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  • 2001

    RETRICAS

    DE ONTEM E DE HOJE

    Lineide do Lago Salvador Mosca (Org.)

    2a edio

    ISBN: 85-7506-035-X

    FFLCH/USP

  • Copyright 2001 da Humanitas FFLCH/USP

    proibida a reproduo parcial ou integral,sem autorizao prvia dos detentores do copyright

    Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USPFicha catalogrfica: Margarida Maria de Souza - SBD/USP

    Editor responsvelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

    Coordenao Editorial, Projeto grficoe Diagramao

    M. Helena G. Rodrigues MTb n. 28.840

    EmendasSelma M. Consoli Jacintho MTb n. 28.839

    HUMANITAS FFLCH/USP

    e-mail: [email protected]: 3818-4593

  • SUMRIO

    APRESENTAO .......................................................................................... 05

    PREFCIO ................................................................................................... 11Jean-Marie Klinkenberg

    VELHAS E NOVAS RETRICAS: CONVERGNCIAS E DESDOBRAMENTOS .............. 17Lineide do Lago Salvador Mosca

    A RETRICA NA NDIA ANTIGA

    PROCEDIMENTOS RETRICOS NA LITERATURA SNSCRITA CLSSICA .................... 55Carlos Alberto da Fonseca

    PROCEDIMENTOS RETRICOS NA POESIA SNSCRITA VDICA .............................. 85Mrio Ferreira

    A RETRICA NA GRCIA ANTIGA ............................................................... 99sis Borges B. da Fonseca

    A RETRICA NA TRADIO LATINA ......................................................... 119Ariovaldo Peterlini

    FIGURAS DE RETRICA E ARGUMENTAO .................................................. 145Elisa Guimares

    PRAGMTICA LINGSTICA: DELIMITAO E OBJETIVOS ................................. 161Helena Hathsue Nagamine Brando

    ARGUMENTAO E DISCURSO ................................................................... 183Maria Adlia Ferreira Mauro

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    KLINKENBERG, Jean-Marie. Prefcio.

    P e Psiqu

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    APRESENTAO

    O fato de a Retrica na acepo ampla que lhe davam os estu-diosos e cultivadores da linguagem na Antigidade permanecer emplena vitalidade e efervescncia, em nossos dias, manifesta-se na ne-cessidade clara de que a presente obra seja reeditada, aps umareimpresso em 99, tambm j esgotada.

    A escassez de trabalhos que mostrem essa continuidade e apon-tem, ao mesmo tempo, para as novas formas que a Retrica, como Cin-cia da Linguagem, vem assumindo diante dos avanos nesse setor doconhecimento, justifica a reedio de Retricas de Ontem e de Hoje.

    Acresce ainda considerar que vivemos num mundo no qual assituaes de confronto se multiplicam e os conflitos delas decorrentesrequerem negociaes, avanos e recuos, bem como acordos que pos-sibilitem uma vivncia, seno harmoniosa, pelo menos com um me-nor grau de tenso e de incompatibilidade.

    Os desdobramentos atuais a que chegamos no trato dessas ques-tes reclamam, ao lado de uma Teoria da Argumentao, umenfrentamento do conflito que no pode, evidentemente, vir isentode preocupaes ticas. No se trata de um mero exerccio verbal decunho esttico, mas de um espao polmico frente ao dissenso, ad-versidade.

    Ressalta-se igualmente o reconhecimento que cabe dar aos com-ponentes afetivos e passionais presentes nos atos de troca comunicati-va que se do nas mais variadas formas das prticas ensejadas pela vidaem sociedade.

    Diante desse quadro, o discurso sedutor se faz cada vez mais pre-sente, tornando-se um ato de grande habilidade o desembaraar-se emmeio a um emaranhado de linguagens, de atitudes e de decises a to-mar a cada instante.

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    KLINKENBERG, Jean-Marie. Prefcio.Apresentao

    Que o nosso trabalho possa aguar o interesse por compreen-der como estes entrelaamentos se do no cotidiano, quais os expe-dientes mais persuasivos para a consecuo deste ou daquele objeti-vo, assim como as razes de determinados recursos nos afetaremmais que outros em situaes semelhantes.

    Tem-se, cada vez mais, conscincia de que fundamental con-siderar a diferena, o outro presente em cada um e de que resulta umequilbrio bem mais salutar no jogo de influncias a que estamos todosexpostos.

    No alteramos o que foi feito na primeira edio e em suareimpresso. Desejamos que muitos trabalhos brotem no esprito doque a velha, porm sempre nova, Retrica nos ensinou com tanta sa-bedoria, repensados e recriados sob as luzes de nossos tempos.

    Apresentamos, a seguir, o roteiro das partes componentes da pre-sente obra:

    Velhas e Novas Retricas: convergncias e desdobramentosProfa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca organizadoraDLCV, rea de Filologia e Lngua Portuguesa, FFLCH/USPTrata-se de mostrar a continuidade dos estudos retricos a partirde suas origens e em seus desenvolvimentos posteriores, mediantea avaliao dos principais pontos que sempre os nortearam. Res-salta-se o carter integrador das Novas Retricas, ao recuperaraspectos dissociados ao longo da histria da Retrica, o que teriaconduzido a uma viso reducionista de sua exata natureza edos papis que cabe a ela cumprir. Pretende-se pois, mos-trar a sua vitalidade nos dias de hoje.

    A Retrica na ndia AntigaProf. Dr. Carlos Alberto da Fonseca e Prof. Dr. Mrio FerreiraDLCV, rea de Lngua e Literatura Snscrita, FFLCH/USP

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    As concepes da retrica na ndia Antiga levam necessaria-mente a uma teoria do discurso e ao estudo das situaes de co-municao e trocas entre as culturas. So pois, inseparveis deuma perspectiva de estudos da linguagem. As condies espec-ficas de eficcia e a questo da figura ligam-se ao sentido rituals-tico e ao sentido mtico naquela cultura.

    A Retrica na Grcia AntigaProfa. Dra. Isis Borges B. da FonsecaDLCV, rea de Grego, FFLCH/USPMostra o despertar da conscincia retrica na Grcia e discutequestes como a da eloqncia enquanto tendncia natural dosgregos. Atravs do exame de um texto do gnero judicirio (So-bre o assassinato de Eratstenes, de Lsias), faz a aplicao dos con-ceitos fundamentais da teoria retrica: teoria do Kairos, apsicagogia, as provas subjetivas, as provas tcnicas e extra-tcni-cas, bem como as partes do discurso.

    A Retrica na Tradio LatinaProf. Dr. Ariovaldo PeterliniDLCV, rea de Latim, FFLCH/USPApresenta como se deu a introduo da teoria da Retrica emRoma, precedida pela arte de falar, presente na eloqncia dosoradores, que dela se serviam desde os primrdios de sua hist-ria. Com abundante exemplificao, segue as diversas fases porque a Retrica passou, em seu desenvolvimento, na tradio la-tina.

    Figuras de Retrica e ArgumentaoProfa. Dra. Elisa GuimaresDLCV, rea de Filologia e Lngua Portuguesa, FFLCH/USP

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    KLINKENBERG, Jean-Marie. Prefcio.

    Faz uma avaliao do estatuto da figura, considerando as con-cepes tradicionais e procedendo a um reexame segundo asnovas teorias da Argumentao (Perelman, Ducrot). Expe asrazes pelas quais Argumentao e Retrica se tornam insepar-veis no processo de convencimento e persuaso, ressaltando osefeitos que a figura nele produz.

    Pragmtica Lingstica: delimitao e objetivosProfa. Dra. Helena Nagamine BrandoDLCV, rea de Filologia e Lngua Portuguesa, FFLCH/USPAponta as relaes da Retrica com a Pragmtica, colocandoem evidncia a concepo da linguagem enquanto ao e seusefeitos. A considerao da dimenso pragmtica no discurso levaao conhecimento de fatos ligados enunciao, aos implcitos,pressupostos e subentendidos e, portanto, a uma reavaliao dosmecanismos retricos.

    Argumentao e DiscursoProfa. Dra. Maria Adlia Ferreira MauroDepartamento de Lingstica, FFLCH/USPRessalta a importncia para a Retrica em considerar elementosligados diretamente enunciao, tais como as inferncias em geral,em razo de sua fora comunicativa e de seu poder de manipula-o. Trata das relaes de sentido utilizadas para construir signifi-cados e interpret-los, colocando a argumentatividade como umprincpio constitutivo dessa atividade.

    Lineide do Lago Salvador Mosca (Org.)

    Apresentao

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    Calope, musa da eloqncia e da poesia pica, me de Linos e de Orfeu.

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    KLINKENBERG, Jean-Marie. Prefcio.

    SarasvatV Fluncia esposa de Brahman, o princpio Criao no pensamento filo-religioso indiano antigo; Eloqncia, divindade tutelar dos literatos.

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    Para a maioria das pessoas, a palavra retrica no evoca mais quevagas lembranas de uma terminologia abstrusa, em que antanaclaseladeia com anantapodoto: nomes de doenas graves ou incurveis, ounomes de monstros escapados de algum parque trissico ou cretceo?

    Nesse grande pblico, poucos h que sabem que a retricados antigos constitua uma disciplina que no era, de forma algu-ma, to tola.

    Pode-se nela ver, de fato, a primeira reflexo sistemtica sobre ospoderes da linguagem.

