecto de estudo.

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2. A FORMAÇÃO HISTÓRICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

As ciências sociais – quando consideradas como um campo distinto de estudo – não são anteriores ao século XIX. Porém, para conhecer a origem de algumas das suas ideias fundamentais, bem como de vários dos seus objectivos de investigação, é necessário recuar um pouco mais na história. Por outro lado, esta digressão pela pré-história das ciências sociais permite a compreensão das razões para o subdesenvolvimento deste campo de estudos, quando comparado com as ciências naturais.

As interrogações sobre a natureza do homem, do estado ou da ética pública, formuladas nas civilizações clássicas de Roma e Grécia, podem constituir um ponto de partida para o conhecimento da genealogia do estudo da realidade social. A herança da determinação grega de estudar todas as coisas com um espírito racional e desapaixonado está presente no modo como ainda hoje se propõe o estudo do homem em sociedade.

Contudo, não vamos começar nas civilizações clássicas a nossa digressão pela pré-história das ciências sociais. Após a queda do Império Romano existiu um hiato de vários séculos neste desiderato racionalista de investigação da realidade social. A redescoberta dos textos dos grandes filósofos e pensadores, gregos e romanos, está no âmago do Renascimento e da Idade da Razão na história moderna europeia. E é por aí que vamos começar. Esta panorâmica sobre a formação das ciências sociais como um campo de estudos iniciar-se-à precisamente com o triunfo do racionalismo no pensamento europeu.

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2.1. A herança da Idade Média e do Renascimento

A Baixa Idade Média (a partir dos séculos XII-XIII) constitui um momento de expansão do estudo científico do universo, ainda que marcado por concepções mágicas e fruto de objectivos quiméricos (pedra filosofal, a possibilidade de transformar os metais comuns em ouro, etc.). Ora, os mesmos motivos que ao longo da Baixa Idade Média levaram os homens a explorar a terra, a observar os astros ou a interrogar-se sobre a natureza da matéria, suscitaram igualmente um interesse pelo conhecimento das instituições sociais que os rodeavam: o Estado, a economia, a família, em suma, a natureza do próprio homem e dos seus actos em sociedade.

Para esta reflexão o contacto com os textos clássicos da Grécia antiga, nomeadamente com a obra de Aristóteles1, teve uma importância fulcral. Por um lado, vieram colocar em questão a relação entre fé e razão – como conciliar a teologia católica com a herança clássica. Por outro lado, esta reflexão e este contacto com os textos clássicos deu-se num momento em que por toda a Europa se formavam e desenvolviam as primeiras universidades, o que retirou esta reflexão e o debate que motivou dos quadros estreitos das instituições eclesiásticas.

A teologia medieval, nomeadamente a Summa Theologiae de S. Tomás de Aquino2, constitui um repositório das ideias sobre o homem e as instituições sociais que existiam na Idade Média. Procurou reconciliar numa síntese sob a égide teológica dos princípios do catolicismo um conjunto diversificado de influências. Pelo tipo de preocupações aí esboçadas encontramos já ideias e problemas que podem ser incorporadas no campo da ciência política ou da sociologia, da economia ou da história. Porém, esta ambição totalizante da teologia medieval, que procurava incorporar a análise e estudo da realidade social, acabou por ser responsável pelo estado de subdesenvolvimento em que permaneceram as ciências sociais, em comparação com o rumo seguido pela abordagem das ciências físicas.

Nestas últimas o seu estudo alcançou mais rapidamente um carácter científico, ao contrário do que se passou com as ciências sociais. Desde o século XIII, em que Roger Bacon introduziu o método experimental3, existiam pelo menos os rudimentos da ciência física, que eram largamente independentes da teologia medieval e da filosofia. Os historiadores da ciência não têm dificuldades em traçar a continuação desta tradição 1 Aristóteles (384-322 AC), foi um dos mais famosos filósofos gregos. O seu tratamento de aspectos relacionados com a ética, filosofia política e método científico influenciou duradouramente o pensamento europeu. 2 São Tomás de Aquino (1225-1274), publicou a sua maior obra entre 1265 e 1273. Viveu num momento crítico da história cultural europeia, quando a chegada da tradução latina dos textos aristotélicos colocou em debate a relação entre fé e razão. Coincidiu igualmente com o período de fundação das universidades europeias mais antigas, tendo S. Tomás sido professor da prestigiada Universidade de Paris a partir de 1256. São Tomás de Aquino procurou reconciliar numa síntese sob a égide teológica dos princípios do catolicismo um conjunto diversificado de influências, que vão desde a redescoberta de Aristóteles e de outros filósofos clássicos, à incorporação de elementos de pensadores islâmicos como Averróis e Avicena, passando naturalmente pela tradição teológica medieval, da qual um dos seus maiores expoentes tinha sido Santo Agostinho. Participa activamente nos principais debates filosóficos do seu tempo, nomeadamente o que opõe nominalistas a realistas. Referência bibliográfica: vol. 2 da História da Filosofia, dirigida por François Châtelet. 3 Roger Bacon (1214-1294), franciscano inglês que levou a cabo estudos e investigação experimental no domínio da alquimia, óptica e astronomia. Defendeu em Opus Majus a reforma dos estudos científicos, assumindo posições de tal forma contrárias à doutrina oficial da Igreja que foi considerado herético e a sua obra proibida.

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experimental pela Idade Média, mesmo que com um carácter primitivo e irregular, face aos padrões actuais.

Juntamente com as experiências que tornaram Roger Bacon famoso, também se observaram mudanças importantes na tecnologia ao longo do período medieval e, ainda com mais impacto, durante o Renascimento. Existiram esforços para elevar a produtividade agrícola; deu-se a utilização da pólvora para fins militares, com o consequente desenvolvimento das armas e do estudo da balística; o crescente comércio levou à utilização cada vez mais intensa da navegação marítima e a melhoramentos na náutica. Juntamente com o conjunto de «artes mecânicas», empregues ao longo da Idade Média e do Renascimento na arquitectura, engenharia, óptica e relojoaria, tudo isto incentivou uma compreensão pragmática e operacional de princípios de mecânica, física, astronomia e química4.

Os fundamentos empíricos da fisiologia e anatomia resultaram de estudos sobre o corpo humano realizados nas escolas medievais de medicina, mesmo com a oposição da Igreja contra as práticas de vivissecção e autópsia. Uma maior abertura foi possível, mas sob severas regulamentações destas práticas, só se podendo realizar em cadáveres de homens condenados. A esta tradição médica juntava-se ainda uma outra influência marcante e mais inesperada: a tradição de pintura naturalista por parte dos artistas do Renascimento. Nestes últimos, o seu interesse residia na tentativa de apurar a correcção dos movimentos e expressões, a busca pelo detalhe na pintura e na escultura. Tal levou a estudos cuidadosos sobre a anatomia humana5.

Em suma, no século XVI, no tempo de Copérnico6 e de Galileu7, existia já uma importante base científica nos domínios da astronomia, física, mecânica ou fisiologia, largamente empírica, mas que não estava isenta de implicações teóricas para a construção da ciência moderna.

4 Ian McNeil, An Encyclopaedia of the History of Technology. London: Routledge, 1990. 5 Um exemplo desta atitude é fornecido por Leonardo da Vinci (1452-1519). Numa época em que a abertura de um cadáver provocava horror e piedade simultaneamente, procurou segundo as suas palavras desmontar e estudar, peça por peça, esta máquina admirável. Primeiro no hospital de Santa Maria Novella, em Florença, perto da sua terra natal (Vinci), depois no hospital de Santo Spiritu, em Roma, Leonardo juntou o estudo minucioso dos ossos, músculos e órgãos do corpo humano, ao seu talento de desenhador. Tendo dissecado cerca de 30 cadáveres, de acordo com o seu relato, consegue reproduzir fielmente a localização de cada músculo ou osso. Por outro lado, ainda antes de William Harvey, formula os princípios da circulação sanguínea, baseado nestas observações. Cf. «Le corps humain est une machine», 1000 Ans de Science, IV, pp. 22-24. 6 Astrónomo polaco (1473-1543), que ficou conhecido pelo teoria astronómica heliocêntrica. 7 Físico e astrónomo italiano (1564-1642), que iniciou a revolução científica que depois ficou associada ao nome de Newton. Foi responsável pela utilização do telescópio na astronomia, pela observação lunar, com a descoberta das manchas e montanhas lunares, a observação dos quatro maiores satélites de Júpiter, e as fases de Vénus. Na física, descobriu as leis da direcção dos projécteis e da queda dos corpos. O processo que lhe foi movido pela Inquisição ligou-o tornou-o uma referência no debate entre teologia e ciência. Galileu defendia a liberdade de investigação e prevenia contra o uso das citações da Bíblia ou dos clássicos no debate científico. O conhecimento científico não devia ficar à mercê da sistemática comparação com a doutrina teológica.

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O evolução das ciências sociais foi muito diferente. A igreja, ao longo da Idade Média e mesmo durante o Renascimento e Reforma, estava muito mais atenta ao que escreviam os pensadores e académicos sobre o homem e a sua conduta em sociedade, do que sobre o estudo e as publicações no domínio das ciências físicas. Do ponto de vista eclesiástico era muito mais importante a existência de uma correspondência estrita entre o ensinamento das escrituras e da doutrina teológica, e os assuntos que afectavam uma visão sobre a natureza do homem, o seu espírito e as suas acções. A visão científica sobre o mundo físico podia mesmo pôr em causa flagrantemente a perspectiva teológica, embora por vezes tal implicasse algumas situações de conflito, como o julgamento de Galileu testemunha8. Mesmo quando alguma oposição eclesiástica existia, o desenvolvimento da balística ou da navegação, da medicina ou da física, tinha tamanhas implicações no bem-estar e no poderio do Estado, que não era rara a protecção dada por príncipes e monarcas a indivíduos heterodoxos. Pelo contrário, todos os assuntos e problemas que iriam formar as bases das ciências sociais em períodos posteriores estavam intimamente imbricados na teologia escolástica medieval, e não era fácil quebrar esta ligação.

O século XVII marca simultaneamente o triunfo do racionalismo; a diminuição do peso da teologia escolástica medieval; e o desenvolvimento da física moderna, razão porque foi cunhado o termo revolução científica para designar este período. Tal desenvolvimento científico deveu muito ao impulso dado simultaneamente pelo método experimental, utilizado desde a Idade Média, e pelos fundamentos utilitários dos problemas que preocupavam os cientistas contemporâneos.

No entanto, não foi responsável por uma mudança radical no estudo das ciências sociais. Duas novas influências impediram na formação das ciências sociais algo semelhante aos fundamentos pragmáticos e empíricos das ciências físicas.

A primeira foi a atracção pelos clássicos gregos durante o Renascimento, especialmente os filósofos Platão e Aristóteles. Uma grande parte do que se escrevia sobre o pensamento social ao longo dos séculos XV e XVI não era mais do que o comentário e a citação dos clássicos gregos.

A segunda, no século XVII, deve ser associada à poderosa influência do filósofo francês René Descartes9. O cartesianismo defendia que a compreensão do mundo, incluindo o estudo do homem e da sociedade, devia ser realizada a partir de um conjunto muito simples e reduzido de ideias sobre a realidade. A partir destas ideias simples, e através da aplicação de um método dedutivo semelhante à resolução matemática, passar-se-ia à dedução de ideias mais complexas e finalmente teorias sobre a realidade. Segundo Descartes, estas ideias simples faziam parte do domínio do senso

8 Em 1632 Galileu publicou um livro – Diálogo sobre os dois sistemas universais – em que contrapunha o sistema ptolemaico ao coperniciano, defendendo este último, o que era considerada uma posição herética. Levado a julgamento no tribunal da Inquisição em 1633, foi obrigado a abjurar a teoria coperniciana e condenado a prisão perpétua, mais tarde comutada em prisão domiciliária. O processo de Galileu foi recentemente reaberto e o físico e astrónomo seiscentista reabilitado em 1992. Cf. Finocchiaro, Maurice. The Galileo Affair: A Documentary History. Berkeley, Los Angeles and London: University of California Press, 1989. 9 Filósofo francês que viveu entre 1596 e1650, pode ser considerado como o fundador da moderna filosofia. Foi também um cientista e matemático, com trabalhos no domínio da astronomia, óptica e fisiologia. Cf. quanto à filosofia o que é referido na obra dirigida por Châtelet. Mais detalhadamente sobre Descartes veja-se John Cottingham, Descartes, Oxford, Basil Blackwell, 1986.

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comum. A reflexão sobre o social não tinha, pois, qualquer incentivo pela observação empírica, mantendo-se numa abordagem meramente dedutiva e presa da filosofia.

Foi imenso o impacto do cartesianismo nas reflexões sobre a sociedade, a política ou a moral durante o século e meio que se seguiu à publicação do Discurso sobre o Método, em 1637. O exemplo dos teóricos do direito natural, como Grotius ou Puffendorf, é ilustrativo da importância do método cartesiano na abordagem de temas que poderiam ser considerados como cabendo no âmbito das ciências sociais. Embora defendendo concepções radicalmente novas sobre o direito internacional10, as suas reflexões nascem de um esforço dedutivo, baseado em alguns princípios que foram buscar aos autores clássicos.

Qualquer destas duas grandes influências – a reverência pelos clássicos e o fascínio pelos processos geométrico-dedutivos preconizados por Descartes – devem ser vistas como influências decisivas retardando o desenvolvimento de uma ciência da sociedade comparável à ciência do mundo físico.

O que é ainda mais surpreendente é que nos séculos XVII e XVIII não faltavam elementos empíricos para o estabelecimento de um outro tipo de estudo sobre a realidade social. A emergência dos estados nacionais levou à criação de crescentes burocracias, preocupadas com a recolha de informação estatística para fins fiscais, militares, censitários ou comerciais. Estes dados poderiam ser empregues da mesma forma que os cientistas naturais utilizavam as suas observações. Os numerosos relatos de viagens publicados a partir do século XVI, os registos de exploradores, soldados e missionários que mantiveram contactos prolongados com outros povos e civilizações, constituíam uma enorme base de dados, também eles podendo ser utilizados no estudo do homem em sociedade11.

Porém, o peso dos textos dos filósofos clássicos e a abordagem racionalista e dedutiva do cartesianismo contribuíram para que estes materiais empíricos não fossem utilizados de forma sistemática, mas apenas com propósitos ilustrativos nos escritos filosóficos. A reflexão sobre o homem em sociedade continuava prisioneira da reflexão filosófica e não se impusera de forma autónoma.

10 Veja-se por exemplo a sua abordagem sobre a doutrina do mare liberum. 11 Neste último caso é sintomático o tratamento dado pela Coroa espanhola à discussão da conduta a ter perante os índios da América Latina subjugados pelos espanhóis. A conquista brutal dos territórios que hoje formam o Peru ou o México, a catástrofe demográfica que se seguiu, suscitou numerosas questões por parte dos juristas ou teólogos, que levaram o rei Carlos V a convocar um conselho de especialistas para analisar o modo como «as conquistas podiam ser conduzidas com toda a justiça e toda a tranquilidade de consciência» (16 de Abril de 1550). Até tal ter sido decidido, interromper-se-ia a expansão espanhola na América Latina. O tema da discussão levantava algumas das questões fundamentais na relação entre culturas distintas. De um lado, Frei Bartolomeu de Las Casa, bispo de Chiappas desde 1540, defendia a condição humana das populações autóctones da América Latina, preconizava o fim da violência, da escravatura forçada e defendia a sua conversão pacífica ao catolicismo. Do outro lado, Ginès de Sepúlveda, bispo de Córdova, que nunca tinha estado no Novo Mundo, defendia a justeza da política violenta de conquista, invocando precisamente a doutrina de Aristóteles (de que tinha traduzido as obras), de que os povos superiores devem submeter os que lhe são inferiores. Os Índios são desprovidos de civilização e são considerados subhumanos (homunculi). Logo, devem ser submetidos ao império espanhol, pela violência se recusarem. A discussão desenvolve-se em torno das categorias aristotélicas da humanidade (divisão entre civilizados e bárbaros, e entre estes existiriam quatro categorias, das quais apenas a dos povos incapazes de se autogovernarem poderia ser submetida à escravatura) e muito pouco com base numa reflexão sobre o conhecimento empírico. Cf. «Civilisés et sauvages: questions cruciales», 1000 Ans de Science, IV, pp. 16-19.

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Em suma, existiam limitações importantes à autonomização das ciências sociais como área disciplinar. Em primeiro lugar, a reflexão sobre temas das ciências sociais era realizada no âmbito da teologia, com tudo o que isso implicava de controlo sobre o conhecimento. Em segundo lugar, o triunfo do racionalismo no século XVII não representou uma mudança fundamental no estatuto do pensamento sobre a realidade social. Num momento em que as ciências naturais eram dominadas pelo método experimental escasseavam as referências à observação empírica nas reflexões no domínio do social. A reverência pelos clássicos (comentário e citação) e o primado do método dedutivo cartesiano eram os responsáveis por esta situação. A principal mudança no século XVII foi a autonomização das reflexões sobre a realidade social do quadro estreito da teologia. Só que neste caso à reflexão teológica juntou-se um outro tipo de reflexão como lugar privilegiado para abordar a realidade social: a filosófica. Porém, como campo de estudos autónomo as ciências sociais continuavam a não existir.

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2.2. A herança do Iluminismo

Apesar destas limitações foram dadas contribuições significativas para as ciências sociais ao longo dos séculos XVII e XVIII12.

A primeira e a mais importante foi o aparecimento de alguns autores que salientaram a possibilidade de poder existir uma ciência da sociedade. Provavelmente a referência mais interessante é a do Marquês de Condorcet, que promove a necessidade de constituição de uma tal ciência nas últimas décadas do século XVIII. No entanto, tais propostas assumiam uma forma pouco elaborada, não se concretizando na criação de um corpo teórico e de um método próprios. O ideal de formação de uma ciência que estudasse o homem em sociedade encontrava-se tão difundido no século das Luzes quanto o ideal de uma ciência física em séculos anteriores, mas nunca sendo concretizado.

A segunda contribuição deu-se com o crescente fascínio pela multiplicidade e variedade de experiências humanas ao longo do globo. Atitudes de isolamento face a outras culturas e civilizações, estados de espírito fundados no paroquialismo, principiaram a ser cada vez mais difíceis para a elite intelectual europeia, dada a quantidade de informação sobre os povos e culturas não-ocidentais, bem como o interesse pelo conhecimento de outras sociedades.

A terceira fonte de mudança ocorrida ao longo dos séculos XVII e XVIII foi a crescente tomada de consciência do carácter social ou cultural do comportamento humano em sociedade – isto é, o comportamento humano era fruto de convenções e da história, em vez de ter uma base biológica. Em suma, uma ciência da sociedade não era um mero apêndice da biologia. Era uma disciplina diversa, ou um conjunto de disciplinas, com um objecto de estudo distinto.

A estas devem ser ainda acrescentadas duas outras contribuições dos séculos XVII e XVIII, qualquer delas com uma importância e uma longevidade assinaláveis. A primeira era a ideia de estrutura, com base na noção de que o todo é mais importante –ou pelo menos diferente – que a soma das partes, e de que o conhecimento do todo ilumina o conhecimento das partes. Surgiu em primeiro lugar nos escritos de filósofos como Hobbes13, Locke14 e Rousseau15, relacionada com a estrutura política do Estado, e difundiu-se por meados do século 18 através dos escritos económicos dos fisiocratas16.

12 Para além dos textos já referidos, foram úteis na elaboração deste ponto Georges Gusdorf, L’avènement des sciences humaines au siècle des lumières (Paris, Payot, 1973); Richard Olson, The emergence of the social sciences, 1642-1792, N. York, Twayne Publishers, 1993; Christopher Fox, «Introduction: How to Prepare a Noble Savage: The Spectacle of Human Science», in C. Fox et al. (ed.), Inventing human science, Berkeley, Univ. of California Press, 1995 (texto da aula prática nº 2) 13 Filósofo, viveu entre 1588 e 1679, tendo sido responsável pela aplicação dos princípios do direito natural à reflexão sobre a organização da sociedade e do Estado. Defende a absoluta supremacia do estado em matéria civil e religiosa. 14 Filósofo, viveu de 1632 a 1704, tendo estado ligado ao poder político que sai da Gloriosa Revolução de 1688, que leva ao trono Guilherme de Orange. Foi o fundador da escola empiricista, criticando a existência de ideias inatas e salientando que o conhecimento humano só pode estabelecer-se com base na experiência directa. Os aspectos que mais perduraram referiram-se à sua filosofia política (Two treatises on government, 1690), condenando a teoria do direito divino e influenciando a Revolução Americana, ao salientar a importância do apoio popular como única condição para um governo poder ser considerado legítimo e a necessidade da tolerância política e religiosa ser assegurada. 15 Filósofo de origem suíça, mas que viveu grande parte da sua vida em França (1712-1778).

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A ideia de estrutura foi tomada de empréstimo das ciências física e biológica, associada no início às noções familiares nestas ciências de máquina ou de corpo. A metáfora do corpo humano como aproximação à ideia de estrutura é particularmente nítida em François Quesnay, com o seu Quadro Económico, que corresponde a um modelo sobre os fluxos de rendas e de despesas existentes numa economia entre os diferentes agentes económicos. A ideia de estrutura ou de sistema em Quesnay é uma transposição dos fluxos sanguíneos no corpo humano, estando a metáfora fisiológica amplamente difundida nos seus trabalhos, mais que não fosse pela influência da sua formação médica, tendo sido médico da corte de Luís XV. A ideia de estrutura foi fundamental para as concepções sobre a política, a economia e a sociedade que começaram a tomar forma nos séculos XVII e XVIII. Estas concepções sobre estrutura acabaram por ter uma influência que se prolongou até ao século actual.

A segunda ideia teórica com um grande impacto no estudo da sociedade foi a ideia de progresso17. Embora se possam traçar as suas raízes no pensamento grego, foi com os pensadores setecentistas que tomou forma uma concepção mais elaborada do desenvolvimento da sociedade. Antecipava as concepções evolucionistas do século XIX. Pensadores como Turgot18, Condorcet19 ou Rousseau consideravam o presente como fruto do passado, o resultado de uma longa linha de desenvolvimento prolongando-se no tempo. Esta linha de desenvolvimento não tinha sido o resultado de qualquer desígnio divino (não era, por isso, escatológica) ou fruto de factores casuais. Era, pelo contrário, o resultado de condições e causas intrínsecas à sociedade humana. Estas causas imanentes continuavam, porém, a ter um fundo metafísico. Faziam parte duma concepção metafísica e optimista nas qualidades intrínsecas do espírito humano.

O exemplo de Condorcet é particularmente elucidativo. Condorcet considera que a história humana é o resultado de uma luta incessante entre a razão e o preconceito, Os seus escritos sobre temas relacionados com as ciências sociais centram-se no desenvolvimento da teoria do contrato social, da teoria da natureza humana – primordialmente aberta, mas sujeita a um enquadramento no decurso do processo de socialização – e uma teoria do governo democrático. Defendeu que a natureza e a sociedade estavam sujeitas a uma contradição irreconciliável. 16 Nome por que eram conhecidos os economistas, influenciados por François Quesnay (1694-1774), muitas vezes é considerado o fundador da moderna economia política. É a eles que se deve célebre máxima laissez-faire, laissez passer, como sinónimo da crítica às regulamentações sobre o comércio e sobre a produção do mercantilismo. Desvalorizando a importância económica das actividades comerciais, consideravam que apenas a actividade agrícola era produtora de riqueza. Sobre Quesnay e os fisiocratas veja-se nomeadamente o que sobre eles escreve Marc Blaug na sua História do Pensamento Económico. 17 Sobre a ideia de progresso no século XVIII vejam-se nomeadamente Vasco de Magalhães-Vilhena, Progresso: história breve de uma ideia, Lisboa, 1979, e R. A. Nisbet, Historia de la idea de progreso, Barcelona, Gedisa, 1981. 18 Turgot (1727-1781), economista francês, ministro de Luís XVI, perfilhava os princípios fisiocratas e foi responsável por algumas tentativas de reforma do Estado francês no sentido de introduzir o liberalismo nas trocas comerciais internas e uma reforma fiscal. É autor de uma obra em que analisa as diferentes fases de evolução do progresso humano. 19 Marquês de Condorcet (1743-1794), filósofo francês e um matemático, foi um dos que mais contribuiu para a introdução da ideia de progresso como um instrumento de explicação da evolução das sociedades, costumes e instituições. A sua última obra, escrita em condições trágicas quando procurava escapar à perseguição do governo jacobino, intitulava-se Esquisse d’un Tableau Historique des Progrès de l’Esprit Humain. Nesta obra defende a possibilidade de aperfeiçoamento infinito do espírito humano, da organização social e política e da base tecnológica e científica da sociedade. A obra de T. Malthus (Essay on the history of population), foi dirigida contra este empenhado optimismo na capacidade de desenvolvimento da sociedade humana.

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simbolizado este sobretudo na importância e peso dos preconceitos religiosos (Esquisse d’un Tableau Historique des Progrès de l’Esprit Humain, 1795). A sua história da humanidade é eminentemente etapista, sendo cada época a superação das deficiências da época anterior. Por exemplo, a invenção da tipografia permite superar o controlo da Igreja sobre o saber e a sua difusão, o que tem um papel fundamental no primado da razão. A luta entre razão e preconceito não param e a superação de novos constrangimentos dão lugar à época seguinte. Porém, o elemento crucial do progresso para Condorcet é a noção de espírito humano, que está presente em todas as épocas e é perfectível. Ora, esta é uma noção tão metafísica quanto a de natureza humana em autores anteriores.

Considera-se por vezes, erradamente, que a ideia de desenvolvimento social foi o produto da influência das teorias biológicas da evolução. O sentido da influência é, no entanto, inverso. Muito antes que existisse qualquer teoria genética na biologia, já tinha surgido uma ideia muito clara de evolução social – por exemplo, uma instituição emergia como o resultado de uma instituição preexistente, processando-se simultaneamente um diferenciação de funções e estrutura relacionada com esta emergência.

Estas e outras ideias fundamentais estavam contidas sobretudo em escritos de autores, cuja função prioritária era a de atacar a ordem estabelecida na Europa ocidental. Incorporam-se, por isso, num pensamento que tinha a reforma social e institucional como o seu objectivo fundamental. Era também um pensamento sobre a sociedade impregnado de idealismo político e social – usando esta palavra no seu sentido mais amplo. Autores como Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu ou Adam Smith tinham um sentimento muito vivo da defesa e reivindicação de um ideal – estado ideal, economia ideal, sociedade civil ideal – tal como os escritores utópicos que os antecederam. Sem excepção, estes homens estavam comprometidos com visões de uma sociedade ideal e pretendiam transpor estas visões para a realidade. O seu princípio é que existia uma economia, uma organização social ou um regime político que eram regidos por princípios naturais. Estavam inscritos na ordem natural de funcionamento da sociedade, não sendo por isso fruto nem da história, nem das convenções. Esta era afinal a maior fraqueza da noção de progresso e dos princípios que orientavam a reflexão sobre o social ao longo dos séculos XVII e XVIII. Ahistórica, era também oposta a qualquer investigação empírica, fundamentando-se sobretudo no esforço dedutivo a partir de normas simples de bom governo e organização económica e social20.

Em conclusão, o que estas breves referências pretenderam estabelecer foi o carácter central e decisivo destas ideias para o desenvolvimento das ciências sociais nos dois séculos seguintes: os séculos XIX e XX. Quatro aspectos merecem especial relevo:

a) as noções de progresso e de estrutura;

b) a noção de que o comportamento humano não é ditado por leis biológicas, mas sociais e históricas;

c) a noção de que o comportamento humano não é uno, mas sujeito a diferenças regionais, culturais e étnicas, proporcionando algum esforço comparativo com base nos materiais etnográficos e descritivos existentes;

20 Provavelmente Montesquieu (1689-1755) e o seu Espírito das Leis representou a maior diferença relativamente a esta tradição. Ao analisar as diferentes formas de governo, dá uma particular relevância aos elementos de carácter histórico, sociológico ou mesmo geográfico que as explicam, recorrendo ao manancial de informação «etnográfica» então existente.

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d) o ideal de construir uma ciência que estudasse o homem em sociedade.

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2.3. O século XIX

O desenvolvimento das ciências sociais ao longo do século XIX, as suas ideias fundamentais, os temas e problemas que motivaram maior reflexão e investigação neste campo disciplinar, podem ser vistos como respostas ao enfraquecimento e desaparecimento do Antigo Regime na sociedade europeia, sob o impacto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa.

Foi enorme o impacto das duas revoluções no pensamento humano e nos valores sociais. As transformações políticas, económicas, sociais e culturais que se iniciaram em França e na Inglaterra no final do século XVIII difundiram-se pela Europa e pelas Américas ao longo do século XIX, e posteriormente para os restantes continentes durante o século XX. Os efeitos das duas revoluções – uma, eminentemente representativa e democrática nos objectivos de participação política; a outra, industrial e capitalista – foram os de destruir, ou pelo menos sacudir e minar, instituições que tinham permanecido durante séculos e com elas sistemas de autoridade, de status, de crença e de organização social.

Não espanta, por isso, o carácter eminentemente utilitário assumido pelas ciências sociais emergentes. Tanto quanto explicações, as ciências sociais que nascem com o século XIX buscam remédios para os novos problemas que se colocavam com o impacto das transformações políticas e económicas. O problema da ordem constitui-se assim como um tema fulcral que atravessa a problemática de diferentes ciências sociais. O fim do Antigo Regime, baseado como estava no parentesco, na terra, na religião, na comunidade local e na monarquia, exigiu uma reflexão sobre os temas relacionados com o status, a autoridade e a riqueza, anteriormente dados como adquiridos. Assim, o pensamento social do século XIX é um longa tentativa de estabelecer um novo sentido para conceitos fundamentais para a organização da sociedade moderna. Ao investigar o sentido destes conceitos formavam-se as diferentes ciências sociais21.

Porém, a reflexão sobre a sociedade permaneceria em moldes semelhantes aos existentes nos séculos anteriores se não existisse um forte impulso para a constituição de um novo método de análise. Deveria reivindicar o ideal de cientificidade na abordagem do social que tinha começado a ser construído para as ciências naturais a partir do século XVII. Só desta forma se poderia emancipar da filosofia social e política ou mesmo das abordagens teológicas, que tinham monopolizado a reflexão sobre o homem em sociedade durante o período anterior. Tal projecto seria facilitado se fosse possível «importar» a postura epistemológica de ciências como a física ou a biologia, com o consequente resultado de que tal posicionamento metodológico reverteria numa

21 Um livro que retrata o impacto da «grande transformação» na formação das ciências sociais é a obra de Anthony Giddens, Capitalism and Modern Social Theory (Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1972; trad. port. na Presença sob o título, Capitalismo e Moderna Teoria Social). Também Robert A. Nisbet, The Sociological Tradition, N. York, 1966. Esta relação entre o abalo sofrido pela sociedade europeia com as duas Revoluções serve para Giddens introduzir os três principais autores na moderna teoria social: Marx, Weber e Durkheim. Uma obra de carácter histórico, que apresenta o período e o seu impacto em diferentes campos, nomeadamente as ciências sociais, é o livro de Eric Hobsbawm, The Age of Revolution, 1789-1848, 1962 (trad. port. na Presença como A era das revoluções). Posteriormente, o resto do século XIX foi coberto por duas outras obras, The Age of Capital, 1848-1875 e The Age of Empire, 1875-1914, ambas com trad. port. na Presença, e em que Hobsbawm procura ligar a evolução da história mundial ao longo dos períodos, com referências ao desenvolvimento das ciências sociais.

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garantia de reconhecimento social da cientificidade da(s) disciplina(s) que corporizassem essa reflexão sobre o homem em sociedade.

Muitas das palavras que hoje fazem parte do vocabulário das ciências sociais foram cunhadas no século XIX ou viram o seu sentido transformado, o que revela uma percepção das mudanças por parte dos contemporâneos e o seu impacto no vocabulário social e científico: democracia, classe, classe média, industrial, ideologia, intelectual, racionalismo, humanitarismo, massas, proletariado, conservador, socialismo, burocracia, capitalismo, são alguns dos exemplos.

2.3.1. A projecção nas ciências sociais dos grandes temas oitocentistas22

É interessante salientar alguns dos temas suscitados pela «grande transformação» (Karl Polanyi) e o seu contributo para a formação da problemática das diferentes ciências sociais.