    Tal retrica somente pde vir luz porque a sociedade que a viunascer tinha passado por uma mudana at ento nunca presenciada.Nela, uma certa forma de democratizao havia conduzido a uma novaforma de gerar os conflitos de interesses. At ento, era a violncia e oface a face. A partir da, os conflitos deveriam ser acertados no maisdiretamente entre as pessoas neles implicadas, mas diante de um deter-minado pblico: o dos pares, que se denomina pblico, ou o dos especia-listas, juzes ou outros. fora fsica dever-se-ia, portanto, substituir-se afora do simblico: somente aquele que detivesse o domnio sobre ossignos, obteria a adeso da coletividade.

    JEAN-MARIE KLINKENBERG**

    PREFCIO*

    (*) Traduo de Lineide do Lago Salvador Mosca.

    (**) Universidade de Lige (Blgica), Dpartement dEtudes Romanes, membro do Groupe .....

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    KLINKENBERG, Jean-Marie. Prefcio.

    Diz-se, comumente, que o objeto da retrica o discurso; os dis-cursos, que essa disciplina classificava e cujos mecanismos internos elaestudava, tanto quanto as suas funes sociais. Se a palavra discursodevia designar apenas um desenvolvimento oratrio, pomposo e for-mal, compreender-se-ia aqueles que no vem hoje na retrica senouma cincia ultrapassada: que lugar h ainda em nossa cultura para oque se chamava outrora eloqncia? Colocar a questo, j trazeruma resposta: aquele tipo de eloqncia, h muito tempo que dela jdemos cabo.

    Se a palavra, entretanto, refere-se crtica de arte, ao artigo dejornal, ou ainda, aos gritos das torcidas? Se ela remete aos debates daradiodifuso ou aos sites da internet? Se ela designa tambm o sloganpoltico, o anncio publicitrio, o clipe televisionado? No so estas,de fato, as formas contemporneas da fora simblica e no constituemelas, igualmente, discursos?

    Sustentar isso admitir que haja lugar para uma retrica con-tempornea. Uma cincia, portanto, de que o nosso mundo contem-porneo tem necessidade, uma vez que o poder nele se institui, maisdo que nunca, pelo simblico: pelas palavras e pelas imagens.

    Uma cincia que ainda deve merecer o seu lugar. Pois, se a esco-la nos ensina a decifrar as palavras, a traar as suas letras, ningum nosensina, verdadeiramente, ler os discursos que se fazem ouvir ao nossoredor.

    Essa cincia, entretanto no est no limbo. Hoje , ela pratica-da sob o nome de retrica, mas tambm sob outros nomes, por filso-fos, lingistas, semioticistas, antroplogos, socilogos, especialistas daliteratura, psiclogos ... As pesquisas destes revestem mltiplos aspec-tos. Uns se interrogam por que uma determinada formulao desenca-

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    deia o assentimento do pblico e no aquela outra; outros estudam asrazes tcnicas que fazem com que um mesmo enunciado possa produ-zir, simultaneamente, vrios significados distintos.

    Evidentemente, essa retrica moderna em devir no poderiaconsistir numa recuperao integral da retrica clssica. A histria, defato, remodelou constantemente as fronteiras do imprio retrico, neledesenhando novos reinos e novas repblicas.

    Dessa longa evoluo ou mesmo, dessas hesitaes do tes-temunho os trabalhos reunidos nesta obra.

    A disciplina constituda pela retrica, na verdade, jamais foi aban-donada ao longo de sua histria. Segundo as pocas, porm, ela teveestatutos, ou objetos, bem diferentes. Caricaturando a sua evoluo,que ser descrita com mais mincias nas matrias que se seguem, pode-se dizer que ela constantemente oscilou entre uma concepo social euma concepo formalista, e que ela acabou por morrer, antes de re-nascer, de maneira espetacular no sculo XX.

    Oscilao entre concepo social e concepo formalista. Nosperodos de relativa democracia e sob seu regime, a retrica viveu en-quanto arte da argumentao: de fato, somente um universo de refe-rncia, em que prevalece o pluralismo, pode autorizar o debate e, por-tanto, uma arte de administrar as diferenas e as contradies que nelese exprimem. Nas fases de menor democracia, contudo, a retrica fi-cou reduzida a no ser mais que um exerccio formal. Ficou, portanto,restrita a no ser mais que a prtica ou o estudo dos ornamentos. Napoca moderna, a retrica conservou o seu estatuto ambguo. E, almdisso, diante das novas disciplinas que surgiram e de que se falar nointerior desta obra, a retrica esvaziou-se parcialmente de sua substn-

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    KLINKENBERG, Jean-Marie. Prefcio.

    cia. Isto explica, simultaneamente, o seu reinado indiscutvel sobre oensino, e o descrdito intelectual que a atingiu no sculo XIX.

    Progressivamente, a retrica aproximou-se, assim, de sua morte.Mas, de forma alguma, de uma morte ignominiosa: com efeito, pode-se dizer que a retrica morreu por ter-se realizado.

    Cada uma das partes do grande edifcio que ela constitua adqui-riu, na verdade, a sua independncia, tanto no domnio das discipli-nas tericas como no das disciplinas prticas.

    Por exemplo, de um lado, os refinamentos dos mecanismos dedemonstrao levaram a uma lgica que no cessou de se formalizar.De outro, uma grande quantidade de prticas sociais retomaram, numaperspectiva prtica, uma parte da herana clssica lgica (pode-se pen-sar em atividades to diferentes como o marketing ou a bastante duvi-dosa programao neurolingstica); ou foi retomada de forma maisanaltica, como a psicologia social.

    Os trabalhos aqui reunidos tratam, evidentemente, dessa frag-mentao, mas atestam tambm, vigorosamente, o fato de que essafragmentao no fez desaparecer o projeto retrico primitivo.

    As retricas de hoje pois preciso utilizar o plural a esse respei-to permanecem fiis ao programa de sua antecessora clssica: contri-buir para constituir uma cincia do discurso dos homens em socieda-de. Elas podem, portanto, desempenhar o papel de um horizonte emque se concretiza a necessria interdisciplinaridade das cincias huma-nas. Disciplina holstica, a retrica contempornea intenta bloqueartodo os -ismos redutores e colocar barreiras ao provincianismometodolgico.

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    Mas sobretudo, como se ver no panorama que segue, o impactoda retrica contempornea sobre as cincias da linguagem no tersido pequeno. Alimentada pelo saber lingstico elaborado no sculoXX, a retrica o fecunda tambm, por sua vez , encorajando-o a alar-gar os limites que, num gesto til, ele tinha delimitado de modo muitoestrito. Graas ao seu impulso, as cincias da linguagem deslocam-se,assim, do estudo do sistema para o da parole, e se constitui, pouco apouco, uma teoria da interpretao dos enunciados, na qual a dimen-so enciclopdica tem o seu lugar. Pois, hoje mais difcil separar asemntica da enciclopdia, isto , da representao do mundo e dascrenas que a determinam.

    Recolocando a lngua no seio do conjunto das prticas de comu-nicao e de significao, a retrica no faz nada mais, portanto, senoempreender a realizao do programa de semitica proposto por Saussure:o de estudo da vida dos signos no seio da vida social ...

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    VELHAS E NOVAS RETRICAS:CONVERGNCIAS E DESDOBRAMENTOS

    LINEIDE DO LAGO SALVADOR MOSCA*

    A vitalidade dos estudos retricos at os nossos dias foi o quelevou organizao de um curso que levantasse os principais proble-mas com que a Retrica tem-se havido ao longo de sua histria, cheiade pontos altos, mas tambm de crises e questionamentos. A bem di-zer, esta mesma dialtica que est no bojo de sua prpria natureza,que implica em controvrsia, discusso e, conseqentemente, em in-fluncia e formao de opinio.

    De fato, a Retrica tem sido colocada prova pelos mesmosprincpios que a norteiam internamente e que fazem com que elarefloresa sempre: aceitao da mudana, o respeito alteridadee a considerao da lngua como lugar de confronto das subjetivi-dades.

    Partindo-se do princpio de que a argumentatividade est pre-sente em toda e qualquer atividade discursiva, tem-se tambm comobsico o fato de que argumentar significa considerar o outro como ca-paz de reagir e de interagir diante das propostas e teses que lhe soapresentadas. Equivale, portanto, a conferir-lhe status e a qualific-lopara o exerccio da discusso e do entendimento, atravs do dilogo.Na verdade, o envolvimento no unilateral, tendo-se uma verdadei-ra arena em que os interesses se entrechocam, quando o clima denegociao, e em que prevalece o anseio de influncia e de poder.

    (*) Professora Doutora da rea de Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de LetrasClssicas e Vernculas, FFLCH/USP, coordenadora da presente obra.

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    MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Velhas e Novas Retricas: convergncias e desdobra-mentos.

    Trata-se, na presente exposio, de mostrar as ligaes da Ret-rica, em suas diversas tendncias na atualidade, com a Retrica naAntigidade e de retomar alguns temas comuns a ambas e de grandeimportncia na revitalizao dos estudos retricos. Hoje, mais do quenunca, para compreender os fundamentos da Retrica, faz-se necess-ria a volta tradio aristotlica e s demais que nos foram legadaspelas diversas culturas, vale dizer, s fontes dos conceitos que esto sua base. Trata-se de uma atitude semelhante que se d na valoriza-o do manuscrito, como fonte primeira de estudo.