Em primeiro lugar, pode-se destacar o grande crescimento da população. Entre 1750 e 1850 a população europeia praticamente duplicou, impacto que foi sobretudo sentido em países como a Inglaterra ou os Países Baixos, mas que acabou por contaminar todas as regiões europeias. Foi um clérigo inglês, Thomas Malthus23 quem salientou o enorme significado para o bem-estar humano deste crescimento demográfico. Considerava que tinham terminado os travões tradicionais (mortalidade e restrição do casamento) ao crescimento populacional, o que colocava a humanidade perante novos desafios, relacionados com o carácter finito e com rendimentos decrescentes dos recursos alimentares. Nem todos os pensadores sociais oitocentistas partilharam a visão pessimista expressa por Malthus24. No entanto, o tema da adequação entre população e recursos passou a estar na ordem do dia da reflexão sobre o social.

Em segundo lugar, as condições de trabalho e o sistema fabril surgiam como um outro tema de destaque. Hoje é possível considerar que estas condições de trabalho eram mais favoráveis no século XIX do que em períodos anteriores, nomeadamente quando se considera o nível dos salários reais ou o tempo de trabalho. No entanto, para grande parte dos observadores oitocentistas essas condições de trabalho eram consideradas como piores do que em séculos precedentes. A migração para a cidade e o trabalho industrial teria retirado uma larga massa de população do ambiente protector formado pela aldeia, pela comunidade rural, pela paróquia, pelas corporações e pela família, com todos os efeitos de disrupção dos enquadramentos sociais tradicionais, dando origem a comportamentos anómicos25. Em 1887 o sociólogo Ferdinand Tönnies26 cunhou dois

22 Este ponto continua a seguir a obra de Harry Elmer Barnes e Howard Becker, Social Thought from Lore to Science. 23 Thomas Robert Malthus (1766-1834) foi um clérigo inglês que se tornou famoso como um dos primeiros autores escrevendo na área da economia da população. O seu An Essay on the Principle of Population foi publicado pela primeira vez em 1798, tendo diferentes formulações ao longo das três primeiras décadas do século XIX. 24 Ela está, no entanto, presente no que muitos consideram o fundador da economia clássica, o inglês David Ricardo, nomeadamente na sua teoria da renda. 25 Neste ponto este tema tocava o precedente, já que um dos comportamentos desviantes, relativamente a práticas tradicionais, seria o casamento mais precoce e a existência de um grande número de nascimentos fora do casamento. 26 Ferdinand Tönnies (1855-1936), sociólogo alemão e membro fundador da Associação de Sociologia Alemã. Ficou famoso pela sua distinção entre Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (associação). Tönnies lamentava a perda do sentido de comunidade e o crescente predomínio da concorrência e do individualismo nas sociedades urbanas modernas.

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conceitos que sublinhavam as oposições binárias entre sociedade tradicional e sociedade industrial: a comunidade e a sociedade. A primeira seria dominada pelos vínculos tradicionais, a afectividade e o espírito de grupo, apoia-se principalmente na família e nas solidariedades locais. A população seria sobretudo imóvel, sujeita a relações de mobilidade geográfica e social praticamente inexistentes. A aldeia e a pequena comunidade constituem o horizonte geográfico em que tem sentido falar da existência de um sentido de comunidade. A segunda, pelo contrário, assenta sobretudo no interesse individual, no cálculo e nas relações impessoais. Foi o desenvolvimento das cidades e de organizações (empresas, instituições) de larga escala que foram responsáveis por um processo de contínua divisão de trabalho, que gerou o surgimento de relações societárias.

A economia poderia ser a ciência social capaz de lidar com o impacto da transformação económica no bem estar social. No entanto, o ambiente que se respira nos economistas clássicos está longe de satisfazer tais ambições. A economia passou a ser considerada como the dismal science (a ciência sombria), devido ao intenso pessimismo que transmitiam os economistas contemporâneos (de Ricardo27 a Marx28) sobre a capacidade de melhoria das condições sociais dos assalariados.

O lançamento de inquéritos parlamentares sobre as condições de trabalho na indústria inglesa correspondeu ao surgimento dos primeiros dados empíricos sobre este tema e tiveram grande importância na reflexão sociológica e económica sobre as condições de vida na sociedade industrial.

O terceiro grande tema de reflexão dizia respeito à transformação da propriedade. Ganhava cada vez mais peso a propriedade industrial, relativamente à propriedade da terra. Mas este era apenas um dos aspectos da transformação em curso, já que as formas intangíveis de propriedade, como as acções, obrigações ou títulos assumiam uma importância cada vez maior na economia. Esta transformação do carácter da propriedade representou o domínio dos interesses financeiros e proporcionou uma concentração da riqueza cada vez maior. O tema da propriedade, das suas formas e relações com a política e a cultura deu origem a uma importante reflexão nas novas ciências sociais.

Em quarto lugar surgia a urbanização, caracterizada quer pelo rápido crescimento do número de cidades, quer pelo aumento da população residente em zonas urbanas. Em séculos anteriores a cidade tinha sido sistematicamente considerada como centro de civilização, de cultura e de liberdade de pensamento. Agora cada vez mais pensadores acentuavam outros aspectos das cidades: a atomização das relações humanas, a quebra dos laços familiares, a massificação, a anonimidade, a alienação e a existência de comportamentos desviantes. Entre as ciências sociais foi particularmente a sociologia que mais reflectiu sobre os problemas gerados pela urbanização. Surge uma dicotomia básica na análise sociológica entre um tipo mais orgânico de sociedade encontrado nas áreas rurais e a sociedade mais mecânica e individualista das cidades. Os

27 David Ricardo (1772-1823), economista inglês, autor de uma das obras mais emblemáticas da emergente economia política, Principles of Political Economy and Taxation (1817). As suas concepções sobre a formação da renda, a teoria clássica do comércio internacional e a teoria do valor baseado no trabalho, constituem os seus legados mais importantes para a história da economia. 28 Karl Marx (1818-1883) foi um dos pensadores mais influentes do século XIX em domínios tão diversos quanto a teoria política, a economia ou a filosofia. O seu contributo para as ciências sociais será apresentado mais adiante.

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sociólogos franceses Frédéric Le Play29 e Émile Durkheim30, os sociólogos alemães Ferdinand Tönnies, Georg Simmel31 e Max Weber32 ou o estatístico belga Adolphe Quetelet33, encontram-se entre os pioneiros da sociologia que colocaram este tema no centro das suas preocupações. Na economia o tema dos efeitos externos causados pela aglomeração de população e de actividades nas cidades ganhou pouco relevo até Alfred Marshall34, muito embora já estivesse presente na obra de Chadwick35 sobre as condições urbanas.

Em quinto lugar, temos o tema da tecnologia. Com a difusão da mecanização, primeiro nas fábricas e só mais tarde na agricultura, esta surgiu como uma fonte de transformação das relações entre homem e natureza e entre os homens. Para pensadores tão diversos quanto Thomas Carlyle36 e Karl Marx, a tecnologia surgia como uma fonte de desumanização e de alienação do operário. Alexis de Tocqueville37 declarou que a

29 Frédéric Le Play (1806-1882) era um engenheiro e homem político francês, procurou recolher um número abundante de dados sobre as condições de vida de operários e camponeses, para vários países europeus (Les Ouvriers européens, 1885). Através da descrição, mas também da quantificação de alguns comportamentos e variáveis (custo de vida, receitas familiares, variáveis demográficas), Le Play e os seus discípulos procuravam compreender os tipos de estruturas sociais e familiares associados a diferentes contextos económicos. 30 Émile Durkheim (1858-1917) reparte com Comte, Marx ou Weber o título de fundador da sociologia. Obras como As regras do método sociológico (1895) ou O suicídio (1897) constituem clássicos da sociologia e proporcionaram ocasiões para o desenvolvimentos da metodologia proposta por Durkheim para a nova ciência social, bem como a constituição de um corpo de conceitos teóricos, como os de anomia ou de consciência colectiva. A primeira cátedra de sociologia nas universidades francesas foi ocupada por Durkheim. 31 G. Simmel (1858-1918) foi um sociólogo e filósofo alemão, também com trabalhos no domínio da história ou da crítica de arte. Defensor de uma sociologia interaccionista, a sua obra continua a influenciar as ciências sociais contemporâneas. 32 Max Weber (1864-1920), sociólogo e economista alemão, outro dos pais fundadores das ciências sociais. Autor de uma vasta obra, distribuída por campos muito distintos, veremos adiante de forma mais pormenorizada o seu contributo para as ciências sociais. 33 Adolphe Quetelet (1796-1874) foi um matemático belga, que procurou aplicar o cálculo estatístico à análise da realidade social. Os princípios que defendeu na harmonização da recolha estatística influenciaram as decisões tomadas em vários congressos de padronização dos censos. 34 A. Marshall (1842-1924) procurou nos seus Principles of Economics (1890) estabelecer uma síntese entre a teoria económica clássica e as perspectivas modernas. Para as primeiras, a formação dos preços era determinada pela custo de produção, ao passo que perspectivas mais modernas faziam depender o preço da utilidade. Para Marshall o preço é determinado quer pelo custo de produção, quer pela utilidade, associada à procura. Marshall analisa igualmente os efeitos externos associados à aglomeração de actividades e de população. 35 Edwin Chadwick (1800-1890), político inglês, cujo nome se encontra ligado à promoção dos melhoramentos sanitários nas cidades inglesas oitocentistas. Enquanto legislador foi responsável pelas propostas de alteração à Poor Law (sistema de assistência social existente em Inglaterra desde o final da Idade Média) e pelo extenso relatório sobre a situação do saneamento básico nas cidades inglesas «Survey into the Sanitary Condition of the Labouring Classes in Great Britain» (1842), responsável pela mudança da opinião pública para uma política mais intervencionista no domínio sanitário. Sobre os grandes problemas com que se defrontavam as cidades oitocentistas veja-se Álvaro Ferreira da Silva, «Formas de regulação da cidade: a mão visível na expansão urbana», Penélope, 1994, 13, pp. 121-146. 36 Thomas Carlyle (1795-1881), historiador, sociólogo e homem de letras escocês, tem uma postura crítica perante as consequências sociais do desenvolvimento tecnológico e político. Crítico das reformas liberais e democráticas preconizadas pelo movimento cartista em Inglaterra. 37 Alexis de Tocqueville (1805-1859), aristocrata francês, autor de várias obras sobre a política e a sociedade suas contemporâneas, de que se destacam De la Démocratie (1835-1840) e

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tecnologia, e especialmente a especialização técnica do trabalho, era mais degradante para o espírito humano do que a tirania política.

Por último, surge o desenvolvimento da política de massas – isto é, o lento mas inexorável alargamento do eleitorado, através do qual um número cada vez maior de pessoas se tornou consciente do seu papel como participantes no processo político. Este foi um dos temas mais importantes do pensamento social, que surge pela primeira vez com clareza na obra de Tocqueville, De la démocracie (1835-1840), que tomava a política e as instituições da maior democracia do globo como o seu objecto. Tocqueville via a política de massas e o sufrágio universal como a maior ameaça à liberdade individual e à diversidade cultural. Tal concepção tradicionalista da vida e das instituições políticas tinha nas obras de Edmund Burke38 e dos autores franceses Joseph de Maistre e de Louis de Bonald39 o início de uma longa genealogia. Radicava no impacto da Revolução Francesa sobre os equilíbrios políticos tradicionais. Mais uma vez, se nota o impacto de uma reflexão de pendor conservador no surto de alguns dos temas que surgem como fulcrais para o surgimento das ciências sociais, nomeadamente a sociologia.

Estes eram os maiores temas no século XIX que surgiram como resultado das duas grandes revoluções. O seu impacto não se esgota nas ciências sociais. Estão também presentes na literatura e nos escritos filosóficos. Filósofos como Hegel (1770-1831), Coleridge (1772-1834) ou Emerson (1803-1882) foram influenciados na sua reflexão pelas consequências das duas revoluções. Da mesma forma, também romancistas como Balzac (1799-1850) e Dickens (1812-1870) sofreram a sua influência.

2.3.2. As novas ideologias

Estes temas constituíram igualmente um ponto de reflexão e de acção política e social de novas ideologias ao longo do século XIX. A forma como os homens reagiam ao impacto da civilização industrial e da democracia alinhava-os em três grandes famílias ideológicas: conservadores, liberais ou radicais. No seu conjunto, os liberais exaltavam o impacto positivo das duas grandes revoluções, permitindo a liberdade política e um nível de bem-estar nunca antes atingidos. A visão liberal da sociedade era assim marcadamente democrática, capitalista, industrial e individualista. Os conservadores, pelo contrário, preferiam à democracia e à industrialização os valores da tradição, da autoridade e da civilização rural que tinha sido posta em causa pelas duas revoluções. Foi uma visão que teve uma influência importante entre os cientistas sociais do século XIX, nas obras de Alexis de Tocqueville e, mais tarde, nos trabalhos de Frédéric Le Play e de Émile Durkheim. Os radicais aceitavam a democracia, mas apenas

L'Ancien Régime et la Révolution (1856). Tem uma postura liberal quanto à estrutura do poder político, mas defende o primado de instituições que não protagonizem uma igualdade e soberania universais. 38 Edmund Burke (1729-1797), político irlandês, célebre pela sua crítica às consequências sociais e políticas da Revolução Francesa (Reflections on the Revolution in France, 1790), contribui para o desenvolvimento das correntes tradicionalistas e conservadoras em ciência e sociologia políticas. 39 Joseph de Maistre (1753-1821) e de Louis de Bonald (1754-1840) foram mentores da campanha restauracionista da monarquia conservadora, após o fim do Império francês em 1815. Joseph de Maistre, apesar das suas posições políticas fortemente conservadoras, pode-se considerar como o precursor do método sociológico e influenciou pensadores como Auguste Comte (um liberal).

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se fosse extensiva a todas as áreas da sociedade e originasse a prazo o fim de qualquer forma de autoridade que não resultasse directamente da imposição popular. Por outro lado, punham em causa a organização económica e social fundada no capitalismo.

Aquilo que poderíamos considerar como uma «contaminação» da análise social pelas posturas ideológicas dos seus autores esteve desde o início presente no nascimento das ciências sociais. À luz de outros ramos do saber e da própria reflexão epistemológica no interior das ciências sociais esta «contaminação» foi considerada como o seu pecado original. Vai influenciar duradouramente o debate sobre o problema da objectividade em ciências sociais.

Por outro lado, uma reflexão tão impregnada pelas posturas ideológicas dos seus autores, e tão sensível ao impacto das duas revoluções, industrial e política, teve ainda uma outra influência marcante na formação das ciências sociais. Acentuava-se a novidade das transformações económicas, sociais e políticas observadas no século XIX, fruto das duas revoluções, fosse essa novidade considerada sob uma óptica pessimista ou optimista. Mas tendia-se a fazê-lo através de uma reconstrução lógica das características das sociedades do passado, como sendo meramente o inverso da sociedade industrial e liberal do século XIX. Assim, as diferentes ciências sociais viveram longamente em torno de uma reflexão baseada num conjunto de oposições dicotómicas: préindustrial-industrial, tradicional-moderno, comunidade-sociedade, status-classe, etc. Nas suas formas mais extremas, uma ciência social baseada neste jogo de dicotomias era tão ahistórica como a que resultava da ideia de natureza humana, de espírito humano ou de ordem natural, que marcara a reflexão sobre o social ao longo dos séculos XVII e XVIII40.

2.3.3. As novas tendências intelectuais e filosóficas

Podem ser igualmente identificadas três poderosas tendências da reflexão filosófica que influenciaram a formação das ciências sociais. A primeira é o positivismo; a segunda, o humanitarismo; e a terceira, o evolucionismo.

a) O positivismo O positivismo era mais do que um apelo à ciência: era uma reverência pela

ciência e pelo espírito científico. O século XVIII tinha elevado bem alto o ideal da ciência como símbolo do século das Luzes. O século XIX viu a institucionalização deste ideal, mesmo a sua canonização. O grande objectivo era o de estudar os valores morais, as instituições e todos os fenómenos sociais através dos mesmos métodos que tinham um tão grande êxito em áreas como a física ou a biologia.

40 Para este tópico veja-se P. Abrams, Historical Sociology, Somerset, Open Books, 1982 e, do mesmo autor «The sense of the past and the origins of sociology», Past and Present, 1972, 55, pp. 18-32.

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Até ao século XIX não tinha ainda sido estabelecida uma fronteira muito rígida entre a filosofia e a ciência, e o termo filosofia era mesmo preferido por quem trabalhava directamente com materiais físicos, procurando estabelecer leis e princípios como o que tinha sido feito por Newton e Harvey. A principal obra de Newton intitulava-se Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687) (Princípios naturais e filosóficos de matemática) e a revista da Royal Society (Academia das Ciências inglesa) chamava-se Philosophical Transactions.

Pelo contrário no século XIX a distinção entre filosofia e ciência tornou-se patente. O modelo newtoniano de ciência imperou como o padrão de separação entre as áreas de estudo que ambicionavam ser apelidadas de ciência e aquelas que faziam parte do campo da filosofia, das letras e das humanidades. Praticamente todas as áreas do comportamento humano eram consideradas como podendo ser objecto de investigação científica, a par e sob as mesmas regras que os fenómenos físicos. Foi Comte (1798-1851), mais do que qualquer outro, quem apregoou a ideia do tratamento científico do comportamento social41. O seu Cours de Philosophie Positive, publicado em seis volumes entre 1830 e 1842, procurou demonstrar irrefutavelmente não apenas a possibilidade mas a inevitabilidade duma ciência do homem. Para esta ciência Comte cunhou o termo sociologia, que transformaria o estudo do homem, ser social, numa matéria de carácter científico a exemplo do que a biologia tinha feito pelo estudo do homem, animal biológico.

O «positivismo» tem sido, porventura, um dos rótulos mais frequentemente utilizados para catalogar a obra e a postura epistemológica de diferentes cientistas sociais. Muitas vezes associado a um empiricismo radical, a obra de Comte e o seu contributo para as ciências sociais tem sido mais desprezado do que realçado. O seu estilo e prolixidade de escrita nem sempre contribuíram para tornar fácil a tarefa dos seus leitores. No entanto, a teoria sociológica do conhecimento científico elaborada por Comte contém elementos de extrema actualidade ainda nos nossos dias.

Interdependência entre teoria e observação Para Comte a palavra «positivo» foi usada como um sinónimo de «científico»,

tendo um duplo significado de ruptura. Pretendia, em primeiro lugar, ser uma separação face às abordagens teológica e metafísica/filosófica dos fenómenos físicos e sociais. Em segundo lugar, reivindicava a noção de que o conhecimento científico só pode ser baseado na observação empírica.

Auguste Comte teve uma concepção do trabalho científico muito diferente da caricatura que muitas vezes se faz do positivismo. Recorde-se que na versão mais grosseira, o positivismo é caracterizado por defender que o conhecimento científico é fruto da observação, a partir da qual, por indução, se estabelecem as teorias. Ora, o que Comte salienta de forma explícita é a necessidade de existir uma interdependência entre teoria e observação, como base do trabalho científico.

«Pois se, por um lado, toda a teoria positiva deve necessariamente basear-se na observação, por outro, é também verdade que, para que se possam efectuar

41 Entre as obras de carácter introdutório que apresentam o contributo de Auguste Comte veja-se o livro de R. Aron, As etapas do pensamento sociológico, Lisboa, D. Quixote, 1994 (3ª ed port., ed. francesa 1983). Gostaria também de destacar um livro de Norbert Elias, traduzido em português e intitulado Introdução à Sociologia (Lisboa, Edições 70, 1980, ed. inglesa 1970). Os parágrafos dedicados a Comte que se seguem são baseados neste livro.

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observações, os nossos espíritos necessitam de uma teoria. Se, ao considerarmos os fenómenos, os não relacionarmos imediatamente com alguns princípios, não só nos seria impossível relacionar estas observações isoladas e, por conseguinte, tirarmos delas um significado, como também seríamos totalmente incapazes de as recordar e, na maior parte dos casos, o factos passariam despercebidos.»

Como assinala Norbert Elias, a interacção constante entre estas duas operações mentais, dirigidas para a síntese teórica e os pormenores empíricos, constitui uma das teses fundamentais de Comte. A sua postura acentua a negação de qualquer das seguintes posições: por um lado, o trabalho científico não podia resultar de uma pura indução baseada em observações empíricas, afastando-se por isso dos empiricistas radicais; por outro lado, o conhecimento científico também não poderia provir de teorias puras, à maneira do que era feito pelo racionalismo cartesiano.

Porém, face ao peso que no panorama intelectual francês e continental tinha a segunda posição, Comte vai tender a acentuar a importância da investigação empírica para que o conhecimento alcance o estatuto científico e deixe as suas «ligações perigosas» à teologia ou à filosofia. Para além disto, Comte pretende fundar o estatuto científico do estudo da sociedade e das acções humanas. Como tal, a tarefa de desligar a investigação social do primado teológico e filosófico constitui-se como outra das razões para o realce que amiúde dá à necessidade de basear o conhecimento do homem em sociedade num método positivo: num método que tomasse em consideração o estudo da sociedade através da observação empírica dos fenómenos sociais. A ênfase no método positivo para o que intitulava como física social ou sociologia, expressava a rejeição pela filosofia do século XVIII, em que o racionalismo cartesiano e as noções ahistóricas e desligadas da análise empírica (ordem natural, direito natural, natureza humana) tinham um primado absoluto, como vimos em 2.2.

O conhecimento baseado apenas na especulação entrava em contradição com a experiência e o ambiente científico em que Comte se encontrava inserido como professor da École Politechnique. Tinha uma educação científica e matemática mais sólida do que a grande maioria de outros pensadores oitocentistas que se dedicaram à análise de problemas sociais. Tal ambiente intelectual constituiu, por isso, uma circunstância muito propícia à ruptura com todo o tipo de especulação filosófica ou explicações teológicas, que não podiam ser sujeitas a uma validação empírica.

A sociologia como ciência autónoma

Uma outra das ideias-chave de Auguste Comte é a afirmação de que o objecto de estudo da sociologia é a explicação dos comportamentos humanos e das instituições sociais. Como tal este objecto é sui generis. Não pode ser associado ao estudo do homem enquanto animal biológico. O objecto da física social (ou sociologia), termos com que Comte designava a ciência social, era por isso autónomo das várias disciplinas das ciências físicas e naturais.

Não interessa aqui abordar o lugar que Comte dava à física social na hierarquia que estabelece das várias ciências. Importa sobretudo salientar que ao assumir uma autonomia relativa do objecto da sociologia relativamente a outras áreas da investigação científica, Comte deu o passo decisivo para o estabelecimento da sociologia como ciência autónoma.

«Em todos os fenómenos sociais, observamos primeiramente a influência das leis da fisiologia individual e, para além destas, algo de especial que modifica os seus efeitos e que diz respeito à influência recíproca dos indivíduos, singularmente

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complicada na espécie humana pela influência de cada geração na geração seguinte. É pois evidente que para estudarmos devidamente os fenómenos sociais devemos começar por ter um conhecimento completo das leis do organismo individual. Mas, por outro lado, a dependência destes dois tipos de investigação não nos obriga a considerar a sociologia como simples apêndice da fisiologia, tal como muitos fisiologistas eminentes foram levados a crer... De facto, seria impossível considerar o estudo colectivo da humanidade como uma pura dedução feita a partir do indivíduo humano, porque as condições sociais que modificam os efeitos das leis fisiológicas são precisamente a consideração fundamental. Assim, a sociologia deve basear-se num campo de observações directas próprias, embora se atenda à sua íntima e necessária relação com a fisiologia num sentido estrito.»

Por este extracto se observa a afirmação da autonomia da sociologia relativamente à fisiologia e biologia. Nele também se detectam alguns arcaísmos de linguagem. Por exemplo, quando fala em «espécie humana» a expressão tem um sentido biológico, muito próxima da acepção de raça humana. No entanto, Comte utilizou-a designando a humanidade ou a sociedade. Por outro lado, as referências que faz à ligação entre o estudo da biologia humana e o estudo das sociedades humanas relevam da necessidade de acentuar a existência de um tronco comum da ciência. Em qualquer das circunstâncias, no vocabulário empregue ou na formulação da autonomia relativa da ciência social, Comte era bem um filho do seu tempo.

Em suma, ao mesmo tempo que proclamava o divórcio entre a filosofia e a ciência, Comte evidenciava a possibilidade de constituir «leis» do comportamento humano, com o mesmo estatuto das que existiam nas ciências naturais. Tal abordagem tinha uma dupla importância: 1. Em primeiro lugar, empurrava definitivamente o estudo do comportamento social do

homem para o campo da ciência, separando-o da reflexão filosófica. 2. Em segundo lugar, se a sociedade humana era regida por leis, então era possível

reconstruir a ordem social abalada pelo impacto das duas revoluções. A física social de Comte transformar-se-ia numa ciência eminentemente utilitária, propiciando um controlo tecnocrático das fontes de anarquia e transformação violenta existentes na sociedade moderna. Poderia reconciliar a transformação tecnológica e industrial com uma nova forma de organização da sociedade42.

A metodologia seria idêntica à que tinha transformado o estudo da natureza. Assim, a ciência positiva deveria representar a total libertação de formas de abordagem da realidade baseadas na teologia e na metafísica (filosofia).

Regularidades e singular na explicação da ciência social Tão importante como o contributo de Auguste Comte para a formação de uma

ciência social separada das disciplinas do mundo físico ou do estudo do homem como animal biológico diz respeito à forma de explicação que privilegiou para a compreensão das condutas humanas. Defende o ponto de vista que as mudanças sociais não se podiam meramente explicar com o recurso à acção de personagens singulares, mesmo que fossem tão importantes quanto reis, governantes ou pensadores.

42 Em Open the Social Sciences (pp. 10-11) salienta-se que existiria mesmo uma separação política entre o positivismo, que reconciliava revolução industrial e ordem social, e tendências conservadoras, que continuavam ligadas a uma abordagem particularista e singularizante dos comportamentos humanos.

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A ciência da sociedade era um outro tipo de ciência, distinta e separada da física ou da biologia, mas comungando dos mesmos princípios metodológicos. Devia procurar entender os fenómenos sociais não como fruto da acção singular e única de um indivíduo, mas sim como o resultado de regularidades empiricamente observáveis. Comte formula claramente esta ideia quando faz referência à existência de leis que regeriam a sociedade humana. Estas «leis» afastariam o impacto decisivo de heróis e de grandes personagens.

O vocabulário utilizado para expressar esta ideia é retirado das ciências naturais, ao chamar leis a essas regularidades tendenciais do desenvolvimento social. Face a este aspecto, Comte continua a ser profundamente tradicional na abordagem que estabelece. O mesmo acontece com o primado que continua a dar ao espírito humano como fonte de transformação, expressando reduzida atenção à importância dos fenómenos económicos. A linguagem antiquada e as metáforas naturalistas traduzem a utilização de modelos de abordagem da realidade social directamente retirados das ciências da natureza.

Ciência única e especialização disciplinar O ideal que defende é o de uma ciência social unificada, sob a designação de

sociologia ou física social. Porém, destaca ao mesmo tempo o papel da especialização no avanço da investigação científica.

b) O humanitarismo

O humanitarismo estava também intimamente relacionado com a ideia de uma ciência da sociedade. Uma definição estrita de humanitarismo diz-nos que este é a institucionalização da compaixão. É a extensão da assistência dos círculos restritos da família ou da aldeia, em que tinha sido anteriormente desenvolvida, para o conjunto da sociedade.

Um dos mais notáveis aspectos do século passado consistiu no crescente número de pessoas, quase todas pertencentes à classe média, que trabalhavam activamente para a melhoria da sociedade. O humanitarismo podia observar-se nos muitos projectos e propostas para o apoio dos destituídos, para a melhoria dos bairros da lata, da sorte dos doentes mentais, indigentes, presos e outras minorias. Todos os tipos de associações foram criadas, incluindo associações de temperança, grupos e sociedades para a abolição da escravatura e da pobreza, e para a alfabetização, entre outros objectivos.

O humanitarismo e a ciência social estavam reciprocamente relacionados. Considerava-se que o fim último da ciência social devia ser o bem estar da sociedade, a melhoria da condição social e moral da humanidade. Na difusão do humanitarismo, na procura de meios eficientes de conhecer a realidade social para mais facilmente a transformar, encontramos a ligação entre as ciências sociais e os objectivos utilitários de que se falou anteriormente.

c) o evolucionismo A terceira influência intelectual foi o evolucionismo, que não só afectou

qualquer uma das ciências sociais, como teve um impacto que ultrapassou as fronteiras do estudo da sociedade. A ideia de progresso humano, que já estava patente no século XVIII, foi um primeiro sinal do interesse e expressão que a ideia de desenvolvimento e de evolução haveria de ter no futuro. No entanto, o seu impacto foi pequeno quando

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comparado com as teorias oitocentistas da evolução biológica e geológica. Pelo contrário, a publicação em 1859 de The Origin of Species, de Charles Darwin, teve uma muito maior projecção e aumentou a atracção da visão evolucionista do mundo.

As ideias de evolução social tinham, porém, as suas próprias origens e contextos, não coincidentes com as de evolução nos domínios físico ou biológico. As obras de cientistas sociais como Comte, Herbert Spencer e Marx tinham sido realizadas ou iniciadas antes da publicação do livro de Charles Darwin, e nelas estava já expressa uma visão evolucionista da sociedade. Comte, por exemplo, tinha enunciado a chamada lei dos três estados, correspondente a três fases de desenvolvimento do conhecimento humano (o que designa como «a lei da evolução intelectual da humanidade ou lei dos três estados»). Na primeira fase, o estado teológico «ou fictício), a humanidade é dominada pelo sobrenatural e corresponderia historicamente ao período medieval. Seguia-se «o estado metafísico ou abstracto» que está marcado pelo triunfo dos princípios abstractos ligados à expressão do racionalismo filosófico, que terminaria com a Revolução Francesa. O «estado positivo ou real» corresponderia à fase de maturidade caracterizada pelo aparecimento da sociedade industrial, pela descoberta, graças à observação científica, dos princípios organizadores da sociedade.

O que é mais importante salientar é que a ideia ou a filosofia da evolução fazia parte do que se pode chamar o «espírito do século». Foi tão importante para a constituição de uma ciência social como a sociologia a partir da década de 30 do século passado, como o seria para outros campos do saber como a geologia, a astronomia e a biologia. No entanto, importa aqui também sublinhar que uma visão evolucionista da sociedade, combinada com a visão dicotómica apresentada no ponto anterior, fazia desta ideia de evolução social uma concepção profundamente ahistórica e etapista.

2.3.4. O desenvolvimento de diferentes disciplinas

Duas tendências de sentido contrário dominaram as disciplinas que formaram as ciências sociais. A primeira tendência consistiu num impulso para a unificação, para uma ciência social única e global. A segunda tendência empurrava as diferentes ciências sociais para a especialização. Em meados do século XX, o balanço deste duplo movimento apontava para o triunfo da segunda tendência, com os resultados observáveis nas várias ciências sociais, altamente especializadas e por vezes concorrenciais. No entanto, este triunfo – que observado a partir do final do século XX quase surge como inevitável – estava longe de estar conseguido em meados do século passado.

O que emergiu do racionalismo crítico do século XVIII não foi uma concepção do estudo do homem em sociedade assente numa pluralidade de ciências sociais. Pelo contrário, defendia-se uma única ciência da sociedade que ocuparia um lugar cimeiro na hierarquia das ciências que incluía os campos da astronomia, física, química e biologia. Quando a partir dos anos 20 do século passado, Comte escreveu propondo uma nova ciência, que tivesse o homem, ser social, como objecto, ele tinha em mente uma única e englobante ciência da sociedade – não uma pluralidade de disciplinas, cada uma destinada ao estudo de um aspecto do comportamento humano em sociedade. O mesmo podia ser aplicado às ideias de Bentham, Marx ou Spencer. Qualquer deles considerava o estudo da sociedade como o empreendimento de uma única ciência e considerariam inviável a constituição de diferentes ciências sociais, como a economia, a ciência

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política, a sociologia ou a história. A sociedade era algo indivisível – frisavam. A mesma indivisibilidade deveria caracterizar a ciência que a estudava.

Foi, no entanto, a tendência para a especialização disciplinar que vingou. A tendência para a criação de uma única ciência social, que animou os escritos de autores como Comte, Spencer ou Marx, deu lugar no final do século XIX a várias áreas disciplinares que concorriam entre si pelo estudo dos fenómenos sociais. Esta tendência para a especialização não deixava de acompanhar um movimento no mesmo sentido noutros ramos de saber, quer nas ciências físicas, quer nas humanidades. Nenhum campo escapou à especialização da investigação e sem dúvida que um avanço no conhecimento que se processou entre o século XIX e o século actual é fruto dessa tendência para a especialização.