    Assim, a partir dos anos 60, as teorias retricas modernas, repre-sentadas sobretudo pela teoria argumentativa de Perelman e seuscontinuadores e pela Retrica Geral ou Generalizada, do Grupo deLige (Blgica), vm retomar a velha Retrica e, ao mesmo tempo,renov-la, valendo-se dos avanos trazidos por diversas disciplinas quese configuraram em nosso sculo: a Lingstica, a Semiologia /Semitica,a Teoria da Informao, a Pragmtica. Autores como Lausberg, emseus Elementos de Retrica literria, obra que de 1963, propunham-sea esse trabalho de transposio e de reavaliao sob novas luzes.

    A perenidade das idias aristotlicas faz com que no se possafalar em morte da Retrica, como por vezes se decretou ao longo desua trajetria. Contrariamente ao que propugnava Aristteles, cujoestmulo era sempre para o exerccio da reflexo pessoal, passou-se auma reformulao rgida e ao aprisionamento a cnones. A tendnciaque se desenvolveu, a partir da, em ver na Retrica e, igualmente, naPotica um preceiturio de solues que deveriam nortear toda produ-o e tambm a avaliao de obras concretas, esteve presente nosmanuais do sculo XIX. Foram eles, por conseguinte, responsveis, emgrande parte, por muitas das distorses que ocorreram e pela deforma-o do conceito original de Retrica. Os prprios introdutores da Re-trica em Atenas, os sofistas, levaram a uma atitude de descrena ao

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    professar o ceticismo e aceitar raciocnios de toda ordem, neles incluin-do-se os enganosos e s aparentemente corretos.

    Assim, no uso comum, a palavra retrica foi adquirindo um valorpejorativo de que s mais recentemente vem se libertando. Expressescomo a hora no de retrica, chega de retrica, to comuns emnossos peridicos, atestam essa viso mutilada, bem distante das con-cepes aristotlicas em que era identificada como uma smula dosconhecimentos humanos, enfim, como a suprema sabedoria, o quedeterminava fosse considerada uma cincia. Ao caracterizar o traba-lho da Retrica, Pierre Guiraud nos d esse retrato, com linhas bemdelineadas1:

    De todas as disciplinas antigas, a que melhor merece o nome de cincia, poisa amplido das observaes, a sutileza da anlise, a preciso das definies,o rigor das classificaes constituem um estudo sistemtico dos recursos dalinguagem, cujo equivalente no se encontra em qualquer dos outros conheci-mentos daquela poca.

    Essa a razo pela qual se faz necessria a volta, sempre reno-vada, diretamente aos textos que deram origem aos desenvolvimen-tos posteriores, a fim de evitar interpretaes cristalizadas ao longodas pocas. No se pode tambm deixar de considerar que cadapoca faz a leitura dos fatos de acordo com o seu prprio modo depensar, uma vez que eles comportam alm daquilo que dado, amaneira de os interpretar e de os comunicar. Cabe lembrar quequando se trata de signos, diferena dos ndices, h que contarcom a questo da intencionalidade e evocar traos como os de po-livalncia, ambigidade e imperfeio da linguagem em suas limi-taes.

    (1) GUIRAUD, P., A Estilstica. S. Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970, p. 35-36....................................................

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    MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Velhas e Novas Retricas: convergncias e desdobra-mentos.

    O ponto fundamental da doutrina aristotlica, no que toca Retrica, reside em consider-la do domnio dos conhecimentos pro-vveis e no das certezas e das evidncias, os quais caberiam aos racio-cnios cientficos e lgicos. Por essa razo, o seu campo o da contro-vrsia, da crena, do mundo da opinio, que se h de formar dialetica-mente, pelo embate das idias e pela habilidade no manejo do discur-so. Aristteles nunca props o mero exerccio desse ltimo ou o privi-lgio puro e simples do plano da elocuo (recursos de expresso).Parte significativa de sua obra foi dedicada inventio (a temtica) e dispositio (arranjo das partes). Portanto, quando se fala que a Retricase caracteriza por ser uma tcnica (techne), trata-se simultaneamentede uma tcnica de argumentao e de uma habilidade na escolha dosmeios para execut-la.

    Algumas ocorrncias da imprensa j atestam esse modo de com-preender o conceito de retrico como o resultado dos dois componen-tes, isto , em que contedo e forma se apresentam como inseparveis.Veja-se, por exemplo, a manchete que encima matria assinada pornosso correspondente em Davos (Sua), para o caderno Dinheiro daFOLHA(2/2/97), versando sobre as negociaes que os Estados Uni-dos e o Brasil desenvolviam naquele encontro:

    EUA endurecem retrica com o Brasil

    O fato de que hoje se d o retorno a uma concepo de Retricabem mais prxima das fontes fica evidente em seus novos desdobra-mentos, representados pelas Neo-Retricas, de que so exemplos asTeorias da Argumentao, fundadas nas lgicas no-formais (de ChamPerelman e Lucie Olbrecht-Tyteca, de Michel Meyer, A. Lempereur eoutros) e nas lgicas naturais (de Jean-Blaise Grize e Georges Vignaux,alm de outros), assim como a Retrica Geral do Grupo (Jean-Marie

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    Klinkenberg, J. Dubois, Philippe Minguet, Francis Edeline, F. Pire e H.Trinon), cuja atuao nos ltimos vinte anos vai muito alm de umasimples retrica das figuras. O Grupo vem estendendo o tratamentoretrico a outras linguagens, que no as exclusivamente verbais (pic-tricas, flmicas etc.).

    Assim, atitude de descrena nos efeitos da Retrica segue-se aconvico de que no mundo da opinio, da doxa que so tecidas asrelaes sociais, polticas e econmicas, uma vez que a esta que setem acesso e no ao que se chamaria mundo da verdade. Postula-seuma retrica do verossmil, em que h espao para o no-racional sobsuas diversas formas: a da sensibilidade, da seduo e do fascnio, dacrena e das paixes em geral. Foi em Aristteles que se encontrou apossibilidade de uma dialtica entre verdade e aparncia de verdade,ou seja, o verossmil, podendo-se falar mais propriamente em repre-sentao da verdade, que emerge do senso comum e que se corporificanos discursos do homem. De igual forma, ao mostrar a ligao da Ret-rica com a persuaso, desvinculando-a da noo de verdade, Aristtelesestabeleceu as bases dessa disciplina e que iriam persistir em seus des-dobramentos modernos. A sua concepo de discurso convincente,como sendo aquele que consegue fazer o pblico sentir-se identificadocom o seu produtor e a sua proposta, aproximadamente a mesmaadotada por Perelman e Tyteca em seu Tratado da Argumentao. ANova Retrica2:

    O objetivo de toda argumentao, j o dissemos, provocar ou aumentar aadeso dos espritos s teses que se apresentam a seu assentimento: umaargumentao eficaz a que consegue aumentar essa intensidade de adeso,

    ...................................................

    (2) Tratado da Argumentao. A Nova Retrica, trad. M. Ermantina Galvo Pereira. So Paulo,Martins Fontes, 1996, p. 50.

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    MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Velhas e Novas Retricas: convergncias e desdobra-mentos.

    de forma que se desencadeie nos ouvintes a ao pretendida (ao positivaou absteno) ou, pelo menos, crie neles uma disposio para a ao, que semanifestar no momento oportuno.

    O discurso persuasivo, aquele destinado a agir sobre os outrosatravs do logos (palavra e razo), envolve a disposio que os ouvin-tes conferem aos que falam (ethos) e a reao a ser desencadeada nosque ouvem (pathos). Estes so os trs elementos que iro figurar emtodas as definies posteriores e que compreendem o instruir (docere),comover (movere) e o agradar (delectare ). Partindo da noo de juzo,bsica em Retrica, aquele a quem se fala tambm juiz, da o carterinterativo e dialgico em que se apiam as Neo-Retricas. Quando sefala, portanto, em Teoria da Argumentao, cabe um reexame das re-laes entre Retrica e Dialtica, tal como estabelecidas na concep-o aristotlica, o que tem sido uma preocupao constante nos traba-lhos de Perelman e seus continuadores.

    Chega-se, por esse caminho, s caractersticas bsicas que sem-pre nortearam a retrica, desde as suas origens e que a pautam tambmem nossos dias, guardadas as diferentes condies e modos de existn-cia. So elas:

    l. Eficcia:

    No discurso persuasivo so mobilizados todos os recursos retricospara a produo de efeitos de sentido, isto , com vistas a um determi-nado fim, havendo pois um carter manipulador em seu funcionamento.De fato, so as projees do sujeito da enunciao que iro determinaro desenrolar da argumentao, da a importncia das teorias enuncia-tivas para todo e qualquer enfoque retrico. H que observar, sobretu-

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    do, os traos enraizados na enunciao (as formas de discurso, o modo,os procedimentos de avaliao e outros ndices).

    Nesse sentido, todo discurso uma construo retrica, na me-dida em que procura conduzir o seu destinatrio na direo de umadeterminada perspectiva do assunto, projetando-lhe o seu prprio pontode vista, para o qual pretende obter adeso. Conforme se depreende,essa concepo de base pode ser o ponto de partida para o estudo daestrutura discursiva do texto, do inventrio dos tpicos e das escolhasestilsticas efetuadas. Assim vista, a Retrica sempre uma techne queimplica cultivo, aplicao e estratgia. Na tradio retrica latina, Ccero no seu De Oratore, Livro Primeiro, que nos fornece indicaespreciosas a esse respeito3:

    Se, de fato, aquelas coisas que tm sido observadas no uso e no tratamento dodiscurso vm notadas e assinaladas por pessoas hbeis e sagazes, e definidascom as palavras, explicadas nos seus gneros, distribudas nas suas partes coisa que me parece seja possvel fazer-se no compreendo porque, emborano com o rigor de uma estrita definio, todavia ao menos no sentido lato,a retrica no deva ser considerada uma arte.