Este processo foi auxiliado pelo desenvolvimento das universidades e da estrutura departamentada no seu interior. Tal facto fomentou a concorrência pela institucionalização de especialidades na área do estudo da sociedade, a que corresponderiam diferentes cátedras e títulos universitários. Um primeiro movimento para a especialização deu-se na Alemanha, em que era grande a concorrência por um estatuto mais elevado no interior das universidades, com o surgimento de inevitáveis tendências centrífugas. Porém, no final do século XIX o mesmo fenómeno de especialização podia ser encontrado nos Estados Unidos (em que era grande a admiração pelo sistema escolar alemão no meio universitário) e, embora num grau menor, na Inglaterra e na França.

Pode-se, pois, concluir que no início do século XX estaria concluído um movimento tendente à diversificação disciplinar na área das ciências sociais no interior da instituição universitária43. Com estruturas departamentais próprias, quadros e curricula específicos, surgiram a história, a economia, a sociologia, a ciência política e a antropologia44.

a) A história Fruto de uma presença universitária anterior, a história constituiu-se

precocemente com uma estrutura departamental própria. A dúvida que se pode colocar relativamente a esta disciplina tem a ver com a possibilidade de a considerar uma ciência social, já que muitos dos que a praticavam a incluiriam sobretudo na área das humanidades, juntamente com a filosofia, os estudos literários e clássicos45. A separação das ciências sociais em disciplinas nomotéticas («um grupo de disciplinas que têm por objecto as actividades do homem e por finalidade a procura de ‘leis’ entendidas como relações funcionais susceptíveis de verdade ou de falsidade quanto à sua adequação ao real»)46 e disciplinas ideográficas (que não buscam o estabelecimento de relações funcionais entre variáveis, mas sim a reconstituição e a interpretação do passado) está também reflectida nesta diferenciação.

No entanto, os estudos históricos passam no século XIX por um movimento de renovação que contém elementos de procura de uma base científica, semelhantes aos

43 Ver o que é referido sobre este aspecto em Open the Social Sciences, ob. cit., pp. 12-13. 44 O capítulo 3 será destinado à apresentação mais detalhada das diferentes ciências sociais e do seu percurso até à actualidade. 45 Ibidem, p. 15. A transformação dos estudos históricos está bem apresentada nesta obra. Uma apresentação mais detalhada pode ser encontrada no vol. da Nova Enciclopédia Einaudi. 46 J. Piaget, «Os dois problemas principais da epistemologia das ciências do homem», in J. Piaget (ed.), Lógica e conhecimento científico, Lisboa, Civilização, 1981, 2º vol., p. 431.

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que se processavam noutras ciências sociais. Tal como na «física social» de Comte, também a história se deveria separar da mera especulação e dedução sobre o passado, para procurar estabelecer uma reconstituição dos acontecimentos históricos. A divisa do historiador alemão Ranke47 – contar os factos tal como realmente sucederam – contém os mesmos atributos que o positivismo comtiano associava à metodologia da ciência social: não deveria ser baseada na especulação filosófica nem em justificações escatológicas, mas sim na reconstrução dos acontecimentos passados.

Para tal, dá-se ao longo da segunda metade do século XIX um grande desenvolvimento da recolha e publicação de fontes. As chamadas ciências auxiliares da história (paleografia, numismática ou a diplomática, por exemplo) – são subdisciplinas instrumentais para a história, a paleografia dedicada à decifração de textos com grafias arcaicas e a numismática tratando do estudo e reconhecimento de moedas. Instituem-se por outro lado os métodos de crítica interna e externa das fontes. Este desenvolvimento positivista da história é acompanhado por três outras circunstâncias que vão ter uma primordial importância para o recrudescimento do interesse por esta disciplina.

Em primeiro lugar, o século XIX assiste ao desenvolvimento do estado-nação e ao surto de nacionalismos no continente europeu. Este facto vai incentivar o interesse das elites nacionais e dos poderes públicos pela reconstrução do passado, no sentido de encontrar uma genealogia de ideias nacionais ou de certos traços que se julgam característicos de um povo, com isto fomentando a coesão social e nacional48. Sucedem-se as histórias nacionais, mas também o sucesso do romance histórico, no sentido de revelar e popularizar as raízes culturais e históricas de um povo49. Em segundo lugar, o século XIX assiste igualmente à formação e progresso dos arquivos nacionais, que procuram preservar a memória histórico-documental de uma nação. O arquivo passa a ser o local de trabalho por excelência do historiador, semelhante ao laboratório nas ciências naturais.

Por último, cada vez mais este desenvolvimento da história ao longo do século XIX se preocupa com a compreensão e explicação do passado em torno de grandes tendências e movimentos colectivos, abandonando a chamada história-crónica. Nesta as acções e comportamentos de personagens singulares tinham o maior relevo na explicação do passado. A nova concepção de história dá um particular relevo às forças sociais colectivas, à tecnologia, à economia ou às instituições.

47 Leopold von Ranke (1795-1886),) foi um historiador alemão responsável pela modernização da pesquisa histórica, através do aperfeiçoamento dos métodos de crítica das fontes históricas. Foi responsável por uma vasta obra, de que se destaca uma História Universal em 9 volumes. 48 Excelente síntese em E. J. Hobsbawm e T. Ranger (eds.), The invention of tradition., Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1983. 49 Cf. os casos portugueses de Alexandre Herculano, simultaneamente na sua actividade de historiador e de romancista histórico. Herculano vai inaugurar o estudo da história em Portugal segundo os moldes da moderna historiografia oitocentista. É também o director do Arquivo Histórico da Torre do Tombo, criado com o liberalismo, e a ele se deveram romances históricos como O Bobo, O Monge de Cister ou As Lendas e Narrativas.

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b) A economia A economia foi o ramo das ciências sociais que após a história atingiu o estatuto

de um área disciplinar independente. Os fisiocratas e Adam Smith tinham já salientado no século XVIII a autonomia e a autoregulação dos processos de criação de riqueza, dos processos de formação dos preços, rendas, juros e salários. Tais concepções de autonomia e autoregulação dum campo separado da realidade social – a economia – motivou o surgimento desta nova área disciplinar no século XIX, conhecida sobretudo pela designação de economia política.

Ao longo do século XIX foi salientada a concepção liberal de funcionamento dos mecanismos económicos. Os processos de criação de riqueza e de remuneração dos diferentes agentes económicos operavam segundo mecanismos próprios. Assim, não apenas deveriam ser estudados independentemente, como também deveriam ser deixados ao seu livre funcionamento, afastando nomeadamente qualquer tipo de intervenção governamental. Tal era a perspectiva de autores ingleses como David Ricardo e John Stuart Mill50, os franceses Frédéric Bastiat51 e Jean-Baptiste Say52, e mais tarde a escola austríaca de Carl Menger53.

Tal perspectiva é responsável pela queda do adjectivo que definia a nova disciplina – economia política. Se existiam leis de funcionamento da economia, que resultavam da maximização do interesse individual – metáfora da mão invisível – então tem cada vez menos sentido assacar qualquer responsabilidade ao Estado de intervenção na economia.

Existiram, no entanto, outros economistas que divergiam marcadamente face a esta perspectiva liberal, que viria a ser conhecida como a escola clássica liberal. Foi especialmente na Alemanha que se constituiu a denominada escola historicista em economia. O pressuposto destes autores tinha pouco a ver com qualquer fundamento historiográfico da sua forma de ver a economia. Eram os pressupostos da evolução social, assente na perspectiva evolucionista acima apresentada, que baseavam os economistas historicistas. Homens como Wilhelm Roscher e Karl Knies, na Alemanha, punham em causa os pressupostos ahistóricos e universalizantes que presidiam ao comportamento humano, segundo os economistas da escola clássica54.

50 Economista inglês (1806-1873), teve um grande impacto na formação da ciência económica oitocentista, sendo os seus Principles of Political Economy (1848) objecto de constantes reedições ao longo do século passado. Defendendo uma aproximação empiricista e utilitária, a sua perspectiva económica vai, no entanto, apresentar outros temas de reflexão para a teoria e a prática económica, como o apoio à propriedade pública de certos recursos naturais e mesmo de certas infra-estruturas urbanas. 51 Frédéric Bastiat (1801-1850), economista francês, com uma vasta obra, sobretudo no domínio do que chamaríamos hoje o «jornalismo económico». 52 Jean-Baptiste Say foi um economista francês, responsável pelo início do ensino da economia política clássica em França. Amigo dos economistas ingleses contemporâneos, como Ricardo e Malthus, Say foi responsável por obras como Traité d'économie politique (1803) e Cours complet d'économie politique pratique (1829). 53 Carl Menger (1840-1921), economista austríaco, foi o fundador da chamada escola de Viena. Crítico do historicismo que dominava o meio académico da vizinha Alemanha, foi um dos primeiros teóricos da utilidade marginal em economia. 54 Sobre a escola historicista alemã cf. Robert B. Ekelund, Jr. e Robert F. Hébert, A History of Economic Theory and Method, N. York, McGraw-Hill, 1990, cap. 10.

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c) A ciência política Podemos dizer que a ciência política começou por rivalizar com a importância

da economia entre as ciências sociais emergentes. Existia já uma tradição de estudo do poder político e do Estado, que remonta às obras e reflexões de Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau, e aos séculos XVI a XVIII. No entanto, foi o impacto das duas revoluções que acabaram por ter uma importância crucial no desenvolvimento desta disciplina. A revolução industrial dava um impulso para o acréscimo do bem-estar económico e social. A revolução política, associada à revolução francesa, colocou na ordem do dia o problema da soberania. Por outro lado, se a economia deixava de se preocupar com a política, então abria-se um campo para o surgimento de uma disciplina com um objecto e um método próprios.

A soberania constitui o atributo central do Estado, de tal forma que um Estado sem soberania tende a não ser considerado como uma organização política. A soberania significa simultaneamente um direito para agir e um poder para agir por parte do Estado. O grau de definição da soberania por parte dos cidadãos constitui, por isso, um dos elementos mais marcantes de debate e de reflexão nesta disciplina. A análise dos direitos constitucionais e da legislação eleitoral constituem áreas de investigação privilegiadas. Seria a partir delas que se poderiam criar tipologias de regimes políticos (democracia, liberalismo censitário, ditadura, etc.), revelando as várias características do exercício da soberania política.

Para muitos dos primeiros autores em ciência política (Bentham55 ou Stuart Mill) o estudo do exercício da soberania é marcadamente ahistórico. No entanto, tal como o que se passava com a economia, também na ciência política existia uma tendência histórico-evolucionista. Como na economia, a ciência política analítica era rivalizada pela evolucionista. Autores como Sir Henry Maine, Numa Fustel de Coulanges e Otto von Gierke declararam que o estado e a soberania não eram universais e intemporais, mas sim o resultado de uma evolução lenta através de processos históricos. Daí a existência de um interesse marcado pelas origens de instituições políticas e de poder que não se corporizavam no Estado, como o parentesco, a comunidade e a casta.

d) A sociologia É a Auguste Comte que se deve o vocábulo «sociologia» para definir uma nova

ciências. Foi usado, no início, para designar uma única ciência social, que abrangesse todo o estudo da sociedade. Seria para ela que estaria destinado o lugar do topo na hierarquia das ciências. Para Comte, tal como Herbert Spencer56 – que tinha uma concepção da sociologia semelhante àquele –, não havia lugar para outras ciências sociais, concorrentes da sociologia.

Tanto Comte como Spencer acreditavam que a civilização, no seu todo, era o objecto próprio da sociologia. As suas obras dedicaram-se a descrever as origens e o

55 Jeremy Bentham (1748-1832), fundador do utilitarismo, filosofia que no domínio ético defendia que o objectivo supremo de toda a acção individual e social é procurar a felicidade e a satisfação das necessidades para o maior número de indivíduos. Do mesmo modo, também todas as instituições sociais podem ser avaliadas à luz deste princípio. 56 Herbert Spencer (1820-1903), um dos primeiros sociólogos ingleses, fortemente influenciado pelo evolucionismo. Os seus Principles of Sociology (3 vols., 1876-1896), procuravam sistematizar a sua abordagem do que deveria ser esta área do saber. Para além disso a sua obra estende-se por um vasto outro campo de temas, da filosofia, à biologia ou à psicologia.

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desenvolvimento da civilização e de cada uma das suas instituições. Ambos declaravam que existiam duas grandes divisões na sociologia: a estática e a dinâmica. A sociologia estática diz respeito aos processos relacionados com a ordem na sociedade. A sociologia dinâmica tem como preocupação os processos de evolução na sociedade. Ambos os pensadores também viam as sociedades existentes no mundo como reflexos de estádios sucessivos por que a sociedade ocidental teria passado ao longo de um período muito longo de tempo.

No entanto, nem todos os sociólogos concebiam a sua disciplina nestes termos. Outros sociólogos estavam menos interessados em visões globais sobre a civilização e o destino da humanidade e mais direccionados para os problemas sociais que os rodeavam, nomeadamente as consequências das duas revoluções. Assim, em França, Frédéric Le Play publicou um estudo monumental sobre os aspectos sociais das classes operárias na Europa, intitulado Les ouvriers européens. Nele estudava e comparava o comportamento de famílias e de comunidades ao longo da Europa e noutros pontos do globo. Alexis de Tocqueville abordou em De la démocratie (1835-1840; 4 vols.), os costumes, as estruturas sociais e as instituições na América, observando-os do ponto de vista da instauração de uma sociedade industrial e democrática.

No final do século XIX, simultaneamente na França e na Alemanha, surgiram as obras em sociologia que viriam a marcar duradouramente o panorama desta disciplina. Ferdinand Tonnies, no livro Comunidade e sociedade (1887), procurava explicar todos os grandes problemas do mundo ocidental como consequência da transição de uma sociedade comunitária, concêntrica e baseada no estatuto que vigorava na Idade Média, para uma sociedade individualista, impessoal e com uma escala incomensuravelmente superior, desenvolvida no período democrático e industrial.

Em termos muito gerais, estes eram os mesmos temas que iriam ser utilizados nas obras de Max Weber, Georg Simmel e Émile Durkheim (todos eles escrevendo no final do século XIX e início do século XX). Estes foram também os sociólogos que partiram dos problemas da sociedade ocidental a braços com os efeitos das duas revoluções, para estabelecer os fundamentos da sociologia para grande parte do século XX.

e) A antropologia cultural No século XIX a antropologia alcançou também uma identidade enquanto

disciplina. Definida etimologicamente como «a ciência do homem», a antropologia podia ser considerada como concorrente relativamente a outras ciências sociais como a sociologia, a economia ou a ciência política. No entanto, desde o início que o objecto da antropologia se deslocou para o estudo das sociedades ditas primitivas, que não tinham incorporado uma cultura letrada.

Por um lado, existia a antropologia física, que se preocupava com a evolução do homem enquanto espécie biológica, estudando as sucessivas formas que assumia, as suas características morfológicas, fisiológicas e genéticas, e procurando encontrar taxonomias rácicas associadas com certos caracteres. Por outro lado, encontrava-se a antropologia cultural e social ou etnologia, interessada no estudo das sociedades e instituições humanas, mas restringindo-se aos povos primitivos e pré-letrados.

Era o conceito de cultura que assumia uma importância central para esta área do saber e que mais uma vez pretendia estabelecer a diferença face a abordagens biológicas e rácicas da espécie humana. Como conceito, a cultura chamava a atenção para os

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caracteres não biológicos, não raciais e não instintivos, que podiam definir uma civilização sob várias perspectivas: podiam definir os seus valores, as suas técnicas, as suas ideias e instituições. A cultura, como era definida na obra clássica de Edward Burnett Tylor57, Primitive Culture (1871), é a parte do comportamento que é aprendida e não herdada geneticamente. Assim, a cultura incluiria o todo complexo formado pelo conhecimento, crenças, arte, condutas morais, lei, costume, e quaisquer outros hábitos e capacidades adquiridas pelo homem enquanto ser social.

Iniciou-se fora das universidades, ligada ao movimento de colonização e aos esforços de missionários, exploradores e funcionários das potências europeias. Neste sentido, quase que se pode dizer que antes da sua institucionalização académica existiu uma proto-antropologia58, baseada em relatos de viagens a lugares e povos exóticos. Por outro lado, a sua institucionalização começou também por assumir uma importância utilitária para o conhecimento dos povos dos territórios colonizados.

A antropologia social e cultural era uma área em que imperava o evolucionismo, como pode ser observado pelas obras de Tylor, Lewis Henry Morgan59, Adolph Bastian60 e Theodor Waitz. O pressuposto de que partiam ao estudar as culturas e sociedades primitivas, consistia em considerar que estas comunidades que estudavam eram protótipos dos antecessores dos homens que viviam nas sociedades modernizadas. Assemelhavam-se, por isso, a antepassados primitivos, restos fossilizados, dos estádios anteriores de desenvolvimento da Europa ocidental.

Apesar do vasto manancial de dados compilados sobre culturas não-europeias, a antropologia cultural tinha uma postura marcadamente euro-cêntrica. A Europa ocidental era entendida como o último ponto numa linha de progresso, única e unilinear, na qual podiam ser colocados todos os povos do mundo, como ilustrações dessa linha de evolução e progresso.

f) Conclusão Em síntese, no final do século XIX todas as grandes ciências sociais alcançaram

uma posição distinta entre si, encontravam-se amplamente reconhecidas em termos académicos e sociais. Mais importante ainda, principiaram a ser aceites como ciências, em vez de representarem satélites da filosofia. Tratou-se, pois, de uma evidente história de sucesso61.

Em segundo lugar, a utilização do evolucionismo nas diferentes ciências sociais colocava-as, por outro lado, numa perspectiva de legitimação da sociedade industrial europeia e norte-americana, situando-a como um ponto terminal numa cadeia evolutiva.

Um terceiro aspecto a salientar diz respeito à institucionalização destas disciplinas em termos académicos ao longo da segunda metade do século XIX. No que diz respeito ao ensino, estabeleceram-se departamentos ou faculdades próprios na estrutura universitária e criaram-se os primeiros graus oferecidos por estes 57 Antropólogo britânico (1832-1917), cujo interesse pelo estudo das sociedades arcaicas se deveu a uma viagem que fez ao México em 1856. 58 Cf. Gail M. Kelly, «Anthropology», in B. F. Hoselitz (ed.), A reader's guide to the social sciences, N. York, Free Press, 1972 (1959), p. 42. 59 Antropólogo americano, 1818-1881, que estudou os índios iroqueses, tentando a partir deles estabelecer uma proposta de evolução social (Ancient Society, 1877). 60 Antropólogo alemão, 1826-1905, que procurou estabelecer uma abordagem psicológica ao que seriam os traços culturalmente diferenciadores entre os diferentes povos. 61 Open the social sciences, ob. cit., p. 31.

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estabelecimentos. Também a investigação foi institucionalizada, já que se criaram as primeiras revistas científicas no domínio das diferentes disciplinas das ciências sociais, formaram-se associações especializadas (de antropólogos, historiadores ou economistas) e catalogaram-se as obras publicadas pelas áreas disciplinares correspondentes às várias ciências do homem. Tinha-se completado a construção da sua infraestrutura como ramos autónomos de saber.

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2.4. O século XX

2.4.1. A era dos extremos

O século XX inicia-se praticamente com a primeira guerra mundial. É flagrante a rotura face a um século XIX triunfante em termos económicos, seguro de que seria possível um domínio racional da natureza e da própria sociedade, triunfo e segurança simbolizados nos ideais de progresso e de contínua evolução que marcam o panorama das ideias oitocentistas.

No século XX esta imagem muda: primeiro a guerra e depois a crise económica instalam a dúvida relativamente à viabilidade de modelo de economia capitalista e liberal e também relativamente ao modelo de liberalismo político vigente nas sociedades da Europa ocidental e dos EUA. Exacerbação do nacionalismo, regresso do proteccionismo, explosão das ideologias radicais nos dois extremos do espectro político, marcam a primeira metade do século XX.

Estes sentimentos de dúvida sobre o que eram os dois grandes legados oitocentistas – liberalismo político e liberalismo económico – são igualmente transportados para o plano intelectual e de debate de ideias no início do nosso século. Nos mais variados campos nota-se um recuo do racionalismo: da filosofia (existencialismo) às ciências sociais, da literatura às artes plásticas. Nestas últimas, as noções de harmonia e proporção, de bom senso e de bom gosto que tinham marcado o panorama artístico do século XIX, são postas em causa por artistas, que subvertem a percepção do mundo e das coisas transmitida pelos sentidos e pela razão (surrealismo, dadaísmo).

A diferenciação entre o século XIX e o século XX para a análise do desenvolvimento das ciências sociais pode ser motivo de discussão. Não seria mais lógico manter a divisão cronológica proposta em Open the Social Sciences? Segundo a divisão cronológica aí sugerida teríamos um primeiro período até 1945, marcado pela institucionalização das ciências sociais, segundo os moldes sugeridos na última aula, enquanto o período posterior a 1945 seria caracterizado pela massificação da investigação e do ensino nesta grande área de estudo. Um duplo e contraditório movimento para a especialização e para a interdisciplinaridade está igualmente associado ao período posterior à segunda guerra mundial.

Efectivamente se estivermos sobretudo preocupados com a periodização do processo de institucionalização das ciências sociais, então a sugestão da Comissão da Gulbenkian presidida por I. Wallerstein tem absoluta razão de ser. O período a seguir à segunda guerra mundial inaugura efectivamente uma nova fase na democratização do acesso ao ensino superior, que se reflecte numa maior procura de cursos universitários, a que as ciências sociais não ficaram indiferentes. Por outro lado, o financiamento público e privado de investigações nesta área têm uma dimensão inusitada face a anteriores tendências e transformam o papel social de sociólogos, economistas, politicólogos ou antropólogos junto do governo, da administração publica ou mesmo de empresas privadas.

Porém, existem igualmente boas razões – do meu ponto de vista as melhores – para optar por um outro marco cronológico. Se não for a infra-estrutura de ensino e investigação a surgir como tema de periodização, mas antes as posturas teóricas e

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epistemológicas existentes nas ciências sociais, então creio ser mais vantajoso escolher o final do século XIX ou a primeira guerra mundial como fim de um período.

Como se pode caracterizar o período que então terminava? Basicamente por quatro características fundamentais.

1. Ao longo do século XIX delimita-se um campo de estudo das ciências sociais, pondo fim a qualquer determinismo biológico ou rácico para a explicação dos comportamentos humanos. Este processo estava completado no final do século XIX.

2. «Inventa-se» um método para as ciências sociais, assente em pressupostos idênticos aos que suportavam a investigação nas ciências físicas e naturais. Estes pressupostos podiam sintetizar-se da seguinte forma: a realidade social era cognoscível e sujeita à determinação de relações tendenciais entre variáveis através da observação dos factos e comportamentos sociais.

3. Institucionaliza-se este novo campo de estudos em termos universitários, segundo os moldes evidenciados na última aula. Este processo encontrava-se igualmente completado no início do século XX.

4. O conjunto destes três desenvolvimentos é comum aos grandes troncos disciplinares que constituem as ciências sociais na actualidade: economia, sociologia, história, antropologia e ciência política. Nenhuma destas ciências sociais se encontra à margem de tal evolução. Mesmo uma disciplina ideográfica como a história partilha tendências que têm tudo a ver com o ideal de ciência proposto para as ciências sociais. Formulado desta forma podemos afirmar que todo o século XIX era positivista e racionalista.

O século XX simboliza uma ruptura com esta posição. Em primeiro lugar, é colocado em causa o ideal de estudo das ciências sociais como um ramo pertencendo ao tronco comum da ciência, com métodos similares aos de outros ramos. Em segundo lugar, e decorrente do primeiro aspecto, põe-se em questão o positivismo como capaz de permitir uma compreensão da realidade social. Por último, desconfiava-se da própria postura racionalista, que tinha culminado a evolução que temos estado a seguir desde a Idade Média.

Claro que é sempre possível encontrar em momentos anteriores raízes mais ou menos longínquas para desenvolvimentos ulteriores. A comparação entre as obras contemporâneas de Durkheim (1858-1917) e de Max Weber (1864-1920) pode ilustrar esta nova tendência. Nos escritos de Max Weber – embora mantendo-se uma abordagem racionalista – salienta-se já no final do século XIX e início do século XX uma proposta epistemológica distinta da positivista. As ciências sociais já não reivindicariam uma metodologia semelhante às ciências naturais. Enquanto pela mesma época Émile Durkheim procurava delimitar para a sociologia um objecto de acordo com um método que não questionava, Max Weber salientava a necessidade de estabelecer uma metodologia que oferecesse garantias de cientificidade e de objectividade, mas que teria necessariamente de ser distinta da que era aplicada ao mundo natural. Enquanto Durkheim partia do método científico (positivista) para tentar torná-lo extensivo ao conhecimento de uma realidade (a social) que ele pretendia autónoma, Weber procurou tornar compatível a especificidade das ciências sociais (Geisteswissenschaften) com as exigências de rigor da explicação científica, por contraposição com às ciências da natureza.

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2.4.2. Durkheim e o modelo positivista da sociologia O exemplo de Durkheim (1858-1917) permite ilustrar bem aquilo que foi a

tentativa oitocentista de construir um modelo de abordagem da realidade social assente nos fundamentos racionalistas e positivistas. Com Durkheim podemos dizer que se completa o edifício de autonomização teórica e metodológica das ciências sociais iniciada por Comte, mas aplicada neste caso à sociologia.

O objectivo de Émile Durkheim no final do século XIX, em que publica o essencial da sua obra1, era o de estabelecer de forma inequívoca a autonomia da sociologia enquanto campo de estudos e a dotar de um método que tivesse os mesmos referenciais de cientificidade que as ciências naturais e físicas. No contexto da panorama universitário e da história das ideias em França no final do século XIX o debate com a psicologia assumia uma importância crucial para a autonomização da sociologia. A psicologia tinha-se autonomizado relativamente à filosofia ou à fisiologia e biologia no panorama universitário francês, e tinha a pretensão hegemónica de abarcar o estudo das acções humanas não geradas pela sua condição de ser biológico.

Para Durkheim, a singularidade da sociologia reside no estudo do facto social, que não pode ser redutível ao facto psicológico, que tem, por isso, de ser objecto de uma investigação própria. O tema do suicídio constitui uma boa oportunidade para estabelecer as fronteiras com as abordagens psicológicas. Na aparência, o suicídio parece ser um facto psicológico. Pelas próprias características do acto de se suicidar, nada parece mais individual, mais dotado de causalidades intrínsecas a cada indivíduo. Durkheim, pelo contrário, parte do pressuposto que o suicídio deve ser explicado por um contexto social que exerce uma influência mensurável na frequência deste acto nas diferentes regiões de França. Sendo assim o suicídio tem as características que Durkheim associa a qualquer facto social: «maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo dotadas de um poder de coerção por força da qual se impõem àquele». O facto social não pode ser redutível a qualquer explicação de tipo psicológico porque se trata de um fenómeno colectivo, anterior e exterior à consciência individual, e que por isso condiciona esta.

Repare-se que o primeiro capítulo de As regras do método sociológico se intitula «O que é um facto social?». Nele são apresentadas aquilo que Durkheim define como as duas características básicas do facto social:

• A sua exterioridade em relação às consciências individuais; • A acção coerciva que exerce ou é susceptível de exercer sobre essas

consciências.

A segunda etapa na fundação metodológica da sociologia, tal como foi empreendida por Durkheim, consiste em definir as «Regras relativas à observação dos factos sociais» (título do segundo capítulo de As regras do método sociológico). E a primeira regra – e a fundamental para Durkheim – é a de que os factos sociais devem ser tratados como coisas. O que significa tal afirmação para Durkheim? Com ela pretende afirmar que o sociólogo deve libertar-se de toda e qualquer noção preconcebida, seja fruto do senso comum, seja de carácter mítico ou religioso, seja ainda fruto de pura dedução filosófica. Acentuando que os factos sociais são coisas, 1 Em 1893 defende a sua tese de doutoramento, La division social du travail. Les régles du méthode scientifique datam de 1895, enquanto que o seu estudo mais célebre, Le suicide, foi publicado dois anos depois, em 1897. As formas elementares da vida religiosa (1912).

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que devem ser analisadas como tal, sem o recurso a qualquer outro tipo de conhecimento que não o que é originário da sua análise2. Por outro lado, esta reificação/materialização dos fenómenos sociais torna-os susceptíveis de virem a utilizar uma metodologia idêntica à que serve para analisar o mundo material, o mundo físico.

Ao acentuar que os factos sociais devem ser tratados como coisas, Durkheim estabelece três consequências lógicas desta postura:

Em primeiro lugar, coloca o estudo sociológico no domínio da ciência, ao recusar explicações não científicas (baseadas no senso comum, metafísicas, ou em doutrinas políticas), numa postura em que mais uma vez se notam as semelhanças com Comte). Durkheim defende a independência quer face à filosofia, quer face ao que designa como doutrinas práticas (cf. As regras do método sociológico, p. 152). Tal não significa que a sociologia não seja utilitária:

Durkheim, depois de dizer que a sociologia deve ignorar as doutrinas políticas, como podendo ter qualquer valor científico, acrescenta: «Isso não quer dizer, todavia, que deva desinteressar-se das questões práticas. Vimos, pelo contrário, que a nossa preocupação constante era orientá-la de modo a que desse resultados práticos. Necessariamente, estes problemas surgem-lhe no termo das suas investigações. Mas, justamente porque apenas se lhe apresentam nesse momento e, por consequência, emanam dos factos e não das paixões, [...] as soluções, aliás parciais, que ele [sociólogo] lhes pode dar não podem coincidir com nenhuma daquelas em que os partidos se detêm. Sob este ponto de vista, o papel da sociologia deve justamente coincidir em libertar-nos de todos os partidos, não tanto opondo uma doutrina às doutrinas, mas fazendo que os espíritos tomem, perante estas questões, uma atitude especial que só a ciência pode dar pelo contacto directo com as coisas» (idem, pp. 152-153)

Em segundo lugar, exige que o sociólogo deva «explicar o social pelo social», contrariando todo o tipo de explicações que não sejam ancoradas na análise dos factos sociais (explicações de tipo biológico ou psicológico para o comportamento humano). (é o que pretende com o capítulo 5.º de As regras do método sociológico, em que apresenta as regras relativas à explicação dos factos sociais, preocupado sobretudo com a distinção relativamente à psicologia).

Em terceiro lugar, estabelece o carácter empírico da análise da realidade social e da importância da análise estatística, do cálculo e do que Durkheim chama a experimentação indirecta ou método comparativo, para o estabelecimento da prova científica em sociologia. O Suicídio é, aliás, um bom exemplo desta postura metodológica. Procura através da análise de correlações entre variáveis estabelecer o tipo de relações entre elas (por exemplo entre a taxa de suicídio e o estado civil dos indivíduos), para partir daí poder definir relações de causalidade. Repare-se no paralelismo que mais uma vez se nota com a obra de Comte, com uma única excepção: Comte tinha associado o método histórico à metodologia própria da sociologia, fazendo a distinção entre sociologia estática e sociologia dinâmica. Ora, para Durkheim, tal só é devido à concepção de Comte de que as leis sociológicas, para além de exprimirem relações definidas de causalidade, também devem exprimir o 2 O exemplo do suicídio: Uma explicação baseada no senso comum faz derivar este acto de causas e decisões puramente individuais. Sendo assim o seu estudo faz parte do campo da psicologia, da procura de explicações que buscam em patologias individuais ou hereditárias as razões para tais comportamentos

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sentido mais geral da evolução humana. Trata-se para Durkheim de uma concepção incorrecta, já que rejeita o evolucionismo presente em Comte.

Da conjunção destes três aspectos, Durkheim tira uma última consequência: o seu método é objectivo. Pode inscrever-se na tradição inaugurada por Comte de autonomizar o estudo do homem em sociedade com base num método científico. Mas para Durkheim, Comte não tinha dado uma aplicação prática à sua fórmula teórica de tratar os factos sociais como coisas e dá desta limitação uma síntese lapidar, bem como da sua própria contribuição: «Para que não continuasse letra morta, não bastava promulgá-la [à tese de que os factos sociais são coisas]; era preciso fazer dela a base de toda uma disciplina que dominasse o cientista no próprio momento em que aborda o objecto da sua investigação, e que o acompanhasse, passo a passo, em todas as suas iniciativas» (idem, p. 153)

Uma terceira etapa na definição da autonomia da sociologia como ciência em Durkheim resulta quase como uma consequência da necessidade de colocar entre parêntesis quer as explicações baseadas no senso comum, quer aquelas que o indivíduo dá da sua própria acção. O indivíduo raramente está em condições de compreender os reais motivos dos seus actos. A sociedade imprime no indivíduo maneiras de pensar e de agir que acabam por lhe parecer «naturais», indiscutíveis e inconscientes. Daí que para Durkheim seja desapropriado o ponto de vista individual, como ponto de partida para o conhecimento das causas das condutas do homem em sociedade. A esta perspectiva epistemológica chama-se holismo, que se pode definir da seguinte forma:

Para compreender um facto social deve-se partir da sociedade, encarada na sua globalidade, e analisar em particular o constrangimento que ela exerce sobre a conduta dos indivíduos.

A ênfase colocada numa realidade supra-individual, dotada de características próprias e influentes sobre as condutas dos indivíduos, releva da própria perspectiva metodológica de Durkheim, ao procurar estabelecer a separação entre o domínio do social e o domínio do psicológico. O estudo de uma realidade supra-individual demarcaria de forma mais incisiva aquele que seria o objecto da sociologia. Por outro lado, para um autor fortemente preocupado com as questões relacionadas com a coesão social e com as suas falhas (suicídio, religião, crime, etc.), existia a necessidade quase que fundadora – como um pressuposto ontológico – de ter uma realidade supra-individual que desse sentido às práticas individuais. Existiriam valores comuns a ligar todos os indivíduos pertencentes a uma sociedade, valores estes que formariam o que Durkheim designa como consciência colectiva, e que seria responsável por manter a ordem e a estabilidade social. O conceito de anomia – um conceito fundamental na obra de Durkheim e que literalmente significa ausência de leis – decorre precisamente desta preocupação com os problemas relacionadas com a coesão social (a sua manutenção, as condições que poderiam explicar os comportamentos desviantes). Na sociologia de Durkheim, anomia significa o enfraquecimento do domínio das normas sociais sobre as condutas individuais. Ele fala assim de suicídio anómico para caracterizar a progressão dos suicídios ligados à desregulação da vida social: com o desaparecimento das regulações tradicionais, os indivíduos encontram-se numa situação em que os seus desejos já não são limitados pela sociedade. Perdem então as suas referências sociais, o que potencia o surgimento de comportamentos que são testemunho da desorganização social, tais como o suicídio ou o crime.

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A perspectiva holista irá ter uma longa carreira nas ciências sociais e humanas, como adiante se verá. A sua influência marcará não apenas a sociologia, mas também a antropologia, a ciência política ou a história.

Esta breve introdução ao contributo de Durkheim para a definição metodológica da sociologia serve para sublinhar o seu papel como depositário da herança de um longo século XIX, durante o qual se pretendeu construir a autonomia das ciências sociais tomando como referência o legado racionalista da revolução científica do século XVII, segundo o qual só é passível de ser definido como ciência o que é fruto de um modelo de abordagem empírico-dedutiva:

• sujeito a regularidades, significando com isso princípios gerais que tomavam a forma de «leis de funcionamento» (leis sociais por comparação com as leis da natureza);

• sujeito a uma coerência, de molde a que estas leis não fossem contraditórias entre si;

• sujeito, por fim, a uma autonomia como objecto – qualquer fenómeno social só poderia ter uma explicação no domínio do social.

Ora, é precisamente este legado que começa a ser colocado em questão pela mesma época em que mais sistematicamente é formalizado por Durkheim.

2.4.3. Weber: o modelo positivista em questão Para Weber a realidade social é um campo de significações – de valores, de

propósitos e de interesses subjectivos. Essas significações existem na medida em que se manifestam na subjectividade dos indivíduos e modificam-se através da interacção dos indivíduos ou dos actores sociais.

Como podem as ciências sociais apreender essas significações? Através de actos de comunicação inter-individual, entre o sociólogo/cientista social e os actores sociais. Nesta medida o que torna possível a compreensão da realidade social é a compreensão do sentido (em oposição a comportamentos) das acções de indivíduos.

Nesta perspectiva, torna-se crucial a capacidade de comunicação inter-individual entre sujeito e objecto. Podemos mesmo afirmar que só é possível existir uma compreensão da realidade social, com base num pressuposto: tem de existir uma capacidade de empatia entre investigador e indivíduos ou sociedade estudados. E qual a fonte dessa capacidade de empatia entre sujeito e objecto da investigação em ciências sociais?3 A partilha de uma racionalidade comum. Assim, esta outra postura epistemológica só pode existir através da recuperação do sentido das acções racionais ou das acções de indivíduos racionais.

Para permitir a recuperação do sentido das acções de indivíduos que têm algo em comum com o cientista social, o serem racionais (frise-se mais uma vez o quanto esta identidade se transforma num pressuposto fundador para a sociologia compreensiva de Weber), Max Weber vai estabelecer um modelo analítico adaptado a esta recuperação do sentido da acção social através da sociologia compreensiva: o tipo ideal. 3 Max Weber não utiliza esta dicotomia entre sujeito e objecto. Podemos mesmo dizer que a sua sociologia, a sua epistemologia das ciências sociais parte do pressuposto de que existe uma simbiose entre os dois pólos normalmente presentes no projecto de explicação positivista.

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Como se pode caracterizar o tipo ideal na sociologia de Max Weber? Tipo ideal não é considerado por Weber como um modelo da realidade. Não é uma descrição ou uma cópia do real, apenas exprime a coerência racional duma instituição ou dum comportamento; responde a uma necessidade da pesquisa compreensiva, procurando ter o máximo de coerência lógica, em vez de combinar critérios extraídos da realidade. Não é, por isso, uma média de comportamentos sociais, não é um modelo exemplar, mas uma construção analítica por parte do cientista social. Como construção analítica é uma invenção; como busca dos traços que sintetizam uma coerência racional tem um intuito heurístico (isto é, não é fruto de uma hipótese, mas sim uma forma de formular hipóteses de compreensão da realidade social). Daí que este tipo ideal (como o tipo ideal de capitalismo proposto por Max Weber) possa não corresponder à reprodução do modo de funcionamento económico de qualquer sociedade concreta. O tipo ideal para Max Weber é pois um «esquema de interpretação», uma «grelha de leitura» que exagere os características racionais de qualquer comportamento ou instituição4. Como «grelha de leitura» permite ler a realidade social (os comportamentos dos actores sociais), compreendê-los e mesmo destacar os seus desvios face ao tipo ideal.

Tome-se o exemplo do tipo ideal de homo economicus: Trata-se de estabelecer um indivíduo fictício, que seja simultaneamente racional e maximizador. Face aos recursos disponíveis e a despeito de todos os constrangimentos que encontrar, o homo economicus é sempre utilitarista e procura sempre adoptar um comportamento que lhe permita maximizar a sua utilidade. No entanto, o homo economicus não existe como Robinson na sua ilha. Ou – tendo em conta que mesmo este acaba por encontrar o seu Sexta-Feira –, o homo economicus não tem uma relação meramente superficial com outros. Entra em interacção com outros indivíduos, mas estes surgem como jogadores de um jogo em que todos têm as mesmas cartas. Tal homo economicus não existe na realidade. Mas como tipo ideal é um pressuposto fundador da economia neoclássica, da mesma forma que a racionalidade intrínseca dos actores sociais sujeitos à sociologia compreensiva de Weber é um pressuposto fundador desta postura epistemológica em ciências sociais.

Assim, compreensão do sentido das acções de actores sociais racionais é a base da proposta de Weber para marcar o território das ciências sociais. Ao contrário da observação dos fenómenos naturais, da sua medida ou experimentação, e das conclusões lógicas que permitam a sua explicação, a proposta de Max Weber instaura uma abordagem distinta, baseada na comunicação inter-individual fundada na racionalidade comum entre cientista social e os actores sociais. Tal não significa que a observação e a medida sejam afastadas do estudo das ciências sociais. Mas apenas são aplicadas àquilo que é comum entre ciências sociais e ciências naturais: a abordagem dos comportamentos, a exteriorização da acção social.

Porém, a diferenciação introduzida por Weber relativamente às ciências naturais radica ainda numa outra questão. Segundo Max Weber a realidade é una e infinita, existindo diferentes ciências, cada qual com o seu ponto de vista, que organizam a sua pesquisa e submetem esta realidade a uma coerência particular, em função do tipo de problemas que se lhes colocam como campos científicos. Sob este

4 Repare-se como a ênfase é colocada num esforço racional, dedutivo, ao contrário do peso indutivo da sociologia positivista, em que tratar os factos sociais como coisas salienta a sua presença na realidade social como qualquer objecto do mundo físico, pronto a ser «colhido» pela observação empírica.

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ponto de vista, não existe qualquer diferença entre as ciências da natureza e as ciências do homem como ser social.

Nesta formulação não surge qualquer distinção de fundo com as ambições positivistas de entroncar as ciências sociais na grande árvore da Ciência. No entanto, não pode deixar de ser assinalada esta diferença que Weber estabelece entre a ordem do conceito ou do modelo e a variedade/amplitude da vida, da mesma forma que existe uma diferença profunda entre o mapa e o território. Todas as ciências partem de pressupostos particulares e nenhuma pode explorar e explicar a totalidade do real. Não sendo uma novidade completa, não deixa de estar ausente nas formulações mais superficiais do positivismo.

Por outro lado, a ciência está em perpétua construção e nunca pode ser dada como acabada. Como a realidade é por definição infinita, o progresso da ciência é uma espécie de mito de Sisifo.

O que é inteiramente novo é Weber acentuar que o carácter de inacabamento do edifício científico nas ciências sociais é de um tipo completamente diferente do que afecta as ciências naturais. Para estas últimas, o seu inacabamento deriva da distinção entre uma realidade infinita e métodos de apreensão da realidade finitos. Para as ciências sociais, ao progresso por acumulação de saber face a uma realidade infinita, junta-se o progresso por multiplicação e variedade de perspectivas. A multiplicação e variedade de perspectivas que enformam a problematização e a investigação em ciências sociais decorrem de duas condições peculiares das ciências sociais:

• Por um lado, da identidade entre sujeito e objecto neste campo do saber. Ora, tal identidade traduz-se em perspectivas intelectuais diferentes (filosóficas, políticas, religiosas, etc.) que fazem variar a forma como encaramos e captamos a realidade social.

• Por outro lado, a multiplicação de perspectivas é também originada pelo carácter intrinsecamente mutável (histórico) da realidade social, que por definição faz parte de uma história sempre aberta. Tal significa que os problemas que hoje se colocam nas ciências sociais não são os de ontem, nem serão os de amanhã: cada época cria a sua própria apreensão da realidade social.

O que é inteiramente novo é Weber acentuar que o carácter de inacabamento do edifício científico nas ciências sociais é de um tipo completamente diferente do que afecta as ciências naturais. Para estas últimas, o seu inacabamento deriva da distinção entre uma realidade infinita e métodos de apreensão da realidade finitos. Para as ciências sociais, ao progresso por acumulação de saber face a uma realidade infinita, junta-se o progresso por multiplicação e variedade de perspectivas. A multiplicação e variedade de perspectivas que enformam a problematização e a investigação em ciências sociais decorrem, por um lado, da identidade entre sujeito e objecto neste campo do saber. Ora, tal identidade traduz-se em perspectivas intelectuais diferentes (filosóficas, políticas, religiosas, etc.) que fazem variar a forma como encaramos e captamos a realidade social. Por outro lado, a multiplicação de perspectivas é também originada pelo carácter intrinsecamente mutável (histórico) da realidade social, que por definição faz parte de uma história sempre aberta. Tal significa que os problemas que hoje se colocam nas ciências sociais não são os de ontem, nem serão os de amanhã: cada época cria a sua própria apreensão da realidade social.

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Esta actividade de relação compreensiva entre cientista social e actores sociais, este carácter peculiar de inacabamento das ciências sociais, não pode pôr em causa o ideal de objectividade que deve fundamentar qualquer ciência?

Esta é uma questão crucial numa postura teórica e metodológica que se constrói em torno de bases individualistas e subjectivistas. Faz, por isso, parte de um dos principais temas da abordagem de Max Weber. Um dos textos fundamentais de Max Weber («O político e o cientista») refere-se exactamente a este aspecto, em que ele sustenta a distinção entre juízo de valor e referência a valores. Uma actividade científica nas ciências sociais marcada por juízos de valor é de proscrever, já que significa que o cientista social avalia as acções de outrem em função dos seus próprios princípios. Para tal, Max Weber vai acentuar a necessidade de uma neutralidade axiológica do cientista social, como forma de a sua investigação não ser influenciada por juízos de valor. Pelo contrário, a referência a valores significa que o estudo da realidade social é realizado em função de centros de interesse do cientista social, atitude que não só tem completa razão de ser, como faz parte do modo de construção peculiar das ciências sociais.

A importância assumida pelos tipos ideais na sociologia weberiana não está desligada desta necessidade de objectivar uma postura individualista em ciências sociais. Ao apresentar o tipo ideal o cientista social objectivava simultaneamente os seus centros de interesse (isto é, a forma como tinha seleccionado os aspectos decisivos, que teriam uma importância heurística na sua investigação) e ao expô-los, objectivava eventuais juízos de valor que estivessem a perverter a sua análise.

Assim, encontramos, ainda antes da Primeira Guerra Mundial, uma voz dissonante relativamente à posição epistemológica largamente maioritária, e que vai antecipar os debates que se sucedem ao longo do nosso século. Antes do século XX, o impacto de Weber é claramente diminuto, mas permite já demarcar o que muitas vezes foram designadas como as duas sociologias.

De um lado o positivismo de Durkheim. Ao declarar que as ciências sociais devem tratar os factos sociais como coisas está a aproximar a sociologia ou qualquer outra ciência social da física ou biologia. Do outro lado, temos a sociologia compreensiva de Max Weber. Para este existe uma profunda diferença entre as ciências da natureza, onde se impõe a explicação de comportamentos observados e exteriores a qualquer tipo de identificação racional e subjectiva entre sujeito e objecto, e as ciências sociais (da cultura, na expressão de Weber), onde se impõe a compreensão, isto é, a busca do sentido da acção social.

A modernidade de Weber não se destaca apenas na separação que estabelece entre o conhecimento nas ciências da natureza e o conhecimento nas ciências da cultura. Com ele, a sociologia (e as ciências sociais) perdem a ambição de procurarem encontrar determinismos (leis) de funcionamento da sociedade e dos comportamentos sociais. Também com ele desaparece um certo messianismo associado à acção do cientista social – se era possível formular leis de funcionamento da sociedade era possível transformá-la. No caso de Weber, as ambições são mais modestas.

O século XX é também marcado pelo aprofundamento dos processos de democratização e industrialização, que se estendem a cada vez mais países e regiões. O crescimento dos rendimentos reais e do nível de vida das populações cria pela primeira vez uma sociedade caracterizada pelo consumo de massas, pela democratização dos padrões de consumo. Esta tendência para um regular

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enriquecimento, nomeadamente após o final da segunda guerra mundial, origina um constante aumento do nível das expectativas sociais. A democratização criou novos canais de influência política por parte de grupos sociais e de minorias antes afastados da intervenção política ou relegados para um plano menor5.

Porém, esta é apenas uma das perspectivas – porventura a mais optimista – a partir da qual pode ser observado o século XX. O período posterior ao início da Primeira Guerra Mundial foi já apelidado a Era dos Extremos6, caracterizado pelo choque de imperialismos, nacionalismos e ideologias rivais; pelo surto de guerras globais ou regionais; por depressões económicas extremamente traumatizantes.

Não é pois de estranhar a existência de um clima propício a um pessimismo civilizacional e a uma ruptura com as visões do mundo dominantes no século anterior. A irrupção de perspectivas irracionalistas, vincando o carácter subjectivo da experiência humana ou o primado da fé, crescem neste ambiente.

É certo que algumas vozes, isoladas, contrapunham-se ao ambiente optimista que reinava no século passado. No entanto, a sua influência intelectual é muito reduzida. A filosofia de Kierkegaard (1813-1855), o filósofo dinamarquês que vai influenciar o movimento existencialista no século XX, introduz uma nota dissonante num século racionalista. Da mesma forma, a filosofia do conhecimento proposta por Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) é já uma defesa de uma abordagem individualista em ruptura com o racionalismo oitocentista.

Apenas no século XX esta abordagem individualista se articula e difunde, através de tendências filosóficas como o existencialismo ou a filosofia hermenêutica do filósofo austríaco Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951).

Duas tendências podem ser detectadas ao longo do século actual nesta afirmação de uma abordagem alternativa das ciências sociais: • Uma, na linha da tradição weberiana, tenta reconciliar rigor científico e

diferenciação epistemológica, fiel ao racionalismo oitocentista. • Outra, na linha de Dilthey ou Collingwood, é muito mais radical na sua posição

anti-positivista e afirma que todo o conhecimento em ciências sociais é interpretação. Para um autor como Hans-Georg Gadamer – tão influente em ciências sociais contemporâneas como a sociologia, a ciência política ou a história – o modelo proposto é radicalmente o da subjectividade interpretativa. Nele são duplamente salientados a subjectividade do investigador em ciências sociais, que limita a capacidade de qualquer conhecimento objectivo – isto é, recuperando o sentido das acções dos indivíduos como actores sociais –; mas também a impossibilidade de aceder à formulação de regras tendenciais dos comportamentos humanos. Pelo contrário, o máximo que se poderia obter em termos de conhecimento seria olhar qualquer acção social como sendo um texto, que deve ser sujeito a um processo de interpretação. Neste sentido todo o conhecimento em ciências sociais seria um estudo de vocabulário, de representações e de símbolos.

A filosofia hermenêutica do filósofo austríaco Ludwig Josef Johann Wittgenstein (1889-1951), que teve uma importância capital para o desenvolvimento das propostas que se articulam ao longo do nosso século relativamente à

5 Movimentos laborais em torno da acção sindical; nascimento dos movimentos visando a emancipação da mulher ou reivindicando o protagonismo das minorias étnicas. 6 Cf. o livro com o mesmo nome de Eric J. Hobsbawn (Lisboa, Presença, 1996).

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epistemologia das ciências sociais, é um testemunho da ambivalência das propostas existentes ao longo do nosso século quanto à natureza do conhecimento em ciências sociais.

Em vários aspectos pode ser considerado como um aprofundador da reavaliação da objectividade no conhecimento, sendo por isso o inspirador do positivismo lógico. A publicação do seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921) tem uma influência decisiva num conjunto de filósofos e cientistas sociais, de que o círculo de Viena (Rudolph Carnap e Kurt Godel) é a referência mais óbvia, mas onde também se incluem outros nomes como Karl Popper. A posição essencial é de que se trata de uma espécie de positivismo suave: uma teoria é uma construção intelectual, realizada com elementos fruto da observação empírica ou da mera dedução (e repare-se que com isto estava a ir mais além do que a célebre forquilha de Hume: só é válido o discurso científico que se baseia em raciocínio experimental sobre matéria de facto e existência ou em raciocínio abstracto fundado em quantidade e número), mas que tem de satisfazer uma condição – a sua confrontação com a realidade não pode comportar qualquer tipo de incompatibilidade.

No entanto, a partir de 1929 as suas aulas em Cambridge e os seus escritos (mais tarde condensados em Philosophical Investigations) põem em causa este positivismo suave, podendo ser um dos pais do pós-modernismo em ciências sociais. Ao contrário do que tinha defendido no Tractatus – uma proposição só pode resultar de uma análise, só pode ter um sentido –, a sua posição actual é a de ressaltar a pluralidade de sentidos inerente a qualquer discurso, nomeadamente o científico.

É a segunda tendência que dá origem ao que hoje é designado por pós-modernismo em ciências sociais. A exemplo das correntes pós-modernas noutros campos do conhecimento7, reivindica uma oposição face aos modelos racionalizantes, de cientificidade ou de objectividade do conhecimento em ciências sociais.

A modernidade tinha surgido como uma energia prometeica, pretendendo libertar a humanidade da ignorância e da irracionalidade. O pós-modernismo surge de um desencanto com a sociedade industrial e com as ideologias a ela associadas, mesmo as que tinham uma profunda componente crítica. Trata-se de uma corrente extremamente fluida nos seus fundamentos teóricos e onde se cruzam influências muito diversas (existencialismo, fenomenologia, hermenêutica, Nietzsche, psicanálise). Quase que a poderíamos definir como uma intrusão anárquica num campo – o das ciências sociais – que tinha alcançado ao longo do século XX uma crescente ordem interna, a par de uma também acrescida importância social. Baseia-se na afirmação de que a objectividade do conhecimento é um mito, que as interpretações sistémicas devem ser postas em causa (marxismo, liberalismo, humanismo), que o culto da tecnologia e da ciência deve ser reavaliado criticamente. Os sistemas de pensamento não seriam mais do que meta-narrativas, que antecipam as questões e que dão respostas predeterminadas e preconcebidas. (meta-narrativas em contraposição a narrativas, que não têm qualquer pressuposto de verdade). Estes sistemas de pensamento basear-se-iam em pressupostos que não são nem mais nem menos verdadeiros do que a feitiçaria, a astrologia ou os cultos primitivos.

7 A arquitectura é, porventura, o caso mais conhecido, com o surgimento a partir dos anos 70 de uma corrente que punha em causa as concepções modernistas. Face aos critérios racionalizantes e funcionais da arquitectura moderna opunham-se princípios de cunho subjectivista, por vezes com uma reminiscência directa de estilos anteriores (gótico, por exemplo) e temperados com algum humor.

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O objectivo do post-modernismo em ciências sociais não é o de formular um sistema alternativo, mas o de assumir a impossibilidade de estabelecer um sistema de conhecimento que tenha uma validade absoluta. Nesta perspectiva pode também ser assumido como o primado do relativismo8. Os pós-modernistas definem todo o objecto de conhecimento como um texto, que pode ser interpretado, de que podemos aperceber o seu sentido. Sugerem «leituras» em vez de «observações», «interpretações» em vez de «conhecimentos». O teste de hipóteses está para lá dos objectivos do pós-modernismo em ciências sociais, já que o teste exige «dados», uma palavra maldita e sem sentido no quadro de referências do pós-modernismo. Preocupação com os temas negligenciados e marginais, as zonas de resistência e de fronteira do conhecimento, o que está silenciado e esquecido.

2.4.2. Freud e a psicanálise A obra de Freud (1856-1939) constitui um dos pólos de referência para as

ciências sociais ao longo do século XX. A sua contribuição fundamental foi a de propor uma nova forma de compreender a personalidade humana, salientando a existência e a força das pulsões inconscientes. As suas teorias sobre o papel do inconsciente, sobre os efeitos da sexualidade infantil, sobre o complexo de Édipo ou sobre a transferência entre pais e filhos de comportamentos agressivos tiveram um impacto que ultrapassou largamente a psicologia e a subdisciplina da psicanálise, influenciando várias ciências sociais. Mais ainda: o primado que deu ao que era irracional e ao inconsciente ou a metodologia da psicanálise para a descoberta do reprimido e do que está para além da superfície, tiveram uma influência ainda mais duradoura nas ciências sociais.

A grande maioria dos conceitos que viriam a fazer parte da teoria e da prática psicanalíticas foram desenvolvidos ainda antes da primeira guerra mundial. Foi também nesta altura que o método da hipnose como meio de revelação do inconsciente e de catarse foi substituído pelo trabalho de livre associação e auto-análise com o paciente. A utilização da hipnose como meio de diagnóstico de traumas neurológicos e psicológicos tinha sido desenvolvida por Charcot, um célebre neurologista francês, com quem Freud estuda em 1885. Inovador e crítico para o desenvolvimento da psicanálise e da psicologia contemporâneas vai ser a substituição da hipnose pela conversa com o doente. Através das recordações espontâneas ia-se reconstituindo a raiz dos traumas psicológicos.

Por outro lado, considerando que os sonhos se assemelhavam aos relatos dos seus pacientes através do desenvolvimento deste método de recordação espontânea, Freud considerou que eles poderiam ser a irrupção de memórias ou sentimentos que não faziam parte da consciência do indivíduo. Isto era possível porque a actividade onírica quebrava temporária e parcialmente os controlos exercidos sobre o recalcamento de recordações traumatizantes. Assim, a análise dos sonhos dos pacientes poderia ser uma forma de penetrar nas causas da ansiedade ou de comportamentos anormais.

A ideia de que a mente humana é composta por vários substractos (consciente, subconsciente e inconsciente), sendo para este último recalcadas as recordações

8 Sobre o pós-modernismo em ciências sociais veja-se Pauline Marie Rosenau, Post-modernismo and the social sciences, Princeton (NJ), Princeton Univ. Press, 1992, nomeadamente caps. 1 e 7.

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traumáticas e existindo uma actividade de autorepressão para que essas recordações não se manifestassem abertamente, constituiu a ideia base da teoria psicanalítica. Daí que comportamentos e pensamentos, aparentemente incompreensíveis e podendo desenvolver-se em neuroses, pudessem ser explicados pela procura das suas causas mais profundas ao nível inconsciente. A publicação em 1900 de A interpretação dos sonhos expõe os conceitos fundamentais da psicanálise.

Mais tarde, teoriza a oposição entre dois princípios fundamentais: Eros (ou princípio do prazer) e Thanatos (princípio da morte e da repressão da mera busca do prazer individual). O recalcamento de pulsões e o surgimento de neuroses seria o resultado da não resolução dos conflitos gerados por estes dois princípios, sendo que a vida em sociedade e o próprio processo civilizacional exige a repressão das pulsões de busca do prazer individual.

Nos anos 20 do nosso século, Freud coroa a descoberta da complexidade da mente humana com a apresentação do chamado modelo estrutural da mente, composto pelo id, pelo ego e pelo superego.

Id: obedece ao princípio do prazer, e baseia-se nas pulsões básicas, libidinais e agressivas. É a sede do instintivo e do irracional.

Ego: tem a função de adequar a personalidade e os seus comportamentos à realidade social que rodeia o indivíduo. É a sede do pensamento articulado e racional, do controlo sobre as pulsões que têm de ser reprimidas.

Superego: internalização dos princípios morais e éticos de conduta, socialmente determinado.

Os traumas psicológicos nascem da incapacidade do ego conseguir cumprir o seu papel de coordenador entre os impulsos e ordens contraditórios provenientes do id e do superego. Nos casos extremos pode levar a formas de completo colapso da personalidade.

As suas teorias foram ignoradas por grande parte do mundo científico, com excepção de um pequeno número de discípulos, em que se contavam alguns dos expoentes e dinamizadores do movimento psicanalítico a nível internacional: os austríacos William Stekel, Alfred Adler e Otto Rank, o americano Abraham Brill, os suiços Eugen Bleuler e Carl Jung, o húngaro Sándor Ferenczi e o britânico Ernest Jones. Porventura, estas características deram-lhe um conteúdo inicial de seita que acabaria por marcar o seu desenvolvimento.

Na obra de Freud pouco espaço existiu para a utilização dos seus conceitos no estudo da sociedade. Em Totem e Tabu (1912-1913) tenta aplicar a psicanálise aos problemas que se relacionam com a psicologia dos povos, procurando a origem das instituições mais importantes da civilização europeia: a organização política, a moral, a religião, mas também a interdição do incesto ou à noção de remorso. Nos trabalhos publicados a seguir à guerra de 1914-1918, é mais evidente a preocupação com temas que não se restringem ao domínio específico da terapia psicológica: Psicologia colectiva e análise do ego (1921); Mal-estar na civilização (1930); Moisés e o monoteísmo (1939).

Por outro lado, sendo o método psicanalítico um trabalho sobre o discurso do paciente, procurando achar traços significativos nos sonhos ou nas recordações, então pode existir uma vantagem na transposição deste método para o estudo da sociedade, introduzindo o trabalho sobre qualquer discurso como uma tentativa de revelar o seu

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significado. Daí que – em interacção com a linguística – a psicanálise se tenha revelado fundamental para o que por vezes se designa como a ciência do simbólico.

Os antropólogos tentaram aplicar os conceitos de Freud sobre o inconsciente ao estudo das culturas primitivas. Talvez seja na relação com a antropologia que o próprio Freud iniciou algum contributo, aliás assinalado no prefácio que escreve a Totem e Tabu. Aí assinala as possibilidades abertas pelo estudo dos registos etnográficos para uma análise psicanalítica da sociedade. Os cientistas políticos utilizaram a contribuição de Freud para estudar a natureza da autoridade em termos gerais e em particular a natureza do poder político, vendo no totalitarismo a procura de uma protecção que pode ser fornecida pela segurança do poder total. A sociologia e a psicologia social foram influenciadas pelas ideias de Freud nos seus estudos sobre a motivação e a interacção sociais. De Freud veio também uma outra perspectiva frutuosa na investigação. O comportamento social é compreendido não apenas por situações externas que regem a vida individual, mas também por necessidades emocionais, associadas à vivência individual desde a infância: necessidades de reconhecimento social, de autoridade ou de auto-afirmação.

2.4.3. Marx e o marxismo Porquê colocar a obra de Marx na análise da evolução das ciências sociais no

século XX? Para além do mais, trata-se de uma corrente claramente oitocentista, no modo como se constituiu como um sistema de ideias, que pretende estabelecer respostas para múltiplos aspectos da vida social. Contudo, muito embora a vida de Karl Marx se circunscrevesse ao século passado, o seu impacto nas ciências sociais é particularmente nítido no século XX. Não que estivesse completamente ausente no século XIX. Recorde-se que Max Weber elabora o seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo como uma resposta às teses de Marx sobre o carácter de sobredeterminação da economia relativamente à superestrutura das ideias. No entanto, o impacto do marxismo nas ciências sociais é sobretudo uma realidade do nosso século, acompanhando o seu impacto intelectual e político, durante três quartos do século.

Por marxismo, devemos entender, em sentido estrito, o conjunto das teses desenvolvidas por Karl Marx (1818-1883), por vezes em colaboração com o seu amigo Friedrich Engels (1820-1895). Em sentido mais lato, o epíteto marxista aplica-se hoje em dia a uma corrente de ideias muito vasta e muito díspar.

A obra de Marx é difícil de ser caracterizada como a obra de um filósofo, de um economista, de um pensador social, de um historiador ou de um polemista. No entanto, a sua obra, muito por força dos acontecimentos históricos que transformaram o marxismo num verdadeiro mito do século XX, constitui um dos elementos mais influentes das ciências sociais.

A sua obra une num corpo doutrinário várias intenções que não dizem todas respeito às ciências sociais nem conservaram todas a sua actualidade ao longo do século XX. Encontramos aí, por um lado, uma filosofia da história, que procura entender a totalidade do passado das sociedades a partir de um fio condutor, a luta de classes, e prognosticar uma evolução futura (o fim da luta de classes numa sociedade sem classes, o fim da história). A influência hegeliana é nítida na forma como uso o conceito de dialéctica, superação e fim da história. Repare-se como encontramos aqui a referência a um método que enforma o processo de conhecimento (o materialismo

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dialéctico) e uma teoria de explicação histórica (o materialismo histórico). Na obra de Marx existe também uma teoria política visando a tomada do poder. Por último, encontra-se uma análise crítica da sociedade capitalista e a procura de instrumentos analíticos que permitam a sua compreensão. É nesta vertente que a obra de Marx se vai revelar com uma influência mais marcante para as ciências sociais: para a economia, a sociologia, a ciência política, a antropologia ou a história. Podemos dizer que nenhuma ciência social ficou indiferente ao seu impacto.

Entre os conceitos e abordagens que mais influência tiveram nas ciências sociais destaque-se, em primeiro lugar, a noção de modo de produção. Trata-se de um conceito que pretende salientar a existência de uma relação entre o desenvolvimento das capacidades produtivas de uma sociedade (tecnologia, organização empresarial), o estatuto das relações de produção (isto é, as relações existentes entre os diferentes grupos sociais / classes, de acordo com o lugar ocupado por estes no processo produtivo) e a super-estrutura institucional, política e ideológica. Uma atenção privilegiada à estrutura económica para a explicação dos comportamentos e estruturas políticas, jurídicas ou sociais foi uma das consequências desta situação. Existiu também um subproduto do materialismo histórico baseado nesta noção de modo de produção: uma visão etapista da história (modo de produção antigo / modo de produção asiático, modo de produção esclavagista, modo de produção feudal e modo de produção capitalista).

Um segundo tema revitalizado pela análise de Marx e pelo marxismo foi o da alienação social, directamente relacionado com o controlo sobre o processo de trabalho por parte do trabalhador. Destituído do controlo dos meios de produção, existiria uma alienação quer relativamente ao produto do seu trabalho, quer – em termos mais gerais – relativamente ao processo de trabalho como um todo, simbolizado pela especialização, taylorismo e cadeias de montagem. Este tema vai entroncar nas modernas críticas à sociedade de consumo. A fetichização dos produtos do trabalho humano seria o resultado de estes terem perdido essa relação com o seu produto, tornando-se realidades alheias ao trabalho humano e opressoras.

Em terceiro lugar, e relacionado com o papel central que a luta de classes tem na sua interpretação da história, existe também uma atenção privilegiada à análise e interpretação da estrutura social.

Em quarto lugar, a obra de Marx destaca o papel dos movimentos colectivos, dos grupos sociais, das classes, na definição do devir histórico, em detrimento da importância dos indivíduos, dos grandes homens ou personalidades históricas.