    Pode-se dizer que sob o conceito de Retrica renem-se dois ramos:

    l. Estudo da produo literria, em que a preocupao a idiade ruptura, de inovao, de desvio. Portanto, o que lhe interessa aoposio regra/desvio e o cultivo da diferena, cabendo discusses aesse respeito.

    2. Estudo da produo persuasiva propriamente dita, da expres-so eficaz, baseada no acordo implcito dos valores e no princpio dacooperao dos envolvidos no ato comunicativo. Dentro dessas con-

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    (3) CICERON, De lOrateur, Libr. I, chap. 23.

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    dies, parte de uma apologia da norma, do senso comum, da partilhade princpios e expectativas. , portanto, a noo de identidade queconsolida o ato de adeso. So os esteretipos, os lugares-comuns quecirculam em suas manifestaes.

    A Retrica se identifica com a teoria do discurso persuasivo, tantopara Aristteles como para Perelman. Para este, argumentao e ret-rica so ligadas, pois no existe discurso sem auditrio e no h argu-mentao sem retrica. Na realidade, porm, no se trata de exclusivi-dade de uma ou outra dessas tendncias, ocorrendo antes umasuperposio. Assim, na Retrica da Poesia, por exemplo, o Grupo aponta os traos que fazem da poesia um instrumento bastante eficaz.

    O fato de os mecanismos retricos, por seu carter estratgico,no sentido logstico mesmo do termo, produzirem efeitos de sentido,coloca a Retrica em conexo com a Semitica, que se ocupa das pr-ticas significativas, sejam elas verbais ou de outra natureza. Tambm aRetrica tem estendido os seus estudos a outras linguagens (flmica,pictrica, plstica), conforme se pode constatar na farta produo doGrupo , da Universidade de Lige, que desde 1970 vem se ocupan-do da comunicao visual, com a preocupao de estudar a possibili-dade de transferncia, para esse domnio, dos conceitos retricos decarter lingstico. dessa data a sua Retrica Geral, traduzida emmuitas lnguas, inclusive em japons e coreano, e que foi inicialmentedenominada Rhtorique gnralise, exatamente por no privilegiar overbal.

    Em 1964, Roland Barthes lanava na revista Communicationsimportante artigo intitulado Rhtorique de limage, posteriormenterepublicado em LObvie et lObtus, como parte de seu primeiro captu-lo, intitulado Lcriture du visible. Na Frana de nossos dias, so ostrabalhos de Jean-Marie Floch, como Identits Visuelles, de 1994, queperfilham os novos caminhos, abertos com o envolvimento cada vezmaior da publicidade e do merchandising.

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    As relaes entre Semitica e Retrica foram alvo de estudos doSminaire Intersmiotique de Paris da cole de Hautes Etudes en SciencesSociales (EHESS), em seu semestre letivo de 1995/1996, do qual parti-cipamos durante estgio de estudos e pesquisas na Europa. O tema quese estabeleceu, dentro desse quadro de relaes, como norteador dogrupo participante, foi a questo da tensividade (Vers une rhtoriquetensive). Reconheceu-se inicialmente que, apesar de a Semitica ter-se mantido afastada da Retrica, as duas disciplinas tm-se voltadopara o mesmo tipo de fenmenos. Assim que o Seminrio props-se,como objetivo central, examinar a pertinncia e o valor operatrio,no campo da retrica, de uma hiptese tensiva. A partir do momentoem que se adota uma perspectiva essencialmente discursiva, o conjun-to do campo retrico (lugares, tropos, figuras) aparece como o daregulao e da modalizao das tenses entre grandezas, dimenses ouenunciaes que esto em concorrncia nas camadas profundas dodiscurso e que iro aceder manifestao.

    A questo bsica , pois, a da solicitao patmica da figura,provocada por ocasio da enunciao em ato, isto , no domnio dovivenciado (eprouv) do conflito, aberto em cada ponto do discurso.

    Tal perspectiva j tem sido trilhada pelos desenvolvimentos dePaul Ricoeur, no caso da metfora, e por M. Prandi, no que toca sformas do que ele chama conflito conceptual, na questo dos tropos.Entre os semioticistas, destacam-se os trabalhos de Claude Zilberberg,Jacques Fontanille, Denis Bertrand, Per Aage Brandt e outros.

    Por sua parte, a Sociossemitica tem procurado dar conta dojogo de foras que se realiza no discurso, da fala como ato jurdico, dospapis de que se investem os interlocutores, da noo de cenrio e deespetacularidade no quadro social. Nesse sentido, tm sido esclare-cedores os estudos empreendidos por Eric Landowski no mbito dessadisciplina, entre os quais destacamos A sociedade Refletida, obra emque o autor se volta para vrios tipos de discurso (o jurdico, o poltico,

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    o publicitrio e o jornalstico), preocupando-se com o seu funciona-mento global e a eficcia social de tais atividades discursivas.

    Conforme se pode perceber, a Retrica enquanto teoria dodiscurso persuasivo confina com vrias disciplinas, delas recebendosubsdios, ao mesmo tempo em que fornece seu arsenal j milenar, apartir das experincias que o homem tem feito desde que percebeu afora de seu discurso sobre o outro.

    II. Carter utilitrio:

    O surgimento da Retrica na Grcia Antiga prende-se lutareivindicatria de defesa de terras na Siclia, que haviam cado empoder de usurpadores. Esse carter prtico, aliado eficcia, estevesempre presente nas finalidades da Retrica e o que modernamente asitua junto Pragmtica.

    De fato, para se decidir em que medida um discurso visa persua-dir e como o faz, h que levar em conta as caractersticas fundamentaisda situao em que ele se d e as relaes de intersubjetividade dosinterlocutores. Os efeitos perseguidos pelos discursos persuasivos soprodutos no de um simples ato ilocutrio, como tambm de elemen-tos extrados da fora ilocucionria da situao. Cabe ainda lembrarque o ato de informar no existe em estado puro e serve antes a con-vencer e persuadir do que por si prprio. Assim que discursos que setm como informativos, tais como o cientfico e o jornalstico, so oexemplo disso, uma vez que existem em funo de determinada finali-dade prtica a ser atingida. Por esse motivo, coloca-se em questo atradicional diviso das modalidades dos gneros jornalsticos em infor-mativos, interpretativos e opinativos que, na realidade, serve apenaspara balisar a prxis jornalstica, quando no mesmo para despistar umleitor desavisado.

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    A linguagem assim instrumento no s de informao, masbasicamente de argumentao e esta, por sua vez, se d na comunica-o e pela comunicao, razo pela qual a argumentao sempresituada, dando-se basicamente num processo de dilogo, isto , numcontacto entre sujeitos.

    Para Ducrot e Anscombre, a argumentao se inscreve na pr-pria lngua, dada a natureza argumentativa da linguagem. O explcito lingisticamente portador de uma concluso, sugerida pelas vari-veis argumentativas imanentes frase. Os autores rejeitam a idia deque uma frase se basta a si mesma por sua prpria estrutura para lhe darsentido, independentemente do contexto. Insistem no elo que h en-tre explcito e implcito como constitutivo da intelegibilidade e nofato de que o argumentativo no um acrscimo ao explcito, mas estna relao entre ambos. Esclarecem tambm a questo do literal que,na realidade, produzido em funo de um sentido implcito, pontoesse bastante importante quando se examina a figura e sua natureza.

    So fundamentais aos estudos retricos alguns campos bsicos,sobre os quais refletiremos, com vistas a um reexame e atualizao eque sero apontados a seguir:

    1. As partes componentes do sistema retrico2. Os gneros do discurso3. A figura

    1. Partes da Retrica:

    Inicialmente, preciso achar o que dizer; em seguida, ordenar oque se encontrou e proceder a um investimento no plano da expres-so, de modo a ter adequao nas escolhas. Na realidade, o que se d que o pensamento, as idias se forjam num trabalho conjunto com a

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    linguagem, resultando que aprender a exprimir-se tambm aprendera pensar. No Livro Terceiro do De Oratore, Ccero expe com muitafelicidade essa relao de dupla implicao, que seu estilo inconfund-vel expressa maravilha4:

    De fato, abundncia dos assuntos gera a abundncia das palavras; e se existenobreza nos assuntos de que se fala, surge da natureza do assunto certoesplendor natural das palavras(...). Assim, facilmente, na abundncia dosassuntos, da prpria natureza fluiro os ornamentos da orao, sem guiaalgum, desde que seja ela exercitada.

    As partes componentes do sistema retrico para os gregos eramquatro a inventio, a dispositio, a elocutio e a actio s quais os roma-nos acrescentaram mais uma, a memoria.

    Inventio - o estoque do material, de onde se tiram os argumen-tos, as provas e outros meios de persuaso relativos aotema do discurso. A topica de que trata Aristteles. Oestudo dos lugares elemento de prova de onde se ti-ram os argumentos parte essencial da inventio. Tra-ta-se, portanto, de retrica do contedo.

    Dispositio - a maneira de dispor as diferentes partes do discurso,o qual deve ter os seguintes componentes: exrdio,proposio, partio, narrao/descrio, argumenta-o (confirmao/refutao) e perorao. Trata-se daorganizao interna do discurso, de seu plano.

    Elocutio - o estilo ou as escolhas que podem ser feitas no pla-no de expresso para que haja adequao forma/con-

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    (4) CICERON, De lOrateur, Libr. III, chap. 31.