Por último, existe uma interpretação da economia capitalista que acentua a inevitabilidade das crises e depressões. O impacto deste último tema ao longo do século XX foi importante. Por um lado, colocava quase como inevitável a queda do capitalismo. Por outro, era fortemente apelativa tendo em conta o impacto das situações de crise na economia mundial, como foram o período imediatamente posterior à I Guerra Mundial e a Grande Depressão. O desenvolvimento do marxismo ao longo do século XX vai procurar acentuar a superioridade que soluções assentes na planificação e numa economia socialista poderiam ter para a superação dessas situações de crise. Tal facto teria consequências duradouras. . Por um lado, esteve por detrás das soluções baseadas na aplicação de métodos de economia centralizada na planificação e controlo do Estado, que foram experimentadas em vários países do Leste da Europa, na China, Vietname ou em Cuba (economias socialistas ou de

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direcção central). Por outro lado, embora de forma indirecta, não deixou também de influenciar soluções reformistas, no quadro das economias de mercado.

2.4.4. As transformações das ciências sociais no segundo pós-guerra A partir da II Guerra Mundial mudou radicalmente a importância da

investigação em ciências sociais. Mudaram igualmente as formas de institucionalização da investigação em ciências sociais. Quatro tipos de desenvolvimento foram responsáveis por estas mudanças.

Em primeiro lugar, processou-se um aumento dos fundos públicos e privados (fundações) canalizados para o financiamento de investigações no domínio das diferentes ciências sociais. Tal permitiu criar carreiras de investigadores a tempo inteiro, que passaram a não estar ligados ao ensino como tarefa fundamental9. A investigação tornou-se também o objectivo mais importante para qualquer cientista social. É em função dela que a sua progressão e reconhecimento entre os pares passou a ser referenciada. Tal facto, foi responsável pelo aumento do número de cientistas sociais existentes, num movimento que seguiu um processo idêntico ao das ciências exactas.

Em segundo lugar, deu-se uma generalização dos métodos quantitativos às ciências sociais. A economia foi a disciplina em que este desenvolvimento foi simultaneamente mais precoce e mais intenso. A econometria passou a ser uma área fundamental e de investigação de ponta na economia. Porém, os métodos quantitativos generalizaram-se a todas as ciências sociais. De tal forma, que a estatística e os métodos quantitativos se tornaram fortemente especializados para cada disciplina. Aperfeiçoou-se a utilização de métodos não paramétricos para certas ciências sociais. A cluster analysis e outros métodos de taxinomia numérica passaram a fazer parte do instrumental estatístico dos estudos em ciências sociais (análise do agrupamento do voto, ou da distribuição regional de certas características), tal como a análise factorial ou a análise de correspondências. Por outro lado, a análise de conteúdo de textos usava simultaneamente métodos quantitativos e métodos algébricos não quantitativos.

Em terceiro lugar, a revolução informática, nomeadamente a micro-informática a partir dos anos 80, modificou profundamente a investigação em ciências sociais. Esta mudança decorreu, por um lado, da quantidade de dados (numéricos ou outros) susceptíveis de serem manipulados e analisados. Por outro lado, os próprios hábitos de trabalho modificaram-se, desde a informatização das referências bibliográficas pessoais e dos seus apontamentos de estudo, até à capacidade de actualmente se processar um trabalho de investigação em equipa a muitos quilómetros de distância; funcionamento de newsgroups.

Em quarto lugar, o actual panorama das ciências sociais é marcado por um intensa profissionalização. Aquilo que antes eram actividades sobretudo limitadas ao ensino, passaram a ter utilização profissional mais utilitárias. Passou a existir uma profissão e uma prática nas ciências sociais, de mesma maneira que um médico ou um engenheiro. Até à segunda guerra mundial era raro o sociólogo, o economista ou o antropólogo que não tivesse um lugar académico. Os economistas podiam ser encontrados em bancos, na indústria, na administração púbica, ou mesmo na 9 À escala nacional o Instituto de Ciências Sociais é um bom exemplo deste papel da investigação em ciências sociais, separada do ensino superior.

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consultoria privada, mas os números eram demasiado escassos e limitados aos países mais ricos e desenvolvidos. Em suma, as ciências sociais até meados do século XX apenas tinham visibilidade no quadro académico, preocupado primordialmente com o ensino, e com alguma investigação pessoal.

Tudo mudou nas últimas décadas. Actualmente há tantos sociólogos e psicólogos fora da academia como no seu interior. O número de sociólogos, cientistas políticos ou demógrafos que se encontram na administração pública aumenta constantemente. Do mesmo modo, a disseminação de formados em ciências sociais pelas empresas privadas é também um fenómeno específico do segundo pós-guerra. Igualmente importante foi a transformação efectuada na imagem pública das ciências sociais. Hoje, numa escala sem paralelo antes da II Guerra Mundial, as ciências sociais são concebidas como disciplinas orientadoras de políticas (policy-making) e capazes de influenciar a opinião pública (opinion-making).

Esta tendência para a profissionalização, e para o aumento do prestígio e da função social das disciplinas dedicadas ao estudo do homem em sociedade, levam a que passe a existir quase que uma separação entre o trabalho original de investigação e os ofícios ligados à interpretação e análise de dados (sondagens, inquéritos, estudos de levantamento e inventariação de património artístico e cultural), em que o contributo de investigação original é reduzido, mas em que a tarefa do profissional das ciências sociais se baseie na aplicação de um corpo de conhecimentos de que é detentor.

2.4.4. Especialização e tendências interdisciplinares Fruto do aumento do financiamento para as ciências sociais e da massificação

do ensino superior, podemos constatar também o aumento do número de cientistas envolvidos nesta actividade, o acréscimo dos departamentos académicos e outros centros de ensino e investigação, bem como o grau de especialização que foi obtido. Trata-se de uma tendência que não é específica das ciências sociais: repare-se que o crescimento dos investigadores no conjunto das ciências no decurso do século XX faz com que a maior parte dos cientistas existentes ao longo da humanidade sejam ainda vivos. Este é um dos sinais da massificação da investigação em todos os ramos científicos, existente ao longo do nosso século e particularmente após a segunda guerra mundial.

Não só existiu um processo de crescimento, como também se efectuou uma difusão do seu estudo e ensino a diferentes países. No início as ciências sociais estavam circunscritas a alguns locais na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Hoje departamentos, faculdades ou centros de investigação especializados são encontrados por todo o mundo.

A especialização da investigação e do ensino foi uma tendência que se acentuou em todos os domínios científicos e a que as ciências sociais também não ficaram imunes. Isto está reflectido não apenas na variedade dos campos de investigação que são desenvolvidos, mas também nos tipos de cursos que são oferecidos nos departamentos académicos. Enquanto há algumas décadas atrás, umas duas dezenas de cursos de pós-graduação representariam a especialização e a diversidade das disciplinas no âmbito das ciências sociais, mesmo nas maiores universidades, hoje podem-se encontrar mais de uma centena de cursos de pós-

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graduação nas universidades de média dimensão. Tal especialização tem várias razões: Técnico-científicas: um aumento do conhecimento levou a uma tão grande

especialização das metodologias e das referências teóricas, de tal forma que se torna impensável qualquer ideal de conhecimento de tipo humanista. Pulverização bibliográfica, que torna difícil acompanhar o que se produz, mesmo em campos limitados do saber. Institucionais: Pela disseminação de cursos e especializações passam também

fenómenos de afirmação de poder académico.

Lado a lado com esta forte tendência para a especialização encontra-se, porém, uma tendência de sinal oposto. Trata-se do impulso para a cooperação interdisciplinar e para uma espécie de fertilização cruzada entre os diferentes ramos das ciências sociais.

Até ao início do século XX, e mesmo até ao final da II Guerra Mundial, as várias disciplinas subsistiam num estado de isolamento relativamente às outras. Que historiadores e sociólogos trabalhassem em conjunto na elaboração de curricula ou em projectos de investigação seria inconcebível. Cada ciência social tendia a seguir o quadro institucional a que estava confinada desde o século XIX.

Hoje, verifica-se uma confluência de métodos e perspectivas teóricas em qualquer uma das ciências sociais, fruto do trabalho trans e pluri-disciplinar. Daí que áreas como sociologia política, antropologia económica, antropologia histórica, sociologia económica, por exemplo, tenham feito o seu aparecimento. As técnicas de investigação de uma ciência social são transplantados com sucesso para outras. Por exemplo, se a história forneceu profundidade e perspectiva temporal aos estudos desenvolvidos na sociologia ou na antropologia, qualquer destas disciplinas exportou para a história conceitos, problemáticas e técnicas de análise, no domínio da estatística ou do uso de tratamentos de dados de modo semelhante ao que é feito pelos antropólogos.

2.4.6. Modelos teóricos O século XIX consagrou algumas tendências teóricas importantes, que foram

apresentadas há algumas páginas atrás10. O século XX encontra-se espartilhado entre duas tendências: a manutenção e aprofundamento das chamadas «grandes teorias» herdadas do século passado, das quais o exemplo mais marcante é o que se vai passar com o marxismo; uma recusa face à «grande teoria» por parte dos investigadores em ciências sociais, qualquer que seja a sua área de especialização.

A teoria tende hoje a ser específica, relacionada com este ou aquele campo de saber de uma determinada disciplina. Teorias unitárias e uniformizantes raramente são formalizadas.

No entanto, mesmo com esta cautela é possível destacar algumas tendências na investigação das últimas décadas.

10 Trata-se do reconhecimento da autonomia das ciências sociais e a sua consagração institucional, e, por outro lado, o impacto de grandes modelos interpretativos da realidade social, como sejam o positivismo ou o marxismo.

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Em primeiro lugar, o impacto que teve o tema da modernização e convergência. De algum modo retoma o tema do progresso e do evolucionismo herdado do século XIX. Retoma também as dicotomias fundadoras das ciências sociais no século XIX: a oposição entre tradicional e moderno, pré-industrial e industrial, comunidade e sociedade, solidariedades mecânicas e solidariedades orgânicas, dicotomias que faziam parte da tentativa de salientar a diferença profunda entre a sociedade nascida das duas revoluções (política e industrial), mesmo com o risco de darem a origem a um pensamento profundamente binário.

O contexto para o amplo impacto do tema da modernização, transversal às várias ciências sociais, relaciona-se com os desafios que se colocam no período pós-II Guerra Mundial. Em primeiro lugar, o clima de concorrência política e económica entre os dois grandes blocos em que se dividiu o mundo da Guerra Fria. Depois a tentativa de criação de condições para pôr fim à eclosão de conflitos tão violentos quanto os que deram origem às duas guerras mundiais. Finalmente, o reconhecimento de que a pobreza e o atraso económico de países e regiões eram problemas que diziam respeito a toda a comunidade internacional: a instauração de organismos supra-nacionais, procurando soluções para estes problemas.

Assim, a partir da II Guerra Mundial existe um processo de mobilização de investigações em ciências sociais para um conjunto de tópicos que se articulam em torno do tema da modernização. Em economia temos o surto dos estudos sobre economia do desenvolvimento, que se desdobra em história económica na tentativa de encontrar referenciais de comparação nas experiências históricas de elevação sustentada dos rendimentos per capita. Com base simultaneamente nos estudos de história económica e nos trabalhos de economia do desenvolvimento, procurou criar-se modelos baseados em estádios de desenvolvimentos (Rostow) ou em taxonomias de transições de sociedades pré-industriais para sociedades industriais (Kuznets). Em demografia o tema da modernização demográfica é também fruto de uma profusão de investigações. Retomam-se os temas malthusianos da relação entre população e recursos, com base na constatação de Alfred Sauvy (um demógrafo e economista do desenvolvimento francês) de que por vezes as revoluções industriais são atraiçoadas por contra-revoluções demográficas. Investigações sobre as designadas transições demográficas, nomeadamente as alterações ao nível da fecundidade associadas ao processo de modernização – lançamento de inquéritos sobre o tema, quer nas sociedades desenvolvidas, quer nas que estão em vias de desenvolvimento11. Em sociologia, o tema da modernização está sobretudo referenciado ao impacto na estrutura social, nas instituições e nos comportamentos colectivos da modernização económica e de processos de transformação sectorial (industrialização e terciarização) e regional (urbanização) da população. Por exemplo, procurou analisar-se as tensões sobre a família nuclear colocadas por um processo de modernização que a tinha transformado na única instituição de tipo primário em que subsistiam relações face-to-face. Ta facto tinha colocado a família nuclear sob uma pressão insustentável, responsável por processos mais acentuados de cisão12. Em ciência política, o tema da 11 Robert I. Rotberg and Theodore K. Rabb (eds.), Population and Economy: Population and History from the Traditional to the Modern World (1986); H.J. Habakkuk, Population Growth and Economic Development Since 1750 (1971); R.K. Kelsall, Population, 4th ed. (1979) (cf. Bibl. sobre transição demográfica). 12 .N. Eisenstadt (ed.), Readings in Social Evolution and Development (1970); Bert F. Hoselitz and Wilbert E. Moore (eds.), Industrialization and Society (1963), em que se analisa o impacto da modernização na estrutura social e nas instituições; Jason L. Finkle and Richard W. Gable (eds.), Political Development and Social Change, 2nd ed. (1971); Anthony Giddens,

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modernização centra-se na análise dos arranjos institucionais que estão associados aos processos de modernização económica e social. O desenvolvimento da política de massas; os fenómenos de caciquismo e de comportamentos mafiosos ou proto-mafiosos (captura de funções típicas do Estado por parte de grupos privados); a análise dos fenómenos de populismo que em várias circunstâncias estão associados a períodos de modernização económica e política nos países em vias de desenvolvimento, são alguns dos tópicos associados ao tema da modernização em ciência política. Um tema em que confluem várias disciplinas das ciências sociais é o da urbanização. A concentração da população em vastas metrópoles, fenómeno comum a todo o século XX, mas que se agudiza nos países em vias de desenvolvimento, mobiliza a investigação histórica, demográfica, económica, sociológica e mesmo antropológica. (temas: sistemas de cidades, primate cities,)13

Resta acrescentar que o tema da modernização, com um grande desenvolvimento de investigações nas décadas 50 a 70, não deixou de ser sujeito a críticas importantes, sobretudo a partir dos anos 70. Criticava-se o carácter ahistórico dos jogos binários de oposições, argumentando-se que nem todas as sociedades designadas como tradicionais ou pré-industriais estão no mesmo pé de igualdade, que não se pode colocar no mesmo plano a Inglaterra ou a França do século XVIII com o Zaire ou a Guatemala dos anos 60 do século XX.

A análise sistémica foi um outro desenvolvimento teórico realizado ao longo do século XX. O nome do biólogo Ludwig von Bertalanffy está associado a esta construção teórica. Tinha as suas raízes no desenvolvimento dos estudos sobre biologia e, principalmente, sobre cibernética que se desenvolviam nos anos 50 e 60. Visava fazer intervir na acção de cada indivíduo ou grupo social padrões de equilíbrio, de carácter homeostático, que dotassem cada sistema social de regras potenciadores e geradoras de estabilidade. Sob a denominação de teoria dos sistemas teve um grande impacto nas ciências sociais dos anos 60, procurando-se apresentar todo um programa teórico e metodológico que unisse ciências físicas e ciências sociais. Baseava-se na ideia de que qualquer sistema – físico, biológico, psicológico e social – operava de acordo com os mesmos princípios fundamentais, que podemos resumir da seguinte forma: O todo é mais do que a soma das partes, daí que se torna pouco produtivo o estudo

isoladamente de uma célula, perdendo de vista o sistema em que está integrada; Qualquer fenómeno ganha em ser entendido através de uma perspectiva

multidisciplinar: necessidade de fertilização cruzada de perspectivas teóricas entre disciplinas; Um sistema não é rígido nem permanentemente estável: interage com o meio,

evolui. Daí que mais do que a compreensão das funções desempenhadas por cada

The Class Structure of the Advanced Societies, 2nd ed. (1981); Jacques Ellul, The Technological Society (1964; ed. francesa, 1954). 13 Sobre o tema da urbanização sob diferentes perspectivas veja-se Paul M. Hohenberg and Lynn Hollen Lees, The Making of Urban Europe, 1000-1950 (1985); Philip Abrams and E.A. Wrigley (eds.), Towns in Societies: Essays in Economic History and Historical Sociology (1978); Fuad Baali and Joseph S. Vandiver (eds.), Urban Sociology (1970); Gino Germani (ed.), Modernization, Urbanization, and the Urban Crisis (1973). Jane Jacobs, Cities and the Wealth of Nations: Principles of Economic Life (1984); R.J. Holton, Cities, Capitalism, and Civilisation (1986); Brian J.L. Berry, The Human Consequences of Urbanization: Divergent Paths in the Urban Experience of the Twentieth Century (1973); R.E. Pahl, R. Flynn, and N.H. Buck, Structures and Processes of Urban Life, 2nd ed. (1983).

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uma das suas partes é importante conhecer as relações entre elas. Noções fundamentais: feedback (o modo como qualquer sistema reage perante uma mudança no meio); homeostase e autoregulação (um estado de equilíbrio relativamente estável ou a tendência para encontrar tal equilíbrio, através da adaptação das relações entre os componentes de um sistema previamente em equilíbrio); entropia (o grau de desordem ou de incerteza num sistema)

Embora com origens diferenciadas o funcionalismo e o estruturalismo representaram um momento crucial nesta panorâmica. Em variadas ciências sociais e fora delas (linguística) tiveram um impacto duradouro, que se mantém até aos nossos dias.

O conceito de estruturalismo está intimamente ligado à teoria de sistema social e à análise sistémica a ela associada. Apesar de não existir algo de novo nos conceitos que estão na base do estruturalismo – de uma forma ou de outra estão presentes no pensamento ocidental desde o século XVIII – não é menos verdade que no decorrer do século XX a visão do comportamento humano enquadrado pela(s) estrutura(s) (económicas, sociais, culturais, etc.) se tornou dominante em muitos ramos e escolas das ciências sociais. Na base desta concepção está uma tendência reactiva contra a pretensão de tratar o comportamento e acções humanas de forma atomística. Isto é, a acção social não pode ser entendida em termos de unidades simples e discretas quer de percepção, de pensamento ou de comportamento concreto. Na psicologia social o estruturalismo, no seu sentido mais simples e também mais antigo, estabelece que a percepção ocorre e o processo de aprendizagem têm por base experiências sensoriais que seguem padrões ou formas próprias e não idiossincráticas. Na sociologia, na ciência política ou na antropologia, a ideia de estrutura relaciona-se com os padrões repetitivos que são encontrados no estudo das formas de existência e de comportamento social, económico, político e cultural.

Foi na linguística e na antropologia francesa que se desenvolveu a abordagem estruturalista com contributos teóricos mais relevantes para o conjunto das ciências sociais. Em linguística, Saussure (1857-1913) vai dar origem a uma corrente que sustenta a necessidade de estabelecer uma distinção entre língua e palavra. • Por língua podemos designar o sistema de linguagem, abstracto, padronizado, que

serve de base a qualquer idioma. É este que é fruto da investigação e de estudo dos linguistas.

• Por palavra podemos designar a efectiva utilização da língua por indivíduos e grupos sociais concretos.

Esta diferença talvez possa ser melhor entendida se pensarmos no exemplo de duas orquestras diferentes tocando a mesma peça musical. A peça musical é a mesma, mas soará de forma diferente dependendo da interpretação de cada orquestra.

Ora, tal como cada indivíduo fala a sua língua, de forma individualmente diferenciada, mas relativamente a um sistema de regras, inconscientes e generalizadas, que constituem o objecto de análise do linguista, também se pode transpôr esta metáfora estruturalista para o objecto das ciências sociais. Assim, diferentes ciências sociais vão acentuar a redutibilidade dos comportamentos individuais, idiossincráticos e por vezes únicos, a padrões de comportamentos que formam a estrutura social, a estrutura do parentesco, a estrutura da religião, mitos ou rituais, ou a estrutura do sistema político.

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O desenvolvimento do estruturalismo teve na antropologia francesa um grande impulso, através da obra de Lévi-Strauss (1908-; obras: Elementary Structures of Kinship (1962); Tristes Tropiques (1964); and The Savage Mind (1966)).

Em suma, a abordagem estruturalista defende que nenhum elemento pode ser examinado ou explicado fora do seu contexto, padrão ou estrutura de que faz parte. Numa postura mais radical, pode considerar-se que o estudo destes padrões ou contextos se deve constituir na única unidade de análise.

À primeira vista pode parecer que nada distingue o estruturalismo do holismo, tal como foi formulado por Durkheim. Nada de mais enganador. Enquanto que para Durkheim a sociedade ou a estrutura social são realidades dotadas de existência própria – são coisas (reificação) – para os estruturalistas directamente influenciados por Lévi-Strauss e pela escola linguística de Saussure, a estrutura é uma criação racional, um fruto da actividade racional do homem, mas que não tem uma existência autónoma.

O conceito de funcionalismo está hoje intimamente ligado ao de estruturalismo, sendo o estrutural-funcionalismo, comum em disciplinas como a sociologia ou a antropologia. No entanto, começou por surgir como algo distinto, como iremos ver quando abordarmos a antropologia. Hoje o conceito de função em ciências sociais como a sociologia ou a antropologia refere-se ao modo como o comportamento ganha significado, não como uma unidade discreta mas como um aspecto dinâmico de uma estrutura. Neste caso a noção de estrutura tal como é formulada por autores como Radcliffe-Brown está muito mais próximo do holismo de Durkheim.

As analogias biológicas são comuns nas teorias de estrutura e de função nas ciências sociais. Comum a esta metáfora é a imagem de um organismo biológico, com a completa interdependência entre todos os órgãos (do coração aos membros) e entre todas as actividades (da circulação à respiração).

As analogias biológicas são comuns nas teorias de estrutura e de função nas ciências sociais. Comum a esta metáfora é a imagem de um organismo biológico, com a completa interdependência entre todos os órgãos (do coração aos membros) e entre todas as actividades (da circulação à respiração).

Quanto às correntes pós-modernas é difícil encontrar-lhes uma filiação comum14. Talvez o seu único denominador comum seja a de constituírem uma reacção contra as visões estruturais, sistémicas e funcionalistas, desenraizadas da vida, da análise das relações sociais concretas. Neste sentido podemos considerar que se trata da expressão radical da recusa das grandes teorias em ciências sociais.

As correntes pós-modernas existem noutros campos do conhecimento. Por exemplo, na arquitectura (o arquitecto Robert Venturi, 1925-) surgiu a partir dos anos 70 uma corrente que colocou em causa as concepções modernistas. Face aos critérios racionalizantes e funcionais da arquitectura moderna opunham-se princípios de cunho subjectivista, por vezes com uma reminiscência directa de estilos anteriores (gótico, por exemplo) e temperados com algum humor. Também nas ciências sociais o pós-modernismo reivindica uma oposição face aos modelos racionalizantes e profundamente abstractos do conhecimento. 14 Sobre o pós-modernismo em ciências sociais veja-se Pauline Marie Rosenau, Post-modernismo and the social sciences, Princeton (NJ), Princeton Univ. Press, 1992, nomeadamente caps. 1 e 7.

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No contexto do panorama das ideias, a modernidade tinha surgido como uma energia prometeica, pretendendo libertar a humanidade da ignorância e da irracionalidade. Ora, o post-modernismo surge de um desencanto com a sociedade industrial e com as ideologias a ela associadas, mesmo as que tinham uma profunda componente crítica. Trata-se de uma corrente extremamente fluida nos seus fundamentos teóricos e onde se cruzam influências muito diversas (existencialismo, fenomenologia, hermenêutica, Nietzsche, psicanálise). Quase que a poderíamos definir como uma intrusão anárquica num campo – o das ciências sociais – que tinha alcançado ao longo do século XX uma crescente importância social. Baseia-se na afirmação de que a objectividade do conhecimento é um mito, as interpretações sistémicas devem ser postas em causa (marxismo, liberalismo, humanismo), que o culto da tecnologia e da ciência deve ser recusado.

Por outro lado, um outro aspecto comum ao pós-modernismo em ciências sociais é a consciência clara das condições sociais em que qualquer conhecimento é produzido. As raízes desta auto-avaliação na produção do conhecimento científico em ciência são mais uma vez variadas. Explicitemos apenas duas: • Em primeiro lugar, retoma-se a discussão que Weber tinha lançado sobre a

objectividade em ciências sociais. Recorde-se que a solução que Weber tinha dado para este problema tinha sido a objectivação das condições subjectivas da produção de conhecimento em ciências sociais: através da auto-consciência da necessidade de afastar quaisquer juízos de valor e da tomada de consciência que o conhecimento em ciências sociais é sempre filho das preocupações de uma época e das próprias preocupações e orientações do cientista social.

• Em segundo lugar, os estudos sobre história e sociologia da ciência tinham destacado a necessidade de colocar qualquer produção científica no contexto em que tinha sido produzido. Tal é visível na obra de Thomas S. Khun, nomeadamente na análise que estabelece do modo como se estruturam os paradigmas dominantes num determinando momento e relativamente a um campo de saber. Para além disto, estes estudos vão destacar o princípio da imparcialidade do investigador do processo de conhecimento científico. Isto é, o investigador deve ser neutral relativamente à racionalidade ou irracionalidade, sucesso ou insucesso das construções científicas e intelectuais estudadas (na análise duma controvérsia científica não se deve qualquer tipo de privilégio à corrente que se afirmou como dominante).

Em variadas situações foi transposta a fronteira para um subjectivismo e relativismo radical no âmbito destas formulações pós-modernas nas ciências sociais. Se qualquer objecto de conhecimento pode ser considerado como um texto, como uma narrativa, válida por si e em si, então este pode ser sujeito a várias interpretações sem que qualquer uma possa reivindicar o estatuto de verdade. Por outro lado, qualquer expressão de conhecimento científico está sempre envolto numa retórica de convencimento. Nestas posturas mais radicais, os autores pós-modernos sugerem «leituras» em vez de «observações», «interpretações» em vez de «conhecimentos». O teste de hipóteses está para lá dos objectivos do pós-modernismo em ciências sociais, já que o teste exige «dados», uma palavra maldita e sem sentido no quadro de referências do pós-modernismo.

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Introdução às ciências sociais 1

3. A EVOLUÇÃO DAS DIFERENTES CIÊNCIAS SOCIAIS

3.1. A antropologia

3.1.1. O objecto de estudo da antropologia

Dois conceitos vão basear a formação do objecto da antropologia. O primeiro é o conceito de raça. Procurava-se compreender o modo de vida e a evolução de diferentes áreas do globo em função dos caracteres rácicos das sociedades que neles habitavam. Esta preocupação mantinha a antropologia próxima da biologia. A antropologia física surgiu como uma consequência desta relação entre diferentes comunidades humanas, o seu modo de vida e as suas características rácicas. Esta antropologia física assentava sobretudo numa antropometria: classificação dos caracteres biológicos do homem em função da sua raça (altura, dimensão do crânio, outras características físicas). O modo de vida, os hábitos eram determinados pela raça e pelos caracteres físicos.

O conceito de cultura vai assumir uma importância central para esta área do saber. Pretendia estabelecer a diferença face a abordagens biológicas e rácicas da espécie humana. Como conceito, a cultura chamava a atenção para os caracteres não biológicos, não raciais e não instintivos, que podiam definir uma civilização sob várias perspectivas: podiam definir os seus valores, as suas técnicas, as suas ideias e instituições. A cultura, como era definida na obra clássica de Edward Burnett Tylor1, Primitive Culture (1871), é a parte do comportamento que é aprendida e não herdada geneticamente: cultura é «o todo complexo que inclui os conhecimentos, as crenças religiosas, a arte, a moral, o direito, os costumes e todas as outras capacidades e hábitos que o homem adquire enquanto membro da sociedade» (E. B. Tylor).

A antropologia preocupava-se, no início da sua actividade científica e ao longo da primeira metade do século XX, com o estudo das sociedades que não foram englobadas na civilização ocidental. Tal facto vai fazer com que a definição da antropologia tome sucessivos rótulos para descrever o seu objecto de estudo, mas sempre insatisfatórios para os seus praticantes: A antropologia estudaria as sociedades «selvagens», «primitivas», «tribais», «tradicionais» ou mesmo «pré-letradas».

O que é que estas sociedades tinham em comum entre si? Eram diferentes, estranhas, face à sociedade donde provinha o antropólogo, educado nos Estados Unidos ou num dos países da Europa ocidental. Assim, a distância – não apenas ou sobretudo em termos físicos, mas principalmente em termos de modo de vida e de cultura – tem sido uma característica que vinca a especificidade do objecto da antropologia. O antropólogo já foi comparado ao «astrónomo das ciências do homem», o que revela este elemento de distância como definidor do objecto de estudo da antropologia.

Nos nossos dias os antropólogos estudam sobretudo outras sociedades que não as designadas sociedades primitivas (comunidades aldeãs de países europeus, ou mesmo zonas urbanas). Estes estudos tiveram mesmo direito a uma designação própria: a antropologia das sociedades complexas. No entanto, o primeiro campo de trabalho da 1 Antropólogo britânico (1832-1917), que lançou esta nova área do saber a partir da viagem que fez ao México em 1856.

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antropologia – o estudo de comunidades primitivas – configurou o seu objecto de estudo e a sua especificidade relativamente às outras ciências sociais.

• Continua a existir um elemento de distância – neste caso de distância cultural – entre o investigador e as comunidades humanas estudadas

• Procura-se uma abordagem globalizante da comunidade ou sociedade local estudada, pretendendo uma descrição total dos fenómenos sociais e culturais. Embora exagerando, podemos dizer que cada comunidade é vista tendencialmente como um sistema, dotado de uma coerência própria, de regras de funcionamento, de instituições e práticas sociais e culturais que tendem a reproduzi-lo.

Ao contrário do que por vezes se afirma, não é tanto o facto de a antropologia estudar comunidades locais – escolher como escala de análise o nível micro –, que determina uma abordagem contextual, totalizante, holística. A decisão tem sobretudo a ver com a qualidade das relações sociais que estão presentes nestas sociedades. Considera-se que estas sociedades se caracterizam por relações sociais «cara a cara» (face to face), ao contrário das que estão presentes nas sociedades industriais. Por outro lado, nestas sociedades não existe uma separação entre domínios – o económico, o do parentesco ou o da religião. Qualquer deles está imbricado no outro, o que determina que é impossível compreender as relações económicas, sem perceber, por exemplo, o funcionamento das relações de parentesco, ou vice-versa. Assim, há que reconstruir a totalidade do contexto que serve de enquadramento às acções e práticas sociais, como condição para as entender e explicar.

3.1.2. A antropologia ontem: evolucionismo e etnocentrismo

A antropologia começou a formar-se como disciplina autónoma a partir de meados do século XIX.

• Por um lado, tinha-se iniciado no final do século XVIII a última fase de descoberta do mundo, com todas as viagens de exploração, nomeadamente as que se empreendem para o interior de África (David Livingstone e a exploração do rio Zambeze, Malawi e cataratas de Vitória 1849-1859; Richard e John Lander exploraram o rio Niger, 1830-1831; Richard Francis Burton, a Somália e Etiópia; John Hanning Speke, o Lago Vitória).

• Por outro lado, a transformação política e industrial colocou em discussão temas que vão impulsionar o estudo sobre sociedades primitivas: qual a origem do homem? que tipo de racionalidade presidia à acção humana naquelas sociedades? existia unidade ou pluralidade da espécie humana?

Assim, a antropologia começou por estar associada a um conjunto de estudos que procuravam classificar as raças humanas; que se preocupavam com a comparação entre as características da anatomia humana; que pretendiam fazer a história dos tipos de povoamento humano; que estabeleciam uma taxionomia das línguas e uma comparação entre as regras gramaticais.

Um enquadramento que a antropologia vai ter até ao nosso século é ditado pelo modelo evolucionista, que já foi referido anteriormente. Uma das tarefas importantes que era associada à antropologia era contribuir para a classificação de diferentes

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sociedades e culturas, e definir as fases e os estádios ao longo dos quais todas as sociedades humanas passariam. Umas sociedades teriam um percurso mais rápido, outras seriam mais lentas nessa evolução do simples para o complexo, do homogéneo para o heterogéneo, do irracional para o racional.

Herbert Spencer quis explicar o devir de todas as formas de vida social por uma lei universal, a da passagem contínua da homogeneidade à heterogeneidade e da integração crescente das partes no todo. O antropólogo americano Lewis Henry Morgan (1818-1881) reafirmava também esta ideia. Defendia a existência de uma lei universal de evolução que empurraria a humanidade da selvajaria à civilização passando pela barbárie:

«É inegável que parte da família humana tem existido num estádio de selvajaria, outra parte num estádio de barbarismo, e ainda outra parte num estádio de civilização. (L. H. Morgan)

A antropologia cultural deste período procura analisar a cultura humana no espaço e no tempo. Mas ao assumir uma concepção linear da história, as descontinuidades são negligenciadas. Os relatos sobre as comunidades primitivas mais não eram do que formas de ilustrar as suas hipóteses e deduções. Isto é, especulava-se sobre a origem do Estado ou da família, utilizando-se os exemplos de outros povos como forma de ilustrar a evolução até às formas institucionais assumidas nas culturas dos antropólogos de então.

Por outro lado, era marcadamente etnocêntrica: as interrogações, as hipóteses de trabalho e o próprio modelo de síntese eram feitos em função da cultura ocidental. O etnocentrismo pode ser definido como a tendência para considerar a cultura do seu próprio povo como a medida de todas as outras. Ou dito de uma forma menos sintética, etnocentrismo é a atitude de um sujeito ou de uma colectividade que nas suas avaliações, nas suas escalas de valores e nos juízos que emite sobre um indivíduo de outro grupo ou cultura diferente, se refere sistematicamente aos seus cânones habituais, isto é, às normas do seu próprio grupo, da sua etnia ou da sua cultura.

A partir do início do século XX, muitos antropólogos começaram a repensar o método da antropologia. Aceitava-se então o que poderia ser considerado um ponto de vista mais pluralista, chamando a atenção para a variedade de sociedades e culturas. Esta postura foi acompanhada por um marcado relativismo, acentuando que cada cultura representava um desenvolvimento original e que tinha de ser assumida como um todo. Esta diversificação de perspectivas teve em Franz Boas (1899-1942)i um dos primeiros a abdicar da teoria evolucionista como forma de seleccionar os factos etnográficos relevantes. Toma por objecto de estudo a delimitação das áreas culturais e os fenómenos de troca entre culturas, insiste na ideia de complexo cultural formado por traços comuns a certos campos geográficos e transmitidos como um património comum. Por outro lado, vai incentivar os seus discípulos (Ruth Benedict, Alfred L Kroeber, Margaret Mead e Edward Sapir) a fazerem trabalho de campo.

3.1.3. A observação participante

A observação participante pode definir-se como o envolvimento directo que o investigador de campo tem com um grupo social que estuda dentro dos parâmetros das próprias normas do grupo. Neste caso, o principal instrumento de pesquisa é o

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próprio investigador e os principais procedimentos são a presença prolongada no contexto social em estudo e o contacto directo, em primeira mão, com as pessoas, as situações e os acontecimentos.

O objectivo da observação participante é despir o investigador do seu conhecimento cultural próprio, substituindo-o pelo do grupo investigado. É o exercício que tenta ultrapassar o etnocentrismo cultural espontâneo com que cada ser humano define o seu modo de estar na vida.

Este método inovador é atribuível a Malinowski e ao trabalho de investigação sobre os Melanésios da Nova Guiné (ilhas Trobriand no mar Salomão) em 1913. Partiu com um conjunto de hipóteses sobre o sistema familiar e reprodutivo, que tinham sobretudo a ver com a problemática europeia (família nuclear versus outros tipos de família). Vai concluir que não sabia nada sobre o povo que pretendia estudar e que primeiro é necessário conhecê-lo em profundidade. Vai sistematizar o método da observação participante em Argonauts of the Western Pacific (1922).

A sua importância metodológica é decisiva. Em primeiro lugar, rompe com a tradição da antropologia de gabinete, baseada em relatos de terceiros. Permite reconstruir a análise de uma comunidade ou uma sociedade local como um sistema, uma estrutura, face aos quais os comportamentos individuais observados ganham sentido. É um método particularmente adequado ao estudo, não de uma faceta isolada, mas de um tecido espesso de relações e dimensões sociais. Assim, um período longo de permanência numa sociedade local que não pode ter uma dimensão muito grande, permite a recolha intensiva de informação acerca de um vasto leque de práticas e representações sociais. O objectivo dessa recolha é duplo: possibilita a descrição dessas práticas e representações; permite a caracterização das estruturas e dos processos sociais que organizam e dinamizam essa sociedade. Assim, a observação participante estabelece uma descrição fina das práticas e representações sociais, e a explicação das acções humanas e instituições pela densidade de informação recolhida.

Do ponto de vista da iniciação que o trabalho de campo representa para a antropologia veja-se a descrição feita por John Beattie2:

«Que faz o antropólogo quando se encontra pela primeira vez no meio de uma cultura que lhe é familiar? Quer se encontre numa tribo nas florestas da África central, numa minúscula ilha do Pacífico, ou numa comunidade camponesa da Europa ocidental, aquilo que vê no início são pessoas que estão a fazer coisas, a conversar, provavelmente numa língua estranha, a ir e vir. No início tudo parece confusão. O antropólogo recém-chegado poderá distinguir os jovens dos velhos, os homens das mulheres, e poderá distinguir algumas actividades – como as de comer, beber, cavar, cozinhar, brigar – quando as observar. Poderá também reconhecer que este homem ou grupo de homens está, ou parece estar, alegre, aquele zangado, outro a lamentar-se. Mas não saberá quem é quem, por que razão estes se estão a ajudar um ao outro, aqueles dois a brigar, sobre o que estão a falar. Nesta frase preliminar, se a comunidade em questão e a sua cultura forem muito diferentes da do antropólogo, este sentir-se-à completamente confuso e perplexo. É uma experiência assustadora e pode durar muito tempo. A maioria dos antropólogos conhece a sensação de frustração e depressão – às vezes até de desespero – que acompanha as fases iniciais do trabalho de campo numa cultura

2 Other Cultures: aims, methods and achievements in social anthropology, London, 1966, p. 14.

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Introdução às ciências sociais 5

desconhecida.

Mas aos poucos, e por vezes imperceptivelmente, essa fase vai passando. Vivendo numa choça ou tenda na aldeia o antropólogo começa lentamente a compreender o que se passa à sua volta. À medida que progridem o seu conhecimento da língua e a sua aproximação à comunidade, as coisas começam a adquirir sentido. Uma conversa que ouve é compreendida; um certo modo de comportamento é relacionado com um certo tipo de relação social. Com um pouco de sorte o antropólogo já terá alguns amigos na comunidade, pessoas dispostas dar parte do seu tempo para lhe explicarem coisas, para o acompanharem pela vizinhança e o apresentarem a outros. A partir de então o ritmo acelera. O antropólogo vem a conhecer a maior parte dos membros da comunidade como indivíduos, diferentes no seu temperamento, no seu estatuto social, e no seu interesse pela própria investigação do antropólogo. Passa a conhecer os seus por vezes complicadíssimos laços matrimoniais e de parentesco; passa a compreender o que pensam um do outro, do mundo em que vivem, e dele próprio. Aprende não só quais são as perguntas apropriadas como também a quem dirigi-las. Começa a sentir-se familiarizado com a comunidade, pois sob muitos aspectos já a conhece melhor que qualquer outra comunidade, incluindo aquela na qual foi criado. Conseguiu penetrar numa outra cultura: conseguiu tornar-se um antropólogo de campo.»

Importa assinalar que a antropologia se caracteriza por estudar comunidades ou sociedades não letradas, em que não existe o documento, como fonte de informação. Assim, o antropólogo tem de, por um lado, construir o documento; por outro lado, tem de acumular informação sobre o mesmo povo para contextualizar melhor o seu comportamento.

Face a sociedades em que a memória e a contabilidade das relações sociais não passavam pela escrita, o antropólogo encarregava-se simultaneamente do seu registo e da sua interpretação. Dalgum modo, qualquer trabalho de antropologia é um trabalho de tradução:

• No sentido literal do termo, já que se trata de lidar com povos com línguas desconhecidas para o investigador.

• No sentido de tradução de práticas e condutas para instrumentos que o investigador domina – os de uma cultura letrada.

Por último, é também um método violento para os que o praticam. Violento no seu sentido mais literal: desconfiança, mesmo com alguma agressividade no início. Violento pelo despojamento de personalidade que exige por parte do investigador. É um método de intrusão na vida daquela comunidade.

3.1.4. Os correctivos ao etnocentrismo

O moderno estudo da antropologia social3 pós-Primeira Guerra Mundial, e que está sobretudo ligado aos trabalhos de Malinowski, manteve a sua autonomia como ciência social alicerçada em duas preocupações simultâneas:

3 Antropologia social ou antropologia cultural constituem denominações igualmente válidas para caracterizar a disciplina após o abandono da vertente da antropologia física.

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a) o seu campo de estudo da antropologia era a cultura, segundo o conceito expresso por Tylor;

b) comparativamente com outras ciências sociais, a antropologia diferenciava-se pela distância, física e cultural, relativamente ao objecto estudado.

Uma primeira base de ruptura dizia respeito à recusa do etnocentrismo, evidente na antropologia oitocentista e que continuava presente no início do século actual. As questões que tinham orientado a investigação em antropologia até então relacionavam-se sobretudo com a história e o devir da sociedade ocidental. Ernest Gellner dá-nos de forma bem clara essa necessidade de correcção dos desvios etnocêntricos no trabalho de investigação antropológica:

«O estudo sistemático de tribos ‘primitivas’ foi iniciado na esperança de as utilizar como uma espécie de máquina do tempo que forneceria uma visão do nosso próprio passado histórico e informações mais seguras sobre as relações entre as primeiras fases [da marcha da humanidade]. Mas verdadeiros progressos foram alcançados quando essa suposta máquina do tempo foi utilizada com vigor redobrado, mas sem qualquer preocupação quanto à reconstrução do passado: quando os agrupamentos tribais foram estudados por si e explicados nos seus próprios termos em vez de como ‘sobrevivências’ de um passado mais remoto.»4

Ao enveredar por esta ruptura Malinowski associou à antropologia social dois importantes contributos, que marcariam a disciplina até aos nossos dias.

1. A compreensão de cada cultura só pode ser realizada através de um prévio postulado ontológico, no sentido em que este postulado tem um contributo fundador e indiscutível: a aceitação da diversidade cultural. Se tal não for realizado, cada cultura é apreciada e analisada em função de referenciais que lhe são exteriores. Utilizar as interrogações, hipóteses e valores importados da sociedade ocidental impede a sua efectiva compreensão. Cada cultura tem as suas próprias preocupações e especificidades, o que exige que seja assumida como algo diverso e autónomo. A conclusão lógica desta postura de Malinowski salienta que a autonomia da antropologia como ciência social adviria de estar melhor preparada para compreender culturas diferentes da nossa. Tal devia-se ao relativismo cultural que seria a postura fundamental do antropólogo5.

2. Em segundo lugar, a observação participante seria o método que teria como função imergir o antropólogo na outra cultura. Ao fazê-lo permitiria pôr fim ao seu etnocentrismo e fazer-lhe compreender a cultura estudada como um campo de diferenças6. Para o antropólogo trata-se de algo semelhante a um segundo nascimento, uma «socialização acelerada na cultura estudada», como refere Robert Rowland7. Os vários choques culturais que podem ser provocados por esta experiência de socialização são apreendidos pelo texto de Brian Juan O’Neill visto na aula prática8.

4 E. Gellner, Thought and Change. Londres, 1964. pp. 18-19. 5 Veja-se o estudo de Clifford Geerz The interpretation of cultures, London, 1975, em que este facto é salientado como determinante para a autonomia da antropologia. 6 Cf. a secção seguinte. 7 Robert Rowland, Antropologia, História e Diferença: Alguns aspectos, Porto, Afrontamento, 1987, p. 11. 8 Brian Juan O’Neill, «Carta de regresso a Londres», Raiz e Utopia, 1978, 7-8, pp. 183-185.

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Chegados aqui uma questão pode, no entanto, colocar-se: qual o melhor método para estabelecer uma compreensão efectiva e uma análise científica de uma outra cultura? Como estabelecer o significado de acções humanas e instituições ditadas por motivações diferentes das do investigador?

O trabalho de campo com base na observação participante não é suficiente para permitir uma resposta a esta questão. É certo que permite um correctivo ao etnocentrismo, através do esforço de socialização numa outra cultura. Adicionalmente o trabalho de campo é um método de construção da informação por parte do antropólogo, sobre comunidades não-letradas. Mas isso não permite resolver um problema que diz respeito à construção não da informação, mas do conhecimento.

Este problema do domínio do conhecimento (ou da epistemologia) pode formular-se da seguinte forma: se se analisa uma cultura com padrões diferentes da cultura ocidental, como traduzir o significado de acções humanas e instituições diferentes dos nossos referenciais? O antropólogo necessita de traduzir as palavras de uma língua estranha. Mas também necessita de traduzir comportamentos de forma inteligível.

Para que tal aconteça é necessária uma condição comum a todas as traduções: que exista uma coerência lógica no interior de cada linguagem. Só assim a tradução é possível. Se as palavras umas vezes significarem uma coisa, mas outras vezes já tiverem um significado diferente, a tradução torna-se impossível.

Quando nos interrogamos sobre o problema do conhecimento nas ciências sociais deparamo-nos com o dilema epistemológico que já por duas vezes foi apresentado ao longo deste curso, embora sob forma sumária9. O exemplo da antropologia vai permitir-nos abordar este tema de forma mais concreta e um pouco mais detalhada.

Este dilema epistemológico corresponde em última análise às duas grandes tradições para solucionar o problema do conhecimento e da explicação em ciências sociais: uma, associada à obra de Émile Durkheim; a outra, que pode ser relacionada com Max Weber.

Para Durkheim a ideia de conhecimento social só tem sentido porque existe uma integração de todos os indivíduos numa chamada comunidade moral10. É esta pertença a uma comunidade moral que permite a existência de normas e valores que dão sentido e permitem a vida em sociedade. A existência de uma comunidade moral e um sentimento de pertença individual e inter-individual funda a própria existência do social como realidade cognoscível para Durkheim. Assim, por definição, o social é supra-individual e é esta definição que funda o holismo como epistemologia das ciências sociais. Segundo ela, não há qualquer possibilidade de acção humana determinadora do social. Em última análise, qualquer comportamento humano é enquadrado por normas e referenciais supra-individuais que o tornam compreensível.

Daqui decorre que os fenómenos sociais só podem existir como um campo de possível estudo científico (pensados como dotados de um carácter regular, coerente e autónomo), quando se constitui como um sistema – supra-individual, portanto –, que 9 No início do curso, quando a propósito da determinação dos principais terrenos que estas aulas iriam abordar se apresentou a dicotomia entre holismo e individualismo metodológicos. A segunda ocasião foi na apresentação das mudanças protagonizadas pelas ciências sociais no século XX, em que se falou da novidade associada à metodologia do conhecimento weberiana, relacionada com o tema da compreensão. 10 Cf. para o que se segue Anthony Giddens, Central problems in social theory, London, 1979 e a obra de Giddens já citada anteriormente.

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Introdução às ciências sociais 8

analisado torna compreensíveis as acções individuais.

Actos individuais, isolados, não podem ser objecto de conhecimento pelas ciências sociais. As crenças e os comportamentos individuais só são compreensíveis na medida em que permitem ser relacionados com o todo social em que se inserem. Desta forma, actos sem sentido aparente podem ser compreendidos quando se inserem num sistema de significações supra-individual. Do mesmo modo, o sentido literal e aparente de uma crença ou de um acto pode ser substituído por um outro significado quando referenciado ao todo social. Uma abordagem que apenas buscasse as significações inter-individuais não apenas não permitiria compreender certos actos, como poderia ser extremamente enganadora, já que tomaria o aparente pelo real.

A abordagem holista permite constituir a realidade social como passível de estudo. Assenta no que se pode definir como um postulado fundador, indiscutível nos termos em que é formulado. Qual o fundamento do postulado da integração dos comportamentos individuais numa comunidade moral? A própria existência da sociedade enquanto tal. Caso não existisse essa integração a sociedade dissolver-se-ia. As sociedades são um todo integrado porque existem, e existem porque são um todo integrado. É a circularidade deste raciocínio que dota o princípio da integração numa comunidade moral como um postulado fundador.

A abordagem individualista de Weber parte de uma outra estratégia. Ao contrário de Durkheim, Weber põe de parte qualquer possibilidade de total compreensão do outro. O sentido das acções sociais só pode ser entendido se estas tiverem o atributo da racionalidade. Se existirem aspectos da vida social que não reflectirem a racionalidade comum a todos os homens, então o investigador deixa de ser capaz de atribuir um significado – de traduzir – os comportamentos observados. Nestes termos, a compreensão – no sentido preciso que é atribuído por Weber a esta palavra – faz participar o outro numa mesma comunidade de significações que o antropólogo ou o sociólogo. O código comum são os atributos de racionalidade humana que permitem o entendimento do comportamento do homem em sociedade.

Esta posição de princípio é clarificada por Max Weber quando aborda a metodologia das ciências sociais no início da sua obra mais importante, Economia e Sociedade:

«Até que ponto pode ser-nos compreensível pelo seu sentido o comportamento dos animais (e vice-versa), (...) até que ponto pode haver, por conseguinte, uma sociologia das relações dos homens com os animais (...), é um problema que não pode ser resolvido aqui. Em si o nosso grau de compreensão do comportamento dos homens primitivos não é essencialmente maior.»

Tal posição significa que os comportamentos que não partilham dos atributos de racionalidade do antropólogo (ou do sociólogo) não podem ser objecto de compreensão. Podem ser observados e descritos, podem ser medidos e procurar-se uma regularidade de certos actos, mas não podem ser compreendidos. Pelo contrário, a compreensão dos comportamentos sociais só é possível no campo restrito daquilo que é considerado como racional.

Em suma:

1. Durkheim funda a capacidade de conhecimento nas ciências sociais na essência da sociedade, como campo de significações coerente e autónomo face ao indivíduo.

2. Weber fundamenta a sua abordagem no princípio da racionalidade humana,

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excluindo todos os comportamentos humanos que não partilhem do critério de racionalidade.

Ora, as sociedades estudadas pelos antropólogos suscitam múltiplos problemas ao princípio de racionalidade. Podemos encontrar exemplos variados de irracionalidade económica. Não neste ou naquele indivíduo, mas baseando os comportamentos sociais destas comunidades locais. Exs.: empréstimo sem juros, lado a lado com empréstimos com juros; o sistema do potlatch (que pode ser caracterizado como o esbanjamento ritual de bens, em sociedade pobres); as relações de troca (kula) estudadas por Malinowski, em que existe a troca de conchas por braceletes de madrepérola, integrada num sistema complexo de trocas materiais, mas também de um sistema de alianças. Daqui se conclui que uma relação económica, material, é um episódio numa relação social contínua. Por outro lado, certos povos (Dinka do Sudão) acreditam que todos os feiticeiros têm caudas de animais, mas depois acusam de feitiçaria homens que não têm esta característica física. Ainda sem qualquer sentido de metáfora, as crianças com deficiências congénitas são equiparadas a hipopótamos (Nuer, Sudão), por exemplo.

Onde conduz esta constatação da irracionalidade aparente destes comportamentos sociais?

Como é previsível depois deste breve percurso sobre as características das duas estratégias de recuperação do sentido dos comportamentos sociais, a postura holista é aquela que permite solucionar mais facilmente o dilema de investigação do antropólogo. É a única que reduzindo a explicação à análise da sociedade como sistema – dotado das suas regras próprias – permite um outro correctivo ao perigo do etnocentrismo.

Podemos, assim, determinar a existência de um primeiro correctivo associado ao trabalho de campo, ao imergir o antropólogo numa outra cultura, para que os testemunhos recolhidos estejam próximos da sociedade analisada. O segundo correctivo diz respeito ao método da análise, depois de recolhida a informação. Privilegia-se a reconstrução de um sistema social, de acordo com os princípios do holismo de Émile Durkheim. A outra cultura é entendida como uma totalidade, dotada dos seus elementos de significação próprios, o que constitui uma afirmação da diversidade cultural que afastaria qualquer risco de etnocentrismo. Por último, o estudo de comunidade surge investido de uma outra justificação: já que um comportamento social só é entendido no quadro de uma rede de significações, que em última análise remete para o contexto social como um todo, então a antropologia procura o estudo de sociedades locais passíveis de reconstrução dos diferentes aspectos da vida social, de produção material até às práticas simbólicas e religiosas.

Porém, esta resolução do dilema metodológico que se colocou à antropologia não resolve todos os problemas. Qualquer sociedade é compreensível como um todo e qualquer elemento no seu interior apenas é compreensível no seu contexto, foram os princípios associados ao holismo como metodologia de análise. Então tal conduz a uma irredutibilidade entre cada sociedade, cada comunidade local, cada contexto. Tal como uma criança, o antropólogo pode refazer o puzzle da comunidade estudada. Para tal não precisa de comparar as peças do puzzle com as peças de qualquer outro puzzle. No entanto, a antropologia como qualquer ciência não é o estudo do particular. Não visa a reconstrução de diferentes puzzles, sem qualquer relação entre si, mas a tentativa de relacionar entre si as diferentes abordagens ao nível do estudo de

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comunidade. A estratégia funcionalista vai ser uma forma de ultrapassar este outro dilema.

3.1.5. O funcionalismo

Para poderem ser estudadas no âmbito da antropologia as diferentes sociedades locais têm de ser concebidas como um todo coerente. Para que possam ser comparadas é preciso fundamentar essa coerência em algo que se situe para além da irredutibilidade de cada sociedade enquanto campo de significações.

A solução pode ser encontrada no conceito de função11. A ideia de função tinha inicialmente constituído uma reacção contra a abordagem evolucionista em ciências sociais, que procurava explicar a presença de instituições sociais em termos da sua origem numa certa forma mais primitiva. Nestes termos o funcionalismo começou por ser sobretudo uma forma analítica que procurava considerar a sociedade como um todo, como um sistema, de tal forma que os seus costumes próprios, as suas crenças e as suas práticas podiam ser explicadas à luz do contexto da sociedade em que se encontravam, e não à luz das suas origens. A escolha de uma outra abordagem levava a que as questões colocadas fossem diferentes. A perspectiva evolucionista colocava questões relacionadas com a génese; a perspectiva funcionalista preocupava-se com a função.

Assim, o funcionalismo em ciências sociais baseou-se no pressuposto de que todos os aspectos de uma sociedade – instituições, papéis, normas, etc. – servem um propósito e todos são indispensáveis para a sobrevivência a longo prazo da sociedade.

A ideia de função está já presente em Durkheim. Também nele está presente a relação metafórica com o organismo biológico, que marcou desde o início o funcionalismo:

«A palavra função é empregue de duas maneiras diferentes. Ora designa um sistema de movimentos vitais, abstracção feita das suas consequências, ora exprime a relação de correspondência que existe entre estes movimentos e algumas necessidades do organismo. É assim que se fala da função de digestão, de respiração, etc.; mas diz-se também que a digestão tem por função presidir à incorporação no organismo das substâncias líquidas ou sólidas destinadas a reparar as suas perda; que a respiração tem por função introduzir nos tecidos do animal os gases necessários à conservação da vida, etc. É nesta segunda acepção que entendemos a palavra. Perguntar-se qual é a função da divisão do trabalho, é perguntar a que necessidade corresponde; quando tivermos resolvido esta questão, poderemos ver se esta necessidade é da mesma natureza que aquelas a que correspondem outras regras de conduta cujo carácter moral não é discutido.»

E mais adiante Durkheim conclui que «o termo papel ou função tem a grande vantagem de implicar esta ideia [a ideia de correspondência], mas sem nada conjecturar sobre a questão de saber como esta correspondência se estabeleceu, se resulta de uma adaptação intencional ou de um ajustamento.»12

11 Bibliografia sumária sobre o funcionalismo: A. R. Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society (1952); Talcott Parsons, The Social System (1951); Robert K. Merton, Social Theory and Social Structure: Toward the Codification of Theory and Research (1968). 12 Émile Durkheim, De la division du travail social, Pais, P.U.F., 1960, pp. 11-12.

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Repare-se como nesta citação de Durkheim estão presentes as metáforas biológicas, traindo a ascendência organicista do conceito de função, relacionado com um corpo que é assumido como sistema de relações. Em seguida, note-se a forma como a função é definido como um sistema de correspondências e não como algo dizendo respeito à origem dessa correspondência ou à consciência que dela possa existir.

Bronislaw Malinowski (1884-1942), muitas vezes considerado como o pai do funcionalismo, afirma que «em cada tipo de civilização, cada costume, cada objecto material, cada ideia e cada crença preenchem uma certa função vital, têm uma certa parte a cumprir, representando uma parte insubstituível de um conjunto orgânico». Seria o cumprimento desta função que permitiria a integração social, sublinhando como em cada cultura e em cada sistema social se coordenam as diferentes partes de um conjunto provido de uma organização e de um funcionamento definidos.

Malinowski propôs que a comparabilidade fosse assegurada em torno de necessidades básicas de sobrevivência e de reprodução do homem em sociedade, ou seja, as necessidades de funcionamento e reprodução de uma sociedade humana bem organizada. Foram as seguintes as funções necessárias à sobrevivência de cada sociedade, que repunham a comparabilidade:

1. As instituições com funções económicas, que correspondiam à necessidade de produção, uso, manutenção e renovação dos utensílios e bens de consumo.

2. As instituições com funções políticas, que corresponderiam à necessidade de existência em cada sociedade de formas de poder e de autoridade que garantam o seu funcionamento.

3. As instituições com funções culturais e jurídicas, que corresponderiam às necessidades de codificação e transmissão de normas, bem como de aplicação das sanções correspondentes.

4. As instituições com funções reprodutivas, que corresponderiam às necessidades de reprodução biológica e social.

Estas funções fariam parte de uma teoria das necessidades, formulada por Malinowski. Qualquer sociedade, para existir e para reproduzir-se, teria de possuir instituições capazes de desempenhar estas funções básicas e interdependentes. Estas instituições teriam o estatuto de invariantes funcionais e, por serem invariantes – nas suas funções, mas não na sua estrutura ou nas suas relações mútuas – poderiam ser comparadas entre sociedades sem que tal comparação implicasse a assimilação de uma sociedade a qualquer outra.

A noção de função vai ter uma importante influência nas ciências sociais ao longo do século XX. Um outro antropólogo, Radcliffe-Brown (1881-1955), vai desenvolver o funcionalismo, ligando-o mais uma vez à necessidade de dar consistência interna a um sistema social. Veja-se a definição proposta por Radcliffe-Brown:

«A função de qualquer actividade recorrente é a parte que ela desempenha na vida social como um todo e, por conseguinte, a contribuição que ela traz à manutenção da continuidade estrutural» (Radcliffe-Brown, 1952, p. 180).

Repare-se como esta noção surge intimamente ligada à de estrutura social, que pode ser definida como o arranjo particular e não acidental, o padrão a que obedecem as relações sociais. Ou dito de outra forma, podemos definir a estrutura social como o

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conjunto organizado de papéis dentro da sociedade13. Por outro lado, a função é uma actividade recorrente. É por isso diferenciável das actividades efémeras ou idiossincráticas. É a sua característica de recorrência que contribui para a manutenção de uma estrutura social. Radcliffe-Brown associou numa mesma expressão esta importância recíproca entre estrutura e função: chamou-lhe o estruturo-funcionalismo.

Desta forma o antropólogo britânico Radcliffe-Brown deu ao conceito de estrutura social um papel central na sua abordagem e relacionou-o com o conceito de função. Do seu ponto de vista, os componentes da estrutura social têm funções reciprocamente indispensáveis – a existência continuada de um dos componentes está dependente da existência dos outros – e para a sociedade como um todo, que é vista como uma entidade orgânica e integrada.

Outros desenvolvimentos do conceito de função são dignos de nota. Na maior parte dos casos visam superar os aspectos mais ingénuos do funcionalismo. Robert Merton, um sociólogo americano, redefine o conceito de função14. Para ele, funções são «as consequências observadas que visam a adaptação ou o ajustamento de um dado sistema». Mas introduz igualmente o conceito de disfunção: «aquelas consequências que diminuem a possibilidade de adaptação ou de ajustamento do sistema». Salienta também a existência de dois tipos de funções: as funções manifestas e as funções latentes. Por funções manifestas deve entender-se as que resultam de actos intencionais e que são reconhecidas como tal pelos que participam numa certa situação social, enquanto as funções latentes não são nem intencionais, nem reconhecidas.

Também o sociólogo americano Talcott Parsons (1902-1979)15 procurou desenvolver uma análise dos sistemas sociais, na perspectiva do estrutural-funcionalismo defendida por Radcliffe-Brown. Procurou formular uma teoria dos sistemas e estruturas sociais que fosse válida não apenas para as sociedades primitivas (objecto da teorização de Malinowski e Radcliffe-Brown), mas que se aplicasse também às sociedades complexas. Para além desta preocupação em dar um carácter mais amplo ao estrutural-funcionalismo, Parsons procurou igualmente conjugá-lo com as preocupações de Pareto e Max Weber. Segundo esta abordagem o conceito de função era uma relação que se estabelecia entre categorias sociais relativamente estáveis. É dada uma particular atenção a estudo das condições de estabilidade, integração e actividade do sistema. No entanto, ao introduzir as preocupações weberianas de acção social, formula o conceito de papéis sociais. Um papel social pode ser definido como um padrão de comportamento individual que é reconhecido socialmente, permitindo assim um meio de identificação e de inserção de um indivíduo numa sociedade. A influência do uso teatral desta palavra não pode deixar de ser enfatizada. Tal como um actor que numa peça desempenha o papel de uma certa personagem, existe uma expectativa de um certo comportamento, dado pelo argumento, deixas e falas que permanecem idênticos. No entanto, qualquer actor individual tem um estilo que é único no desempenho do seu papel. Repare-se como neste conceito de papel social surgem factores invariantes e recorrentes, associados ao conceito de estrutura social, ao mesmo tempo que se incluem formas de algum protagonismo e liberdade individual.

13 Peter Worsley, Introdução à sociologia, Lisboa, Publ. D. Quixote, 1983, pp. 287-298. 14 Social Theory and Social Structure (1949; rev. ed. 1968). 15 The Social System (1951) e Structure and Process in Modern Societies (1960)

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Os papéis sociais incluem quer acções quer qualidades. Por exemplo, o papel social do professor exige que este dê aulas, distribua trabalhos, prepare e corrija os exames (do domínio da acção), mas também que seja dedicado, honesto e responsável (do domínio das qualidades). Resta ainda referir que os indivíduos desempenham na sua vida vários papéis sociais, que podem ou não ser compatíveis entre si (pai, filho, artista, doente, etc.), tendo cada papel certas obrigações, deveres, privilégios e direitos face aos outros indivíduos.

A influência do funcionalismo estabeleceu-se em múltiplas abordagens sociológicas e antropológicas. Veja-se, por exemplo, a abordagem dos ritos religiosos. Pondo em causa a abordagem evolucionista, os funcionalistas explicam o comportamento religioso como uma necessidade e um modo de equilíbrio de uma sociedade.

Por outro lado, a teoria funcionalista foi sujeita a uma forte crítica após os anos 60. Pela sua concepção de equilíbrio do sistema, de afastamento do conflito, foi acusada de fomentar uma visão da sociedade que defendia o status quo, e por isso pouco susceptível de compreender os processos de mudança. Lévi-Strauss formula bem o impasse a que a teoria funcionalista chegou: «dizer que uma sociedade funciona é um truísmo; mas dizer que tudo, numa sociedade funciona, é um absurdo».

O funcionalismo baseia-se numa analogia entre o organismo biológico (por exemplo, o corpo humano) e o «organismo» social. Porém, embora possamos reconhecer que o papel do coração é alimentar o corpo de sangue e possamos conceber do mesmo modo o sistema rodoviário, não podemos imaginar o coração em greve, entrando em concorrência com outros sistemas para obter recursos escassos ou fazendo parte de vários sistemas ao mesmo tempo. Contudo, o conflito, a concorrência e as contradições geram-se, a vários níveis, dentro do sistema social. Aquilo que se pode considerar como funcional para uma parte do sistema social sê-lo-à talvez menos para as outras partes ou para o sistema considerado como um todo. O nepotismo, por exemplo, pode ser funcional para a família alargada, mas menos funcional para a economia.

3.1.6. A antropologia económica: o debate entre substantivistas e formalistas

A vantagem da abordagem holística, acima apresentada, residia na possibilidade de construir um modelo de explicação na antropologia, e também no conjunto das ciências sociais, que permitisse uma explicação do sentido das acções sociais. Ao remeter para a integração do sentido das acções dos agentes individuais num todo social (comunidade, sociedade), esta abordagem tratava cada sociedade analisada como um todo coerente, autónomo e gerador de sentido.

A noção de função e a teoria funcionalista iam um pouco mais longe. Ultrapassavam a impossibilidade de comparar entre si sistemas sociais irredutíveis, limitação típica da postura holística. A existência de funções básicas recuperava a comparabilidade entre diferentes sociedades.