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    tedo. So conhecidas as virtudes apregoadas pelavelha Retrica e que ainda continuam sendo precei-tos do bem dizer, embora nem sempre os meios decomunicao os tenham em mente: correo, clare-za, conciso, adequao, elegncia. Nessa parte, hainda que considerar a questo das modalidadesde estilo, mencionando a conhecida teoria dos trsestilos, de acordo com a adequao de elocuo: sim-ples, mdio e sublime. A Retrica seria, portanto,uma arte funcional, por todos esses aspectos.

    Actio - a ao que atualiza o discurso, a sua execuo econstitui o prprio alvo da Retrica. Nela se incluemos elementos suprassegmentais (ritmo, pausa, ento-nao, timbre de voz) e a gestualidade. H, portanto,lugar para o no-verbal, que faz parte integrante doato da comunicao.Tem-se que considerar a presen-a de um auditrio, em relao ao qual o princpiobsico o de adequao, tendo-se como finalidadeno apenas convencer pelos raciocnios, mas persua-dir com base na emoo.

    Memoria - a reteno do material a ser transmitido, conside-rando-se sobretudo o discurso oral, em que um ora-dor transmite mensagem a um auditrio. Para Quin-tiliano, a memria era no somente um dom mas umatcnica que poderia tambm ser desenvolvida porprocessos mnemnicos, os famosos truques para areteno do discurso. Constituem elementos essen-ciais para essa finalidade a prpria estrutura do discur-so, a sua coerncia interna, o encadeamento lgico

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    das partes, a euritmia de suas frases. Conforme sepode observar, as trs partes fundamentais do siste-ma retrico so fundamentais para que se possa tero discurso disponvel na memria. Esta, longe deser um entrave criatividade, permite uma melhorposse do discurso, o que no elimina a improvisa-o e a capacidade de adaptao s eventuais refu-taes. A memoria permite no somente reter, mastambm improvisar.

    Pode-se dizer que ainda hoje esses passos propostos pela Retri-ca Antiga constituem procedimentos importantes para a consecuode um trabalho bem composto e de boa qualidade. Os recursos moder-nos da eletrnica no desterraram o trabalho da memria, como sera-mos levados a pensar. Pelo contrrio, voltam a recuper-la e a valoriz-la. O elemento oral, que havia sido marginalizado pelo advento da eragutenberguiana, entroniza-se com toda a fora atravs da mdia emgeral (telefone, rdio, televiso, gravao eletro-magntica do som eda imagem). A comunicao oral pode permanecer, ser conservada,transmitida distncia, reproduzida, tal como a escrita. J no bemverdade que verba volant scripta manent. Alm disso, nota-se na atuali-dade o enfraquecimento da oposio oral/escrito, uma vez que a reali-dade comunicativa atesta a presena de muitas atuaes hbridas.

    A Retrica retorna vigorosa, portanto, no s nas suas trs pri-meiras partes (inventio,dispositio e elocutio), desenvolvidas pela via l-gica e pela anlise lingstico-estilstica, mas tambm na memoria e naactio, enquanto forma de apresentar as palavras, de gesticular (aKinsica), de fazer a interao com o espao (a Proxmica). H todoum universo performtico a considerar e que veio a restaurar igual-mente os componentes emotivos, sensuais e de prazer da palavra,com a sua presentificao. Voltam tambm tona os traos que esta-

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    vam recalcados e refreados e que os novos meios permitem expan-dir e revelar. A seduo, nesse contexto, tem plena possibilidadede exerccio como instrumento de persuaso. Assim, a Psicanlisee a Semitica das Paixes vm bem ao encontro das preocupaesplenas da Retrica e como um sistema retrico que cabe tom-la em sua atual revigorao.

    2. Os gneros do discurso:

    Classificados segundo o objetivo e o contexto, os gneros bsi-cos de discurso remontam antiga Retrica e hoje se atualizam sobformas bastante variadas, assumindo novos formatos. So eles: o dis-curso judicirio ou forense, o discurso deliberativo ou poltico e o dis-curso epidtico ou cerimonial. Os discursos podem apresentar lugarescomuns (Topoi), o fundo lgico comum a todos os discursos inscritosnuma mesma tradio cultural, e lugares prprios a cada um (eidos) eque passamos a destacar a seguir:

    O discurso judicirio visa a destruir os argumentos contrrios,tendo que combater a parte oposta, ou seja, a tese proposta eapresentar provas tcnicas (criadas no discurso e dependen-tes da retrica), alm das extra-tcnicas preexistentes ao dis-curso (leis, testemunhas etc).

    O discurso deliberativo trata de questes ligadas coletivida-de, polis em sua totalidade, quanto sua administrao es decises a serem tomadas em benefcio pblico. Em suaArte Retrica, Aristteles atribui-lhe cinco questes bsicas5:

    (5) ARISTTELES, Retrica, Liv. I, cap. IV, se. II....................................................

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    1) recursos financeiros, 2) guerra e paz, 3) defesa do territ-rio, 4) importao e exportao e 5) legislao.

    O discurso epidtico o que procede ao elogio ou censura e,por explorar todos os recursos literrios, oscila entre o funcio-nal e o esttico. Ao cumprir uma funo social e cvica, liga-se tambm a questes de tica pblica.

    Segue-se um quadro com a finalidade de cada tipo de discurso, o tem-po afetado, a categoria envolvida, o tipo de auditrio, os critrios deavaliao e o argumento-tipo:

    Finalidade Tempo Categoria Auditrio Avaliao Argum. tipo

    Judicirio Acusar/ Passado tica juiz/jurados justo/ entimema

    defender injusto (dedutivo)

    Deliberativo Aconselhar/ Futuro Epistmica assemblia til/ exemplo

    desaconselhar prejudicial (indutivo)

    Epidtico Elogiar/ Presente Esttica espectador belo/feio amplificaocensurar

    Na realidade, embora esses gneros sejam bem delineados, den-tro da mesma argumentao podem ocorrer traos dos trs tipos dediscurso, numa relao de dominncia e no de excluso, tal como sepde observar a partir da especificao dos lugares prprios de cadaum, em que j se entrevem determinadas imbricaes. Os diversostipos de discurso convivem, na tentativa de ganhar a adeso do pbli-co e o seu assentimento, ou seja, de convenc-lo da validade da causaproposta e persuadi-lo sua aceitao.

    Com a multiplicao dos meios de comunicao, ocorre tam-bm uma extrema diversidade de manifestaes, que apontaremos a se-guir, embora sejam os debates jurdicos e polticos que mais intensamen-te mantm viva a tradio retrica. Eis algumas verses atuais de aplica-o dos trs tipos de discursos tratados pela velha retrica:

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    O discurso judicirio: Nos tribunais - utilizado pelo promotor e pelos advogados de

    defesa/acusao em seus julgamentos. Nos sermes - utilizado por chefes religiosos, acusando ou de-

    fendendo comportamentos ou atitudes de afiliados ou no determinada crena religiosa.

    Em manifestos, cartas abertas e notas oficiais, denunciando ouinocentando pessoas e atos. Atente-se para documentos des-sa natureza, publicados nos jornais e na imprensa televisiva,para corrigir boatos, desfazer equvocos ou rebater acusaes.Trata-se, por este meio, de dar uma satisfao comunidade,preservando ou alterando uma determinada imagem de simesmo, indivduo ou instituio.

    O discurso deliberativo: Documentos tcnicos com recomendaes de consultores,

    pareceres e outros documentos desse gnero. Discursos polticos em geral, propondo ou desaconselhando a

    aprovao de projetos de lei, medidas provisrias e outrascongneres.

    Pronunciamentos aconselhando ou desaconselhando medidasdiante de posies controvertidas, tais como adoo de um novosistema de governo diante de um plebiscito, por exemplo; ques-tes embaraosas como a instituio da eutansia, a legalizaodo aborto ou do comrcio de drogas.

    O discurso epidtico: Discursos comemorativos, em ocasies solenes, geralmente de

    carter emotivo, tais como despedidas, entrega de condeco-raes, cerimnias de formatura ou colao de grau, encerra-mentos de eventos, tomadas de posse para cargos e outrassituaes semelhantes.

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    Discursos fnebres, em que se exaltam as virtudes de umfalecido estimado ou famoso por seus mritos.

    Algumas das proposies da Retrica, no que toca questodos gneros do discurso, podem hoje ser reexaminadas luzda teoria dos atos de linguagem, o que no cabe entretanto,desenvolver nesse trabalho.

    3. A Figura:

    Constitui uma das questes basilares da Retrica e na Antigi-dade foi alvo de estudos primorosos, tendo-se chegado a um invent-rio exaustivo e a classificaes bastante detalhadas. Cultivadas nos tra-balhos da Idade Mdia, bastante valorizadas no Renascimento, no s-culo XVIII as figuras foram tema de estudo com Dumarsais em seuTrait des Tropes (1730) e no sculo XIX com P. Fontanier (1821-1827)em Les Figures du Discours, reeditado em 1968 com introduo de G.Genette.

    O papel da figura nos estudos retricos foi assumindo to gran-de proporo que, em determinado perodo de sua histria, a Retricareduziu-se ao seu exclusivo estudo, sendo esta uma das razes do sen-tido restrito que passou a veicular e que a distanciou de sua acepoplena, apta a atender aos demais componentes envolvidos no discur-so. Na realidade, foi contra esse tipo de retrica restrita que se volta-ram os que se propuseram a reabilitar o sentido original da retrica.Roland Barthes, ao se pronunciar a respeito, considera que seria umcontra-senso limitar a Retrica ao estudo dos tropos e termina sua ex-posio sobre a retrica antiga, mencionando o que ele considera oseu legtimo alcance6:

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    (6) Cf. BARTHES, R. A Retrica Antiga. In: COHEN, J. et alii. Pesquisas de retrica.Petrpolis, Ed. Vozes, 1975, p. 221.

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    Por isso, reduzir a retrica categoria de objeto total e puramente histrico,reivindicar com o nome de texto, de estilo, uma nova prtica da linguagem enunca se separar da cincia revolucionria representa um nico e mesmotrabalho.

    A quebra do equilbrio primitivo da Retrica levou a diversasalteraes, entre as quais ao privilgio concedido ao texto literrio,especialmente na Frana. No mundo anglo-saxo, a Retrica perma-neceu mais prxima de suas origens. Tais tendncias dissociativas fo-ram bastante prejudiciais a uma concepo integral de retrica, talcomo concebida por Aristteles e recuperada nos estudos atuais.

    No reinado da figura, a metfora foi sempre a rainha, constituin-do um dos recursos mais importantes da lxis (elocutio), portanto doplano de expresso, seja da lxis retrica, seja da lxis potica. Aristtelestrata da metfora tanto na Arte Retrica como na Arte Potica, mas asua funo difere de uma para outra, uma vez que na Retrica o seuvalor argumentativo, antes de mais nada. Portanto, a distino noest no procedimento metafrico, que basicamente o mesmo nosdois casos, mas na estratgia de sua utilizao. Em ambas, a metforaconstitui sempre um processo de enriquecimento, em sua funo est-tica de ornato ou de elemento argumentativo, enfim, em sua plenitu-de. No se pode negar a eficcia do uso da metfora nos mais variadostipos de discurso, no s naqueles tidos como explicitamente persuasi-vos (poltico, publicitrio, jornalstico e outros) como tambm nas for-mas mais sutis do discurso literrio.

    Definida por Aristteles como a capacidade de perceber se-melhanas, a metfora hoje alvo de muitas investigaes e seu valorheurstico vem sendo ressaltado em virtude da funo mediadora quelhe dado exercer. Os trabalhos de G. Lakoff, notadamente, sob aperspectiva de uma semntica cognitiva, colocam a metfora no cen-tro do sistema conceptual, como a possibilidade de assegurar a expres-so de nossa experincia, de maneira sensvel, isto , incorporada,manifestando-a sob a forma de uma linguagem figurada.

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    Inmeras tentativas foram feitas, dentro do mbito da Retri-ca, com o intuito de classificar o inventrio das figuras, cujo nmerose elevava a cerca de duzentos e cinqenta tipos.

    Fontanier, em 1830, na obra citada, fizera uma tentativa de clas-sificao, chegando a distinguir sete classes, segundo o critrio das par-tes afetadas: 1. figuras de significao ou tropos, em uma s palavra; 2.figuras de expresso, ainda recaindo sobre a significao, mas envol-vendo vrias palavras; 3. figuras de dico, que trazem modificaomaterial na forma das palavras; 4. figuras de construo, quando afetama ordem das palavras ou a sua expanso/subtrao; 5. figuras de elocuo,que procedem da escolha no nvel da expresso da idia; 6. figuras deestilo, escolha de palavras para expresso de um juzo, relacionando pelomenos duas idias; 7. Figuras de pensamento, torneios dados ao prpriopensamento, independentemente de sua expresso.

    Em decorrncia dos avanos trazidos pelas Cincias da Lingua-gem e disciplinas afins, tornou-se imperiosa, em nossos dias, a necessi-dade de reviso e adaptao da questo das figuras sob novas perspec-tivas. Nesse sentido, cabe destacar a contribuio de Lausberg e, so-bretudo, a do Grupo , de Lige, que em sua Retrica Geral faz umreexame da figura e estabelece uma classificao mais abrangente, sobo nome de metboles, que compreendem quatro classes, examinadassob trs operaes gerais, quais sejam, de juno, supresso e permuta:

    Metaplasmos - figuras formais, que agem sobre o aspecto sono-ro ou grfico das palavras e unidades menores.

    Metataxes - figuras de sintaxe.Metassememas - figuras de natureza semntica.Metalogismos - figuras aproximadas s conhecidas como figuras

    de pensamento.

    Tal como Hjelmslev, o Grupo considera o plano de expressoe o plano do contedo, tomando-os quanto sua substncia e sua

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    forma. Pode-se, portanto, represent-los no seguinte quadro, de acor-do com o elemento em que incidem:

    expresso Contedo

    vocbulo Metaplasmo Metassemema

    Frase Metataxe Metalogismo

    Barilli, renomado professor da Universidade de Bolonha, quepercorre a histria dos conhecimentos retricos de suas origens sposies mais recentes, reconhece ser o empreendimento classi-ficatrio do Grupo at hoje o mais vlido e exaustivo7. Pode-sedizer que, ao renovar a nomenclatura tradicional e chegar a uma es-merada taxonomia, os estudiosos de Lige forneceram um precio-so instrumento de trabalho, aplicvel aos vrios tipos de discurso. Emsua Retrica da Poesia, o Grupo tira o mximo partido desse bem funda-mentado sistema descritivo.

    Perelman, coerentemente com a sua filosofia da retrica, consi-dera as figuras segundo o fim a que se prestam na argumentao e asclassifica em figuras de presena, figuras de seleo e figuras de comu-nho. Embora o autor privilegie a inventio e a dispositio, que ele recupe-rou em sua teoria da argumentao, no despreza entretanto a elocutio,nem a isola das outras partes, mas a subordina aos princpios de adeso,de adequao, de convenincia e outros ligados s questes do audit-rio e da retrica como prtica social. Enfim, Perelman no prescindedos objetivos gerais da argumentao.

    Quando se trata da figura, muito discutvel a questo dograu zero que equivaleria teoricamente inexistncia de desvio, masque na realidade uma construo artificial e no pode se confundir

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    (7) BARILLI, R. Retrica. Lisboa, Ed. Presena, 1985, p. 156.

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    com nenhum tipo de discurso, como muitas vezes se intenta fazer.O grau zero da retrica praticamente no se d nem no discursocientfico, que dele procura se aproximar, nem tampouco na chama-da linguagem comum, que no domnio exclusivo da denotao.Sobre o linguajar cotidiano, ficou conhecida a afirmao deDumarsais, segundo a qual se fazem mais tropos num dia de merca-do que numa solene tribuna.

    A grande reformulao na maneira de abordar as figuras de ret-rica reside no fato de que passam a ser examinadas como figuras dediscurso e no como figuras de palavras ou construes. So, portan-to, figuras de texto, por desempenhar um papel na produo geral desentido que nele se d, isto , participam de um procedimento discursivode construo de sentido. A ruptura das regras combinatrias espera-das, criando uma impertinncia semntica, possibilita a produo denovos sentidos e outras leituras criadas pelo novo recorte. o que d figura margem para estabelecer um outro ponto de vista sobre o mundo,a explorao de uma outra perspectiva, contando com a sua capacida-de de reorganizao cognitiva e sensorial. Ela tem o mrito de tornarsensvel um contedo ausente e, com isto, de propiciar a criao deuma iluso referencial. No funcionamento de um texto, a figura permitepassar de uma isotopia a outra, no caso de um texto pluri-isotpico,compreendendo-se aqui isotopia como a reiterao de traos, qualquerque seja a sua natureza, ao longo do discurso.

    Tratar a figura e, em ltima anlise a metfora, como elementode modulao na construo do enunciado, significa considerar asvariaes subjetivas que se efetuam, tendo como fundo um recortesocial mais amplo. , pois, de carter modelizador a proposta de umaoutra viso das coisas, implementada pela metfora e que resulta mui-tas vezes na quebra do esteretipo.

    Fontanier, na j citada obra, distingue a metfora de inveno,aquela que contextual e instantnea, da metfora de uso, j codi-ficada por uma comunidade lingstica, fato de Lngua e no de discur-

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    so. Nos tipos de discurso que do acolhida aos lugares-comuns, ametfora de uso tem a sua funcionalidade. Sabe-se que o esteretipopode veicular a voz da coletividade e a lgica da conscincia social,sendo um meio por onde a ideologia flui com facilidade. Nada maismanipulador do que a premeditao e criao desse princpio de con-senso e unanimidade, quando estimulados artificialmente. Ao confir-mar o j-sabido, impedem o papel de descoberta e de reorganizaoque est na base da metfora de inveno.

    Em Aristteles, o verossmil depende, em ltima instncia, daopinio comum, isto , do pblico. Se observarmos hoje o discursopublicitrio, veremos que ele lana mo de idias consensuais para acoletividade e, ao inseri-las na argumentao, alcana os efeitos deespelhamento e identificao desejados, acabando por sugerir umaao. Para a publicidade, o verossmil se apresenta no como o ver-dadeiro, mas como aquilo que se parece com ele, que lhe d impres-so de verdade, ou seja, atravs da tica da iluso, na tentativa deimitar a realidade.

    Por outro lado, na lexis potica que vamos encontrar o espaoextremo da transgresso, das metforas arrojadas, emergentes da redede relaes criadas nas significaes contextuais, isto , feitas sobmedida para aquele evento textual. Cabe lembrar que nas teoriasatuais sobre a enunciao, esta tratada como um acontecimentoe a situao discursiva como uma cena montada, com seus procedi-mentos estratgicos. Pode-se dizer que o processo de metaforizaoenvolve todo o discurso potico, lugar por excelncia de escolhasestilisticamente marcadas, de explorao mxima das virtualidadesdo sistema.