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A presente secção visa observar como se reflectiu na análise de temas económicos a abordagem holística e funcionalista. O surgimento da antropologia económica como uma subdisciplina da antropologia, bem como o contributo de Polanyi serão os elementos que irão ser focados.

Se se privilegiava uma postura holística para compreender as acções sociais, então tal entrava em rota de colisão com a posição epistemológica da economia clássica ou neo-clássica em que o individualismo é marcante. O conceito de escolha racional é fundamental para a economia como disciplina. Também o é a noção de mercado, onde os agentes se encontram de forma atomística.

A metáfora de Sherlock Holmes e do seu irmão Mycroft Holmes. George Dalton apresenta a seguinte diferença entre os cientistas sociais:

«Todos os cientistas sociais ou são Sherlock ou Mycroft Holmes. Os antropólogos são Sherlock: vão para o teatro do crime, observam minuciosamente, registam e colhem os vestígios, e – muitas vezes – chegam a Paddington antes de chegarem às conclusões. Os economistas são Mycroft; não vão para a cena do crime para observar os vestígios. Não têm qualquer equivalente ao trabalho de campo, porque os economistas não estão preocupados com a organização social ou com o comportamento humano, mas sobretudo com o comportamento dos preços, com as determinantes do rendimento, com os ratios capital-produto, ou outros aspectos relacionados com o desempenho de economias de mercado, industrializados e nacionalmente integradas. Aspectos institucionais, papéis pessoais e as implicações sociais da organização económica, foram desde há muito remetidos para o limbo da sociologia.»16

Esta digressão sobre a antropologia económica não tem apenas um intuito de ilustrar uma forma específica de aplicação do estruturo-funcionalismo ou de salientar uma curiosidade. A antropologia económica tem também um impacto na teoria económica, nomeadamente através da economia institucionalista.

O conceito de facto social total: uma formulação teórica do holismo (Mauss).

Marcel Mauss, sobrinho de Émile Durkheim, formula uma das primeiras concepções teóricas das relações entre fenómenos económicos e a totalidade das relações sociais.

Mauss (1872-1950) foi um antropólogo herdeiro da velha escola de síntese etnológica. Com base em múltiplas monografias etnográficas, dando mostras de uma notável erudição, mas também de interpretação inovadora, vai elaborar uma obra que marcará duradouramente a antropologia: trata-se do «Essai sur le don, forme archaiche de l’échange» (L’Année Sociologique, 1925).

Aí debruça-se sobre a prática do potlatch ou dávida, que pode ser traduzida como uma troca material inserida numa rede de prestígios e de símbolos que não pode ser reduzida à simples dimensão do económico. O princípio do potlatch, sob a sua forma mais geral, é o esbanjamento e o desafio como meios de adquirir prestígio social, e, ao mesmo tempo, a prática de fazer despesas e dávidas na competição pelo poder. Trata-se de uma distribuição cerimonial de propriedade ou de outros tipos de bens para afirmar ou reafirmar o estatuto social. Eram observadas formalidades cerimoniais nos convites endereçados, nos discursos que eram realizados, e na distribuição de

16 George Dalton, «Primitive Money», American Anthropology, 1965, p.58.

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bens pelo doador, de acordo com o estatuto social de quem os recebia. A dimensão destas reuniões reflectia o estatuto do doador. Grandes festas e uma generosa hospitalidade acompanhavam cada cerimónia de potlatch. Estas realizavam-se nomeadamente em momentos de transmissão de uma posição de poder (herança) como forma de reafirmar e validar a posição do novo sucessor. O mesmo acontecia em certas ocasiões solenes (casamentos, nascimentos, mortes), mas também em momentos mais triviais, já que o objectivo principal do potlatch não se referia à ocasião, mas sim à validação de exigências, de prerrogativas face a determinado estatuto social.

Marcel Mauss descortina no potlatch um sistema de regulação social importante, baseado na obrigação de dar, aceitar e de devolver. No seu estudo apresenta-se a existência de um laço indissolúvel entre coisas e pessoas nas sociedades primitivas analisadas. Assim, dar algo é também dar uma parte de si próprio, o que coloca a obrigação de retribuição.

Nesta perspectiva, o dom ou a dávida deve ser considerado como um facto social total: «no qual se exprime conjuntamente e de uma só vez todas as espécies de instituições religiosas, jurídicas, morais ou económicas – as quais supõem formas particulares de produção e de distribuição – sem contar com os fenómenos estéticos a que levam estes factos e os fenómenos morfológicos que estas instituições manifestam.»17

Para a economia das sociedades modernas a compreensão destas práticas é também importante, já que a dávida intervém em relações inexplicáveis pelo simples princípio da troca mercantil.

Entre os antropólogos «de campo» tinha sido já evidenciada a possibilidade de um contributo original da antropologia para o conhecimento da economia e dos complexos processos da civilização material:

- Malinowski e a kula: circulação de conchas em troca de braceletes entre as várias ilhas da Melanésia. Este intercâmbio é a base de relações de aliança política e de comércio entre diferentes ilhas.

- a obra de Herskovits: The Economic Life of Primitive Peoples (1940), que na segunda edição foi apresentada com o título Economic Anthropology (1952);

- outros trabalhos, sobretudo a partir da década de 60: por parte de antropólogos com uma formação mais sólida em economia (Firth, Leach)

Karl Polanyi e o conceito de economia

No entanto, foi a partir da obra de Karl Polanyi que um impulso foi dado à enunciação dos contributos da antropologia para uma melhor compreensão dos mecanismos económicos18.

17 Claude Lévi-Strauss (Les Structures Élementaires de la Parenté, 1949) vai assinalar a existência de uma obrigação de retribuição, correspondendo às práticas de dávida, nas relações de parentesco. 18 Bibliografia sumária: introdução de Maurice Godelier à edição francesa de Trade and Market in the Early Empires: Economies in History and Theory (esta tradução está na biblioteca da Faculdade com o título Les systèmes économiques dans l’histoire et dans l’économie); K. Polanyi, «The economy as instituted process» in Trade and Market in the Early Empires: Economies in History and Theory; Leonard Joy, «One Economist’s View of

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Introdução às ciências sociais 16

Karl Polanyi nasceu na Hungria em 1886 e viria a falecer no Canadá em 1964. Grande parte da sua carreira foi feita na Inglaterra e nos Estados Unidos, depois de fugir, primeiro da Hungria e depois da Áustria. Entre os seus principais textos encontramos o livro A Grande Transformação (1942), «A nossa obsoleta mentalidade mercantil» (1947) ou Trade and Market in the Early Empires: Economies in History and Theory (1957).

A interrogação fundamental que sobressai nos seus trabalhos em que surgem temas económicos, pode resumir-se à seguinte: qual o lugar da economia nas «sociedades primitivas»? Qual a relação das conclusões encontradas com a economia actual?

Polanyi vai introduzir uma distinção entre uma concepção formal e uma concepção substantiva da economia. Esta distinção veio a revelar-se simultaneamente muito fecunda e muito discutível. Muito fecunda porque influenciou muitos trabalhos realizados na antropologia e também em certas áreas da sociologia, como a sociologia rural. No entanto, está longe de merecer o consenso, mesmo no interior da própria antropologia. Por outro lado, as várias contribuições de Polanyi colocam-se a um nível de tal forma vago que lançou sobretudo pistas e interrogações para trabalhos futuros.

Karl Polanyi apresenta a distinção entre uma concepção formal e uma concepção substantiva em torno de uma aproximação semântica: o duplo sentido de economia ou económico.

• Num sentido substantivo, a economia é entendida como a dependência que o homem tem relativamente à natureza e aos outros seres humanos que com ele vivem em sociedade. Assim, neste sentido substantivo a economia pode ser definida pelas formas de intercâmbio entre o homem e o seu meio natural e social que permitem a satisfação das suas necessidades.

• O sentido formal, está presente na acepção da palavra nos adjectivos «económico» e «economizar». A definição de economia formal está assim associada a uma frase que costuma ser apresentada em vários manuais de economia: a economia é a utilização racional de recursos ou meios escassos para atingir fins desejados.

Apenas o primeiro sentido fornece o instrumento conceptual necessário à compreensão das práticas económicas em todas as sociedades. É o único que possibilita a comparabilidade entre diferentes sistemas económicos e sociais. É o único que possibilita tomar a organização do processo de produção e distribuição de recursos à sobrevivência (a economia) como uma função básica em qualquer sociedade, segundo a perspectiva funcionalista de Malinowski. Nesta acepção constitui-se como um instrumento privilegiado de comparação intercultural.

A redução da economia a opções entre fins desejados e meios escassos só seria característica de sistemas sociais em que o mercado organizasse o essencial das relações económicas entre os homens. Nestas condições o elemento constitutivo das relações económicas seria a subjectividade de indivíduos racionais, concebida como um atributo de uma natureza humana universal. Seria este atributo que permitiria a aplicabilidade universal dos conceitos da economia «formal». the Relationship between Economics and Anthropology» e Ronald Frankenberg, «Economic Anthropology», ambos em R. Firth (ed.), Themes in Economic Anthropology, London, Tavistock, 1967.

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Porque é que existiria uma ambivalência entre estes dois sentidos do económico? Porque é que foi o segundo sentido que acabou por impregnar a teoria económica, mantendo-se o primeiro como algo residual? Este é um dos temas que mais detalhadamente é tratado por Karl Polanyi, ao qual dedicou a sua obra fundamental A Grande Transformação (1942). Nos dois últimos séculos, a civilização ocidental passara por uma intensa modificação da sua organização económica. A economia de mercado passara a dominar as sociedades mais evoluídas da Europa e da América. Ora, era a função do mercado como formador dos preços que transmite os sinais que permitem o jogo das escolhas individuais.

A economia, como ciência que nasce para estudar os fenómenos económicos nesta sociedade, não necessitou de proceder a uma diferenciação dos dois sentidos da palavra economia. O mesmo já não acontece com outras ciências sociais, já que o estudo sobre o lugar e a função ocupados pela economia em diferentes sociedades, se confronta com uma grande variedade de instituições, para além do mercado, com as quais a satisfação das necessidades humanas está relacionada (embedded).

Como disciplina, a economia estuda um processo económico específico, temporal e espacialmente delimitado, em que uma instituição – o mercado – gera a possibilidade de escolhas individuais poderem determinar elementos essenciais da actividade económica. Todos os bens e serviços têm tendencialmente um preço de mercado e podem ser obtidos através do mercado.

Esta caracterização do processo económico estudado pela economia gera segundo Polanyi uma grande limitação: o corpo conceptual da economia não seria o mais indicado para a compreensão da actividade económica nas sociedades primitivas, já que esta não é distinta das instituições, da religião, do parentesco ou das relações sociais. Esta limitação retira-lhe a capacidade de comparação longitudinal (no tempo) e transversal (no espaço). No tempo, relativamente a períodos históricos em que a economia de mercado não dominava; no espaço, face a sociedades contemporâneas em que tal também sucedia.

Para além desta limitação, Karl Polanyi introduz uma outra restrição, decorrente da utilização duma perspectiva formal no estudo dos fenómenos económicos, embora de forma pouco desenvolvida. Este conceito de economia formal seria também incapaz de compreender os processos económicos que numa sociedade que globalmente se regesse pela economia de mercado, escapassem às suas regras: sectores marginais, como a pequena agricultura camponesa; transferências de recursos ou formas de redistribuição (estas seriam muitas vezes associadas a decisões e a processos de actuação políticos, e como tal colocadas à margem do estudo da economia como ciência).

Por outro lado, daria reduzida importância a aspectos institucionais ou sociais que seriam um contexto necessário para a existência da economia de mercado. Por exemplo, a regulamentação e a defesa dos direitos de propriedade é crucial para o funcionamento de uma economia de mercado. Uma sociedade pode ter um sistema económico formalmente assente numa economia de mercado, mas em que esta acabe por ter uma existência limitada e constrangida. A nova economia institucional – com a atenção que dá ao funcionamento das instituições que contextualizam a economia de mercado, às regras e aos contratos que vinculam os agentes económicos – é um bom exemplo destas preocupações.

Uma concepção substantiva da economia seria marcadamente diferente. Repare-se

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que Polanyi sustenta mesmo que «a origem da concepção substantiva é a economia empírica», quase que glosando a distinção entre Sherlock e Mycroft. Por outro lado, «apenas o sentido substantivo (…) é capaz de fornecer os conceitos requeridos pelas ciências sociais para uma investigação de todas as economias concretas do passado e do presente», reafirmando o carácter de universalidade de comparação no tempo e no espaço associado a esta concepção substantiva da economia.

Polanyi, nomeadamente em «The economy as an instituted process», propõe uma clarificação do que entende por economia substantiva. Na concepção substantiva, a economia devia ser definida como um processo institucionalizado de interacção entre o homem e o seu meio ambiente e social donde resultassem meios materiais de satisfação das necessidades19.

Polanyi dá particular atenção a duas palavras nesta definição: processo institucionalizado.

Em primeiro lugar, por processo pretende significar o carácter impulsionador e motor associado à interacção entre homem e meio ambiente e social. Significa que essa interacção se reflecte quer em movimentos de localização da actividade económica (produção ou transporte), quer em movimentos de apropriação (transacção / circulação e administração / controlo). Mais uma vez podemos notar o impacto que esta formulação vai ter nos trabalhos da nova economia institucional, em torno do conceito de custos de transacção, ou relativamente aos trabalhos sobre a organização empresarial.

Em segundo lugar, «institucionalizado» significa que as actividades económicas devem ser compreendidas num quadro institucional. Apenas esse enquadramento institucional dá sentido às acções individuais20, numa postura tipicamente holística. Também só o enquadramento institucional «sustenta a interdependência de movimentos e a sua recorrência, dos quais depende a unidade e a estabilidade do próprio processo económico». Dito de outra forma, só o enquadramento institucional dá ao «processo» anteriormente definido a sua unidade, a sua estabilidade e a sua faculdade de se reproduzir. Esta poderia ser uma frase tipicamente funcional-estruturalista.

É esta conclusão que leva a uma outra adenda ao conceito de economia substantiva: «A economia está inserida (embedded) numa trama de instituições, económicas e não-económicas. A inclusão de funções não-económicas é vital, já que a religião ou o governo podem ser tão importantes para a estrutura e o funcionamento de uma economia, como as instituições monetárias»21.

Daqui resulta uma conclusão lógica: a necessidade de conhecer os princípios que dotam a economia de unidade e de estabilidade. «Um estudo sobre a forma como economias empíricas foram institucionalizadas deveria começar com uma análise sobre o modo como a economia adquire unidade e estabilidade, isto é através da interdependência e recorrência das suas partes», salienta Polanyi como ponto de partida para apresentar uma concretização da sua postura quanto à análise da economia em diferentes sociedades22. Assim, o próximo passo de Polanyi é apresentar uma taxonomia dos diferentes princípios de integração, que determinam diferentes 19 K. Polanyi, «The economy as instituted process», p. 248. 20 Ibid., p. 249. 21 Ibid., p. 250. 22 Ibid., ibid.

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Introdução às ciências sociais 19

formas de institucionalização das relações económicas:

• reciprocidade – simetria dos grupos que se integram nestas relações, plena integração dos processos económicos na trama das relações sociais

• redistribuição – centralidade (instituições que permitem uma autoridade sobre os produtores: Estado, grupos de status elevado)

• troca mercantil – economia de mercado

Note-se em primeiro lugar, que esta taxonomia não pretende inspirar qualquer linha evolutiva, de uma para outra forma de integração, separando-se assim dos aspectos mais grosseiros das filosofias da história.

Em segundo lugar, a cada um destes princípios corresponde uma determinada qualidade das relações sociais e uma determinada relação entre estas e o processo económico. Num processo económico integrado pelo princípio da troca mercantil a economia encontra-se constituída como um processo autónomo; os restantes processos económicos encontram-se encravados (embedded) nas relações sociais e, por isso, não podem ser analisados com instrumentos fornecidos pela concepção formal da economia ou que derivam de uma mentalidade mercantil. Apenas quando se torna explícita a interpenetração do económico e do não-económico, é possível apreender a natureza e a coerência do processo de interacção entre o homem e o seu meio ambiente.

Por último, convém acentuar que as teses de Polanyi não constituem uma teoria. Permitem que não sejamos tão simplistas. Têm um interesse heurístico, mais do que a fundação de outra corrente 23

23 Paul Veyne em Para uma história antropológica.

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3.2. A História

3.2.1. Uma ciência social?

No início dum artigo de síntese sobre a historiografia, o historiador francês Jacques Le Goff apresenta, sem qualquer sentido irónico, a seguinte formulação sobre o carácter científico da história:

«Estamos quase todos convencidos de que a história não é uma ciência como as outras – sem contar com aqueles que não a consideram sequer uma ciência.»24

Esta citação coloca o problema fundamental da posição da história entre os diferentes ramos de saber. Para simplificar podemos dizer que existem duas posições dicotómicas quanto a esta questão. De uma parte estão aqueles que a consideram como mais uma entre as diferentes ciências sociais, com problemas próprios, mas que não são radicalmente diferentes dos que afectam qualquer outra ciência social. Tal como nestas, a prova e a refutação, as formas de explicação científica ou a objectividade analítica, não se coadunam com modelos simples importados das ciências da natureza, mas participam do mesmo padrão epistemológico25. Do outro lado, estão os que defendem que a história participa de um outro modelo de explicação, que não é comum nem às ciências naturais, nem às ciências sociais, e próprio de um outro campo do saber, denominado humanidades ou estudos humanísticos. Neste último, seriam incluídos – para além da história – a filologia, o direito, os estudos literários, filosóficos e teológicos26.

Várias são as razões para esta falta de acordo sobre o lugar ocupado pela história. Duas são particularmente importantes. A primeira, diz respeito ao facto de durante muito tempo a inteligibilidade dos factos históricos ser assegurada por um estilo baseado na narração e com o recurso a uma marcada intersubjectividade, que atribuía a personagens históricos – reis ou chefes militares, líderes religiosos ou políticos – uma posição determinante na explicação histórica. A narração e aquilo a que um historiador inglês (E. H. Carr) chamou the bad king John theory of history, contribuíram para uma mais renitente inclusão da história no campo das ciências sociais.

A segunda razão para o afastamento da história do campo das ciências sociais relaciona-se, paradoxalmente, com a sua popularidade. Assim, mais do que em qualquer outra forma de saber existe uma apropriação pelo senso comum e pela psicologia colectiva de traços de uma memória do passado. Também mais do que noutras ciências sociais existe uma apropriação e manipulação pelo(s) poder(es) da memória histórica.

Tal como a análise do desenvolvimento disciplinar da antropologia nos permitiu levantar alguns dos problemas fundamentais da epistemologia das ciências sociais, também a abordagem do percurso seguido pela história vai proporcionar uma reflexão sobre outros aspectos importantes do conhecimento em ciências sociais. Entre estes destacam-se as questões relacionadas com a objectividade, a imparcialidade e a 24 Jacques Le Goff, «História», Enciclopédia Eunaudi, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1984, p. 158. 25 Veja-se o que foi referido sobre o positivismo na secção 2.3.3. 26 A separação entre ciências sociais nomotéticas e ciências sociais ideográficas, já apresentadas no início destes apontamentos, remete para uma posição idêntica.

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generalização em ciências sociais.

Nas secções seguintes vai-se passar em revista, em primeiro lugar, a formação da história como disciplina universitária e com um programa científico ao longo da segunda metade do século passado. Depois, acentuar-se-à a ruptura desempenhada pela designada «escola dos Annales». Por fim, abordar-se-ão os problemas que se colocam hoje à história.

3.2.2. O positivismo em História: a reivindicação de um método científico

A história assume-se como uma forma de saber autónomo desde cedo na história da civilização ocidental. No entanto, tal como as restantes ciências sociais também ficou imune aos efeitos da revolução científica dos séculos XVI e XVII. Por muito tempo continuou presa a formas arcaicas de síntese e explicação do desenvolvimento das sociedades, como a crónica ou como a filosofia da história.

Vimos no capítulo 2 que três grandes influências tinham impedido a formação de um campo autónomo de estudo da realidade social: a teologia, a reverência pelos textos clássicos dos autores gregos e romanos, e o fascínio pelos processos geométrico-dedutivos preconizados por Descartes. Estes factores retardaram o desenvolvimento de uma ciência da sociedade comparável à ciência do mundo físico, e fizeram sentir igualmente a sua influência na formação da história como disciplina. Podemos acrescentar-lhes a proximidade da história em relação ao poder e o peso da filosofia da história como outras tantas razões para não existir qualquer ruptura no conhecimento comparável à que existiu nas ciências da natureza.

Foi também no século XIX que a história passou por um processo de fundação científica que foi buscar ao programa positivista os principais ingredientes para a sua afirmação. Esse programa – recorde-se – pode ser sintetizado nos seguintes elementos: reivindicação da autonomia da explicação dos fenómenos sociais; possibilidade de encontrar «leis» semelhantes às que explicavam o funcionamento da realidade física; importância da observação empírica e da interacção entre teoria e observação.

Para além dos elementos comuns às outras ciências sociais que explicam também o surto dos estudos históricos com características novas ao longo do século passado, outras razões podem ser acrescentadas. Em primeiro lugar, a formação dos modernos estados-nação. O estudo e investigação da história nacional, bem como a sua difusão escolar, passaram a constituir elementos de primordial importância para a integração nacional. Uma segunda razão deveu-se ao ideal romântico de interesse pelo passado e pela origem das instituições e costumes. Um terceiro factor deveu-se à necessidade de legitimar transformações políticas, o que levou a um surto de interesse por eventuais raízes históricas do liberalismo, ou pelo estudo das tradições e formas de afirmação popular.

Não foi por acaso que a Prússia constituiu o estado em que estas tendências se revelaram com um maior impacto. Com um ideal de unificação política dos diferentes estados independentes que se reviam numa língua comum e no medieval Sacro Império Alemão, com um pujante ensino universitário (mesmo que devesse muita da sua qualidade à concorrência e emulação entre estados que se fazia sentir), não se estranha que fosse aqui que o progresso de uma história renovada fosse maior. Pela primeira vez, grande parte dos estudos históricos passaram a ser realizados não por

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curiosos ou por amadores, mas por historiadores profissionais.

Foi precisamente com Leopold van Ranke (1795-1886), de que já falámos anteriormente27, que a história alcançou a sua identidade como uma disciplina académica, com a institucionalização de um método e modelo de investigação, que requeria uma formação e especialização. Criticou desde os seus primeiros trabalhos uma escrita da história que se baseasse na repetição da tradição e que não se fundamentasse solidamente em fontes históricas. Por outro lado, defendia que este recurso sistemático e extensivo à documentação histórica permitiria manter a objectividade nos estudos históricos.

Ranke propõe uma nova definição da história e da sua função social: «Atribui-se à história a função de julgar o passado e instruir o presente para ser útil no futuro; a minha tentativa não pretende ter tão gigantescas funções, mas apenas mostrar como as coisas realmente se passaram.» E mais adiante conclui que «não há história sem documentos, pois se dos factos históricos não foram registados documentos, ou gravados, ou escritos, aqueles factos perderam-se».

Estas duas frases revelam todo um programa disciplinar, que pretendia dar uma base científica ao estudo da história. A primeira despia os estudos históricos da sua função numa filosofia da história. Os acontecimentos históricos não deviam servir como meras ilustrações da política ou da moral, ou como quadros de uma filosofia da história. Relativamente à segunda frase sustenta-se que os factos históricos só existem como tal porque são registados para a posteridade, o que fornece um estatuto completamente novo à prática da história. Esta é uma reivindicação semelhante à que tinha sido formulada por Comte: estudar o social pelo social, e não através do recurso ao biológico ou ao metafísico. O que é que fornecia a um facto o estatuto de facto histórico? As fontes históricas, que coisificavam, reificavam, os factos sociais do passado. Com base nelas podia-se contar a história como realmente tinha acontecido.

Ora, esta busca da reconstituição da história através da procura de inteligibilidade dos fenómenos históricos fundamentou-se em três proposições:

1) o que acontece deve ser explicado em função do momento em que acontece;

2) não se deve procurar essa explicação em qualquer filosofia da história, em qualquer visão teleológica da existência de um fim, de um caminho pré-definido para o processo histórico;

3) para explicar o desenvolvimento das sociedades no passado existe uma ciência específica, usando processos lógicos e metodologias próprias, a ciência da história.

A primeira proposição está associada à recusa firme de qualquer forma de anacronismo por parte de Ranke. O anacronismo era salientado como um dos pecados mortais do historiador.

Na segunda proposição está presente a noção, também afirmada, de que «todas as épocas são iguais aos olhos de Deus». Não existem umas mais importantes que outras, nem existe qualquer linha evolucionista que coloque umas como estádios mais elementares relativamente a outras épocas. A concepção de uma recusa das filosofias

27 Leopold van Ranke nasceu em 1795 na cidade de Wiehe, na Turíngia, mas desenvolveu a partiu de 1825 a sua carreira universitária em Berlim, capital da Prússia e mais tarde centro político do Império Alemão. Faleceu em 1886.

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da história não poderia estar mais finamente expressa do que nas seguintes palavras de Ranke: «a divina Providência cuidará do sentido da história, se eu próprio cuidar dos factos».

Por último, a terceira proposição defende a institucionalização e a profissionalização da história, como uma área disciplinar e departamental autónoma no sistema universitário.

O resultado mais duradouro desta escola histórica positivista do século XIX – para além do reconhecimento universitário e da institucionalização da história como disciplina científica – foi a importância dada à criação da infra-estrutura documental que seria necessária a esta nova concepção da escrita histórica. Com um papel tão crucial para a história positivista, o desenvolvimento da recolha, preservação e publicação de grandes colecções de documentos tornou-se imprescindível. Só assim o documento teria a função que a observação tinha nas outras ciências, daria ao arquivo a função que o laboratório desempenha noutras disciplinas ou caucionaria as exigências de objectividade que a recente institucionalização universitária exigia.

Quais os principais elementos da criação desta infra-estrutura documental? O primeiro pode ser associado à recolha documental, com a formação de grandes arquivos nacionais e a profissionalização dos arquivistas, que teriam como função preservar a documentação histórica e pô-la à disposição da comunidade dos historiadores. Por outro lado, publicam-se as primeiras colectâneas de documentos históricos, como a Monumente Germaniae Historica a partir de 1826 (em Portugal, a Portugaliae Monumenta Historica, vai obedecer aos mesmos princípios). Por último, desenvolve-se o método crítico dos documentos históricos, baseado na formalização da crítica interna e externa das fontes.

3.2.3. A «escola dos Annales» e a crítica do positivismo: uma nova perspectiva do conhecimento em história e nas ciências sociais

A formação da revista Annales d’histoire économique et sociale em 1929 pode ser apresentada como o início de um período de mudança na historiografia. O seu impacto inicial deu-se na historiografia francesa. Contudo, nenhuma das historiografias europeias e extra-europeias ficou insensível ao seu impacto.

Lucien Fèbvre (1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944) foram os fundadores da revista. No seu corpo redactorial iniciaram a sua participação um conjunto de autores provenientes de diferentes ciências sociais, o que deu desde logo uma forte e inovadora base interdisciplinar à nova revista: o geógrafo A. Demangeon, o sociólogo Maurice Halbwachs, o economista C. Rist, o cientista político A. Siegfried, e quatro outros historiadores (G. Espinas, André Piganiol, H. Hauser e Henri Pirenne).

O centro de onde irradiou a nova revista foi a universidade de Estrasburgo, para onde Fèbvre e Bloch foram leccionar a partir de 1920, logo após a Alsácia e Lorena terem regressado à posse da França. Um grupo de intelectuais e professores universitários franceses foram destacados para a universidade de Estrasburgo, encetando um processo de «afrancesamento» do ensino na readquirida província. Lucien Fèbvre, Marc Bloch, alguns dos seus colaboradores na redacção da revista (Maurice Halbwachs, A. Siegfried, André Piganiol, entre outros), bem como outros cientistas sociais que mantiveram ligações com a nova revista (Gabriel Le Bras, o psicólogo

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Charles Blondel, Charles-Edmond Perrin, Georges Lefèbvre), todos eles leccionaram mais ou menos duradouramente na Universidade de Estrasburgo. O membro mais destacado da revista no panorama historiográfico europeu – o historiador belga Henri Pirenne – também foi frequentemente à universidade de Estrasburgo. Assim, o interesse político no afrancesamento do ensino da Alsácia-Lorena transformou Estrasburgo num dos centros universitários mais dinâmicos, com uma das mais ricas bibliotecas universitárias, local de frequentes visitas de especialistas estrangeiros e palco de colóquios e encontros científicos.

Resta acrescentar que nenhum dos animadores da revista – com excepção de Henri Pirenne – tinha uma posição universitária forte ou uma reputação solidamente firmada nos meios científicos. Os Annales eram por isso excêntricos relativamente à geografia das instituições universitárias francesas com mais prestígio no início do século XX, identificadas com a Sorbonne. Esta distância não se vai manter durante muito tempo. Nos anos 30 Lucien Fèbvre e Marc Bloch saíram de Estrasburgo e foram para as duas instituições universitárias mais prestigiadas do país28. Tal representou o início do reconhecimento institucional do programa proposto pela «nova história».

O programa que defendiam para uma nova história era também completamente excêntrico face às tendências dominantes na historiografia francesa e internacional. Um grande objectivo animava a nova revista: fazer recuar o «espírito de especialidade», existente tanto na história como nas outras ciências sociais, e que fazia com que economistas, historiadores ou sociólogos se ignorassem, e que no interior da história fazia com que cada área se acantonasse no seu pequeno território. A constituição do corpo redactorial era um sinal do interesse que a interdisciplinaridade representava para a nova revista29.

Dois outros propósitos se descortinam na revista. O primeiro dizia respeito à preocupação com o estudo da história contemporânea, de forma a que – como salientava L. Fèbvre – «se abatesse o muro que separa a maior parte das vezes a história económica e o estudo económico do presente». O segundo está também referido nesta citação. Relaciona-se com a importância que a história económica e social assumem nos objectivos de promoção da publicação de estudos por parte da nova revista.

Desde o início a revista serviu como instrumento de debate e de divulgação de novas concepções no domínio da investigação historiográfica. Porém é ousado dizer que existiu uma escola dos Annales, se com isto se entender uma unidade teórica entre os seus colaboradores ou mesmo entre os seus principais animadores, desde a sua fundação até aos anos mais recentes30.

Uma primeira conclusão pode-se, pois, retirar relativamente ao papel desempenhado 28 L. Fèbvre vai entrar como professor para o Collège de France, em Paris, e Marc Bloch foi para a Sorbonne ocupar a única cátedra de história económica existente em França. 29 O objectivo destas notas não é o de apresentar o contributo historiográfico dos Annales, que é extremamente rico. Para uma síntese acessível veja-se o artigo já citado de Le Goff e o texto de Stuar Clark, «The Annales historians», in Q. Skinner (ed.), The Return of the Grand Theory in the Social Sciences. Cambridge, Cambridge University Press, 1989. (existe trad. portuguesa na ed. D. Quixote). 30 Depois da morte de Marc Bloch em 1944, enquanto membro da resistência francesa aprisionado pelos alemães, a revista foi dirigida por Lucien Fèbvre. Entre 1956 e 1968 Fernand Braudel torna-se o director da revista. A partir desta data um colectivo de historiadores em que se incluem Jacques Le Goff, E. Le Roy Ladurie, Marc Ferro, dirige a revista.

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pelo surgimento dos Annales no quadro das ciências sociais francesas: a necessidade de uma cooperação entre as diferentes ciências sociais, assente num ideal de interdisciplinaridade e de comunhão de problemas e de métodos. No entanto, esta conclusão tem de ser temperada com duas outras referências importantes.

Não se pode dizer que a reivindicação de uma maior interpenetração de problemáticas entre as diferentes ciências sociais fosse uma novidade. O sociólogo François Simiand tinha publicado em 1903 um artigo que defendia a unidade do objecto (o estudo dos factos sociais) e do método que devia permitir a reunião de historiadores, sociólogos, economistas ou geógrafos numa única ciência social: a sociologia31. L. Fèbvre e M. Bloch vão defender um programa idêntico de unificação de problemáticas e de metodologias. Só que seria a história que deveria ocupar o lugar central que Simiand associava à sociologia32.

Por outro lado, e apesar das declarações de princípio, a revista tornou-se sobretudo uma revista de história. Embora sempre aberta à novidade e à contribuição de outras disciplinas, a revista não escondia o predomínio da história entre as suas colaborações.