    Qualquer que seja, entretanto, a forma assumida pelo processometafrico, prevista ou no pelo cdigo, ele ir necessariamente trazeruma viso de mundo, que pode ir da estereotipia ao contra-senso, sejareiterando saberes partilhados, seja estabelecendo relaes inditas entre

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    as coisas. O que importa , portanto, avaliar a sua funo argu-mentativa dentro daquele determinado tipo de discurso, isto , osefeitos produzidos. Nesse sentido, fica evidente a funo persuasi-va que a figura exerce sobre os elementos emotivos que constitueme fundamentam a estrutura dos sujeitos, ultrapassando o seu papelpuramente informativo para cumprir uma finalidade de incitamentoe de seduo.

    A publicidade mostra, com grande xito, que a figura no deordem puramente esttica e que ela pode ser altamente persuasiva.Cabe ressaltar ainda que estudos sobre o discurso potico revelam ofato de que o esttico e o persuasivo esto indissoluvelmente ligados8.

    Pontos de Contacto:

    O que se pde observar ao longo dessa exposio o fato de queso mais numerosos os pontos comuns que os divergentes, se compa-rarmos a velha Retrica com os seus desdobramentos atuais nas Neo-Retricas, razo pela qual fica evidente a continuidade dos estudosretricos. No s so constantes as remisses aos autores do passado,como tambm se constata, por sua leitura, que as noes fundamentaisdas Neo-Retricas j estavam presentes nos estudos da Antigidade:

    A finalidade prtica. O exerccio da argumentao no cotidiano. A concepo de discurso convincente. Argumentao/Persuaso. O mundo da opinio, a doxa.O conjunto das opinies parti-

    lhadas. A presena do no-racional. O sentir, as categorias pulsionais,

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    (8) Cf. GROUPE , Retrica da Poesia (1980), KLINKENBERG, J. M. Le sens rh-torique. Essais de smantique littraire (1990), MEYER, M. e LEMPEREUR, A. Figures etConflits Rhtoriques (1990) e outros.

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    as paixes. A adequao ao pblico e suas caractersticas. O auditrio

    contextualizado. A argumentao situada. Teorias do sujeito e procedimentos

    enunciativos. O bem pblico, o cidado. O quadro social da argumentao. A existncia de algum que julga. Relaes intersubjetivas.

    Lgica dos valores. O jogo de representaes. Construo mtua dos sujeitos.

    Papis sociais. Funo persuasiva da figura. Papel relevante da metfora.

    Por todos os traos apontados, pode-se falar em reflorescimentoda retrica, em sua revitalizao ou qualquer outra metfora do gneroque mostre esse elo com o passado. O novo esprito da retrica o daintegrao e um dos seus objetivos o de eliminar a fissura que seestabelecia entre as cincias humanas e as cincias dos discursosaxiomticos da demonstrao, do mbito da matemtica e das cinciasque nela se apiam. Foi a filosofia do Direito que levou Perelman aobservar que havia domnios que no poderiam ficar entregues ao ar-btrio do subjetivo e para os quais poderiam ser desenvolvidas tcnicasapropriadas. A partir dessas preocupaes, surgiram obras suas comoJustice et Raison, de 1963, mas s agora traduzida entre ns, Logiquejuridique (1976), entre outras.

    A resposta a muitas dessas questes Perelman encontrou emAristteles. Entre os xitos de sua Teoria da Argumentao, estaria ode repensar a racionalidade, propondo uma concepo alargada derazo, sem os limites anteriormente aceitos. Este ponto de partida le-vou-o noo de escolha razovel, uma vez que para ele a razo umainstncia histrica e dialtica, reguladora de nossas crenas e convic-es e tambm da liberdade que temos em relao a elas. Esses princ-

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    pios o levariam a uma lgica dos valores. Tais ingredientes, prpriosda Retrica como proposta de viso da realidade, so fundamentaisa todo e qualquer exerccio da liberdade, uma vez que s h lugarpara argumentao onde houver liberdade. quando se considerao outro apto a compreender e a reagir.

    Dentro dessas condies, as teorias da Argumentao se de-senvolvem sobre postulados democrticos e tm que necessariamen-te lidar com valores, preferncias e decises. Para tanto, devemtambm aceitar a existncia de limitaes e imperfeies, isto , ofato de que por melhor que seja a argumentao e suas escolhas, elano pretende ser a manifestao da verdade mas do provvel, docrvel, cabendo comunidade (o auditrio, universal ou particular,de que fala Perelman) decidir a esse respeito.

    Tais concepes contriburam bastante para o aperfeioamentoda noo, to mal conhecida, de pblico e, especialmente, de pbli-co-alvo. Entrelaada a ela, vem tambm o par opositivo do pblico/privado, que os processos comunicativos tm que forosamente levarem considerao para no confundir os respectivos domnios. A teoriade Perelman, em virtude de tratar questes ligadas razo prtica e teoria da ao e de discutir problemas ligados s negociaes de distn-cia entre sujeitos, encontrou boa acolhida nas cincias afins.

    Hoje, j se pode avaliar um pouco mais esse conjunto de idiasperemalnianas. Alguns pontos nele ficam minimizados, tais como ouso da m f e a argumentao fundada na violncia e nas relaesde fora. No possvel ignorar a ligao desta com o poder. Como sepode falar em argumentao situada, sem levantar esses traos tomarcantes na sociedade em que vivemos? nesse quadro espaopblico e espao poltico domnio das questes simblicas, que se do choque de lgicas diferentes: a do interesse e a dos valores. Com aabertura para outras sociedades, em nome de interesses econmicos etambm de aspiraes democrticas, com o desenvolvimento das rela-

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    es entre os povos e o conseqente alargamento da comunidadeinternacional, assiste-se a um processo que leva a ampliar o campopoltico e, simultaneamente, a desenvolver os argumentos trocadosentre as partes. A diversidade dos universos envolvidos conduz,por sua vez, considerao da identidade/alteridade que entramem jogo nesses intercmbios. pelo caminho da argumentao, en-quanto considerao do outro, que se poderia chegar ao respeitomtuo e a ter-se na confiabilidade uma regra para intercmbios fe-cundos. Quantos entraves, entretanto, interpem-se realizaodesse trajeto, que no nada fcil e, s vezes, at mesmo doloroso.

    Nos estudos da argumentao, alm das lgicas no-formaisligadas ao trabalho de Perelman, forma-se um outro crculo em tor-no de Jean-Blaise Grize, da Universidade de Neuchtel, ao qual seligam Georges Vignaux, Borel e outros, voltados para as lgicas na-turais. Seu projeto consiste em explicitar as operaes supostas portoda construo de argumentao, realizada por um sujeito que ageno seu discurso e que, por meio de operaes sobre os significantes,cria representaes e, ao mesmo tempo, sentido. Por seu turno, oanalista deve chegar a uma representao prxima daquela consti-tuda pelo discurso.

    No prefcio obra de Vignaux, intitulada LArgumentation: essaidune logique discursive, Jean-Blaise Grize confere especial importnciaao que ele chama teatralidade no processo que se d na Argumenta-o9:

    Manter um discurso junto a algum, faz-lo para intervir em seu julgamentoe em suas atitudes, em suma, para persuadi-lo,ou antes, para convenc-lo,equivale, de fato a propor-lhe uma representao. Esta lhe destinada, o quesignifica que ela deve toc-lo. Como o ouvinte est sempre situado,em suapessoa, no mundo e nas relaes com aquele que fala, os elementos universais

    (9) GRIZE, J. B., prefcio a VIGNAUX, G., LArgumentation. Essai dune logique discursive,Genve, Droz, 1976. p. VIII. (Traduo da autora desta matria)

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    no sero os que agiro melhor e os raciocnios demonstrativos passarofreqentemente ao segundo plano. Assim, a argumentao aproxima-se mui-to mais do teatro que da geometria. Ela cria um mundo muito mais prximodo de Caldern que do de Euclides.

    A teoria da argumentao, em suas vrias verses, constitui, por-tanto, um eixo importante da Retrica em sua redefinio moderna,em que entram tambm uma teoria da composio do discurso e umateoria da elocuo. O que h de comum entre essas diversas tendnciasest, sobretudo, em considerar o fato de que a enunciao supe umlocutor e um ouvinte e a inteno de influenciar o outro de algumamaneira. Os modelos interacionistas trazem tambm a sua contribui-o, partindo do pressuposto de que todo ato discursivo deve ser com-preendido em sua situao comunicacional. Nossas representaes domundo esto estreitamente ligadas aos modos de sua expresso e so oresultado da criao de relaes intersubjetivas no discurso. Pode-semesmo falar numa espcie de apreenso enunciativa do mundo. Ressal-ta-se, nesse sentido, o grupo de Genebra, representado por JacquesMoeschler (Argumentation et Conversation. Elments pour une analysepragmatique du discours, 1985), Anne Reboul, autores do DictionnaireEncyclopdique de Pragmatique (1994), Eddy Roulet, que coordenou aproduo de LArticulation du discours en franais contemporain (1985).Roulet props um modelo hierrquico do discurso conversacional, re-presentando por rvores as unidades de nveis diferentes que se do naconversao (um ato principal e atos subordinados facultativos), liga-das por funes interativas. H que destacar tambm, nesse sentido, ostrabalhos de Kerbrat-Orecchioni, da Universit de Lyon II (LImplicite1986, Les Interactions Verbales, em trs volumes, 1990) e os de autoriade Christian Plantin (Essais sur largumentation, 1990) ou por ele coor-denados (Lieux Communs, Topo, strotypes, clichs, 1993). Coorde-nou igualmente a recente traduo de La nouvelle dialectique, de F. A.

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    Eemeren e R. Grootendorst, pesquisadores da Universidade deAmsterdam no campo da argumentao.

    Tendo perfilhado os pontos bsicos da natureza e constitui-o da Retrica, em seus primrdios e apontado os desenvolvimen-tos que ocorreram em suas fases posteriores, chegamos condiode poder, numa avaliao final, reunir os principais elementos de-correntes desse reexame:

    1. O carter da Retrica, ao mesmo tempo prtico (arte da cons-truo do discurso) e terico (teoria e anlise desses mesmos discursos)responsvel pelo interesse que esta vem suscitando nas ltimas dca-das, impondo-se junto a vrias disciplinas como o Direito, a tica, aPoltica e a Psicanlise. Num mundo em que os conflitos e as contro-vrsias so inevitveis, as negociaes e a argumentao fazem partedo cotidiano das naes, das comunidades e das pessoas.

    2. As possibilidades de confronto e intercmbio, abertas pelasNeo-Retricas, com outras disciplinas como a Pragmtica Lingstica,a Semitica Discursiva e a Teoria Geral do Texto e do Discurso, com aAnlise Conversacional, para falar apenas das Cincias da Linguagem,uma vez que outros domnios j foram apontados no item anterior.

    3. A contribuio aos estudos da Linguagem: das velhas retri-cas s vertentes atuais, os estudos dos fatos de linguagem tm-se bene-ficiado muito das idias e instrumentos de trabalho fornecidos pelaRetrica. O que h de comum entre elas o fato de se empenharemem fazer uma descrio do ato discursivo. Um balano significativodessa contribuio nos dado por Osakabe, na concluso de seu livroArgumentao e Discurso Poltico10:

    (10) OSAKABE, H., Argumentao e Discurso Poltico. S. Paulo, Ed. Kairs, 1979, p. 191....................................................

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    nessa mesma perspectiva que se v de forma clara a necessidade e a possi-bilidade de recuperao, para a Lingstica, da contribuio da Retrica,talcomo a conceberam Aristteles e Perelman. No, evidentemente, no sentidode eliminar as preocupaes e conquistas que a lingstica desenvolveu ecristalizou no transcorrer de sua histria, desde Saussure, mas no sentido deromper essa mesma cristalizao, em benefcio de uma viso mais globalizantedo fenmeno da linguagem. Isto , no sentido de se oferecer como uma dasalternativas para o conflito que se configura.

    em razo da volta a esses estudos e s suas contribuies quehoje estamos bem mais prximos do conceito primitivo de Retrica ede seu sistema integrado de princpios. Muita coisa tem caminhadonessa direo, nos ltimos anos. Barilli menciona a esse respeito, ocaptulo de Todorov dedicado aos Tropes et Figures em Littrature etSignification onde a nova funo da Retrica identificada com ofazer-nos tomar conscincia do discurso11.

    4. O carter globalizante da Retrica, que conjuga as capacida-des intelectivas s sensoriais e afetivas, atentando para uma funocognitiva e tambm transformativa, mediante os processos de argu-mentao e de persuaso. Trata-se de uma ao, conforme j ex-pusemos, que se d sobre o entendimento ( a discusso de teses) e avontade.

    So esse dois pontos que a Nova Retrica procura tratar comoindissociveis, depois de terem sido polarizados nos sculos que a precede-ram. A bem dizer, tal dissociao no estava presente em Aristteles.

    A Retrica dilata a extenso de seu campo para toda manifesta-o discursiva que visa a adeso do ouvinte/leitor, podendo-se dizerque todo discurso que no aspira a uma validade impessoal depende

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    (11) BARILLI, R. Retrica. Lisboa, Ed. Presena, 1985, p. 158.

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    necessariamente da retrica. Como o grau zero da retrica pratica-mente uma abstrao, nenhum tipo fica isento de sua presena.

    5. Interveno plurissignificativa da Retrica, na medida emque reflete um dizer totalizante, que no se subordina ao domniodo demonstrvel, do rigidamente formalizvel, mas que tem suasregras prprias, permitindo conciliar conhecimento e afetividade,seduo e prazer (o logos e o pathos, intermediados pelo ethos, con-ceitos da antiga Retrica). Recorde-se, na actio, a importncia para aproduo de sentido, atribuda corporalidade, aos gestos, voz e movimentao no espao.

    6. Concepo ampla e concepo especfica de retrica: numsentido amplo, a retrica equivale a uma determinada definio darealidade e, num sentido especfico, ao conjunto de recursos utili-zados para propor essa viso. Ela no , portanto, simplesmenteuma techne a exigir cultivo e arte, mas uma viso de vida que impli-ca tomada de posio, ao no mundo. Assim, fatos que ocupamimportante espao na atualidade, tais como a questo dos DireitosHumanos, em suas mltiplas formas e ocorrncias, e fenmenos taiscomo a Publicidade, por si ss j deixam patentes a vitalidade daRetrica, enquanto proposta de caminhos e alternativas, para osquais se buscam os meios mais eficientes de convencimento e deexpresso.

    7. Competncia retrica: Tendo a comunicao social assumi-do um papel cada vez mais marcante na esfera pblica e no cotidianodas populaes, intensificada pelos meios eletrnicos e pela crescenteinformatizao, os novos modos de vida passaram a exigir o que sepoderia chamar de competncia retrica da parte de qualquer cida-do, em maior ou menor grau. O incremento da publicidade, aliadaaos processos de industrializao e comercializao, viria acentuar esse

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    MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Velhas e Novas Retricas: convergncias e desdobra-mentos.

    tipo de desempenho, tornando-o constitutivo da vida moderna. Nocabe aqui um julgamento sobre o lado positivo ou negativo que tudoisso comporta. O prprio Aristteles j alertava para o mau uso aque a Retrica se prestava, o que faz parte dos paradoxos a que estsubmetida. O exemplo clssico est naqueles que a atacaram e que,ao faz-lo, foram eles prprios bastante retricos. Autores comoRoland Barthes, Todorov e Genette referem-se aos desvios cometi-dos quanto ao estatuto e natureza da Retrica e no s suas finali-dades bsicas, tal como definidas na concepo aristotlica.

    8. Tensividade retrica: O ambiente da comunicao social sed num clima de tensividade, em que ocorrem discordncias devidas aconflitos conceptuais, aos choques semnticos e s diferentes propos-tas de viso de mundo.

    Jrgen Habermas, da Escola de Frankfurt, fundamenta a questodo Direito e da Democracia sobre princpios de comunicao socialbsicos e que constituem a sua garantia, diante das novas configuraesmundiais e dos confrontos gerados pelo multi-culturalismo, conformetratou em curso ministrado em Paris, no Collge Internacional dePhilosophie, em janeiro do corrente ano. A vontade e a necessidade decomunicar passam a ditar novos paradigmas, em que o jogo de influn-cias disputado passo a passo. Nessas circunstncias, e com o adventoda comunicao de massa, a Retrica foi assumindo a feio caracters-tica do homem do sc. XX.

    Do individual ao coletivo, h que contar com o complexo plode emisso, no caso sobretudo da imprensa, e com a diversidade decondies da recepo.

    Conforme se pode observar, o campo da Retrica alargou-sebastante de Aristteles aos nossos dias, o que uma prova dafecundidade de seu sistema e de suas propostas. Por sua vez, a exposi-

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    Retricas de Ontem e de Hoje

    o que ora fao igualmente uma construo retrica, no sentidoaqui definido, na medida em que procurei mostrar a Retrica comogostaria que meu pblico tambm a visse, conduzindo-o para umadeterminada perspectiva do assunto. De fato, essas foram as propos-tas:

    Apontar a viso incompleta, ou mesmo distorcida, que delamuitas vezes se deu e de que se tem conhecimento histrico.

    Apresentar a sua verso atual, as novas formas assumidas. Despertar o interesse e entusiasmo pelas possibilidades que a

    Retrica, assim concebida, oferece aos usurios implicados nosdiversos modos de comunicao.

    Retrica: possibilidades abertas

    As Neo-Retricas no so normativas, seguindo a tradicionalflexibilidade postulada por Aristteles. O que se pode fazer apontaras possibilidades que a Retrica oferece e os papis que pode cumprir.Esto entre as funes mais importantes:

    Suscitar o comentrio, a discusso e, portanto, a argumenta-o. Esta s existe onde no h consenso, uma vez que este resultariana morte da opinio, e constitui conceito-chave tanto na velha ret-rica aristotlica como nas novas retricas. Estimular a polmica, por-tanto, partindo da controvrsia, e exigir assim um interlocutor tam-bm polmico.

    Inocular a dvida, levando reflexo crtica. A exigncia deum pensamento crtico conduz a atitudes tambm crticas e refleti-das.Toma-se o discurso como uma rede de vozes, com hesitaes, osci-laes, idas e vindas muito sutis que exigem do falante/ouvinte umacompetncia discursiva bastante apurada. H que contar com assuperposies enunciativas, as ambivalncias, os equvocos e os desli-

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    MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Velhas e Novas Retricas: convergncias e desdobra-mentos.

    zes semnticos. Conhecer os modos de organizao retrica, de acordo com os

    gneros esperados em determinada cultura e nas diversas configura-es discursivas. No se pode esquecer o fato de que em no