Por último, esta supremacia estendeu-se às instituições universitárias e de investigação no âmbito das ciências sociais. O exemplo da direcção da École des Hautes Études en Sciences Sociales, a instituição francesa mais prestigiada da investigação em ciências sociais, é elucidativo. O seu primeiro director foi Lucien Fèbvre, a que se sucedeu F. Braudel. Hoje é dirigida por Maurice Aymard. Traço comum entre eles: todos são historiadores.

Em suma, o ideal de interdisciplinaridade concretizava-se numa posição de hegemonia, de imperialismo por parte da história33. Como afirmam Jacques Revel e Roger Chartier ao fazerem o balanço da trajectória dos Annales:

A sua hegemonia institucional alia-se a uma reivindicação de princípio: a todas as outras ciências sociais a história propõe simultaneamente uma espécie de experimentação no passado e o lugar necessário para uma confrontação interdisciplinar, «uma das possibilidades de linguagem comum com vista a uma confrontação das ciências sociais» (F. Braudel). É colocada toda a ênfase na integração das ciências sociais cujas aquisições parecem constituir uma espécie de fundo comum ao qual cada um pode pedir emprestado o que entender. Não é surpreendente que acantonada na sua posição institucional tenha sido a história a principal beneficiária desta interdisciplinaridade fracamente articulada: ela oferecia-lhe em simultâneo o campo de experiência mais vasto e o discurso científico menos codificado – e por isso o mais acolhedor. É ainda Fernand Braudel que o reconhece com grande lucidez no seu grande artigo sobre «A longa

31 François Simiand, «Méthode historique et science sociale», Révue de Synthèse Historique, 1903. 32 Ao contrário da sociologia, a história tinha uma posição de supremacia na estrutura universitária francesa. A história era a única disciplina social que até ao início dos anos 50 que tinha uma estrutura departamental autónoma: a sociologia estava associada à filosofia na estrutura departamental das faculdades; a economia estava integrada nas faculdades de direito; a etnologia estava na Maison de l’Homme, não integrada por isso na estrutura universitária. 33 Para uma apresentação dessa posição de hegemonia vejam-se os textos de L. Fèbvre, «Viver a história», Combates pela História, Lisboa, Presença, 1977 e F. Braudel, História e ciências sociais, Lisboa, Presença, 1976.

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duração»: «A história – talvez a menos estruturada das ciências do homem – aceita todas as lições da sua vizinhança e esforça-se por as repercutir».

Assim, a herança positivista de uma história factual, da qual a teoria estava ausente, constituía-se como um meio ambiente ideal para a porosidade necessária à integração dos contributos das outras ciências sociais. O namoro inicial transformava-se numa relação de promiscuidade, mas sob o domínio da história.

No entanto, nas últimas décadas esta ambição hegemónica foi posta em causa. A interdisciplinaridade reivindicada pela história e a especialização problemática que lhe sucedeu – a que não é estranho o estilhaçamento de áreas disciplinares no interior das várias ciências sociais – provocou um movimento centrífugo no interior da história. Tal movimento pôs em causa a ambição de uma história forte e hegemónica. Cada vez mais o campo dos saberes no interior das ciências sociais se torna mais especializado e localizado em certos temas. A história, que tinha sido permeável à extensa infusão nas problemáticas e metodologias de outras ciências sociais, acabou por ser a disciplina que mais sofreu o impacto desse estilhaçamento. A dilatação e diversificação dos campos de interesse da disciplina histórica ao longo dos últimos setenta anos acabou por aproximar as múltiplas áreas especializadas das ciências sociais com que tinham mais afinidade.

O combate dos Annales e o dos seus mentores não se ficou pela exigência de uma postura interdisciplinar mais ousada por parte da história. A história positivista – que tinha proposto um método e um estatuto científico para a história – encontrava-se sobre o fogo dos ataques de Lucien Fèbvre ou de Marc Bloch:

• no que representava de história narrativa, preocupada apenas com a sucessão lógica dos acontecimentos históricos;

• na confiança cega que atribuía ao documento histórico.

A primeira crítica dirigia-se a uma escrita da história superficial e simplista, que apenas procurava reconstituir a sucessão dos acontecimentos históricos numa narrativa sobretudo política.

Ora, ao fazê-lo incorria em duas grandes dificuldades. Uma, relacionava-se com a própria postura relativamente ao resultado da síntese histórica. Longe de estar a «contar o que realmente se tinha passado», como propunha Ranke, os historiadores tradicionais estavam a fazer uma escolha de um certo modelo de inteligibilidade do passado. A reconstituição histórica proposta, baseada na narrativa política, era um dos modelos possíveis.

Para além disto, a escolha realizada – ao circunscrever-se à história política – era uma escolha desajustada para uma explicação adequada do passado. Lucien Fèbvre diz precisamente isto quando afirma, em comentário a uma história política e diplomática da Europa, que ela recusa a investigação dos «motivos reais, profundos e múltiplos desses grandes movimentos de massas que tão depressa levam as colectividades nacionais a unir-se e a colaborar pacificamente, como as lançam umas contra as outras. [...] Ora, estes motivos, é evidente que não devemos procurá-los apenas no humor, na psicologia e nos caprichos individuais dos ‘grandes’, nem no jogo contraditório das diplomacias rivais. Há-os geográficos; há-os económicos, sociais também e intelectuais, religiosos e psicológicos.»

A segunda crítica – e a que teve reflexos mais profundos – feita pela «escola dos

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Annales» à forma positivista de fazer história, dirigiu-se à noção de facto histórico. Foi de tal forma impiedosa, que atacava todos os fundamentos da escola histórica.

Contra o postulado positivista, Lucien Fèbvre e Marc Bloch defendiam que não existia uma realidade histórica que fosse fornecida ao historiador, cuja missão consistiria em lê-la através da documentação histórica. Face a esta noção ingénua de facto histórico e de documento, contrapunha-se a afirmação de que a construção da síntese histórica por parte do historiador é feita através de um processo de escolha das informações relevantes.

O ideal positivista, baseado na utilização do documento histórico como garantia de cientificidade do trabalho do historiador, pode ser equiparado a uma das regras do jornalismo liberal: «os factos são sagrados, a opinião é livre». Ora, os documentos históricos não são uma garantia de cientificidade e de objectividade em história.

Em primeiro lugar, o facto histórico é construído pelo historiador, como foi sistematicamente salientado por Lucien Fèbvre ou por Marc Bloch:

«Dado? Não, criado pelo historiador e, quantas vezes? Inventado e fabricado, com a ajuda de hipóteses e conjecturas, por um trabalho dedicado e apaixonante… Elaborar um facto é construí-lo. Se quisermos, uma questão dá-nos uma resposta. E, se não há questão, não fica mais que o nada» (Sessão inaugural no Collège de France, 13 de Dezembro de 1933).

Esta citação de Lucien Fèbvre coloca dois dos problemas fundamentais na nova concepção de facto e de documento histórico defendida pela escola dos Annales:

• A definição de que qualquer facto histórico é fruto de um trabalho de construção por parte do historiador;

• A definição de que só existe facto histórico no interior de uma história-problema. Esta expressão coloca em causa a concepção positivista de que a função do historiador era contar o que realmente se tinha passado, como se o processo de inteligibilidade histórica não fosse fruto de escolhas.

A reconstrução da noção de facto histórico por parte da chamada escola dos Annales assenta, assim, em vários postulados:

1. Os factos históricos nunca nos chegam em estado puro, mas são fruto de uma escolha e de uma interpretação do seu significado por parte do historiador.

2. Deve-se distinguir facto histórico de acontecimento. Só existe facto histórico quando a um determinado acontecimento lhe é atribuída relevância na inteligibilidade do passado.

3. O terceiro elemento a tomar em consideração relativamente ao facto histórico é que o processo de escolha por parte do historiador – mesmo que dotado de toda a objectividade – é sempre o resultado de preocupações ditadas pelo presente e pelos problemas e hipóteses de explicação colocados.

Depois da crítica do conceito de facto histórico é também a concepção de documento histórico que é dessacralizada:

1. Olhando agora para o documento histórico, este não pode ser considerado uma realidade inerte. Não é fruto de um processo de produção neutro por parte das

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instituições ou indivíduos que o fizeram34, nem é sequer casual a sua sobrevivência até aos dias de hoje.

2. O documento histórico dispõe de vários níveis de significação, que apenas podem ser captados depois de sujeito a um processo de reconstrução de todos os seus significados35.

3. Por último, o documento histórico apenas fornece respostas quando as questões certas são colocadas. É isto que está subjacente à ideia de uma história-problema capaz de fornecer interrogações que criem novos factos históricos e novos níveis de significação no documento.

Podemos assim dizer como Lucien Fèbvre que «no século XIX, no princípio era o documento; hoje, no princípio era o problema».

Esta revisão da noção de facto histórico e da relação entre o historiador e o documento foi responsável por uma maior relativização do trabalho do historiador. Existe um duplo fundamento para esta irrupção do relativismo numa disciplina que décadas antes se permitira dotar de uma armadura positivista. O conhecimento histórico como construção inteligível, é influenciado pelo contexto social (postura teórica, filosófica, do próprio historiador; contexto político e social que valida as preocupações do período em que o historiador vive) que rodeia o historiador na selecção dos elementos susceptíveis de constituírem a síntese histórica. Por outro lado esse conhecimento histórico é feito com base em documentos que não são neutros (dessacralização do documento histórico). Logo, esta construção inteligível é influenciada pelo modo como se produziram discursos sobre o passado pelos seus próprios contemporâneos.

Em qualquer dos casos existe uma irrupção do relativismo na disciplina histórica. Não se acede a um conhecimento absoluto do passado, mas relativo a modelos teóricos e preocupações do presente. A mesma postura relativista pode ser aplicada à concepção de documento e de facto histórico. No limite pode negar o carácter de ciência à história:

1. Como construção por parte do historiador toda a história seria uma ficção36.

2. Fruto de preocupações do presente, um conhecimento histórico objectivo seria inacessível.

Para além deste cepticismo radical, a revisão da noção de facto histórico e de documento trouxe consigo também uma nova definição da história como disciplina. Marc Bloch contrapõe à definição «história, ciência do passado» uma outra definição: «história a ciência dos homens no tempo».

Nesta definição estão presentes três aspectos distintos:

• Em primeiro lugar, o objecto da disciplina histórica era a história humana e não 34 Salvo raras excepções, a documentação histórica massiva que sobrevive do passado é o resultado do trabalho de instituições de controlo social (igreja, Estado, por exemplo). Muito poucas vezes os actores históricos se expressam pela sua voz e existem largas camadas da população que não deixaram qualquer marca autónoma da sua presença. 35 C. Ginzburg, Micro-história e outros estudos, Difel, 1991, nomeadamente «O inquisidor como antropólogo...». Aí apresenta-se o modo como processos da Inquisição, realizados com um intuito claramente repressivo podem permitir a abordagem da visão do mundo de grupos como o campesinato ou as mulheres. 36 Cf. Hayden White, Metahistory, Baltimore, Johns Hopkins Univ. Press, 1973.

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a da natureza. Existe uma enorme diferença entre a história humana e a história da natureza: o homem delibera, a natureza não (Paul Veyne). Embora tenha existido uma tendência recente para alargar o âmbito da investigação a temas como a história do clima.

• Em segundo lugar, não é o homem no singular que está referenciado na definição. Lucien Fèbvre acentuava que o objecto da história era «não o homem, nunca o homem», mas sim «as sociedades humanas, os grupos organizados».

• Em terceiro lugar, Marc Bloch pensava que as relações entre o presente e o passado são recíprocas. Isto é, o passado pode ser um contributo para compreender o presente (atitude tradicional), mas o presente elucida também o passado, defendendo quer a aplicação de um método «prudentemente regressivo» (nas suas próprias palavras), quer a importância das problemáticas contemporâneas para elucidar os acontecimentos passados. Em síntese recente, Jacques Le Goff chega mesmo a afirmar que «toda a história é bem contemporânea, na medida em que o passado é apreendido no presente e responde, portanto, aos seus interesses, o que não é apenas inevitável, como legítimo». Retoma aqui posições muito mais antigas, defendidas por Dilthey ou por Benedeto Croce, embora sem as envolver de um relativismo e cepticismo radicais37.

Esta última concepção está plena de consequências. Com ela o trabalho do historiador deixa de ser considerado como interrogação de um passado que se constitui como objecto independente. As concepções e ideias do historiador relativamente ao presente impregnam também o seu trabalho de investigação histórica. Não apenas com uma conotação negativa – como sinónimo de falta de objectividade –, mas como algo inerente ao trabalho de abstracção necessário a qualquer ciência. A colocação de hipóteses e problemas de investigação ou a leitura da própria documentação histórica estão impregnadas pelo lugar social do historiador.

Concepção que é nova, mas que também é simultaneamente fecunda e perigosa, como refere Jacques Le Goff38. Fecunda, porque permite enriquecer a compreensão do passado através de novas problemáticas, da constituição de novos objectos de estudo decorrentes de questões que parte da realidade presente. Exs.: os problemas do desenvolvimento económico contemporâneo influenciam o estudo de experiências históricas de crescimento económico; o surto do feminismo faz surgir uma história das mulheres; o interesse crescente pelo estudo de grupos marginais, não é inseparável da influência da cultura underground no mundo contemporâneo. Perigosa, porque acentua o relativismo do trabalho histórico. O passado torna-se assim fruto de uma reinterpretação e reconstrução constantes, quase que se podendo dizer que é dotado de um futuro. A aparente incongruência desta expressão tem a ver precisamente com a noção de que qualquer presente reinventa o seu próprio passado. Naturalmente que existem certos factos que são dados adquiridos. A data da morte de Dom João II é um dado incontroverso, tal como a da implantação da República. Mas a interpretação política do reinado de Dom João II ou a análise do próprio 37 «Os requisitos práticos que estão subjacentes a todo o juízo histórico dão a toda a história o carácter de história contemporânea porque, por muito remotos no tempo que os acontecimentos narrados possam parecer, a história na realidade refere-se às necessidade e situaçõe presentes em que esses acontecimentos ecoam» (B.. Croce). 38 J. Le Goff, «História», Enciclopédia Einaudi, p. 163.

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acontecimento – revolta republicana – são sujeitas a variadas interpretações, que entre outros aspectos reflectem as preocupações dos historiadores que as formulam.

Mas não são apenas as interrogações e problemas que fazem mudar a interpretação da história, e com isso a própria síntese histórica. As informações existentes sobre o passado não são imutáveis, significando que não há uma base documental que esteja constituída num determinado momento e que a partir de então vá sendo objecto do trabalho da comunidade dos historiadores: trabalhos arqueológicos continuam a trazer novos elementos de compreensão das sociedades do passado; novos fundos documentais vão sendo descobertos; novas metodologias vão utilizar informação histórica para fins anteriormente insuspeitos.

Em suma, a definição da história como a ciência do passado, só pode ser aceite «com a condição de saber que este passado se torna objecto da história, por uma reconstrução incessantemente reposta em causa.»39

No entanto, há aqui que fazer uma clara distinção entre a história académica (a «história como disciplina científica», se assim se pode chamar) e a memória colectiva. A função social da história é a de corrigir e esclarecer interpretações falseadas da história que fazem parte da memória colectiva. Por outro lado, a existência de um corpo de especialistas, que analisam e julgam a produção historiográfica que é realizada, é um instrumento de limitação dos efeitos mais nocivos da subjectividade e parcialidade40. As revisões sistematicamente realizadas sobre a interpretação do passado correspondem quer a um avanço do conhecimento histórico, quer à superação de anteriores juízos e interpretações assentes em preconceitos.

3.2.4. A história hoje: disciplina ou forma de pensar?

Este relativismo originou, como já foi referido, problemas vários no entendimento do lugar da história como disciplina científica. O modelo positivista foi recusado sem apelo nem agravo, mesmo que não se aceite o relativismo e o cepticismo radicais quanto ao carácter científico da história.

Três elementos marcam a história na actualidade:

1. Perdida a inocência no carácter absoluto e intemporal do conhecimento histórico, que antes tinha sido baseado na sacralização do documento, existiu uma valorização crescente da análise do documento (em que condições é que foi produzido, quais os seus níveis de significação, etc. - nesta perspectiva retomam-se as preocupações positivistas com a crítica externa e interna da fonte, só que já não sobretudo direccionadas para a datação ou definição da sua reputação de vericidade) e das formas de produção do trabalho histórico (quase que numa perspectiva de sociologia da profissão).

2. Em segundo lugar, valorizou-se também o carácter contextual do conhecimento em história, a exemplo do que acontece com a antropologia (cf. secção 3.1.), um correctivo útil à noção de que «toda a história é história contemporânea». Trata-se, pois, de um correctivo ao que poderíamos denominar como um cronocentrismo baseado no presente, tal como a postura holista em antropologia tinha constituído um correctivo ao etnocentrismo.

39 Le Goff, ibid. p. 164. 40 J. Le Goff, ibid., p. 166.

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3. Em terceiro lugar, a história passa hoje por um processo de estilhaçamento, fruto do desenvolvimento de práticas interdisciplinares e do alargamento dos seus campos de interesse. Duas posturas parecem delinear-se, cada uma colocada num polo oposto: uma, tende a valorizar a necessidade de proceder a um realinhamento da disciplina histórica, no sentido de ganhar maior coerência41; outra, tende a diluir a história nas outras ciências sociais, sendo sobretudo uma forma de pensar, que dê importância aos processos temporais.

3.2.5. A crise do positivismo e as ciências sociais: um olhar a partir da história

Em primeiro lugar, importa assinalar as virtualidades do positivismo como modelo de conhecimento. Na formulação mais sintética, o positivismo permitiu individualizar os campos das diferentes ciências sociais ao longo do século XIX. Vimo-lo relativamente à sociologia, à economia ou à história, por exemplo.

A partir do final do século XIX e do início do século XX algumas vozes, minoritárias, começaram a pôr em causa o primado do modelo positivista nas ciências sociais (Max Weber, a escola hermenêutica em filosofia, W. Dilthey)42. No entanto, ao longo do século XIX e de grande parte do século XX houve uma unanimidade quase total em torno do programa positivista. Podia-se considerar que as ciências sociais tinham problemas metodológicos próprios, que estavam numa situação de atraso relativamente às ciências naturais e físicas, mas tudo isso seria ultrapassável e não criaria problemas à reivindicação de uma unidade da ciência.

Podemos mesmo dizer que de forma generalizada só a partir dos anos 60 existe a generalização de uma crítica ao consenso positivista, através da assunção de um dualismo epistemológico entre ciências sociais e ciências naturais43.

• De um lado ficam posições radicais, que põem em causa a cientificidade das ciências sociais, como é o caso de Peter Winch em The Idea of a Social Science. Repare-se que com esta posição se nega o próprio dualismo epistemológico que inspira esta revisão, porque se as ciências sociais não têm o estatuto de ciência, então abandono o campo científico às ciências naturais.

• Do outro lado encontram-se posições mais moderadas. Recuperam a tradição da separação entre ciências da natureza e ciências do espírito (Dilthey), mas defendem o estatuto científico do conhecimento em ciências sociais, na tradição do positivismo.

A abordagem das posições do grupo de historiadores reunidos em torno dos Annales serve para salientar – olhando para o exemplo da evolução da história – de que forma o positivismo é colocado em causa a partir do início do século XX.

No entanto, o contributo da escola dos Annales não se manifesta por uma crítica global ao positivismo como postura epistemológica, dando uma vez mais conta do

41 As propostas são variadas e não coincidentes: como ciência global do homem no tempo; como fruto de uma fusão entre história, antropologia e sociologia; ou procedendo a uma nova ruptura epistemológica que definisse mais claramente o lugar da história. 42 Boaventura de Sousa Santos (1985, pp. 58-59) apresenta os aspectos relacionados com as discussões em torno da unidade da ciência. 43 Bibliografia: Open the Social Sciences; Boaventura Sousa Santos, Um discurso sobre as ciências, 1987; Martin Hollis

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fraco grau de articulação teórica existente entre a história. Isto é tão verdade que Stuart Clark44 refere que não existiu uma nova perspectiva epistemológica por parte dos Annales e que muito pouco os separaria do positivismo histórico.

Qual a razão para esta posição tão pouco valorizadora do contributo dos Annales.

Em primeiro lugar, ela reflecte uma sobrevalorização das críticas à chamada história-crónica (baseada no indivíduo, no acontecimento e na história política)45. Isto é, os Annales teriam privilegiado a crítica à forma como o positivismo histórico fazia história, mas não ao fundamento da sua teoria do conhecimento histórico. Por outro lado, esta apreciação de Stuart Clark reconhece também o impulso à interdisciplinaridade assumido pelos Annales.

No entanto, ela é injusta, não dando conta dos seguintes aspectos do contributo dos Annales:

1. A crítica à noção de facto histórico.

2. A crítica ao fetichismo do documento.

3. A afirmação de que na interpretação do passado estão as preocupações, os valores e os modelos teóricos do presente.

De que forma é que o contributo dos Annales revela as dificuldades atravessadas pelo positivismo nas ciências sociais?

Em primeiro lugar a crítica ao fetichismo do documento (o documento representaria a base empírica da realidade histórica) constitui uma crítica radical da exterioridade da realidade científica face ao conhecimento. Afirmação essencial: o documento histórico (como realidade a partir da qual se constitui o conhecimento histórico) é criado pelo próprio historiador.

Em segundo lugar, a concepção de que o conhecimento é uma representação fiel da realidade é colocada também em dúvida. O problema fundamental do conhecimento histórico proposto pela chamada escola dos Annales é o da inteligibilidade. Desloca-se, por isso, a discussão sobre uma realidade dada para uma realidade construída (tornada inteligível pelo historiador).

Daqui decorre uma consequência necessária: o conhecimento histórico é duplamente relativista.

• Como construção inteligível é influenciado pela formação teórica, pelo ponto de vista de cada historiador.

• Como construção inteligível sobre documentos que não são neutros é influenciado pelo modo de produção discursos sobre o passado pelos seus próprios contemporâneos.

Em terceiro lugar, sendo o passado uma leitura a partir do presente, então a relação entre factos e valores assumia um conteúdo fundamental.

Em quarto lugar, a noção da unidade da ciência não é abordada. mas estas concepções relativistas do conhecimento reanimavam a oposição entre ciências da natureza / ciências do espírito. O conhecimento histórico (tal como o conhecimento em ciências 44 Ob. cit., p. 180. 45 Devia ser substituída por uma maior preocupação pela profundidade de análise conjuntural e estrutural, e pelos aspectos de índole social e económica.

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sociais) despertaria sempre a necessidade de se diferenciar do conhecimento nas ciências naturais. Nas ciências sociais o sujeito do conhecimento é um actor social (histórico) da mesma forma que o (ou os) que são objecto do conhecimento.

3.2.6. Entre o positivismo e o relativismo radical

Onde é que pára a afirmação de relativismo radical que se pode depreender da posição dos Annales e que depois vai ter um impacto assinalável noutras ciências sociais?

Vamos olhar este aspecto em mais pormenor a partir do próximo tópico, quando abordarmos a obra de Thomas S. Kuhn. No entanto, podemos desde já salientar que quer na história, quer nas restantes ciências sociais que estiveram mais intensamente sob o fogo do relativismo, se deu uma importância crescente à compreensão do modo como o conhecimento científico era produzido.

Por outro lado, podemos dizer que o impacto da crítica do positivismo deu origem à sedimentação de alguns traços comuns:

Em primeiro lugar, a noção de que o objecto de estudo é construído pelo cientista social, de que não é dado, passou a ser um aspecto cada vez mais saliente das diferentes correntes teóricas. É o que se designa por construtivismo.

Em segundo lugar, na afirmação de que existe uma comunidade de cientistas sociais, que socialmente elabora normas de verdade científica, condições para a aceitação e reconhecimento de trabalhos científicos, que permitem definir o que é socialmente aceite como ciência. Esta comunidade é dotada de reflexividade face à sua produção científica.

O que é isto de reflexividade? O termo foi pela primeira vez usado por um sociólogo, Pierre Bordieu46, que procurava, por um lado, assumir as críticas ao positivismo, mas, por outro lado, impedir que essas críticas resultassem num resvalar para um relativismo radical e subsequente negação do carácter científico das ciências sociais. Assim, a reflexividade seria para Bourdieu a submissão da prática sociológica à análise sociológica, usando para isso as teorias e os métodos que esta usa para analisar qualquer outra prática social.

Quais os objectivos?

Conhecer os produtores da sociologia

Conhecer os seus métodos de trabalho e concepções teóricas

Reforçar com isto o que designa como crítica científica

Em suma, conhecer os «produtores das ciências sociais» é um meio de conhecer os seus critérios de cientificidade e torna-se num elemento de auto-controlo sobre eventuais derrapagens. O livro Open the Social Sciences é também em parte um estudo deste tipo.

Por último, o conceito e a prática da reflexividade, juntamente com o contributo de Thomas S. Kuhn de que vamos falar a seguir, levou a um desenvolvimento dos estudos de sociologia de ciência.

46 Leçon sur la leçon (1982); Homo academicus (1984).

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3.3. A ciência como cultura e tradição: o contributo de Thomas S. Kuhn

3.3.1. A revolução de Thomas S. Kuhn

Podemos sistematizar o contributo de Thomas S. Kuhn em quatro aspectos fundamentais:

a) Contestou o carácter cumulativo do conhecimento científico (na versão racionalista e iluminista)

b) Chamou a atenção para a importância da componente institucional dos paradigmas científicos.

c) Salientou a importância de uma sociologia do conhecimento científico

d) Por último, constituiu uma autêntica «bomba de relógio» relativista, ao salientar que cada ciência cria os seus próprios critérios de cientificidade

Relativamente ao primeiro aspecto pôs em causa a concepção tradicional do conhecimento científico como uma aquisição gradual e cumulativa do saber baseada na razão individual. Pelo contrário:

• O paradigma científico dominante determina os tipos de experiências que os cientistas levam a cabo, os problemas que consideram relevantes e as questões que colocam.

• Uma mudança no paradigma altera os conceitos fundamentais que baseiam a investigação e inspira novos modelos de prova e observação, novas técnicas de investigação e novas perspectivas teóricas.

A sua posição iconoclasta relativamente ao modelo iluminista e racionalista do progresso científico está bem expressa na forma como agudiza as diferenças face a este modelo. Por exemplo, não tenta uma posição de compromisso ou de diluição das suas propostas relativamente às concepções que enfatizam a função da aprendizagem como meio de aprender o método científico ou de cultivar a capacidade de raciocínio científico. Ou ainda que o conhecimento científico é ensinado como sendo algo sempre provisório, e que o cepticismo científico e a abertura de espírito são cultivados pelos professores e cientistas, como uma forma de assegurar a flexibilidade e a receptividade a novos conhecimentos.

Pelo contrário, o que Kuhn enfatiza é o carácter dogmático e autoritário da aprendizagem científica, precisamente como um meio de produzir a máxima adesão possível aos paradigmas e a menor inclinação a pensar fora deles (Barnes, p. 90).

Isto não significa uma visão conspirativa do conhecimento e da comunidade científica, mas procura considerar as condicionantes institucionais em que aquele é efectuado. Isto é, procurar as raízes da estabilidade e predomínio dos paradigmas científicos nas condições sociológicas em que a ciência é produzida e o conhecimento científico reproduzido. Por outro lado, a negação de qualquer visão conspirativa sobressai também quando Kuhn salienta que um paradigma científico não determina em absoluto a investigação. Pelo seu carácter consensual e dominante avalia a produção científica. Mas não a determina. Pelo contrário, existe uma intervenção activa do conjunto da comunidade científica na reelaboração do paradigma.

Uma consequência fundamental desta crítica ao modelo racionalista é o seu conceito

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de incomensurabilidade, quando se trata da comparação de teorias científicas. As revoluções científicas não se traduzem pela transição para uma teoria indiscutivelmente superior. Tal não significa que as teorias científicas não possam ser comparadas, mas sim que não existe uma escala que permita definir de forma inquestionável a sua ordenação. Kuhn chega a fazer uma analogia com as doutrinas e partidos políticos, afirmando que nenhum deles é inerentemente superior. Uma das bases da democracia é não postular a superioridade de uma solução partidária relativamente a outra.

Tal conceito vai ter uma importância fundamental para o estudo posterior sobre a produção científica.

David Bloor (e também o próprio Barry Barnes que tem estado a ser seguido nesta secção47) e a revista Social Studies of Science, que vão lançar dois princípios duradouros:

• Princípio da imparcialidade, face à verdade ou falsidade, racionalidade ou irracionalidade, sucesso ou insucesso

• Princípio da simetria - os mesmos tipos de causas devem explicar as teorias verdadeiras e as teorias falsas.

• Em suma, avaliar da mesma forma – sem preconceitos – todo o tipo de teorias.

Esta postura traduz-se num relativismo metodológico (o que não significa um relativismo científico)

Para além destes aspectos, que põem em causa o mito do racionalismo48, o contributo de Kuhn é ainda mais relevante na componente institucional associada à noção de paradigma.

Repare-se que para Kuhn o conceito de paradigma tem duas componentes:

a) Uma intelectual – aquela que sobressai na definição estrita – dizendo respeito ao conjunto de axiomas, de teorias que estruturam uma ciência. São os pressupostos que fundam uma ciência e que são inquestionáveis. (a escolha racional em economia; a teoria heliocêntrica com Galileu e Kepler)

b) Outra, institucional – os mecanismos de carácter social que mantêm um período de ciência normal.

Esta componente institucional traduz-se na importância que é dada aos elementos de tradição e de espírito de corpo que são inerentes ao trabalho científico. Barry Barnes coloca isso muito bem quando refere que a vinculação de um campo de saber a um paradigma, o seu carácter consensual e a sua reprodução criativa no tempo se deve aos seguintes factos:

• Os cientistas estão integrados numa tradição de investigação, sendo a investigação a actividade desse grupo cultural e os paradigmas a herança em termos de conhecimento que é reproduzida de geração em geração.

• Tal como existe um processo de treino e de socialização num grupo

47 Barry Barnes, «Thomas Kuhn» in Q. Skinner (ed.), The Return of Grand Theory in the Social Sciences, Cambridge, CUP, 1989; cf. M. Hollis, ob. cit., p. 87. 48 Cf. Barnes, ob. cit.

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humano com uma identidade cultural comum, o mesmo se passa na subcultura dos cientistas.

• Por outro lado, existe um processo de controlo sobre a vinculação dos membros da comunidade científica a um certo paradigma: referees para artigos, provas académicas, recensões, etc.

É também esta componente institucional que em determinados períodos permite a mudança de paradigma. Kuhn chama a atenção para aspectos de carácter geracional no recrutamento dos cientistas ou até em termos de psicologia social do próprio grupo.

Em síntese, Thomas Kuhn remete para o papel crucial da comunidade científica como contexto do saber e do conhecimento; para a importância que como grupo tem para o desenvolvimento do saber: na produção e reprodução do saber; na validação do que é científico; nas revoluções científicas.

Em certa medida, a posição de Thomas Kuhn recupera o postulado holista, já nosso conhecido: o conhecimento científico remeteria sempre para um contexto, representado aqui pelo paradigma e pelos aspectos sociais e institucionais da sub-cultura dos cientistas num determinado momento.

Por último, o contributo de Thomas S. Kuhn representou a importância de uma sociologia do conhecimento científico. Nota-se aqui a mesma exigência de reflexividade, que Pierre Bourdieu também formulou a propósito do conhecimento em ciências sociais.

3.3.2. Uma «bomba de relógio» relativista

Ao assumir-se que uma actividade científica tem um componente social/institucional e uma componente intelectual, e que a componente social tem um papel determinante na definição e validação de critérios de cientificidade, então pode-se considerar que cada comunidade científica (como sub-cultura) cria os seus critérios de cientificidade49.

Este aspecto está particularmente evidente no modo como a relação entre teoria e evidência empírica é apresentada. Os dados, as observações empíricas, seriam uma forma independente de validar as teorias e os paradigmas, na versão heróica do método hipotético-dedutivo (teste de hipóteses que são aceites ou rejeitadas em confronto com dados empíricos). Para Kuhn, os dados são um produto da actividade científica, artefactos da cultura científica e os pressupostos dessa cultura (os seus paradigmas) estão activamente envolvidos na sua produção. Nesta medida a «ciência normal» é em grande medida auto-validada: produz um mundo em que se reconhece como verdade. Isto não significa que Thomas Kuhn tenha posto em causa o conhecimento científico, no sentido de certas posições relativistas de tipo pós-moderno. O que ele contestou foi a versão racionalista e positivista do progresso científico.

Este aspecto destaca um último contributo, fundamental para a lógica deste curso: vai salientar, com o recurso a amplo material empírico e no interior das ciências exactas (do campo das ciências «duras»), o carácter construtivista e relativista do 49 Encontramos aqui algo do que já se tinha falado sobre a escola dos Annales e o relativismo histórico.

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conhecimento científico.